GOVERNABILIDADE E DESIGUALDADE SOCIAL

Resumo

Pensar hoje a governabilidade implica, necessariamente, pensar as formas de combate a desigualdade social crescente e humilhante que afeta a grandes parcelas das sociedades, ao mesmo tempo em que se busca ampliar os instrumentos de participação da sociedade civil nos processos decisório relacionados com o futuros das diferentes sociedades contemporâneas.

Artigo

GOVERNABILIDADE E DESIGUALDADE SOCIAL.

Napoleão Miranda[1]

Resumo:

Pensar hoje a governabilidade implica, necessariamente, pensar as formas de combate a desigualdade social crescente e humilhante que afeta a grandes parcelas das sociedades, ao mesmo tempo em que se busca ampliar os instrumentos de participação da sociedade civil nos processos decisório relacionados com o futuros das diferentes sociedades contemporâneas.

Introdução:

É tema corrente nos dias de hoje, na literatura dedicada aos temas da democracia, da reforma do Estado, da sociedade civil e da participação do cidadão na esfera pública, a questão relacionada às dificuldades enfrentadas pelas sociedades atuais, em particular aquelas de democracia recente, como o Brasil, no que se refere às condições que se mostram fundamentais para se garantir a governabilidade do país, isto é, a capacidade de manter em funcionamento livre e sem constrangimento as instituições e processos político-sociais necessários à vida democrática.

Estas dificuldades não resultam somente da “juventude” democrática em que vivem estes países, com problemas para a consolidação das normas e instrumentais democráticos frente aos processos típicos da transição para a democracia – embora, no Brasil recente, isto não tenha sido obstáculo para a superação de importantes crises institucionais, das quais o “impeachment” de Fernando Collor foi a mais importante a respeito. Ainda que muito relevantes para o tema, tais dificuldades estão longe de esgotar o elenco de fatores capazes de incidir negativamente no ambiente propício à governabilidade, muito embora o conflito seja um componente essencial deste processo. Neste sentido, gostaríamos de destacar neste texto dois elementos que nos parecem ser da maior importância para se pensar esta questão no Brasil de hoje.

O primeiro deles, refere-se ao problema das desigualdades sociais, fenômeno que parece estar se tornando o “calcanhar de Aquiles” das propostas, políticas e processos de modernização econômica e tecnológica pela qual passam grande parte das sociedades ocidentais. Com efeito, às formas tradicionais da desigualdade social, marcada por diferenças determinadas por fatores de caráter estrutural, vêm somar-se aquelas fundadas em elementos ligados, de um lado, às transformações promovidas por esta modernização, entre as quais cabe destacar o desemprego estrutural provocado pela tecnificação e informatização aceleradas da estrutura produtiva das economias capitalistas, fazendo da grande maioria dos membros destas sociedades seres obsoletos e descartáveis do ponto de vista da lógica produtivista e maximizadora que preside a atividade econômica. Considerando-se a sofisticação e qualificação crescentes que se exige da mão-de-obra neste contexto tecnológico, e, também, as dificuldades, por parte do setor público e das próprias famílias, de se prover a educação necessária aos jovens e adultos para cumprir com esta exigência, tornam-se claras as dificuldades que em um futuro não muito distante a sociedade brasileira deverá enfrentar para solucionar este dilema que acompanha a onda de globalização e modernização econômicas e de flexibilização crescente das práticas e normas relacionadas com a contratação de trabalhadores no presente momento. Alguns autores como, por exemplo, Alain Touraine, na França, vão chamar a atenção para a crescente onda de “exclusão social” que este processo estaria provocando, materializado na falta de integração cultural e social de segmentos cada vez maiores de membros das sociedades contemporâneas às suas próprias dinâmicas societárias[2].

A estas desigualdades, que reforçam antigas formas de segmentação social, somam-se outras calcadas em fatores ligados à superestrutura cultural destas sociedades, produzindo formas de exclusão que potencializam as dificuldades de integração de um amplo conjunto de grupos em desvantagem social. Eles são vários e, com freqüência, encontram pontos de interseção que fazem de seus membros o objeto de uma variada gama de formas de desigualdade e exclusão. Assim temos as crianças e os jovens, em especial aqueles oriundos das camadas mais pobres da população, os idosos, as mulheres, os negros, as minorias sexuais, os índios, os deficientes físicos, os imigrantes estrangeiros, como os principais grupos sociais vivendo formas de desigualdade que dificultam sobremaneira as suas chances de exercício pleno de seus direitos humanos e de sua cidadania, levando-os a viver no limbo daquilo que o sociólogo português Boaventura Santos qualificou de “lumpencidadania[3].

