APORTES PARA A RETOMADA DA EFETIVIDADE DEMOCRÁTICA DO DIREITO DE GREVE

Artigo

APORTES PARA A RETOMADA DA EFETIVIDADE DEMOCRÁTICA DO DIREITO DE GREVE

Thiago Patrício Gondim[1]

Henrique Figueiredo de Lima[2]

 

  1. Introdução

Os tempos recentes têm se caracterizado pela eclosão de um padrão específico de crises econômicas mobilizadas pelo capital como uma oportunidade de imprimir a sua narrativa para a construção de um caminho que aponte como solução a implementação de políticas de austeridade (BLYTH, 2014). Antônio Casimiro Ferreira (2012), por exemplo, é um dos estudiosos que compartilha da afirmação sobre as especificidades das crises econômicas dos últimos anos e as compreende a partir de uma chave analítica cujo núcleo central é a associação entre a instauração do paradigma da austeridade e o direito do trabalho de exceção[3].

Dentre os efeitos principais dessa associação, Ferreira (2012, p. 76) destaca a eliminação do conflito enquanto elemento dinâmico do desenvolvimento das relações laborais. Com isso, promove-se a desestruturação de um desenho institucional pluralista de reconhecimento e garantia da autonomia coletiva dos trabalhadores por meio do esvaziamento das condições de realização de seus elementos (autonormação, auto-organização e autotutela), afetando as bases de constituição dos regimes democráticos. Diante desta situação, os trabalhadores se deparam com a redução dos espaços e das formas disponíveis para a sua organização, articulação e mobilização.

No entanto, essas e outras mudanças são justificadas por meio de um discurso de preservação da ordem constitucional e democrática que, em um plano concreto, esvazia o conteúdo e mantém a forma. Neste sentido, instaura-se uma lógica normativa que permite a suspensão de um direito pela sua não aplicação sem a necessidade de revogá-lo. Segundo Alain Supiot (2010), o próprio direito se transforma em uma mercadoria produzida para atender os interesses dos seus principais clientes, os investidores, com o surgimento de um processo denominado “darwinismo normativo” em que os países concorrem para estabelecer padrões de regulamentação do trabalho mais atrativos ao capital.

Reduz-se, por exemplo, a potencialidade do exercício do direito de greve com as restrições referentes à liberdade sindical e à negociação coletiva.    Quanto ao Brasil, a imposição de uma lógica de mercado no processo de produção e aplicação das normas dialoga com uma cultura jurídica predominante entre os operadores do direito que apreende a greve como um recurso extremo a ser utilizado somente em último caso (MANDL, 2014, p. 163-4), promovendo-se a possibilidade de crescimento da aplicação de técnicas que obstruem o exercício do direito de greve a partir da ampliação das ações coletivas e das pautas reivindicatórias abrangidas pela figura jurídica do abuso de direito.

A proposta do presente artigo é não somente apontar algumas das técnicas de obstrução do exercício do direito de greve incorporadas ao ordenamento jurídico brasileiro após a promulgação da Constituição de 1988, como também reforçar uma perspectiva de apreensão da greve enquanto um fenômeno sociojurídico a ser regulado, dentro de um desenho institucional pluralista e democrático, por meio de mecanismos normativos de suporte ao seu exercício que garantam aos trabalhadores um recurso de poder sob a forma de direito com o objetivo de reduzir a disparidade de forças das relações de trabalho no âmbito privado e público.

  1. O fenômeno sociojurídico “greve” sob diferentes prismas

Os estudos sobre greve apresentam uma diversidade de abordagens, dimensões, significados e modalidades para a compreensão deste objeto de análise que nos permite identificá-lo como um fenômeno social complexo e multifacetado. Por meio do exercício da função de regulação das relações sociais, especificamente das relações coletivas de trabalho, o direito produziu ao longo do tempo uma série de formas de absorção da greve que possuem em comum, de acordo com Hugo Barreto Ghione (2016, p. 127-8), embora em diferentes graus, o efeito de reduzir a sua potencialidade conflitiva por intermédio, por exemplo, do uso de técnicas de definição que restringem as condutas que pode expressar. Diante disso, a greve torna-se um fenômeno sociojurídico cujo tratamento normativo está condicionado às atitudes do Estado em relação aos conflitos coletivos de trabalho (CALAMANDREI, 1965; VALVERDE, 1978).

