DIREITOS TERRITORIAIS DOS POVOS INDÍGENAS: UM ESTUDO COMPARADO SOBRE O BRASIL E O PERU

Resumo

Tendo como motivação inicial os estudos e o acompanhamento da situação de povos indígenas que vivem em regiões de fronteira e tiveram seus territórios divididos pelos limites dos estados nacionais, em especial os Matsés (família linguística Pano), o presente texto busca sistematizar algumas leituras e reflexões acerca dos direitos territoriais dos povos indígenas estabelecidos nas legislações de Brasil e Peru. Compreendemos que investigar as fundamentações do indigenismo oficial destes países em relação à distância entre os direitos efetivamente adquiridos e a sua garantia por meio de políticas governamentais pode contribuir para um debate sobre as relações normativas e cotidianas que se desdobre na análise dos aparelhos de poder que têm um papel determinante na garantia dos direitos dos povos indígenas. Ao final do artigo analisamos os direitos territoriais dos povos indígenas à luz dos marcos legais internacionais e da influência dos grandes projetos econômicos.

Artigo

DIREITOS TERRITORIAIS DOS POVOS INDÍGENAS: UM ESTUDO COMPARADO SOBRE O BRASIL E O PERU

 Rodrigo Oliveira Braga Reis*

Ana Sávia Farias Ramos**

  Resumo: Tendo como motivação inicial os estudos e o acompanhamento da situação de povos indígenas que vivem em regiões de fronteira e tiveram seus territórios divididos pelos limites dos estados nacionais, em especial os Matsés (família linguística Pano), o presente texto busca sistematizar algumas leituras e reflexões acerca dos direitos territoriais dos povos indígenas estabelecidos nas legislações de Brasil e Peru. Compreendemos que investigar as fundamentações do indigenismo oficial destes  países em relação à distância entre os direitos efetivamente adquiridos e a sua garantia por meio de políticas governamentais pode contribuir para um debate sobre as relações normativas e cotidianas que se desdobre na análise dos aparelhos de poder que têm um papel determinante na garantia dos direitos dos povos indígenas. Ao final do artigo analisamos os direitos territoriais dos povos indígenas à luz dos marcos legais internacionais e da influência dos grandes projetos econômicos.

 

Palavras-chave:  Indigenismo; Direitos; Territórios Indígenas; Amazônia

Introdução

 O presente artigo é resultante  do projeto de pesquisa Critérios de indianidade e direitos territoriais indígenas: um estudo comparado sobre o Brasil e o Peru[1]. que propõe um estudo comparativo sobre a categoria de indianidade e a sua influência nas legislações brasileira e peruana concernentes aos direitos territoriais indígenas. Ao indagar sobre os critérios de indianidade estabelecidos pelo indigenismo oficial brasileiro e peruano que orientam as medidas políticas e legais sobre as identificações étnicas e os direitos territoriais que lhes são atribuídos, buscamos contribuir para a compreensão das dinâmicas sociais que emergem dos processos de territorialização que confluem para a configuração social, política e territorial atual de povos indígenas que habitam a região amazônica – neste caso, tanto a brasileira, quanto a peruana.

Corroboramos com a abordagem proposta por Oliveira (1998b, pp.8-9) segundo a qual, “para explicar o hiato entre direitos potenciais (a amplas extensões de terras utilizadas no passado) e direitos efetivamente adquiridos (a áreas indígenas reconhecidas e regularizadas)” a investigação antropológica deve resgatar “a tessitura das relações normativas e cotidianas, que se desdobre em uma microanálise dos aparelhos de poder que têm um papel determinante (mas não exclusivo) na geração das terras indígenas”.

O objeto de análise desta investigação são as legislações e as políticas de reconhecimento dos direitos territoriais indígenas destes dois países a partir dos anos de 1970 – período em que se observaram transformações relevantes no tocante à política indigenista brasileira e peruana como a instalação da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) na região do Alto Solimões (AM) – seguida de uma coordenação específica para a bacia do rio Javari – e no estado do Acre; e o advento da “Lei das Comunidades Nativas” em 1974 que, fundamentada na divisão entre os povos andinos e os da Amazônia peruana, atribuiu direitos territoriais aos últimos desde que estes se constituíssem como comunidades politicamente organizadas.

  1. Indigenismo e critérios de indianidade

 As legislações e as políticas de reconhecimentos territoriais são tomadas como materializações do indigenismo governamental destes países, entendendo aqui o indigenismo como um discurso voltado para a invenção dos “índios” (Silva, 2009) através do qual são elaborados os valores norteadores das práticas relativas à criação de territórios indígenas.

De acordo com Lima (1987), a política indigenista e o indigenismo, se reduzem a produtos de regiões do campo político e do campo intelectual, portanto, a política indigenista deve ser analisada “como parte da política mais vasta do estado, notadamente da política agrária, procurando analisar a posição dos agentes e agências em atuação nesse campo em relação (ou como parte) da classe dirigente” (Ibid., p.19). Em outro trabalho (Lima, 1995), ao analisar a ação indigenista a partir do extinto Serviço de Proteção aos Índios (SPI), o autor desenvolve a noção de “poder tutelar” para analisar o poder estatal, exercido sobre populações e territórios, que busca assegurar o monopólio dos procedimentos de definição e controle sobre as populações indígenas .

Os trabalhos de Lima (1987; 1995; 1998), assim como de outros pesquisadores reunidos em Oliveira (1998b), indicam a formulação de códigos jurídicos acerca das populações indígenas e as práticas administrativas, enquanto poderes, rotinas e saberes coloniais, como aspectos importantes a serem analisados. Lima (1998, p.202) demonstra como ocorre a inserção de noções e categorias acerca dos povos indígenas no conjunto de definições legais que compõem o “Estatuto do Índio” (Lei n.º 6001/73). Nesta lei são definidas, para efeitos legais, as categorias índios ou silvícolas, assim como – inspirada pelo ideário integracionista -, classifica os índios como isolados, em vias de integração e integrados. Estas classificações, implicam uma polarização entre um “índio” mais e um menos integrado, logo uma evolução entre estes tipos, e um ideal de relação entre índios e brancos (Ibid., p.203).

