IN DUBIO PRO STEREOTYPO

Resumo

O presente trabalho foi desenvolvido sob a perspectiva moderna e crítica do feminismo e da criminologia, revisitando os textos sobre a atuação do Estado, principalmente do Poder Judiciário, nos casos de violência sexual praticada contra a mulher adulta. O objetivo do artigo é demonstrar a análise moral feita pelos Juízes sobre os comportamentos sociais de mulheres vítimas de estupro, na tentativa de repensar se os estereótipos de gênero ainda se fazem presentes na Justiça Criminal. A motivação do artigo se deu pela intensidade dos debates com relação ao crime de estupro, tanto na Academia quanto na sociedade, além das indagações sobre o respeito aos Direitos Humanos das Mulheres a partir da análise dos discursos judiciais, com vistas a se evitar a revitimização pela violência institucional.

Artigo

IN DUBIO PRO STEREOTYPO

 Cristiane Brandão Augusto/ Grupo PEVIGE

Resumo

O presente trabalho foi desenvolvido sob a perspectiva moderna e crítica do feminismo e da criminologia, revisitando os textos sobre a atuação do Estado, principalmente do Poder Judiciário, nos casos de violência sexual praticada contra a mulher adulta. O objetivo do artigo é demonstrar a análise moral feita pelos Juízes sobre os comportamentos sociais de mulheres vítimas de estupro, na tentativa de repensar se os estereótipos de gênero ainda se fazem presentes na Justiça Criminal. A motivação do artigo se deu pela intensidade dos debates com relação ao crime de estupro, tanto na Academia quanto na sociedade, além das indagações sobre o respeito aos Direitos Humanos das Mulheres a partir da análise dos discursos judiciais, com vistas a se evitar a revitimização pela violência institucional.

Palavras-Chave: Direito Penal; Gênero; Patriarcado; Poder Judiciário; Estupro.

Keywords: Criminal Law; Gender: Patriarchalism; Judicial System; Rape.

 Introdução

O presente trabalho é um recorte dos estudos iniciados no âmbito da pesquisa “Violência sexual contra a mulher e as práticas institucionais: julgando vítimas de estupro”, a qual procurou observar a atuação do Estado, sobretudo do Poder Judiciário, nos casos de violência sexual contra a mulher adulta e não incapaz. Tal pesquisa foi motivada pelo incremento do debate sobre questões de gênero – notadamente pós Lei Maria da Penha, tanto na sociedade como na Academia –, pelas indagações sobre possíveis mudanças de percepção quanto à violência e quanto aos estereótipos de vítima, bem como sobre o tratamento dispensado pelos Juízes aos depoimentos dos envolvidos neste tipo de delito, especialmente no contexto de elevados índices de estupro[1].

Entendendo as mais diversas formas de violência contra a mulher como graves violações a Direitos Humanos, buscaram os movimentos feministas o apoio do Estado para as mais variadas políticas de proteção, entre elas o sedutor aparato do Sistema de Justiça Criminal, expressando-se com a reforma da Parte Especial do Código Penal (CP) a respeito dos então chamados “Crimes contra os Costumes” (arts. 213 a 234-B, do CP), com a criação dos Juizados da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (JVDFM, art. 14 da Lei 11340/06), com a introdução da agravante de pena nos crimes com “violência contra a mulher na forma da lei específica” (art. 61, II, “f”, do CP) e com a recente Lei do Feminicídio (Lei 13104/2015), entre outras normas jurídicas.

Assim, se, por um lado, os recursos normativos desempenham papel significativo no movimento de proteção à mulher, por outro, os trâmites altamente burocráticos e aviltantes, a morosidade do Judiciário, a ausência de escuta sensível e atendimento humanizado, dentre outros problemas já denunciados por pesquisas empíricas (CPMI, 2013; AUGUSTO, 2015; PASINATO, 2013), questionam se, de fato, tivemos mudanças relevantes no acesso à justiça. Questionam, pois, se a esfera da Justiça Criminal, como um subsistema de controle social muitas vezes operado pela lógica patriarcal e androcêntrica, não representaria um verdadeiro conflito entre aquilo que se esperava das referidas inovações legislativas e a operatividade da aplicação dessas normas.

Especificamente quanto à violência sexual contra mulher adulta e não incapaz[2], é notória a carga de abuso físico, psicológico e moral perpetrado pelos homens agressores, pela sociedade e pelas instâncias do Poder Público3, nas hipóteses de estupro, com sequelas por vezes irreversíveis. Não desconsiderando os danos provocados por outros delitos, o ponto é que, pelos estereótipos de gênero tradicionalmente cultuados em nossa sociedade, não raramente o julgamento se opera sobre a vítima. Tal como representado hoje pelo senso comum, nos casos levados às instâncias oficiais de repressão à criminalidade, os padrões de moralidade e de comportamento impostos às mulheres se fazem presentes também entre policiais, advogados, defensores, promotores e juízes, idealizando um perfil de vítima cuja palavra seja crível e respeitável.