De início, a complexidade da greve pode ser observada por meio das diferentes acepções em termos etimológicos que a definem (VIANA, 2009, p. 105) . Em inglês utiliza-se a expressão strike, que dentre as suas possibilidades de tradução para a língua portuguesa, pode ser compreendida como “ataque”, bem como pelos atos de “golpear”, “bater”, “chocar”, o que evidencia o caráter de resistência através do ataque deste fenômeno utilizado como mecanismo de confronto direto com o patronato, sendo, portanto, uma arma direta da classe trabalhadora contra a exploração do capital (2009, p. 105). Na língua italiana, a parede é denominada de sciopero, que significa “livre de ligações, de vínculos” (2009, p. 105), sendo, portanto, de acordo com Marcio Tulio Viana (2009), o ato de os trabalhadores se retirarem provisoriamente do contrato de trabalho com a intenção de retomá-lo com melhores condições de labor, implicando em uma compreensão formal ligada diretamente ao contrato de trabalho. Em espanhol, a palavra huelga, que significa “férias”, “descanso”, “folga”, conecta a greve diretamente ao ato do não-trabalho, à resistência através da recusa à submissão ao contrato de trabalho (2009, p. 105). Uma vez que a classe trabalhadora adquire a consciência de sua exploração pelo capital – e consequentemente como classe – a mesma cruza os braços, recusando a prestação de sua força de trabalho ao empregador, com vias a ver atendidas as suas reivindicações (2009).

A escolha pela palavra utilizada para defini-la não implica na redução de sua compreensão a uma das possibilidades supramencionadas. Como fenômeno sociojurídico de extrema complexidade é possível apreender a greve como todas as possibilidades citadas em um único fato, tendo como liame a prática da resistência da classe trabalhadora à classe dominante dentro da lógica capitalista através do ataque pelo não trabalho à produção do empregador, com vias a prejudicá-la (VIANA, 2009).

As concepções marxistas observam a greve a partir de uma chave de análise que apresenta a “luta de classes” como o motor da dinâmica social e projeta no horizonte a sua superação. Por meio do reconhecimento do conflito como um componente intrínseco à estrutura das relações sociais de produção, Marco Túlio Viana (2009) considera a greve uma das principais formas de resistência disponíveis à classe trabalhadora diante da opressão do capital (2009, p. 110).

Walter Benjamin (2012, p. 73-4) conceitua a greve a partir da formulação de duas modalidades possíveis para o seu exercício. A primeira, denominada greve geral política, conteria um poder de violência em virtude da sua capacidade de instaurar ou modificar relações jurídicas por meio da derrubada de uma ordem anterior, despertando o temor do Estado com a adoção de uma série de procedimentos para declará-la abusiva. A segunda, chamada greve geral revolucionária, não conteria um poder de violência por ser concebida como um meio puro por conta da sua finalidade de destruir o poder do Estado, sendo o trabalho apenas retomado com a realização deste intento de caráter anarquista.

Sendo a greve inerente à luta de classes, como manifestação da organização coletiva da classe trabalhadora com vias a garantir o prejuízo do capitalista, Bernard Edelman (2016) apresenta o reconhecimento da mesma pelo Estado como um artifício para restringir a atuação da classe operária e reprimir a autotutela dos trabalhadores, tendo em vista que ao reconhecer a paralisação coletiva do trabalho como um Direito, limita a atuação operária, deslegitimando outras modalidades de resistência da classe trabalhadora, haja vista que a legislação de um Estado burguês é um direito burguês, e portanto garante um “poder burguês” (EDELMAN, 2016) que privilegia o interesse da classe dominante em detrimento do amortecimento da autonomia coletiva do proletariado.

Desta forma, Edelman (2016) destrincha o papel dos tribunais, que utilizam da hermenêutica como uma ferramenta para controlar a greve, ao delimitar as possibilidades de deflagração de tal movimento mediante a sua “contratualização” (EDELMAN, 2016), restringindo as possibilidades da mesma ao contrato de trabalho. Neste sentido, a doutrina e a jurisprudência, atendendo aos interesses do capital, reconhecem a greve-política como uma greve abusiva, por não se limitar ao contrato de trabalho, acarretando no esvaziamento da organização – e ação – do proletariado como subterfúgio para a preservação do sistema capitalista e padronização da utilização da autotutela, privilegiando o direito de propriedade do empregador e consolidando o que o autor chama de “sonho da burguesia” (2016), que seria o capitalismo garantido pelo direito.