Destas classificações, acerca do que são, ou, como devem ser os “índios” ou as “comunidades indígenas”, decorrem as definições das “áreas reservadas pelo Poder Público para posse e ocupação pelos índios” (Ibid., p.208), isto é, os territórios indígenas. O indigenismo e a política indigenista operam processos de identificação e estabelecem critérios de indianidade que orientam a elaboração e aplicação dos direitos territoriais aos povos indígenas.

  1. Territórios, territorialidades e fronteiras

 Ao abordarmos os discursos e práticas do indigenismo deste dois estados nacionais, também nos situamos no debate acadêmico e político sobre a construção de territórios indígenas, concebidos tanto como o resultado de territorialidades nativas quanto de processos de territorialização (Oliveira, 1998a), assim como buscamos estabelecer diálogos com um conjunto de estudos sobre a situação de povos indígenas em situações de fronteiras – geográficas, simbólicas, étnicas, regionais e nacionais.

Os estudos sobre fronteiras – geográficas, simbólicas, étnicas, regionais, nacionais – compõem um amplo rol de escritos no campo da Antropologia, da História, da Ciência Política e outros ramos de conhecimento, assim como, nos documentos diplomáticos e militares. A exemplo disto, Marcia Anita Sprandel – em Breve Genealogia sobre os estudos de fronteiras & limites no Brasil (2005) – nos apresenta uma relação de mais de 40 escritos de natureza teórica, didática-descritiva e provenientes de documentos oficiais que foram produzidos no período republicano. A construção social do espaço também é um tema profícuo nas discussões antropológicas. Diversos pesquisadores buscam compreender as dinâmicas de conformação territorial em que os mais variados grupos – urbanos, rurais ou étnicos – estão inseridos. Daí decorre o desenvolvimento de noções e categorias analíticas como: territorialização (Oliveira, 1998a) e territorialidades específicas (Almeida, 2006).

No campo da etnologia indígena, diversos estudos ressaltam a diferenciação entre as territorialidades estatais e indígenas. A primeira se caracteriza pela limitação (Gallois, 2004), pela fixação e pelo controle de práticas territoriais (Kent, 2011); enquanto na apreensão das territorialidades indígenas, predominaria os costumes e a flexibilidade dos limites (Kent, 2011) – devendo um território indígena ser compreendido como resultado da “construção e vivência culturalmente variável, da relação entre uma sociedade específica e sua base territorial” (Gallois, 2004, p.39). Gallois (Ibid.) distingue Terra Indígena de Território Indígena, sendo que o primeiro termo remete ao conceito jurídico, enquanto o segundo é o resultado da territorialidade concebida e praticada por diferentes grupos indígenas. Além disto, se os territórios indígenas emergem das relações de apropriação empreendidas pelos grupos, a Terra Indígena está fundamentada na noção de posse ou propriedade da terra.

Não obstante a consideração de que qualquer grupo humano desenvolve práticas territoriais específicas, o estabelecimento de limites territoriais está, na maioria das vezes, relacionados à invasão externa das áreas habitadas (Oliveira, 1998a; Gallois, 2004; Kent, 2011; e outros). Os conflitos resultantes destas invasões têm sido tema de uma diversidade de estudos dos quais se destacam os que buscam compreender a transformação dos territórios indígenas – heterogêneos e com limites flexíveis – em territórios homogêneos e delimitados mediante a ação dos Estados.

Estas abordagens têm priorizado a análise dos impactos sofridos pelos grupos indígenas nas situações de contato com os Estados Nacionais, e dialogam – de maneiras distintas – com a noção de territorialização (Oliveira, 1998a, 1998b, 2006). João Pacheco de Oliveira (1998a) tem contribuído para a discussão acerca da incorporação de populações indígenas dentro de um Estado-Nação, processo este que ele entende ter a dimensão territorial como estratégica. Partindo da noção de situação colonial, desenvolvida por Balandier (1951), o autor desenvolve a noção de territorialização e busca apreender as transformações decorrentes do contato interétnico. De acordo com o formulado em Oliveira Filho (1988, p.55), processo de territorialização é “o movimento pelo qual um objeto político-administrativo” – na América espanhola as “reducciones” e “resguardos”, no Brasil as “comunidades indígenas” – “vem a se transformar em uma coletividade organizada, formulando uma identidade própria, instituindo mecanismos de tomada de decisão e de representação, e reestruturando as suas formas culturais (inclusive as que o relacionam com o meio ambiente e com o universo religioso)”.

Outrossim, é importante ressaltar as relações existentes entre os diversos sentidos concernentes às noções de fronteira e às práticas territoriais. No entender de Maldi:

“na raiz da percepção do território está a percepção do nós [a nação, a comunidade, a etnia, etc.], a construção básica da identidade coletiva [a nacionalidade, o pertencimento étnico, o regionalismo, entre outros] e, por extensão, a sede do estabelecimento da diferença, o limite para a construção da alteridade enquanto uma situação antagônica por definição”. (1997, p. 187) .

  1. As imagens sobre os indígenas e a de-limitação dos seus direitos

 No Peru, após as guerras independentistas – as quais contaram com a participação de tropas indígenas -, nos debates em torno de um projeto nacional que marcaram o processo de construção da República (século XIX), emergiram propostas em torno da ideia de integrar o índio à República como “cidadão” – o que, paradoxalmente, era argumento para suprimir juridicamente as comunidades indígenas.

Além disto, falar de projeto nacional também era sinônimo de colonização, e esta era sinônimo de imigração branca. Imigração incentivada pela ideologia que considerava o Peru como um “país vazio”, sendo necessária a povoação que se deu pela promoção da imigração – ideologia que persistiu durante o século XX em relação à Amazônia.