Nesse sentido, se pretende analisar aqui, sob a perspectiva histórica e discursiva dos institutos/ instituições, uma possível participação do aparato de Justiça a duplicar o sofrimento experenciado por aquelas que buscam o Estado para a imposição da responsabilidade criminal em casos de estupro; ou a revitimizar, quando da “construção da verdade” nos processos judiciais e seus mecanismos de visibilidade (positiva ou negativa) dos estereótipos de gênero.

Estereótipos de Gênero e Desigualdades

Recorrendo a Joan Scott na sua concepção clássica, gênero é o “elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos [e] forma primária de dar significado às relações de poder” (SCOTT, 1995, p.86). O gênero, como referencial das atribuições de papéis ao masculino e ao feminino, configura as práticas e as legitima, como função política de sustentação de relações hierárquicas.

Atualizando à sua maneira profunda e instigante o conceito de gênero, Judith Butler reflete sobre a possibilidade de alterar as noções naturalizadas e reificadas, sustentadoras da hegemonia masculina e do poder heterossexista. Alertando para a rigidez da estrutura de regulação dos corpos alicerçada numa concepção binária e heteronormativa, que se perpetua no tempo, a autora insere o gênero no marcador da inscrição cultural, o distinguindo do sexo como a base material sobre a qual aquele recai (BUTLER, 2007, p.283).

A violência de gênero, assim,

se passa num quadro de disputa pelo poder, o que significa que não é dirigida a seres, em princípio, submissos, mas revela que o uso da força é necessário para manter a dominação, porquanto a ideologia patriarcal – tensionada por conquistas históricas, sobretudo feministas – não se revela suficientemente disciplinadora (ALMEIDA, 2007, p.29)

A fim de facilitar a função disciplinadora da ideologia patriarcal, sustenta-se uma construção social dos corpos que implica a internalização de certos valores pelos indivíduos que compõem nossa sociedade. Sob uma forte doutrinação, própria de instituições disciplinares tais como hospitais, escolas e quartéis, os corpos seriam definidos sob dois aspectos fundamentais: a redução materialista da alma e a docilidade no centro de uma teoria geral do adestramento: “É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado”. (FOUCAULT, 1997, p.118).

Não à toa, o corpo ser tão reivindicado por setores de poder capazes de limitar, proibir e criar obrigações, numa teia de técnicas minuciosas, muitas vezes íntimas, e de importância fundamental no estabelecimento da microfísica de um poder detalhado sobre o que virá a todo corpo social. Técnicas adotadas nos manicômios com os loucos, nos quartéis com os militares, nas escolas com os alunos, nos hospitais com os doentes, e nas penitenciárias com os criminosos. Mas o adotaram antes com as mulheres (FOUCAULT, 1997).

Quando as disciplinas recaíram sobre todo o corpo social, as mulheres já não se encontravam no espaço público. Confinadas ao privado, a mulher nos parece, antropologicamente, dita e feita dócil:

Como se feminilidade se medisse pela arte de se ‘fazer pequena’ (o feminino, em berbere, vem sempre em diminutivo), mantendo as mulheres encerradas em uma espécie de cerco invisível (do qual o véu não é mais que a manifestação visível), limitando o território deixado aos movimentos e deslocamentos de seu corpo – enquanto os homens tomam maior lugar com seu corpo, sobretudo em lugares públicos (BOURDIEU, 1998, p. 39).

Corolário a tal doutrinação, portanto, está o papel reduzido de cuidado dos filhos, do lar. Cabia-lhe, quando menina, a obrigação de aprender as atividades domésticas como preparação para o futuro matrimônio e a espera de um marido a ser escolhido por seu pai: passava, pois, da dependência de um pater familias para outro. Depois de casada, sua sexualidade estava limitada ao sexo para reprodução, visto que a lascívia entre marido e mulher (ou entre a mulher e terceiro) era condenada pelos preceitos religiosos e sociais. Portanto, a vida feminina estava restrita ao cuidado dos filhos e ao desempenho dos afazeres domésticos.