Não obstante toda greve seja dotada de caráter político, a definição pelo Estado da greve-política como aquela que versa sobre assuntos externos ao contrato de trabalho (EDELMAN, 2016) é um ato político, tendo em vista que busca o aprisionamento da classe trabalhadora aos interesses do capital, acarretando em sua “domesticação” (EDELMAN, 2016) e à delimitação da greve àquilo que é considerado possível para o capital.

Por sua vez, a concepções pluralistas[4] definem a greve como uma forma de manifestação ou exteriorização do conflito associado às relações coletivas de trabalho, dotada de poder equilibrador ou compensatório em virtude do exercício da autotutela pelos trabalhadores a partir de um conjunto de atos unilaterais que servem como instrumento de pressão social (URIARTE, 2000, p. 10-12). Diante de um enfoque que promove a associação entre democracia, cidadania e luta por direitos, o pluralismo apreende a greve como uma forma de participação política dos trabalhadores que obriga os governos e os poderes econômicos a reparar, consultar e até negociar os termos de suas decisões (GHIONE, 2016).

Nesta perspectiva, Laís Abramo (1999) reconhece o movimento paredista como o exercício da cidadania por parte da classe trabalhadora, que ao ver a sua dignidade rompida diariamente – não apenas por questões econômicas, como o salário, mas também quanto à própria noção de respeito por parte do empregador – utiliza de tal mecanismo para ver a sua dignidade resgatada, visando o reconhecimento de sua “identidade como parte da humanidade” (ABRAMO, 1999) e não meramente como parte substituível e acessória do processo de produção capitalista. Para Cristiano Paixão e Ricardo Lourenço Filho (2010, p. 409), este é o conteúdo político da greve, pois a mesma não se evidencia apenas como uma forma de resistência perante o empregador, mas também contra o Estado e seus poderes, opondo-se tanto a sua administração, quanto a sua legislação e ao poder judiciário que em sentido oposto à garantia do exercício do direito de greve, o constrange.

Segundo Paixão e Lourenço Filho (2010, p. 409) a manutenção do movimento paredista enquanto defesa da classe trabalhadora traduz-se na afirmação da greve como um fenômeno sociojurídico, sendo principalmente um mecanismo de atuação política por se consubstanciar na luta contra as opressões do capital quanto as suas diferentes personificações – seja ela o empregador ou o Estado –, assumindo o papel de “exercício de cidadania da classe trabalhadora” (2010, p. 409), reforçando o caráter político intrínseco à parede.

Em comum, as concepções marxistas e pluralistas ressaltam a existência de uma lógica intrínseca ao desenvolvimento da greve que é a vontade de causar prejuízo com o objetivo de dar efetividade à determinada pauta de reivindicações.  Do ponto de vista estratégico, Viana (2009) compreende que a greve se apropria de forma dialética da racionalidade do sistema capitalista e, em defesa de suas demandas, promove um ataque ao ritmo de seus modos de produção com a possibilidade de gerar repercussões para a imagem e a capacidade concorrencial das empresas. Diante da necessidade de fundamentar a legitimidade dessa vontade, Gino Giugni (1991, p. 195-8) afirma que os danos ocasionados à produtividade e às instalações do espaço de trabalho poderiam recair sobre a esfera de responsabilidade dos trabalhadores ou dos sindicatos que os representam somente em caso dos mesmos terem condições reais de realizar uma greve segundo modalidades que os evitem ou reduzam a sua gravidade.

Em regimes democráticos, que reconhecem a força coletiva dos trabalhadores, essa lógica necessita de um tratamento normativo de “sustento” ou “apoio” que identifica a greve como um mecanismo de promoção de transformações sociais progressistas associadas à conquista e à garantia de direitos. Contudo, em concordância com a advertência de Ernesto Valverde (1978, p. 94-5), observamos que muitos países são apenas formalmente democráticos, pois, embora reconheçam o direito de greve, a sua realidade normativa proveniente, por exemplo, dos dispositivos legislativos e das decisões jurisprudenciais, apresenta uma regulação deste direito com tantas reservas e restrições que seria mais adequado definir a situação como regulação limitativa da greve caracterizada pela ocultação de formas de inibição e/ou de repressão do conflito nas relações coletivas de trabalho com a atribuição do status jurídico da ilicitude a uma boa parte dos comportamentos grevistas.