As representações sociais e políticas no Peru seguem, predominantemente, uma categorização fundada na divisão do país em três grandes regiões geográficas: Costa, Serra e Montanhas. A partir das quais também foi pensada a distribuição da população em termos raciais. Desde o desenvolvimento desta concepção a presença indígena na Amazônia foi negada. Pois, como observa Mendez (2011), se foi perfilando uma ideia de “índio” no singular e masculino, um índio genérico associado exclusivamente a uma das três grandes regiões peruanas: a Serra. Sobre este índio, o “serrano”, debateram indigenistas e liberais. Os primeiros queriam redimi-los, enquanto os partidários do liberalismo econômico queriam os ver desaparecer. Dentre as representações genérica de índios serranos haviam as fotografias de Paz Soldán, era uma representação dos índios como passivos em um contexto de rebeliões indígenas, sobretudo no sul, como uma forma de compensar ou lidar com o temor ao índio sublevado.

A passagem do século XIX para o século XX, marcada pelo aumento dos levantes que ocorriam no sul do país e por transformações políticas internacionais como as revoluções Mexicana e Russa, converteu o abandono e a desproteção da população indígena peruana em um problema nacional (Fernandez, 2011). Neste contexto, os autores consultados abordam a formação e desenvolvimento de um movimento “indigenista”, ainda que tido como um indigenismo literário no primeiro momento.

De forma brevíssima podemos mencionar que esse movimento indigenista foi responsável por uma produção artística e intelectual que marcou a época, tendo seu ápice entre os anos de 1926 e 1930, e a partir deste ano iniciou seu rápido declive. Este indigenismo peruano nunca chegou a constituir-se como um movimento de massas tendo seu desenvolvimento  proporcionado pelo Estado, o qual em “poco tiempo le corto las alas”. Entre seus líderes, alguns se associaram ao socialismo limenho, como Haya de la Torre e José Carlos Mariátegui, enquanto outros organizaram uma célula aprista (em 1927). Desta relação com os partidos socialistas emerge um debate sobre a transformação dos índios em “campesinos”, “una ‘construcción’, que implicó un esfuerzo por redefinir a los mismos sujetos desde otra perspectiva conceptual” (Lauer 1997 apud Fernandez F., 2011, p.8).

Uma peculiaridade da história política peruana no que tange às políticas voltadas aos povos indígenas é que foi durante a ditadura de Juan Velasco que foram criados os organismos e leis voltados aos direitos indígenas.

El historiador José Tamayo (1981) llega incluso a visualizar una tendencia neoindigenista a finales de la dictadura de Velasco. Este gobierno militar creó en 1971 el Sistema Nacional de Movilización Social (SINAMOS) con la intención de promover la creación de movimientos sociales de tipo gremial, para poder estructurar y controlar, en cierto modo, el sistema político que desearon implantar en el Perú: la Democracia Social de Participación Plena (Guerra García 1983). Este modelo implicaba la creación de instituciones de gobierno integradas por representantes de los diferentes gremios del país. Fue un proyecto de tipo corporativo, que antes ya había sido planteado, de otra manera, por intelectuales y políticos peruanos, tales como Víctor Andrés Belaunde y Haya de la Torre. (FERNANDEZ F., 2011, p.11)

Foi neste governo, em meados de 1974, que foi promulgado o decreto lei n.º 20653, Ley de Comunidades Nativas y de Desarrollo Agropecuario de las Regiones de Selva y ceja de Selva, a primeira norma mediante a qual o Peru republicano reconheceu direitos às comunidades indígenas amazônicas (Chirif, 2012).

Ao visitar a história peruana emergem algumas questões. A primeira é a predominância de uma classificação baseada na ideia de três regiões naturais, cada uma associada a um tipo racial. Segundo C. Mendez (2011, p.95),  “Costa con blancos, sierra con indios, excepto la tercera región, la selva, a cuyos habitantes no se les asignaba siquiera un tipo racial, sino el despectivo apelativo de «chunchos[2]»”. Esta classificação fomenta, ao menos, duas questões: uma remete ao questionamento da naturalização associada às representações sociais; enquanto a segunda refere-se à ausência dos povos indígenas da Amazônia peruana, visto que a selva foi excluída, inclusive, das representações raciais, pois foi representada como um espaço vazio, a ser colonizado.

Nos interessa aqui justamente refletir sobre os discursos e o lugar dos povos indígenas da Amazônia na formação nacional peruana. Segundo Manrique (s.d.), “es recién durante las últimas décadas del siglo XX que se ha producido una integración más profunda de la región amazónica a la sociedad nacional”. Conforme afirmando anteriormente, somente na década de 1970 que foi criada a primeira norma voltada aos direitos dos povos indígenas amazônicos. Autores estudados, como Méndez (2011), questionam o vazio sobre a Amazônia nos trabalhos historiográficos e no pensamento político de expoentes como Mariátegui.

À guisa de concluir esta breve revisão historiográfica identificamos um tema de longa duração no que tange às relações com os povos indígenas: projetos econômicos e os indígenas. É comum, não somente no Peru, encontrar afirmações de que os índios são obstáculos ao progresso ou à modernidade. A partir de 2008, no governo do presidente Alan García, este discurso ganhou força no contexto peruano marcado pelo estabelecimento de tratados de livre comércio e pela concessão à exploração petrolífera.

O discurso dos “selvagens opostos ao progresso” exerce uma força negativa nas relações com os povos indígenas amazônicos e em diversos momentos se efetiva em ações violentas como nas correrias realizadas no período do caucho/da borracha, ou em conflitos como no “baguazo”.

A Ley de Comunidades Nativas de 1974 (D.L. 20653) reconheceu “el carácter inalienable, imprescriptible e inembargable de la propiedad territorial de las comunidades nativas”, em concordância com os princípios vigentes desde a Constituição peruana de 1933. Do mesmo modo esta lei reconheceu a existência legal e a personalidade jurídica destas comunidades, e estabeleceu a possibilidade de ampliar sus terras no caso de que estas sejam insuficientes; definiu o papel dos órgãos do governo para resolução de conflitos de natureza civil e atribuiu ao Estado a promoção da educação integral e a capacitação  permanente nos campos organizativo e de administração comunitária, e técnico agropecuário e florestal (Chirif & Hierro, 2007; Chirif, 2012).