Da Matta, em sua obra A Casa & A Rua (1997) explica que a casa era baseada na hierarquia: sexo e idade são os critérios de classificação que explicam porque o pai vem primeiro (pater familias), depois os filhos, e por último, a mulher. O autor argumenta que a casa não era reconhecida como o lugar de trabalho, e a rua sim: “A rua é o local do trabalho, do Estado, das leis e também da surpresa, da tentação e do lazer. […] Em contraste com a calma e a tranquilidade do lar onde nos refazemos da chamada “luta pela vida” (DA MATTA, 2004, p.13). Dessa oposição nasce a associação que se faz da masculinidade ao mundo difícil da rua e do trabalho, à medida que ao mundo da casa, das cozinhas, associa-se a mulher.

Havia, então, uma espécie de confinamento absoluto das mulheres ao espaço doméstico, excluindo-as do espaço social externo. Ademais, sujeita a alguma figura masculina, sua “inferioridade” era ratificada. Os casamentos, que muitas vezes eram feitos em razão de interesses alheios aos seus e a consequente inexistência de amor entre os cônjuges, não lhe traziam qualquer tipo de conforto.

A dicotomia entre público-privado resulta, pois, em uma atribuição de papeis diferenciados. De um lado, a esfera privada, representada no âmbito familiar da sociedade, tem a mulher como protagonista, através do aprisionamento de sua sexualidade na função reprodutora e a redução de seu papel ao cuidado dos filhos e do lar. A esfera pública, por sua vez, tem o homem como seu protagonista e está centralizada nas relações de trabalho, externas ao âmbito familiar. Nesta esfera, o homem exerce o papel de sujeito produtivo, que ao prover para sua família, torna-se um homem virtuoso, ativo, forte e viril.

A priori, portanto, temos uma divisão sexual dos corpos, tida como natural e a-histórica. Os corpos separados, sexualmente, serão agora produtos de significações, simbologias, mitos e valores que vão nortear percepção, pensamento e ação. A própria diferença biológica dos sexos serve como justificação natural das desigualdades entre os gêneros.

A incorporação social da dominação sobre o corpo feminino justifica e perpetua uma visão androcêntrica de mundo, que se organiza segundo uma divisão hierarquizada. A arbitrariedade androcêntrica com um fundamento falsamente natural institui, dessa forma, a divisão do trabalho sexual, a divisão sexual do trabalho e as demais relações sociais hierarquizadas, que disto decorrem. São duas operações: uma construção social naturalizada e uma relação de dominação determinada por uma razão natural biológica (BOURDIEU, 1998).

A dominação física não se mantém sem uma fonte simbólica legitimadora. Somente com a doutrinação do corpo feminino, a dominação masculina consegue elementos para seu pleno exercício. Valorando o corpo feminino como objeto de conquista masculina e fazendo com que a postura genuinamente feminina seja a do resguardo, de maneira cordial, sorridente, simpática, atenciosa, submissa, discreta, contida, se teria o uso legítimo do corpo. É uma doutrinação prática, que parte de um uso legítimo do corpo, principalmente o sexual, e tende a excluir do pensamento tudo aquilo que pertence ao outro gênero, como uma norma, simbolicamente voltada à resignação e à descrição.

Não se pode dizer que, após mais de quarenta anos de intensa atuação do movimento femininista, nada mudou. Várias conquistas são evidentes e expressivas.

Ocorre que, imersos nesse caldo de cultura, os agentes sociais/políticos/jurídicos assimilam, introjetam e reproduzem as ações estereotipadas cabíveis a cada gênero, dentro de rituais historicamente construídos. A principal questão, portanto, é “que aparato cultural converge para o encontro entre instrumento e corpo e [principalmente] que intervenções são possíveis nessa repetição ritualística?” (BUTLER, 2007, pp.283-284, tradução livre).

Nesse contexto, os rituais consagram e reproduzem os papeis socialmente construídos, bem como autorizam julgamentos morais sobre comportamentos desviantes desses estereótipos. Considerando que o Poder Judiciário é constituído por esses mesmos agentes sociais, ecoamos com Butler que intervenções são possíveis nessa repetição ritualística? A produção legislativa promulgadora de igualdades encontra espaço numa Instituição judiciária patriarcal, conservadora e excludente?

Construindo a verdade nos discursos das vítimas

O direito e as normas jurídicas, como reguladores e organizadores da vida em sociedade, acabam por refletir os ideais econômicos, políticos e socioculturais nela presentes. Considerando que a sociedade em que vivemos é essencialmente patriarcal nas mais diversas relações sociais, o Poder Judiciário, como instituição inserida nesse contexto, tende a reproduzir tais ideais ao exercer o poder através de suas práticas ritualísticas e discursivas, capazes de perpetuar estereótipos de gênero. O patriarcalismo se faz presente nas experiências subjetivas dos juízes e estas, por sua vez, embasam sua práxis jurídica e, consequentemente, suas decisões.