Ora, se levarmos em conta o fato de que a democracia, como sistema político e como filosofia, só pode se desenvolver plenamente na presença do que poderíamos chamar de “iguais, ainda que diferentes”, isto é, no contexto de uma institucionalidade social, política e econômica que, ainda que convivendo com os diversos matizes ideológicos e políticos e com os distintos níveis de segmentação econômica e social, permite aos indivíduos a livre manifestação de suas vontades políticas, percebe-se que a crescente onda de desigualdade social presentes nestas sociedades constitui séria ameaça à sua governabilidade dentro dos marcos institucionais do Estado de Direito Democrático.

O segundo elemento, tem a ver com as possíveis conseqüências desta ameaça à governabilidade, uma das quais remete, exatamente, à possibilidade inscrita nesta dinâmica de, como uma das formas de enfrentá-la, promover-se um processo de fechamento dos canais através dos quais se exerce a democracia, ou, pelo contrário, promover a sua banalização, de forma a, na prática, dificultar ou impedir a participação social nas decisões que afetam o futuro destas sociedades. Tanto se pode promover a exclusão dos atores sociais dos processos decisórios vitais por meio de um “fechamento” institucional, portanto, uma ditadura sob diversas roupagens, quanto se pode estimular a participação social nos temas menos problemáticos da Agenda Pública – os quais podem ser muitos importantes na vida real dos indivíduos, como é o caso do meio ambiente -, mas dificultando ou impedindo a sua participação nos temas que verdadeiramente determinam a sua inserção social. Neste sentido, um dos resultados previsíveis desta dinâmica é a hipertrofia do poder do Estado frente a indivíduos e grupos sociais atomizados, excluídos e com grandes dificuldades de se organizar e intervir na esfera pública.

Estes dois fatores, combinados, deixam entrever o que poderíamos definir, com Boaventura Santos, como o risco de “emergência do fascismo societal. [Mas] Não se trata do regresso ao fascismo dos anos trinta e quarenta. Ao contrário deste último, não se trata de um regime político mas antes de um regime social e civilizacional. … Trata-se, pois, de um fascismo pluralista e, por isso, de um fascismo que nunca existiu. As formas fundamentais do tipo fascista de sociabilidade são as seguintes: fascismo do apartheid social; fascismo do Estado paralelo; fascismo paraestatal, o qual assume duas formas,  o fascismo contratual e o fascismo territorial; o fascismo populista; o fascismo da insegurança e, por fim, o fascismo financeiro..[4].

O enfrentamento dos riscos envolvidos nos processos de larga escala acima descritos destaca, portanto, o papel fundamental que a sociedade civil, ou seja, o conjunto dos atores, entidades e organizações não-governamentais, assim como os diversos movimentos sociais que lhe dão forma e conteúdo, tem no presente momento da história das sociedades contemporâneas, em especial pelo fato de que, na sua dinâmica, ela dialoga de forma permanente com os diversos segmentos da sociedade promovendo uma interação difícil de ocorrer por outros caminhos. Com efeito, a sociedade civil que se desenha hoje se desvincula estritamente dos interesses econômicos dos mais diversos grupos sociais para incorporar questões e problemáticas que envolvem direitos humanos e sociais os mais diversos, concepções normativas e valorativas amplas e, com freqüência, divergentes, assim como causas de interesse humano geral, como é o caso da defesa do meio ambiente e da ecologia, das questões étnicas e de gênero.

            As configurações assumidas pela sociedade civil variam de país a país, e, no interior de cada um deles, entre as diversas regiões que os compõem, de acordo com diferentes variáveis históricas, sociais, econômicas, culturais, e, em especial, de acordo com a estrutura, a organização e as relações com a sociedade que apresenta o aparato de Estado[5].

            Apesar destas particularidades, algumas características comuns podem ser destacadas permitindo-nos detectar possíveis tendências no processo de estruturação atual – para alguns, ressurgimento – da sociedade civil em todo o mundo, em especial, nas sociedades ocidentais. Entre elas, cabe destacar:

            1 – a tendência à afirmação de sua autonomia frente ao mercado e frente ao Estado, seja no plano político-ideológico, seja no plano financeiro, independente do fato de que as organizações que a compõem venham trabalhando de forma cada vez mais freqüente na interseção com estas outras duas esferas. Esta autonomia se mostra também na sua relação com o que se convencionou chamar de “sociedade política”, isto é, o conjunto das instituições que conformam e organizam a vida política destas sociedades, em especial, os partidos políticos. Autonomia, no presente contexto, não significa rejeição ou uma posição de confronto permanente da sociedade civil com estes outros setores em que se organizam as sociedades contemporâneas, mas um esforço por definir e defender um espaço de atuação próprio a partir de posições  nem sempre congruentes com os interesses e as perspectivas dos agentes sociais que fazem parte ou que atuam preferencialmente na esfera do Estado ou do mercado ;