Uma nova norma estabelecida em 1978 (D.L. 22175) manteve quase todas as disposições das de 1974 com duas exceções. Uma destas relacionada às populações isoladas que realizam migrações estacionais, os atualmente chamados pueblos indígenas en aislamiento voluntario. Enquanto a de 1974 lhes assegurava “la totalidad de la superficie donde acostumbran efectuarlas” (Art. 10º, b), a segunda só lhes garantem “la totalidad de la superficie que donde se establecen al efectuarlas” (Art. 10º, b).

Sobre esta modificação na lei cabe observar a restrição aos direitos territoriais, mas também, possíveis concepções fundadas em ideias que defendem a “civilização” dos indígenas, pois, como observa Lima (1998), a respeito da política indigenista do SPI para a criação de Parques e Reservas Indígenas, o “nomadismo” seria – dentro de um projeto assimilacionista – uma condição temporária, uma etapa a ser ultrapassada no “processo civilizatório” durante o qual a sedentarização era mais um instrumento de assimilação .

A sedentarização, sendo vista como um passo a diante no processo de civilização, logo de aproximação do modo de vida da sociedade nacional, implicava uma descaracterização progressiva de um “ser indígena original”, tarefa por excelência da proteção oficial [grifo do autor]. (LIMA, 1998, p.177)

A outra exceção – vinculada a uma outra lei promulgada em 1975: D.L. 21147, Ley Forestal y de Fauna Silvestre – está no Art. 11º do D.L. 22175. Ao estabelecer que “La parte del territorio de las Comunidades Nativas que corresponda a tierras con aptitud forestal, les será cedida en uso y su utilización se regirá por la legislación sobre la materia” (Art. 11º) se diferencia as terras agropecuárias das áreas florestais, sendo que em relação às primeiras são reconhecidas às comunidades a propriedade enquanto que as áreas florestais são cedidas somente para uso. Esta distinção fundamenta-se na premissa de que os recursos naturais são de domínio público, no entanto, o resultado prático desta alteração é a crescente alienação de terras públicas pelo Estado a particulares, através de dinâmicas cada vez mais preocupantes e em maiores extensões (Chirif, 2012, p. 6).

Como afirmado anteriormente a normativa de 1974 foi estabelecida no marco da vigência da Constituição de 1933. Em 1979 entrou em vigência uma nova Constituição que introduziu alterações que começaram a debilitar as antigas garantias. Ainda que a nova Constituição tenha mantido o caráter inembargable e imprescritible de las tierras comunales, ela flexibilizou o tema de la inalienabilidad, possibilitando a alienação em situações em que dois terços dos comunitários solicitem sua divisão e venda. Não obstante, a Constitución de 1979 indicava que se esta fosse a decisão da comunidade, deveria criar-se uma lei específica para cada caso (ver Art. 163º).

Outras alterações e sobreposições de dispositivos legais afetaram os direitos territoriais dos povos indígenas no Peru estabelecidos no Decreto Lei 20653. Em 1993 novamente o país passa a ter uma nova constituição, a qual segundo Alberto Chirif (2012, p.9) “puso fin al largo periodo de garantías constitucionales para las comunidades indígenas iniciado en 1920 y en apenas dos artículos establece el marco general referido a ellas”. Reproduzimos a seguir a conclusão do balanço feito por Chirif :

(…) En uno de ellos señala: “Las Comunidades Campesinas y Nativas tienen existencia legal y son personas jurídicas”; son “autónomas en su organización, en el trabajo comunal y en el uso y la libre disposición de sus tierras, así como en lo económico y administrativo, dentro del marco que la ley establece”; y, finalmente, que: “La propiedad de sus tierras es imprescriptible, salvo en el caso de abandono previsto en el artículo anterior” (Art. 89º), en el que determina que: “Las tierras abandonadas, según previsión legal, pasan al dominio del Estado para su adjudicación en venta” (Art. 88º). En este mismo artículo la Constitución declara el apoyo preferente del Estado al desarrollo agrario y las garantías que torga a la propiedad, sea “en forma privada o comunal o en cualquier otra forma asociativa”, y que la ley “puede fijar los límites y la extensión de la tierra según las peculiaridades de cada zona”. El Art. 88º se refiere no sólo a las comunidades sino, en general, a la propiedad y desarrollo agrario. De hecho, estos dos solitarios artículos están incluidos dentro del Capítulo VI del Título III (“Del régimen económico”), llamado “Del régimen agrario y las comunidades campesinas y nativas”. En este sentido es muy claro que el Estado juzga que las tierras de las comunidades indígenas no gozan de ninguna consideración especial

respecto a la propiedad civil de cualquier ciudadano.

Voltando ao Brasil, sabemos que algumas representações sobre os povos indígenas e sobre a Amazônia não se distanciam do que relatamos acima, sobretudo as imagens que derivam das ideias de atraso e de vazio demográfico. No que tange ao marco legal, não obstante a permanência do “Estatuto do Índio”, o processo que culminou com a Constituição de 1988 e seus avanços em relação aos direitos indígenas contou com a participação direta de lideranças indígenas. Uma presença constante retratada por Oliveira (2016, p.290):

Durante o processo de elaboração da nova Carta, foi bastante intensa a participação de indigenistas, missionários, antropólogos e advogados não só nas audiências públicas e subcomissões, mas também no debate diário com os parlamentares, informando e apresentando sugestões. Mas o fato inédito e de maior repercussão na rotina parlamentar foi a presença constante de uma massa de indígenas que, pintados e com seus adornos de pena, percorriam os corredores, lotavam os auditórios, entravam e saiam dos gabinetes. Não eram agressivos nem manipuladores, não eram manifestantes que protestavam nem lobistas. Eram pessoas comuns, apenas diferentes, todos confiantes no processo parlamentar, sinceramente preocupados com a defesa de suas comunidades, seus modos de vida e valores diferenciados. Era como se o Congresso estivesse convocado dentro de uma aldeia indígena!

