Artigo
Entrevista sobre Segurança e Direitos Humanos
(Questões propostas em 25 de maio de 2017)
Aderson Bussinger – AB Como a senhora relaciona os temas dos direitos humanos e da segurança e como os visualiza hoje no Brasil? Pode nos oferecer uma visão didática da questão?
Direitos Humanos e Segurança correspondem a normas, conceitos e práticas constituídos no âmbito do que chamamos de civilização e sociedades civilizadas. No caso dos direitos humanos temos duas vertentes fundamentais para examiná-los nos Estados Moderno e Contemporâneo. A primeira remete-se ao surgimento do Estado Nacional na Europa Ocidental e nos Estados Unidos, configuração que foi contestada em seu formato absolutista pelas ideias e lutas individualistas e liberais dos séculos 17 e 18. São estas ideias que haverão de inspirar as Declarações de Direitos dos nascentes estados norte americanos, com seus Bill of Rights, em especial, a Carta da Virginia, de 1776. Depois deste documento o mais conhecido será a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, votada na França em 1789. Todas estas declarações adotaram o ponto de vista do indivíduo, como sujeito de direitos, frente ao Estado, compreendido como soberano.
No campo do direito internacional
A segunda vertente que podemos vincular à questão dos direitos humanos situa-se no campo do direito internacional, onde a ONU promulgou, em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, bem como todos os Pactos e Convenções derivados desta Declaração. Neste sentido recordem-se, entre outros, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, de 1966, a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979, a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, em 1984. Também no âmbito do Sistema Regional Americano, ou seja, da Organização dos Estados Americanos – OEA foram produzidos vários Pactos e Convenções. São muito conhecidos, por exemplo, a Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto de São José de Costa Rica, de 1969; a Declaração de Cartagena sobre Refugiados, enunciada em Cartagena, Colômbia, em 1984 e a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Conexas de Intolerância e a Convenção, Antígua, Guatemala, 2013.
Note-se que embora todos estes documentos internacionais e regionais possam ter raízes nas antigas Declarações de Direitos, seus antecedentes mais próximos são o Direito Humanitário – que a Cruz Vermelha tão bem simboliza, e que se encontra quase inteiramente condensado nas quatro Convenções de Genebra de 1949; a Liga das Nações, criada depois da 1ª Guerra Mundial e que visava promover a cooperação, paz e segurança entre os Estados; e a Organização Internacional do Trabalho- OIT, destinada a estabelecer nos Estados que a ela aderissem um padrão justo e digno de condições de trabalho, inclusive entre homens e mulheres.
Quanto à relação entre direitos humanos e segurança, destaque-se, numa primeira aproximação, que a segurança, ela própria, insere-se no campo dos direitos humanos, enquanto direito à segurança em relação à vida, à integridade física, à liberdade, à propriedade, ao acesso à justiça, ao devido processo legal etc. Do ponto de vista internacional a ameaça mais discutida em relação à segurança é o terrorismo e no âmbito interno, isto é, no Brasil atual, é a Lava-Jato.
2- AB A senhora poderia explicar melhor estas afirmações relativas ao terrorismo e a Lava-Jato?
Terrorismo
Com relação ao terrorismo todos sabemos que o acontecimento que teve maior destaque na agenda política do Ocidente, neste século, foi o 11 de setembro norte-americano. O evento gerou variadas interpretações, algumas delas de natureza psicológica e estética. Refiro-me assim ao reconhecimento da enorme atração que o terrorismo exerce sobre as “nossas mentes” a partir da violência que ele encerra e de seu caráter espetacular. No instigante ensaio L’esprit du terrorisme, publicado no Le Monde, em 3 novembre 2001, Jean Baudrillard analisando o mencionado acontecimento chama nossa atenção para a fulgurância inesquecível daquelas imagens do 11 de setembro, divulgadas amplamente pela telvisão e pelo mundo como uma ficção saída da imaginação terrorista que habita em todos nós. Aprofundando sua interpretação Baudrillard afirma que se foram eles que o fizeram, fomos nós que o havíamos querido. E recorda: as torres arrogantes de Manhattan não se despedaçaram sob o efeito de aviões camicases, cometeram suicídio quando se erigiram gemeas e soberbas no céu americano.[1] Baudrillard enfatiza, portanto, entre outras questões, que o terror seduz. Só a proximidade do terror nos faz ver o horror do terror, suas vítimas, e nos identifica com estas vítimas. Por outro lado, a racionalização política e ética do terror nos impele a regeitá-lo. E ao mesmo tempo que o terror nos atrai ele provoca medo, pânico, insegurança.