            2 – ela tende a se estruturar com base em um sem-número de organizações e instituições, que podem ser representativas de determinados interesses econômicos, de perspectivas religiosas particulares, de concepções específicas relativas à orientação sexual, de valorização de determinados segmentos da sociedade (população negra, mulheres, crianças, idosos, portadores de certas deficiências, etc.), mas que, ao contrário das instituições representativas tradicionais,  não têm sua “representatividade” determinada por uma escolha formal do tipo eleições ou qualquer outro tipo de processo eletivo, e sim determinada por “afinidades eletivas” entre seus membros e uma “constituency”, quase que por definição, variável, mutante, sem contornos definidos, que precisa ser “reconstruída” a cada momento como forma de assegurar seu apoio a estas organizações. Dentre estas, as que mais se destacam neste “ressurgimento” da sociedade civil nas sociedades contemporâneas são as Organizações Não-Governamentais (as ONGs), muito embora outros termos estejam progressivamente ocupando seu lugar como Organizações da Sociedade Civil (OSCs) ou “Rising Funds Social Organizations” (RFSOs), cuja tradução para a linguagem do ativismo social ainda espera por ser feita;

            3 – movimentos, campanhas, ações de massa, atos públicos, ações regulares de arrecadação de fundos, etc., são algumas das formas de atuação destas organizações. Neste processo, um lugar de destaque é ocupado pela mídia, escrita e eletrônica, devido à sua capacidade de mobilizar segmentos os mais diversos, fazendo com que, freqüentemente, a base de apoio das ONGs tenha uma extração “cross-social”, isto é, encontre sustentação em setores sociais diferentes, com interesses e perspectivas valorativas distintas e, não raro, contraditórias entre si, embora unidos em torno de um ponto específico qualquer;

            4 – os agentes ou atores dos processos desencadeados por estas organizações na sociedade civil, nesta nova perspectiva, tendem assim a ser de extrações sociais diversas, tendo como elemento unificador sua adesão/identificação aos valores, propostas, atividades, ações, etc., desenvolvidas por elas, flexibilizando os limites de classe, ideológicos e/ou políticos, e de outro tipo que marcavam a atuação dos movimentos sociais das décadas de 70/80, no Brasil e no mundo. Não que estas questões tenham desaparecido do cenário da sociedade civil de forma a gerar uma total ruptura dos fatores que determinam a diferenciação do comportamento dos atores sociais; no entanto, parece estar ganhando força no cenário de atuação definido pela “nova” sociedade civil dos anos 90, a construção de uma via de cooperação e de solidariedade entre distintos setores da sociedade que “suspende”, por assim dizer, o potencial de conflito entre os mesmos ao enfatizar muito mais aquilo que unifica do que o que divide os atores sociais. Assim, organizações e movimentos sociais que trabalham questões como a violência urbana, a criança de rua, a assistência às vítimas da AIDS, ou de outra doença qualquer – como a Síndrome de Down -, etc., podem perfeitamente contar entre seus membros com pessoas oriundas de classes e/ou grupos sociais diversos e conflitivos entre si, sem que isso, necessariamente, implique a anulação das suas diferenças, nem a paralisação das atividades da organização. A adesão sendo voluntária, baseada na identificação com as propostas da organização, o potencial de conflito entre os seus membros diminui de forma acentuada, ensejando oportunidades de cooperação para além de suas diferenças. Contribui para isso, por outro lado, e não menos importante, o fato de que, na sua grande maioria, os objetivos destas organizações vinculam-se ao que, na teorização marxista, se define como “superestrutura”, isto é, o plano dos valores, dos direitos da cidadania, etc., sem tocar em questões “estruturais” – como a propriedade privada, as relações entre empresários e trabalhadores no plano da produção, etc. – que pudessem inviabilizar a cooperação interclasses;

            5 – ligado a isto, e devido ao fato de que o elemento unificador da participação destes diferentes atores pode ser múltiplo, e variável no tempo, assiste-se a um processo que poderíamos definir como de “múltiplo engajamento” destes atores, participando, simultaneamente ou não, de várias organizações e movimentos no interior da sociedade civil dando origem a um ator ou agente social multifacético no tocante à sua participação na vida da sociedade;