Dentre as transformações legais conquistadas com a Constituição de 1988, podemos depreender que o Estado não adota mais como finalidade garantir a integração dos indígenas na comunidade nacional, reconhecendo-lhes explicitamente “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições” (artigo 231, caput). Superando a perspectiva assimilacionista do Estatuto do Índio, as políticas públicas e assistenciais deveriam contribuir para a manutenção e fortalecimento das culturas indígenas. Um segundo aspecto é reconhecer aos indígenas sua plena capacidade civil, podendo associarem-se livremente de maneira a representar seus interesses sem a interveniência da agência indigenista. Em termos práticos, isso deveria significar a extinção da tutela anteriormente exercida pela Funai. A nova Constituição estabeleceu também que o Estado deve garantir aos indígenas a posse permanente e o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e lagos das terras sobre as quais exercem uma ocupação de natureza tradicional. No parágrafo primeiro é conceituado o que se entende por “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios”, que não correspondem de forma alguma a terras originárias ou imemoriais, mas àquelas “necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições” (art. 231, § 1) (Oliveira, 2016).

Concluiremos esta seção com um quadro comparativo sobre os processos de reconhecimento de terras indígenas[3]:

 

País

 

 

Marco jurídico Fundamento Tipo de reconhecimento Garantas constitucionais Categoria Jurídica Sujeitos de direito Limitações
Brasil Constituição (1988) e Estatuto do Índio (1973) Direito Preexistente Posse permanente Inalienáveis, não embargáveis, imprescritíveis Terra Indígena Povos e comunidades Subsolo
Peru Constitución (1993) e DL 21.175 (1978) Direito Preexistente Propriedade Imprescritíveis

Autonomia de uso

Comunidad Nativa Comunidades Subsolo, solos florestais, corpos d’Água, margens de rio

  1. Povos isolados”, “não contatados” ou em “contato inicial” e a política indigenista

 Considerando um aspecto que tem pautado a agenda de órgãos governamentais, organizações indígenas e ONGs que atuam no campo indigenista e ambientalista na região de fronteira Brasil-Peru, nos debruçamos a seguir sobre a política indigenista e os chamados “isolados” ou “en aislamiento voluntario”.

Na América Latina, há indícios e registros de vários povos indígenas que são considerados “isolados” com relação aos outros povos e a sociedade moderna e que também são chamados povos “não contactados” por não manterem contato, pelo menos em suas últimas gerações, e porque não há conhecimento sobre eles além de indícios de ocupação – acampamentos abandonados, relatos de encontros casuais, “avistamientos” (termo utilizado no Peru), relatos de ataques, e histórias contadas por visitantes “intrusos”, por indígenas que habitam as mesmas áreas – na floresta.

Estudos e dados governamentais apontam a sua existência em seis países: Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Paraguai e Peru, especificamente na Bacia Amazônicas e no Gran Chaco; além destes países, há registros de grupos isolados na Venezuela oriundos do Brasil (Brackelaire, 2006).

No Brasil, “Índios isolados” é uma categoria jurídica que define as sociedades indígenas sobre as quais se tem pouca ou nenhuma informação. De acordo com o Art. 4 do Estatuto do Índio (Lei 6.001/1973) são classificados como “Isolados”: “Quando vivem em grupos desconhecidos ou de que se possuem poucos e vagos informes através de contatos eventuais com elementos da comunhão nacional” (Brasil, 1973). O Brasil se destaca pela quantidade e diversidade de povos indígenas “isolados”. As consequências dramáticas de situações de contato no passado levaram o país a implementar uma política de “estricta protección de sus territorios evitando hoy cualquier contacto que no sea necesario, respetando el deseo de aislamiento” (Brackelaire, 2006, p.10)[4].

Para implementação desta política existe uma instância especializada da FUNAI, a Coordenação Geral de Índios Isolados – CGII, que busca assegurar a proteção dos territórios dos “isolados” através das Frentes de Proteção Etno-ambiental (FPE) – atualmente existem as seguintes: FPE Vale do Javari (Estado do Amazonas), FPE do Rio Purus (sul do Estado de Amazonas, na bacia do Rio Purús), FPE do Rio Envira (extremo sul do Estado do Acre), FPE do Cuminapanema (Estado do Pará), FPE do Rio Guaporé (oeste do Estado de Rondonia) e FPE do Madeirinha (norte do Estado de Mato Grosso)[5].

Em uma das áreas da região de fronteira entre o Brasil e o Peru, não obstante a resistência do setor madeireiro, em 2001 foi homologada a Terra Indígena (TI) Vale do Javari[6] destinando, assim, a maior parte das terras da margem brasileira do rio Javari ao usufruto restrito dos povos indígenas e estabelecendo um maior controle sobre a exploração dos recursos naturais no início deste século.

Antes da demarcação e homologação desta Terra Indígena, de acordo com Montagner (1985) “em 1969, já oficialmente se toma conhecimento da complexidade da área e se propõe através do sertanista Raimundo Pio de Carvalho Lima a criação de quatro Postos Indígenas na região abarcada pelos Rios Javari, Curuçá, Itacoaí e Ituí”. Os trabalhos da FUNAI, no entanto, só foram se concretizar em 1971, no contexto da construção da Rodovia Perimetral Norte que cortaria o Vale do Javari em diversos pontos habitados por grupos indígenas isolados (Projeto de Estudo para a eleição de Áreas Indígenas na Bacia do Rio Javari-AM, fl.294). Portanto, desde os primeiros estudos e propostas que originaram a TI Vale do Javari estão presentes registros sobre índios isolados.

De acordo com Nascimento (2008), registros oficiais do governo brasileiro afirmam que “29% das ocorrências confirmadas, 22% das informações de ocorrência aguardando confirmação e 25 % dos grupos de contato recente para todo o Brasil” estão concentrados na Terra Indígena Vale do Javari. Pela sua localização, no sudoeste da Amazônia brasileira na fronteira com o Peru,

“faz parte de um “arco de conservação” que conecta várias unidades de conservação e terras indígenas do estado do Acre e do sudoeste do estado do Amazonas do lado do Brasil com outras unidades de conservação e terras indígenas do lado do Peru totalizando mais de 24 milhões de hectares de áreas protegidas”.

Dentro deste “arco de conservação” que integra a área fronteiriça Brasil – Peru também está a maior concentração de povos isolados do hemisfério ocidental.