Lava Jato
Quanto à Lava Jato no Brasil, a despeito da curiosidade, interesse e mesmo sentimento de identificação que ela provocou na população, relativamente à questão de se estar investigando e punindo quem a expropriou economicamente, quem corrompeu, escondeu dinheiro em bancos no exterior, lavou capitais etc, apesar da atração pelo caráter espetaculoso de suas ações, ela começa a provocar insegurança na sociedade. Chamo assim a atenção para problemas que lhe são associados como a eliminação de empresas, de cadeias de produção, de renda e de empregos; a flexibilização da legislação para criminalizar suspeitos; a estimulação da mídia para uma criminalização prévia dos mesmos; o induzimento desta mesma mídia a fazer pressão em relação ao Judiciário a fim de obter resultados pretendidos pela operação etc. Intelectuais, órgãos de classe e operadores do direito e, agora, órgãos de imprensa enfatizam abusos jurídicos e políticos produzidos pela Lava Jato em sua atuação. Alguns destes têm, inclusive, enunciado suas críticas e divergências mediante Manifestos. O mais desafiador à nossa avaliação, entretanto, na perspectiva do que salienta o Professor da UFRJ Ronaldo Bicalho é que o núcleo estruturante da Lava Jato propõe a criação de uma republica nova, sem corrupção, com a destruição da vigente classe política, ainda que esta orientação provoque sérios desarranjos institucionais entre os pderes constituidos.[2] Avança, ainda, Ronaldo Bicalho na caraterização da Lava-Jato, entendendo que sua lógica constitutiva fundante é a destruição institucional, ou seja, é desta capacidade que seus agentes e instituições retiram o poder de atuar. Segundo Bicalho as Organizações Globo e posteiromente a mídia, em geral, tornaram-se sócias majoritárias da operação, tal como aconteceu com a Operação Mãos Limpas, na Itália. Quanto à mídia, esta atuaria em duas direções: primeiro publicicizaria e estigmatizaria o processo de crininalização dos que ainda não foram condenados; depois pressionaria as instâncias superiores do Poder Judiciário para que se alinhassem ao modo de operar da Lava Jato[3].
3- AB Extrapolando a Lava Jato como pensar a segurança jurídica em nosso país atualmente?
Desconsiderando a Lava-Jato, que tem seus operadores específicos, no Brasil a luta anticorrupção foi e é constantemente utilizada para desmanchar o tipo de democracia previsto em nossa constituição. Trata-se de uma arma manejada com destreza na América Latina por políticos de direita, muitas vezes oportunistas e hipócritas, eles próprios extremamente corruptos, visando desmoralizar governos e políticos vinculados a projetos populares. Não apenas a luta anticorrupção fundamenta os golpes de estado legitimados pelo Parlamento. O golpe parlamentar que o Brasil sofreu não é um atentado isolado à democracia no mundo contemporâneo. Ele convive com vários outras expressões de elitismo e autoritarismo, como são o avanço da extrema direita e do populismo xenófobo na Europa e nos USA. Com relação ao golpe parlamentar, este é um modo de quebrar a autonomia do Executivo, enquanto represente interesses e expectativas populares.
Democracia sem povo
É certo que os novos regimes continuam a fazer referência e invocar a senha (mágica) da democracia, mas propõem aquele tipo de democracia que o Temer tão bem encarna: uma democracia em que não interessa a opinião do povo, onde não importa a expressão da vontade popular nas urnas. Usam-se, então, outros parâmetros para avaliar a densidade ou excelência do regime democrático, destacando-se entre eles a adesão da mídia corporativa a um programa de governo, opiniões ou avaliações positivas de instituições como o Banco Mundial e a Transparência Internacional, a monitoração do regime pelo Poder Judiciário, mediante decisões que assegurem a vigência ou a construção de um neo neoliberalismo conservador. Em nossa perspectiva o principal ataque à nossa segurança jurídica foi o atentado à constituição mediante o golpe parlamentar de 2016. Desde então deslocou-se para o Parlamento a tomada de decisões sobre direitos da população que conflitam com os interesses expressos nas últimas eleições e reiterados presentemente nas pesquisas de opinião.
4-AB Retomando a questão de agências como o Banco Mundial para a caracterização do regime democrático, elas são efetivamente importantes no Brasil?
Não podemos dizer que no discurso político partidário em curso no país, ou nas manifestações de nossas lideranças afirme-se que os indicadores de boa governança expostos pela agenda de pesquisa do Banco Mundial (vinculada ao seu World Bank Institute), ou por agências privadas de avaliação de risco financeiro são mais importantes para a definição do regime democrático do que o voto popular. Contudo, o apoio de nossas elites – empresariais, financeiras, políticas – ao golpe parlamentar e ao governo Temer demonstram que o fundamental para elas era e é a governança, isto é, um tipo de administração do país, que comece por um programa de corte dos gastos sociais e pelas reformas previdenciária e trabalhista. Estas reformas devem estar colocadas em um quadro neoliberal, ou seja, mediadas como disciplina fiscal, desregulamentação, privatização, liberalização do comércio etc A crescente impopularidade de Temer foi mascarada por estratégias que alegavam progressos na economia e confiança na aprovação das reformas. Por fim, quando Temer perdeu credibilidade para viabilizar as reformas ele perdeu o apoio das mesmas elites. Estas, entretanto, não desistiram do projeto, o qual pode ser viabilizado mediante eleições indiretas para a Presidência da República.