            6 – esta diferenciação no interior da própria sociedade civil – que tende a se apresentar como um mosaico de organizações e instituições as quais, apesar de fazerem parte de um conjunto maior, têm uma dinâmica muito particular em função de sua área de atuação e da sua “constituency” -, é resultado e, ao mesmo tempo, fator de expansão do conceito de cidadania vigente nas sociedades contemporâneas. Nelas, há muito o direito de participação eleitoral foi ultrapassado como o critério  de definição fundamental de um cidadão em pleno gozo de seus direitos, para incorporar novos elementos como o direito à educação, à saúde, à habitação, à plena vivência da sexualidade, à liberdade religiosa, entre outros. Em muitas delas, entretanto, embora incorporados às leis e constituições, estes direitos necessitam de uma permanente participação da sociedade no sentido de serem efeti-vamente respeitados, seja pelo Estado seja pela própria sociedade no seu conjunto.  Este papel de “vigilante dos direitos” é, com freqüência, desempenhado pelas organizações da sociedade civil em função dos objetivos que cada uma traça como próprios, o que tem feito dela um dos principais fatores de expansão e manutenção dos direitos de cidadania e da própria democracia no mundo contemporâneo. Polimorfia pode ser, portanto, um termo bastante adequado para descrever o caráter desta nova  sociedade civil, em função tanto das diferentes formas de organização dos agentes sociais que ela abriga, como dos distintos objetivos que elas perseguem, e das diversas estratégias de atuação que privilegiam na busca destes objetivos;

            7 – outra faceta que marca a sociedade civil neste final de século é a sua complementaridade em relação tanto ao Estado quanto ao mercado. A autonomia de que falamos acima não impede – ao contrário, estimula – a construção de parcerias entre estes três setores básicos da dinâmica social contemporânea, de forma a  complementar as ações que neles se desenvolvem. Estando voltadas para atuar no plano essencialmente social, as organizações da sociedade civil cumprem tarefas e desenvolvem ações que, embora não sejam completamente alheias ao universo do Estado e do mercado, encontram dificuldades para serem plenamente realizadas no seu âmbito. Dessa forma, prestar assistência às vítimas da AIDS e da violência (como, por ex., o estupro),  lutar em defesa do meio ambiente denunciando a omissão, a conivência ou a incompetência do Estado, ou o caráter predatório da atividade empresarial no trato da natureza, desenvolver programas de prevenção  de doenças ou programas educacionais especiais – combate às drogas, por ex. -, atuar na ajuda aos flagelados por fenômenos naturais, promover a defesa de minorias étnicas, entre muitas outras atividades, parecem fazer destas organizações um elemento importante para a manutenção/expansão da qualidade de vida e dos direitos adquiridos nas sociedades contemporâneas.

            Para isso, uma ampla rede de parcerias tem sido construída entre estas organizações e os diversos órgãos do Estado, de um lado, e as empresas, de outro, de forma a viabilizar o desenvolvimento de programas que atendam a determinados setores da população que, pela via normal, não teriam acesso a uma série de benefícios que estão à disposição de outros grupos sociais melhor localizados na estrutura da sociedade. É voz corrente entre os responsáveis por programas semelhantes no Estado e nas empresas, que a participação das organizações que conformam a sociedade civil é hoje cada vez mais indispensável para que setores mais amplos tenham acesso aos direitos mínimos envolvidos no conceito de cidadania e, por extensão, de democracia. Esta articulação entre o Estado e tais organizações   tornou-se tão “estrutural” que, por um lado, seus críticos rebatizaram-nas de organizações “neo-governamentais”, aludindo à transferência de recursos econômicos e de outro tipo que estaria existindo entre ambos os setores, e, por outro, corre o risco de levar a uma subordinação destas organizações aos interesses dos dirigentes de plantão no aparato de Estado, devido ao crescente grau de dependência financeira das mesmas frente ao Estado.

            Vale lembrar que as transformações políticas, sociais e econômicas dos governos socialistas  nos países da Europa do Leste  ao longo da década de 90, induziram muitas das agências financiadoras  das atividades das organizações não-governamentais ao redor do mundo, e em especial nos países do Terceiro Mundo, a redirecionar o fluxo dos seus recursos para aqueles países, fazendo com que os investimentos estatais nos programas que as ONGs desenvolvem se tornassem particularmente importantes para a sua sobrevivência. Este processo é de tal forma significativo, que o desaparecimento, a reestruturação e a redefinição dos objetivos e do espaço de atuação destas organizações passaram a fazer parte do seu cotidiano, alterando em muito o “meio ambiente” no interior da sociedade civil. Portanto, o risco da perda de autonomia é significativo no atual contexto político e financeiro das sociedades contemporâneas, o que, de se concretizar, poderá provocar efeitos perversos para uma parcela significativa da população destas sociedades;