  1. A regulação do direito de greve no sistema normativo brasileiro: do pleno reconhecimento ao desenvolvimento de técnicas de obstrução do seu exercício

A Constituição de 1988, por meio do artigo 9.º, reconhece o direito de greve de forma ampla ao conferir aos trabalhadores a liberdade de decisão em relação ao momento de sua deflagração e ao conteúdo das suas reivindicações, assim como lhe fornece o status jurídico de direito fundamental, sendo abarcado pela vedação do alcance do poder constituinte derivado de reforma ou revisão constitucional ao gozar de proteção enquanto cláusula pétrea (BONAVIDES, 2012).

Em termos formais, a regulação da greve pela constituição de 1988 assemelha-se ao modelo da greve-direito, caracterizado, de acordo com Ernesto Valverde (1978), por um tratamento normativo que demanda uma atitude do Estado de sustento ou apoio à realização da greve, em conformidade com uma perspectiva que mantém as condições para a emergência da sua potencialidade conflitiva, não obstante a sua transformação em categoria jurídica. Essa regulação permite o acolhimento da licitude de diversas modalidades de conflito, dialogando assim com o que Oscar Ermida Uriarte (2000, p. 43) considera fundamental em uma definição em relação ao direito de greve, isto é, a possibilidade de adaptação dos meios de ação coletiva às mudanças do processo produtivo.

Contudo, logo após o início da vigência da Constituição de 1988, o direito de greve se depara com as técnicas jurídicas de obstrução do seu exercício estabelecidas pela Lei n.º 7.783, de 28 de junho de 1989, cujo conteúdo normativo exorbitou das matérias previstas em sede constitucional como objeto a ser regulamentado por meio de lei ordinária, a saber, a definição dos serviços ou atividades essenciais, a disposição sobre o atendimento das necessidades inadiáveis e a previsão dos abusos sujeitos à punição. Neste sentido, destaca-se o artigo 2.º da Lei 7.783/89 que atribui uma definição restritiva à greve ao identificá-la como suspensão coletiva de trabalho, afastando a possibilidade de reconhecimento da legitimidade das formas de greve que provocam uma alteração ou perturbação na normalidade produtiva sem a ocorrência de paralisação parcial ou total das atividades, como ocorre com a greve de braços cruzados ou a greve ativa, caracterizadas, respectivamente por Uriarte (2000), enquanto modos de redução e aceleração do ritmo da produção.

Como o Direito do Trabalho encontra-se em constante disputa (RAMOS FILHO, 2011), uma vez que a legislação decorre de um Estado burguês que serve aos interesses do capital, segundo a perspectiva marxista, a promulgação da referida lei se relaciona com a “contratualização da greve” apontada por Edelman (2016) ao estudar a legalização da greve na França haja vista que, no mesmo sentido, a mesma vem delimitar a greve aos termos do contrato de trabalho, diante de uma lógica patrimonialista, definindo uma série de requisitos para que a mesma seja considerada legal (2016), como se passa a analisar.

Ressalta-se também as técnicas procedimentais incorporadas pela Lei 7.783/89 como requisitos de caráter obrigatório a serem cumpridos pelo movimento grevista enquanto condição necessária para a atribuição da legitimidade da greve. Dentre tais técnicas, consta a comprovação da prévia tentativa de realização de negociação coletiva ou da aplicação do método da arbitragem (art. 3º), a notificação da paralisação à entidade patronal e aos empregados diretamente interessados com antecedência mínima rigidamente determinada (art. 3, parágrafo único, art. 13), a decisão sobre a deflagração da greve realizada por meio da assembléia geral convocada pela entidade sindical reconhecida formalmente como representante de determinada categoria (art. 4º). Embora, à primeira vista, esses requisitos não revelem o efeito de obstrução ao exercício do direito de greve que podem produzir, a interpretação sistemática da lei 7.783/89 descortina o objetivo do legislador de restringir as hipóteses de licitude da greve a partir do uso em larga escala da técnica limitativa do abuso de direito que desloca a apreciação da legitimidade da greve para as formalidades em detrimento das motivações que a desencadearam associadas, em boa parte dos casos, à invisibilidade das formas de coerção cotidianas do poder empregatício.