5- AB O combate à corrupção favorece a construção de uma sociedade segura no Brasil?
Se compreendemos como corrupção o que nosso Código Penal define sob este titulo, nas formas ativa ou passiva, ou ainda o que se afirma na divulgada caracterização do Banco Mundial- “abuso de cargos públicos para o ganho privado” este combate pode favorecer mas não garante a segurança dos cidadãos. Medidas anticorrupção convivem constantemente com ditaduras ou com regimes arbitrários, em que ocorrem recorrentes abusos de autoridade. De outra parte, o próprio Banco Mundial tem sustentado, desde a primeira década deste século, que a redução das desigualdades sociais é mais significativa prioridade para erradicar a pobreza e elevar a qualidade de vida da população. Ainda no início deste ano, em 18 de janeiro de 2017, a Diretora do FMI, Christine Lagarde, em reunião do Fórum Econômico Mundial, ocorrida em Davos, Suiça, afirmou que a prioridade das políticas econômicas precisa ser o combate à desigualdade social. Em evidente divergência com Henrique Meirelles ela insistiu durante um painel em que as reformas anunciadas por Meirelles são hoje contraproducentes. E enfatizou: “Se quisermos um pedaço maior de torta, precisamos ter uma torta maior para todos, e essa torta precisa ser sustentável. O excesso de desigualdade está colocando travas nesse desenvolvimento sustentável”. Agregou ainda que “o FMI se converteu para aceitar a importância da desigualdade social e a necessidade de estudá-la e promover políticas em resposta a ela”. Três anos antes um estudo do FMI assinado por Jaejoon Woo, Elva Bova, Tidiane Kinda e Y. Sophia Zhang afirmou que cortes de gastos públicos geram desemprego a curto prazo, contraem a classe média e produzem mais pobreza. Segundo eles seria preferível aumentar impostos. Enfim, o que se está fazendo no Brasil, coloca o país na contramão de recentes conclusões neoliberais, do bem-estar e do desenvolvimento.
6-AB Estas “políticas de austeridade” impactam efetivamente a pauta de direitos humanos na definição que lhe é dada pelos organismos internacionais?
Certamente estas questões estão diretamente inseridas na pauta de direitos humanos, que desde o Declaração Universal de 1948 faz uma previsão de direitos econômicos, sociais e culturais. Criticando, por exemplo, tanto a PEC 55 como o comportamento do Banco Mundial, que na prática tem contrariado o resultado de suas análises, o INESC, a CONECTAS DIREITOS HUMANOS, o INTERNATIONAL RIVERS, o IBASE, o IEMA e o ECOA formularam o documento Implicações aos Direitos Humanos da Emenda Constitucional proposta para limitar os gastos públicos por duas décadas afirmando: “ A emenda constitucional proposta (PEC 55), se aprovada conforme apresentada, pode violar as obrigações do Brasil nos termos do direito internacional e regional de direitos humanos contidas em tratados ratificados pelo Brasil, em particular o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (ICESCR), A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (ACHR) e o Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos na área dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador).” E ainda de forma muito direta sobre a incidência das normas internacionais de direitos humanos de caráter econômico em relação à medida concluem: “Embora os estados tenham uma margem de discricionariedade para adotar políticas e outras medidas para combater os efeitos da crise econômica ou enfrentar outras situações de natureza excepcional, tal margem não é absoluta e não foge do escrutínio das normas dos direitos humanos.”
(Questões propostas em 26/07/2017)
7-AB – Tendo em vista não havermos concluído sua entrevista em junho – em razão de seus problemas respiratórios no inverno – pergunto agora: dois meses depois de responder às questões anteriores o que mudou na pauta de direitos humanos e segurança no país?
– Não posso ser otimista. Creio que nestes dois meses a situação piorou muito. Estamos sentindo os efeitos de uma política econômica que fez apostas equivocadas e terminou provocando queda do comércio e da produção industrial, além de mais desemprego (veja-se a última pesquisa da CNI constatando que emprego e produção caíram no último mês pesquisado, ou seja, em junho), mais privações materiais para os servidores públicos com salários atrasados ou sem salários, ampliação da população de rua, da fome, da miséria e da violência, seja a da sociedade ou a da polícia. No meio de tudo isto uma grande destituição de direitos, como é a imposta pela reforma trabalhista e a promessa da destituição previdenciária. Existe corrupção aberta, pública e permitida dos atuais donos do poder – o executivo e a sua base parlamentar – sem que o Ministério Público e o Judiciário identifiquem em suas práticas um caso de flagrante delito. A operação do direito tornou-se cada vez mais arbitrária, os operadores jurídicos não cumprem suas obrigações. Em grande medida as peças jurídicas são feitas pelo sistema do copia e cola e os julgamentos são realizados sem se tomar em referência o que está sendo discutido. Os juízes produzem seus votos sem interlocução com as partes e sobretudo sem atenção ao que dizem os advogados. Enfim, vejo no país uma situação caótica na política, na economia e no direito, sem soluções à vista.