Neste sentido, a partir dos estudos desenvolvidos, a TI Vale do Javari tem emergido como um caso profícuo para análise das relações entre a categoria de índios isolados e as políticas indigenistas no intuito de elaborar subsídios para uma compreensão mais detalhada da situação dos povos isolados e dos demais povos indígenas na região de fronteira entre o Brasil e o Peru.

No Peru, assim como no Brasil, há uma grande diversidade de povos ou segmentos de “pueblos indígenas aislados” e outros considerados em situação de contato inicial, na sua maioria localizados, atualmente, ao longo da fronteira com o Brasil (Brackelaire, 2006). Formalmente existem cinco Áreas Naturales Protegidas (ANP) – Reserva Comunal Amarakaeri (Madre de Dios), Zona Reservada Biabo Cordillera Azul (Ucayali), Parque Nacional del Manu (Cusco/Madre de Dios), Reserva Comunal Asháninka, Reserva Comunal Matsiguenga e Parque Nacional Otishi (Cusco e Junin) e Parque Nacional Alto Purús y Reserva Comunal Purús (Madre de Dios e Ucayali) – e cinco Reservas Territoriales – Reserva Territorial a favor de los grupos étnicos Kugapakori y Nahua (Cusco e Ucayali), Reserva Territorial a favor del grupo étnico Murunahua (Ucayali), Reserva Territorial para el grupo etno-lingüístico Mashco-Piro (Ucayali), Reserva Territorial a favor del grupo étnico Isconahua (Ucayali), Reserva Territorial a favor de los grupos en aislamiento Mashco-Piro o Iñapari (provincias de Tahuamanu, Tambopata, Manu) e Reservas territoriales para los Cacataibo (Huanuco e Junin) – que correspondem as áreas de deslocamento de “isolados”.

As Áreas Naturales Protegidas e as Reservas Territoriales diferem das Comunidades Nativas estabelecidas aos povos indígenas em contato permanente com a sociedade nacional e organizados politicamente através de associações indígenas. De acordo com os participantes do I Encontro Internacional sobre Povos Isolados, realizado em 2005 na cidade brasileira de Belém-PA, estas reservas territoriais

tienen como finalidad establecer un área en reserva que asegure la tenencia de sus tierras, con la idea de que una vez que se produzca el contacto y se defina su tipo de asentamiento, con mayor integración con el resto de la sociedad nacional, puedan ser formalizados con un título de propiedad dichos territorios, garantizando de esta manera su derecho ancestral sobre el hábitat que ocupan. (Brackelaire, 2006, p.46)

No entanto, apesar da existência formal destas reservas territoriais para “pueblos indígenas aislados”, o Estado peruano tem sido criticado por não proteger efetivamente as áreas de ocupação destes povos provocando uma extrema vulnerabilidade dos seus direitos essenciais, devido a invasão por extratores ilegais e a concessão para exploração petrolífera (Brackelaire, 2006; Nascimento, 2006a, 2006b; Balbín, 2010).

A respeito de recentes processos de concessão de lotes para a exploração petrolífera no Peru, em 2008 decretos legislativos foram ditados excepcionalmente[7] pelo presidente Alan Garcia determinando o processo de implementação de um Tratado de Livre Comercio (TLC) entre Peru e Estados Unidos. De acordo com manifestantes contrários à ação governamental, dentre os quais se destaca a AIDESEP[8], este conjunto de leis tem facilitado a entrada de investimentos estrangeiros para a exploração dos recursos hidrocarbonetos da selva peruana desrespeitando os direitos territoriais de povos ancestrais da floresta.

Apesar dos protestos de organizações indígenas aliadas à organizações não-governamentais, tanto em nível local quanto internacionalmente, lotes concedidos à exploração petrolífera estão sobrepostos a territórios ocupados por povos indígenas considerados em situação de contato – como os Matsés – e também por povos em situação de isolamento.

A exemplo disto, em pesquisada realizada sobre o povo Matsés (Reis, 2013; 2015) identificamos que um destes lotes (Lote 135), está situado em uma área que tem sido reivindicada como reserva para proteger aos índios isolados, enquanto o Lote 137 se sobrepõe ao território da Comunidad Nativa Matsés[9]. Estes dois lotes foram concedidos para exploração e explotação à empresa Pacific Rubiales[10] que, de acordo com boletins do Centro de Trabalho Indigenista[11] e de uma campanha lançada pela Survival International[12], já deu início as atividades de prospecção de linhas sísmicas do lote 135.

Diante das ameaças à integridade de seus territórios promovidas pela concessão de exploração petrolífera, os Matsés que vivem em comunidades distribuídas nos dois lados da fronteira passaram a partir de 2009 a promover  Reuniões Binacionais Matsés Brasil-Peru. Estas reuniões passaram a integrar a agenda de mobilizações de lideranças e comunidades Matsés nos dois países e em 2016 conquistaram o fim do contrato de exploração do Lote 137, conforme divulgação do Centro de Trabalho Indigenista (CTI) em sua página na internet  “Vitória Matsés: Pacific Stratus desiste do Lote 137[13]:

Terminou em julho deste ano o contrato de exploração de petróleo em território peruano no Lote 137, concedido para a Pacific Stratus Energy S.A. O fim do contrato consta em relatório mensal da Perupetro, agência reguladora estatal peruana encarregada dos contratos de exploração de hidrocarbonetos. Segundo o relatório, a decisão de rescindir o contrato e devolver a área total do lote foi motivada pela oposição da Comunidad Nativa Matsés (CNM), que impediu a empresa de iniciar o processo de Estudo de Impacto Ambiental e executar o Programa Mínimo de Trabalho do primeiro período da fase de exploração. Devido a essa resistência, obrigações contratuais do Lote 137 encontravam-se suspensas há quase nove anos “por situação de Força Maior”. A exploração de petróleo é motivo de grande preocupação do povo Matsés, que tradicionalmente ocupa a bacia do rio Jaquirana, principal formador do rio Javari na região de fronteira do estado do Amazonas, no Brasil, com o departamento de Loreto, no Peru.