A promulgação da referida Lei pode ser expressa mediante o entendimento de Wilson Ramos Filho (2011, p. 298) que considera que a legislação trabalhista não surge meramente como um direito protetivo ao trabalhador, mas, ainda, como um direito que deve atender aos interesses do capital. Por conseguinte, Bernard Edelman (2016) afirma que o Direito não é dito pela classe operária, mas sim pela doutrina e jurisprudência burguesa, com o objetivo de manter a greve domesticada, visando se apropriar da luta de classes, legalizando-a para enfraquecê-la, criando um vocabulário que não é compreendido pela mesma. Neste sentido, Mandl (2014, p. 143) compreende que as exigências legais da Lei 7.783 surgem a partir de uma tendência de assimilar a greve como uma ameaça que afeta toda a sociedade, atribuindo um caráter transgressor a tal movimento.

Somado a isto, é possível verificar uma série de condutas praticadas pelo patronato com o objetivo de esvaziar as ações coletivas dos trabalhadores  (MANDL, 2014, p. 145-146), como a formulação de “listas negras”, incentivo aos trabalhadores denominados “fura greve” e, até mesmo, o estímulo ao “home office” para que seja possível a manutenção do trabalho durante a pare, fazendo uso das novas formas de organização do trabalho e do temor ao desemprego, além de outras práticas, que podem ser denominadas de “antissindicais” por se configurarem como violações, por parte dos empregadores, das prerrogativas decorrentes da liberdade sindical (SILVA, 2015)

A judicialização dos conflitos coletivos de trabalho surge como uma forma de reprodução desta mentalidade repressiva, no sentido de o poder judiciário ter a prerrogativa de julgar as greves, por mais legítimas que sejam, como abusivas, por não seguirem os preceitos determinados pela legislação, fruto da ação organizada dos empregadores com vias a limitar os direitos individuais e coletivos do proletariado, conforme preceitua Artur (2009, p. 04), sendo que os interditos proibitórios e dissídios coletivos de greve, com o fim de que os movimentos paredistas sejam declarados como abusivos, são parte da estratégia patronal em ver o desmonte da autonomia coletiva dos trabalhadores (EDELMAN, 2016).

Ainda que a Emenda Constitucional 45 tenha trazido diversas mudanças quanto à competência da justiça trabalhista para o julgamento de dissídios coletivos de greve e interditos proibitórios, Sayonara Silva (2011, p. 206), compreende que a possibilidade de suscitar tais questões sem comum acordo entre as partes é a garantia da concessão de uma prerrogativa única aos empregadores, violando a igualdade e a equidade entre as partes.

Silva (2015, p. 388) aponta o papel do Tribunal Superior do Trabalho durante a “década neoliberal” no processo de reforma trabalhista pelo poder judiciário com a formulação de decisões que não apenas promoveram o enfraquecimento da autonomia coletiva dos trabalhadores, como também criaram obstáculos para a resistência coletiva sob o manto do abuso de direito e privilegiaram o direito de propriedade em detrimento da função social do trabalho (2015). Ainda que seja possível averiguar o surgimento de pontuais posicionamentos progressistas, no sentido de garantir a atuação dos trabalhadores contra as condutas antisssindicais praticadas pelos empregadores que violam a liberdade sindical quanto ao direito de greve de determinado coletivo de obreiros, desde a utilização de práticas administrativas ao ajuizamento desenfreado de interditos proibitórios, a autora (2015) aponta que o poder judiciário, principalmente em momentos de crise econômica, pode vir a restringir o exercício do direito humano à greve, como já vivenciado em momentos pretéritos.

Neste diapasão, e conforme o entendimento de Silva (2015, p. 385), é preciso compreender que, embora a Lei nº. 7.783 de 1989 atribua limites assaz excessivos e “potencialmente inconstitucionais” (2015, p. 385) ao livre exercício do direito de greve, o mesmo deve ser interpretado, de modo a garantir ao máximo sua potencialidade conflitiva, como um direito fundamental, razão pela qual o intérprete do direito deverá adequar as disposições infraconstitucionais às normas internacionais e constitucionais e não o reverso, considerando os direitos humanos, conforme preceitua Joaquin Herrera Flores (2009, p. 19) em sua teoria crítica dos direitos humanos como práticas sociais dos oprimidos contra os seus opressores em busca de sua dignidade.