            8 – O processo de interação construtiva entre a sociedade civil, o Estado e o mercado, não se dá, entretanto, sem conflitos. Por razões evidentes, nesta interação está envolvida também  uma clara disputa por espaços políticos e, em última instância, por poder. Embora isto não ocorra necessariamente em todas as esferas de atuação destes três setores, há pontos de extrema sensibilidade que exigem um cuidado todo especial para não inviabilizar as parcerias na sua totalidade. Questões como segurança pública, para o Estado, e restrições à atividade empresarial (como na defesa do meio ambiente), para o mercado, apresentam (e representam) um significativo potencial de conflito desde a ótica da autoridade, no primeiro caso, ou da ótica da liberdade empresarial e da propriedade privada, no segundo, ambas consideradas como dogmas intocáveis  e como fundamento último das sociedades  contemporâneas.

            Este potencial parece ser tanto mais significativo, quanto mais recente é o processo de estruturação da sociedade civil em cada país (2). Com efeito, em países  que  saíram recentemente de governos autoritários – como a Polônia, “à esquerda”, e o Brasil, “`a direita” -, o “ressurgimento” da sociedade civil a coloca normalmente em oposição ao Estado, ou melhor, ao Governo, sendo ela um importante fator na própria mudança e democratização dos regimes políticos, como ocorreu na América Latina e na Europa do Leste. Sendo assim, a sensibilidade mútua é grande e perigosa no tocante ao conflito possível entre ambos os setores, exigindo, às vezes, uma elaborada estratégia para evitar que a colaboração entre sociedade civil e Estado seja contaminada, na sua totalidade, pelas disputas entre ambos. Neste sentido, é comum assistirmos a denúncias e acusações oriundas dos dois lados, que são normalmente seguidas de recuos e ponderações mais “equilibradas” destinadas a restabelecer os canais de comunicação entre os representantes de ambos os setores (3).

            A presença destes conflitos não é, evidentemente, uma característica exclusiva de sociedades recentemente democratizadas.  Em países de forte tradição associativa, como os Estados Unidos, e também na Europa Ocidental, é comum diferentes setores do Estado e membros da sociedade civil se encontrarem em campos opostos, variando historicamente as razões que opõem os diversos atores que os integram. Nos dias atuais, defesa do meio ambiente, dos direitos de minorias, dos imigrantes, da liberdade religiosa, entre outros, ocupam o centro dos problemas envolvendo a estas esferas nas sociedades desenvolvidas, sendo bem mais amplo o leque das possibilidades de conflito no assim chamado Terceiro Mundo. Os problemas opondo sociedade civil e mercado são também muito freqüentes, envolvendo prioritariamente questões relacionadas aos direitos dos trabalhadores, ao meio ambiente, à exploração da mão de obra infantil, à discriminação racial e de gênero no trabalho, etc.,  e podem, como no caso do Estado, levar a conflitos que dificultem as parcerias entre estas duas últimas esferas sociais.

 Estes conflitos são parte integrante da interação entre Estado, mercado e sociedade

civil e cumprem um importante papel  na  definição  dos  rumos tomados por cada setor ao

longo do tempo.

Neste sentido, pensar hoje a governabilidade implica, necessariamente, pensar as formas de combate à desigualdade social crescente e humilhante que afeta a grandes parcelas das sociedades, ao mesmo tempo em que se busca ampliar os instrumentos de participação da sociedade civil nos processos decisórios relacionados com o futuro das diferentes sociedades contemporâneas.

Notas de Rodapé:

[1] Professor Associado IV do Departamento de Sociologia e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (PPGSD/UFF)

[2] Alain Touraine. “Face  à Exclusão”, Revista da Faculdade de Direito da UFF, vol. 2, 1999, RJ.

[3] Boaventura Santos. “Reinventar a Democracia: entre o pré-contratualismo e o pós-contratualismo”,

  in, Francisco de Oliveira et al, “Os Sentidos da Democracia. Políticas do Dissenso e Hegemonia

  Global”, Ed. VOZES/FAPESP, SP, 1998. 

[4] Ibid., pgs. 103-109.

[5] A respeito das  características assumidas  pela sociedade civil  em diferentes contextos nacionais, e as consequentes

   repercussões e limites impostos à sua evolução e dinâmica, consultar,  entre outros:

                – Andrew Arato e Jean L. Cohen, “Civil Society and Political Theory”, The MIT Press, 1992; e

                – Miguel Darcy de Oliveira e Rajesh Tandon, “Cidadãos – Construindo a Sociedade Civil Planetária“,

               CIVICUS, 1994