 Neste contexto, de sobreposições de projetos de exploração petrolífera e de criação de reservas territoriais para “pueblos em aislamiento”, que entendemos ser necessária aprofundar a análise das definições legais e das formulações políticas sobre os “índios isolados” presentes nos processos de criação de territórios indígenas na região de fronteiras entre o Brasil e o Peru, tomando como estudo de caso a proposta de criação de duas novas reservas territoriais no Peru: Reserva Territorial Tapiche-Yavarí e Reserva Territorial Yavarí-Mirin – ambas propostas pela Asociación Interétnica de Desarrollo de la Selva Peruana (AIDESEP) (Nascimento, 2006a, p.13).

  1. As políticas e legislações brasileiras e peruanas em relação aos marcos legais internacionais

Atualmente os marcos legais internacionais emblemáticos para o reconhecimento dos povos indígenas são a Convenção N.º 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), adotada em 1989, e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, aprovada pela Assembleia Geral em 2007, após mais de uma década de discussão.

A Convenção 169 substituiu a Convenção 107, de 1957, e significou um avanço ao abandonar a perspectiva assimilacionista, que fundamentava a categorização exógena de “povos indígenas” e de políticas de assimilação e integração à sociedade “nacional”, adotando uma perspectiva de reconhecimento desses povos e de seus modos de vida.  Uma das mudanças destacadas é a substituição do termo “populações” por “povos indígenas”, com a ressalva: A utilização do termo povos na presente Convenção não deverá ser interpretada no sentido de acarretar qualquer implicação no que se refere a direitos que possam ser conferidos ao termo no âmbito do Direito Internacional”. (ORGANIZAÇÃO, 2011:15-16)

Raquel Z. Yrigoyen Fajardo em um texto de avaliação dos 20 anos da Convenção 169 da OIT afirma que “o Convênio 169, rompe explicitamente com o integracionismo e estabelece as bases de um modelo pluralista, baseado no controle indígena de suas próprias instituições e modelo de desenvolvimento, e na sua participação nas políticas estatais” (2009, p. 15). Um novo paradigma que será aprofundado e desenvolvido pela Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas.

A Declaração reconhece a igual dignidade de todos os povos e o direito dos povos indígenas a definir livremente sua condição política e seu modelo de desenvolvimento, assim como a participar da tomada de decisões com o Estado, se assim desejarem. O desafio atual é a implementação do marco de direitos existente e o desenvolvimento de políticas públicas, coordenadas, sistemáticas e participativas, baseadas em tais direitos, que permitam aos povos retomar as rédeas do seu destino e participar com os outros povos na construção de estados democráticos e pluralistas. (FAJARDO, 2009, p.15)

A Convenção 169 da OIT e outras similares que a antecederam são tratados internacionais vinculantes para os estados que os ratificam. Enquanto o documento da ONU é uma declaração e, portanto, não sujeito à ratificação, mas com uma cláusula que vincula os estados a zelar pela eficácia das suas disposições.

Estes instrumentos garantem o direito dos povos a definir suas prioridades de desenvolvimento, daí se desprende a necessidade de processos de consulta prévia e de participação nas políticas ou programas que os venham a afetar. No entanto, a concretização do que estes instrumento estabelecem, em especial a aplicação efetiva da Convenção 169 enquanto um tratado internacional vinculante, deixa muito a desejar.  Além de dificuldades oriundas dos limites burocráticos dos estados, nas últimas décadas os povos indígenas têm se encontrado diante de novas formas de agressão e desapropriação de novas frentes de expansão extrativistas em territórios indígenas, sem cumprir os direitos de consulta e participação.

Às invasões de madeireiros, pescadores e caçadores, acrescentam-se grandes projetos de infraestrutura, a intensificação do narcotráfico e, mais recentemente, a decisão do governo peruano de abrir concessões para a exploração de petróleo e gás, atingindo o Vale do Javari e as outras regiões fronteiriças do Ucayali e Madre de Dios. Conforme afirma Pimenta (2009, p.12), “No fundo, trata-se de embates em torno de políticas desenvolvimentistas para essa região de fronteira”. A região torna-se, portanto, palco de contradições constitutivas dos processos de desenvolvimento desejados por Estados e grandes corporações versus coletivos locais, indígenas ou camponeses. Como afirmam os autores de “Amazonía Peruana en 2021”, projetos políticos para “acelerar el desarrollo” não são novidades na região, a exemplo ressaltam que a “Amazonía brasileña, que fue sucesivamente sometida al Programa “Brasil en Acción” (1996-1999), al “Avanza Brasil” (2000-2003) y, actualmente, al “Programa de Aceleración del Crecimiento” (PAC)” (Dourojeanni, M., Barandiarán, A., & Dourojeanni, D., 2009, p. 22).

Recordamos que ao longo das últimas décadas, os governos nacionais sul-americanos adotaram o investimento em infraestrutura física da Amazônia como fator essencial para a integração regional e o desenvolvimento econômico dos Estados. Há mais de quinze anos políticas públicas interestatais como a Iniciativa de Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA) e a União de Nações Sul-Americanas (UNASUL), buscam implementar projetos que visam o desenvolvimento sem considerar efetivamente os impactos ambientais e as formas de vida e particularidades culturais das populações originais da região.

Conclusão

 Ao ampliarmos a observação sobre o desenvolvimento histórico das legislações e políticas territoriais voltadas aos povos indígenas amazônicos buscamos compreender o desenvolvimento de noções e categorias que as fundamentam e expressam o ideal de relação entre índios e brancos. Não obstante as transformações ocorridas nas últimas décadas, em especial a criação de dispositivos legais que buscam romper com perspectivas assimilacionistas, as legislações e políticas em questão não superaram as relações de dominação instituídas desde a colonização.

Cabe ressaltar que as limitações atuais da garantia efetiva dos direitos dos povos indígenas ultrapassam possíveis alegações burocráticas ou limitações políticas supostamente conjunturais. O material analisado aponta, pelo contrário, para a necessidade de considerar um processo de longa duração nas análises sobre os aparelhos de poder que determinam a garantia dos direitos dos povos indígenas: os interesses e as frentes econômicas.