  1. Conclusão

O padrão recente de crises econômicas gerou para o sistema capitalista a oportunidade de implantação do paradigma da austeridade por meio da adoção de um conjunto formado pelas seguintes medidas: contenção das despesas do Estado, privatização do setor público, aumento dos impostos, diminuição dos salários e liberalização do direito do trabalho. Como componente central deste paradigma, produziu-se um discurso de que a culpa pela situação econômica em que determinado país se encontra passa por todos os indivíduos com o objetivo de se criar as condições para a difusão de uma mensagem à sociedade de que “não há alternativa” e, assim, viabilizar a exigência requerida pelo paradigma da austeridade para a imposição de uma nova ordem social por intermédio de um repertório de medidas neoliberais (FERREIRA, 2012).

No Brasil, esse discurso se materializou em políticas públicas por meio de um golpe institucional que levou Michel Temer à Presidência da República. A crise econômica tornou-se a justificativa para a realização de uma agenda de reformas estruturais pelo governo Temer, em articulação com o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal, mesmo com os altos índices de reprovação da sociedade em relação a tais medidas e ao governo (GONDIM, 2016; CARNEIRO, 2017). Como exemplo, os textos legislativos produzidos sobre a reforma trabalhista no Congresso Nacional naturalizam o argumento neoliberal de que a flexibilização, identificada como modernização, da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) é a única saída possível para a geração de empregos.

No entanto, existem exemplos recentes, como o caso da Webjet linhas aéreas, de que a dispensa coletiva de empregados pode ocorrer mesmo em um contexto de crescimento da participação no mercado de determinada empresa (RODRIGUES, 2017). Além disso, uma das principais mudanças promovidas pela reforma trabalhista é o afastamento do dever patronal de negociar com os sindicatos em caso de dispensas coletivas, aumentando ainda mais a distância em relação ao pleno emprego enquanto um elemento constitutivo da ordem econômica reconhecido pela Constituição de 1988.

Diante deste cenário, torna-se necessário pensar em formas de retomada da busca pela efetividade dos elementos que conformam o Estado democrático de direito previsto na Constituição de 1988, sobretudo de sua ordem econômica que condiciona a realização dos princípios liberais da livre iniciativa, da livre concorrência e da propriedade privada à primazia da justiça social. Com isso, um caminho apontado pelo presente artigo é a criação de condições para a efetividade do direito de greve.

Em razão de a greve ser a principal arma dos trabalhadores contra a opressão capitalista (VIANA, 2009), é necessário encontrar modos de viabilizar a sua efetividade dentro de um sistema em que os direitos dos trabalhadores estão sempre colocados a termo por serem frutos de um ordenamento legal proveniente de um Estado burguês (EDELMAN, 2016; RAMOS FILHO, 2011), em que o lucro e o direito de propriedade, quando colocados à prova, prevalecem sobre os demais direitos da coletividade.

Assim sendo, é necessário concluir que a complexidade do fenômeno sociojurídico da greve e seu reconhecimento irrestrito pela Carta Magna de 1988 evidenciam uma necessidade de interpretação do exercício do direito de greve a partir de sua concepção constitucional, devendo as leis com caráter inferior se submeterem à interpretação da norma superior, bem como dos ordenamentos internacionais, tendo sempre em mente o interesse do Estado em domesticar a atuação proletária (EDELMAN, 2016), inclusive quanto a discussão da constitucionalidade dos dispositivos legais cujo objetivo evidente é amortizar a atuação e organização da classe trabalhadora.

Como a greve remonta ao início do trabalho assalariado (FREDIANI, 2001, p. 19), antes mesmo de qualquer tratativa pelo Estado quanto ao seu exercício, resta claro que a Constituição Federal reconhece a paralisação coletiva dos trabalhadores com o objetivo de causar danos e prejuízos aos empregadores – e à sociedade –, estando a critério dos trabalhadores as razões e reivindicações decorrentes da deflagração do movimento paredista.

Ainda que a Lei 7.783 de 1989 venha delimitar a atuação obreira, ao versar sobre o caráter profissional, vinculado ao contrato de trabalho, da greve, este dispositivo legal, interpretado à luz da hermenêutica constitucional, não pode ser utilizado como subterfúgio para deslegitimar a atuação dos trabalhadores que optam por organizar movimentos grevistas por fora de seu sindicato nos casos em que não se compreendem representados pelo mesmo, bem como as greves com motivações políticas e, inclusive, as greves gerais.

A declaração de abusividade das referidas greves pode ser compreendida como inconstitucional, uma vez que a contratualização da greve não decorre dos ordenamentos internacionais e nem mesmo da Constituição Federal vigente hodiernamente. Dessa forma, por se tratar de um fenômeno avassalador, que visa exatamente prejudicar o empregador e denunciar (VIANA, 2009), dentre outras questões, a precariedade das condições laborais, inclusive em termos ambientais, as ilegalidades provenientes de práticas empresariais coercitivas e os efeitos negativos das políticas econômicas apresentadas pelo Estado, não pode o poder judiciário se furtar de examinar o movimento dentro dos preceitos constitucionais que, em sua literalidade, reconhecem a legalidade e a legitimidade dos danos causados pelo movimento paredista.

A natureza conflitiva e autônoma da greve não pode ser negada e nem posta a termo pelo intérprete do direito, que ao fazê-lo passa a negar a realidade de uma sociedade estruturada em um ambiente desigual onde a organização coletiva dos trabalhadores representa um dos únicos – senão o único – meio de reduzir a disparidade de forças do trabalhador individual diante do empregador e, consequentemente, do capital.

Desta forma, o presente trabalho conclui que não podem os trabalhadores, as entidades sindicais e os intérpretes do direito caírem na armadilha da dogmática legal, pois mesmo a greve declarada “abusiva” por aqueles que interpretam o direito por meio de uma análise não-sistemática e positivista, é capaz de conquistar novos direitos e melhorias de vida e labor aos trabalhadores, como no caso da recente greve dos garis de 2014 que, embora tenha sido uma ação coletiva organizada por um movimento espontâneo, fora do sindicato, e declarada abusiva pelo judiciário trabalhista, garantiu conquistas historicamente reivindicadas pelos trabalhadores daquela categoria.

 Referências bibliográficas

 ABRAMO, Lais Wendel. O resgate da dignidade: greve metalúrgica e subjetividade operária. Campinas: Unicamp. São Paulo: Imprensa Oficial, 1999.

ARTUR, Karen. Atores Sociais e a Judicialização do Trabalho. Trabalho apresentado no XI Encontro Nacional da ABET, realizado na Unicamp, em setembro de 2009.

BENJAMIN, Walter. Sobre a crítica do poder como violência. In: BARRENTO, João (org.). Walter Benjamin: o anjo da história. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.

BLYTH, Mark. Austeridad: historia de una idea peligrosa. Barcelona: Editorial Crítica, 2014.

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 27 ed. São Paulo: Malheiros, 2012.

CALAMANDREI, Piero. Opero Giuridiche. Napoli: Morano, 1965.

CARNEIRO, Antônio Leonardo Silva.  Crise econômica e direito do trabalho: O paradigma da austeridade no contexto da crise brasileira dos anos de 2015/2016 [monografia]. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, Curso de Direito, 2017.

EDELMAN, Bernard. A legalização da classe operária. São Paulo: Boitempo, 2016.

FERREIRA, Antônio Casimiro. Sociedade da austeridade e direito do trabalho de exceção. Porto: vida econômica, 2012.

FLORES, Joaquín Herrera. A (Re)invenção dos Direitos Humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009.

FREDIANI, Yone. Greve nos serviços essenciais à luz da Constituição Federal de 1988. São Paulo: LTr, 2001.

GHIONE, Hugo Barreto. Indagaciones sobre la huelga: cuestiones de método, definición y derecho. Revista de Derecho Social Latinoamérica, n. 2, Editorial Bomarzo, 2016.

GIUGNI, Gino. Direito sindical. São Paulo: LTr, 1991.

GONDIM, Thiago Patrício. O discurso da austeridade no contexto da atual crise econômica brasileira e suas implicações para o direito do trabalho. In: COUTINHO, Aldacy Rachid; WANDELLI, Leonardo Vieira (org.). Anais do II encontro RENAPEDTS. 1.ª ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2016, p. 813 – 814.