Após o processo de colonização e frentes econômicas empreendidas na Amazônia – como a seringalista – os povos indígenas amazônicos enfrentam atualmente interesses econômicos expressos nos grandes projetos de infraestrutura e de exploração de recursos naturais que se sobrepõem à áreas naturais protegidas e territórios indígenas ou se estabelecem em seu entorno. Projetos estes  definidos e executados sem qualquer processo de consulta prévia, consentida, informada e de boa-fé às comunidades locais e às suas organizações, conforme recomendam a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, das quais o Brasil e o Peru são signatários.

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 Notas de Rodapé:

* Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Amazonas e Mestre em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco. Desde 2006 atua como docente no Instituto de Natureza e Cultura da Universidade Federal do Amazonas, em especial no Curso de Bacharelado em Antropologia. Atualmente é doutorando no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro.

** Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Campina Grande, Docente do Instituto Federal do Amazonas, Campus Tabatinga – IFAM/CTAB. Mestranda no Programa de Mestrado Profissional em Rede Nacional para o Ensino das Ciências Ambientais (PROFCIAMB).

[1] Este projeto de pesquisa foi financiado pelo Programa Universal Amazonas da Fundação de Amparo e Pesquisa do Amazonas ( EDITAL N.030/2013).

[2] Chuncho é um termo proveniente da língua quechua ch’unchu, que significa ‘plumagem’ e que tem sido usado para designar os indígena amazônios. De acordo com Espinosa (2009), atualmente este termo continua sendo utilizado no Peru e na Bolívia com o mesmo sentido, porém também para denotar excessiva timidez ou costumes considerados como pouco civilizados.

[3]  Este quadro é uma adaptação de um quadro comparativo mais amplo elaborado por Chirif & Hierro em Marcando Territorio: Progresos y limitaciones de la titulación de territorios indígenas en la Amazonía (2007).

[4] Sobre a presença de grupos considerados isolados nas cabeceiras dos rios na região de fronteira entre o estado brasileiro do Acre e o Peru e sobre a transformação da política do governo brasileiro ver os depoimentos do sertanista José Meireles no documentário “Paralelo 10”, do Diretor Sílvio Da Rin.

[5] Atualmente lideranças indígenas, indigenistas, pesquisadores e diversos apoiadores da causa indígena no Brasil tem denunciado o desmonte da política indigenista empreendido pelo atual Governo Federal. Tal desmonte ocorre mediante a redução orçamentária e precarização das ações da FUNAI. O Congresso Nacional também tem promovido ataques aos direitos indígenas no Brasil através de Projetos de Lei e de Emendas à Constituição, além da tentativa de criminalização dos participantes em processos de demarcação de Terras Indígenas com a chamada CPI da FUNAI/INCRA.

[6] A Terra Indígena Vale do Javari (TIVJ) tem uma extensão de 8.527.000 hectares e um perímetro de aproximadamente 2.068 km. É a 3ª maior área indígena do Brasil. Está situada na região do Alto Solimões, no sudoeste do estado do Amazonas, próxima à fronteira do Brasil com o Peru. Abrange áreas drenadas pelos rios Javari, Curuçá, Ituí, Itacoaí e Quixito, além dos altos cursos dos rios Jutaí e Jandiatuba, compreendendo terras dos municípios brasileiros de Atalaia do Norte, Benjamin Constant, São Paulo de Olivença e Jutaí. Nesta Terra Indígena vivem cerca de 5480 indígenas (Brasil, 2013) das etnias: Kanamari, Korubo, Kulina-Pano, Marubo, Matis, Matsés (Mayoruna), além de grupos isolados/autônomos localizados no Alto Jutaí, no Jandiatuba e no Quixito.

[7] Argumentando que precisava de poderes especiais para adaptar a legislação peruana ao termos do acordo com os Estados Unidos, em dezembro de 2007 o Congresso aprovou uma lei (n º 29.157) que concedeu ao Poder Executivo a faculdade de legislar por 180 dias corridos. Como resultado, no primeiro semestre de 2008, o presidente Alan Garcia promulgou 99 decretos legislativos que, em teoria, estavam ligados ao TLC (Stetson, 2012).

[8] A Asociación Interétnica de Desarrollo de la Selva Peruana (AIDESEP) é composta por seis organizações regionais, 57 federações, representando 1.350 comunidades e, de acordo com seu site, cerca de 350.000 indivíduos indígenas (www.aidesep.org.pe).

[9] Sobreposições como estas ocorrem em outras regiões do território peruano. Outro exemplo na fronteira Brasil-Peru, desta vez na fronteira com o Acre, foi a presença da empresa PERUPETRO no processo de licitação do lote 169, sobreposto à Proposta da Reserva Comunal Yuruá, Comunidade Nativa Sawawo e demais comunidades nativas do Alto Juruá e no entorno do território de índios isolados na Reserva Territorial Murunahua, que faz limite com a TI Kampa do Rio Amônia, TI Ashaninka/Kaxinawá do Rio Breu e a Reserva Extrativista do Alto Juruá, no Brasil. Cf. A situação dos direitos humanos dos povos indígenas na fronteira Acre-Peru, relatório por organizações indígenas e indigenistas do Acre para o Conselho de Direitos Humanos da ONU.

[10] Na página desta empresa na internet há informações sobre a exploração nos lotes situados no território peruano. Cf. http://www.pacificrubiales.com/operations/peru/exploration/217-peru-exploration.html acesso em 15.03.2013

[11] O Centro de Trabalho Indigenista tem atuado junto às organizações indígenas da região e produzido uma série de boletins informativos e mapas. Dentre outros boletins, cf. http://www.trabalhoindigenista.org.br/noticia.php? id_noticia=142 acesso em 15.03.2013

[12] Campanha disponível no site: http://www.survival.es/indigenas/matses acesso em 15.03.2013

[13] Disponível em: http://trabalhoindigenista.org.br/vitoria-matses-pacific-stratus-desiste-do-lote-137/ (Acesso em 30 de maio de 2017).

Palavras Chaves

Indigenismo; Direitos; Territórios Indígenas; Amazônia