MANDL, Alexandre Tortorella. A judicialização das relações coletivas de trabalho: uma análise das greves julgadas pelo TST nos anos 2000. Dissertação de mestrado – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2014.

PAIXÃO, Cristiano; LOURENÇO FILHO, Ricardo. Greve como prática social: possibilidade de reconstrução do conceito a partir da constituição de 1988. In: SENA, Adriana Goulart de;DELGADO, Gabriela Neves; NUNES, Raquel Portugal (Orgs.). Dignidade humana e inclusão social: caminhos para a efetividade do direito do trabalho no Brasil. São Paulo: LTr, 2010.

RAMOS FILHO, Wilson. Constituição e regulação da organização sindical: a liberdade e a unicidade em perspectiva. In: Trabalho e regulação no estado constitucional. V. Curitiba: Juruá, 2011, v. II.

RODRIGUES, Gabriel Ferreira. Ordem econômica e dispensa coletiva: um estudo do caso Webjet [monografia]. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, Curso de Direito, 2017.

SILVA, Sayonara Grillo Coutinho Leonardo da. Greve, Direito e Judiciário: A Constituição de 1988 Interpretada em Dois Tempos. In: Wilson Ramos Filho. (Org.). Trabalho e Regulação no Estado Constitucional. 1ed.Curitiba: Juruá, 2011, v. III, p. 181-216.

SILVA, Sayonara Grillo Coutinho Leonardo da; LIMA, Henrique Figueiredo; GONDIM, Thiago Patricio. Direitos humanos e liberdade sindical. A atuação do judiciário em face de atos antissindicais praticados pelos empregadores estudo de caso-referência. In: GOULART, R. F.;

VILLATORE, M. A.(coord.) Responsabilidade civil nas relações de trabalho: reflexões atuais. São Paulo: LTr, 2015, p. 381-392.

URIARTE, Oscar Ermida. A flexibilização da greve. São Paulo: LTr, 2000.

VALVERDE, Antonio Martin. Regulación de la huelga, libertad de huelga y derecho de huelga. In: Sindicatos y relaciones colectivas de trabajo. Murcia: Colegio de Abogados de Murcia, 1978.

 VIANA, Marcio Túlio. Da greve ao boicote: os vários significados e as novas possibilidades das lutas operárias. Revista do Tribunal Regional do Trabalho – 3ª região, Belo Horizonte, v. 49, n. 79, p. 101-121. jan./jul. 2009.

Notas de Rodapé:

[1] Professor substituto de Direito do Trabalho da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).  Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito – PPGD/UFRJ. Integrante do grupo de pesquisa Configurações Institucionais e Relações de Trabalho – CIRT/PPGD/UFRJ. Bacharel em História (UFF) e Direito (UFRJ).

[2] Advogado. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Integrante do grupo de pesquisa Configurações Institucionais e Relações de Trabalho – CIRT/PPGD/UFRJ.

[3] Segundo Ferreira (2012, p. 76), o direito do trabalho de exceção “se apresenta como uma ruptura paradigmática com os pressupostos do direito do trabalho, eliminando o conflito enquanto elemento dinâmico das relações laborais e a proteção do trabalhador enquanto condição de liberdade. As funções do direito do trabalho são igualmente questionadas, nomeadamente a função econômico-instrumental sempre dependente dos débeis equilíbrios entre a mercantilização do trabalho e os limites impostos pelo estatuto conferido pelo direito do trabalho ao trabalhador vacila perante as anunciadas alterações ao tempo de trabalho e descanso, enquanto a função de organização das relações de poder na esfera laboral colocada sob o efeito da dispensabilidade dos trabalhadores e do estreitamento da negociação coletiva torna a organização da ‘submissão voluntária’ do trabalhador à autoridade do empregador num exercício de poder despótico, sem contrapoder”.

[4] Oscar Ermida Uriarte (2000, p. 9-12), um dos principais autores alinhados à perspectiva pluralista, compreende que a especificidade da ordem democrática, em contraponto à ordem autoritária, se concentra no reconhecimento da existência do conflito enquanto resultado natural e inevitável das ações políticas dos grupos de interesses divergentes que constituem a sociedade. O conflito social passa a ser concebido como um fenômeno inerente à ordem democrática cujo equacionamento somente se realiza por meio de um consenso de caráter temporário e instável.