Os operadores do Direito também são suscetíveis a absorver os papeis, preconceitos e discriminações de gênero firmados no nosso cotidiano sociocultural e presentes de modo assíduo no (in)consciente dos indivíduos. Exemplo disso é a rara percepção dos magistrados, (incluindo aqueles com competência para julgar crimes que envolvam violência de gênero) de enxergarem a si próprios como agentes inseridos em uma rede de política pública promotora dos Direitos Humanos das Mulheres. Adotam, em geral, uma postura de mero espectador dos movimentos e reivindicações feministas, recorrendo a uma neutralidade idealizada que, por isso mesmo, traduz uma ideologia nada neutra:

Nem sempre é absoluta, coerente e linear a relação que existe entre a norma positiva, a norma aplicada aos casos e os valores presentes na sociedade. Fica patente que o momento da aplicação do Direito é muito mais do que o momento de uma mecânica subsunção do fato à norma positiva jurídica. É o momento supremo do direito em que ressaltam muito mais os valores do que fatos sociais. Contudo, os valores sociais, por vezes travestidos em estereótipos e preconceitos discriminatórios, atuam subrepticiamente, inconscientemente nas argumentações dos operadores do Direito, impedindo-os de desempenharem suas funções, tendo em vista o respeito, a dignidade e a justiça. (PANDJIARJIAN; PIMENTEL; SCHRITZMEYER, 1998, p. 206)

No limite, a introjeção dos estereótipos de gênero pelos juízes pode acabar por gerar uma “inversão das partes” nos processos, em que “vítimas” convertem-se em “réus” e vice-versa. Essa postura resulta em um processo de revitimização, em que, por vezes, as mulheres têm sua palavra questionada e posta à prova, bem como, seu comportamento, vida pregressa e social analisados e avaliados, fazendo com que sua busca por justiça seja ainda mais exaustiva, morosa, considerada uma verdadeira “rota crítica”, não só no sentido tradicional do termo4, mas também pela culpabilização da vítima imersa na violência institucional.

No âmbito dos casos de estupro, a questão da moralidade sexual e os padrões de comportamento de gênero ilustram situações ainda mais emblemáticas:

Tanto nos casos de maior ambigüidade, em que os envolvidos se conhecem e em que fica a versão da vítima versus a versão do agressor, quanto nos casos em que o agressor era desconhecido antes do incidente e nos quais está em questão a identificação deste, estereótipos e tipificações são os elementos mais utilizados pelos operadores da justiça para conferir faticidade aos acontecimentos (Estrich, 1987; LaFree, 1989). As tipificações mais comuns utilizadas pelos operadores referem-se às características morais da vítima (se tem boa reputação, se é promíscua etc.), às suas características sociais (a reação social à agressão contra uma vítima negra é menor), às características do evento (se vítima e agressor se conheciam, há de se verificar a credibilidade da versão desta; se houve agressão física ou uso de arma, aumenta a crença no caso) etc. Em relação ao acusado, as principais tipificações são relacionadas aos seus antecedentes e a raça. A imagem tradicional do estuprador é a de um estranho, negro e armado (Estrich, 1987; LaFree, 1989; Giroux et al.,1981).  (VARGAS, 2004, p. 41).

Trazendo novamente as ideias de Foucault (2014), poderíamos dizer que há um exercício de controle da sexualidade pelo Judiciário, nos casos de violência de gênero, em relação ao discurso da vítima.

Aqui, cabe uma explicação mais detalhada.

Foucault (2014) vincula a intensificação dos poderes à multiplicação do discurso. Em outras palavras, o poder se exerceria através da posição de discurso controlador, instaurado social e culturalmente, que se justificaria por agir em nome de um bem maior – a vida do homem e da sociedade.

O Estado, utilizando-se dos discursos, incitado inicialmente pela confissão, poderia ter uma maior abordagem de seu controle e exercício de poder. Na confissão, deveriam ser ditos todos os detalhes, os crimes, os pecados, as ações, os pensamentos, os sonhos e os desejos, vistos muitas vezes como perversões a serem controladas e corrigidas, e o poder funcionaria como um mecanismo de apelação, cerceador do prazer: “É justamente no discurso que vêm a se articular poder e saber. (…) O discurso veicula e produz poder; reforça-o, mas também o mina, expõe, debilita e permite barrá-lo”. (FOUCAULT, 2014, pp. 95-96).

A confissão, portanto, é um dos procedimentos de individualização do poder, por meio da qual seria possível não apenas o perdão e a libertação, mas igualmente a produção de uma verdade. Foucault (2014) apresenta a tese do Método da Interpretação, em que o discurso da verdade só seria alcançado por quem ouve a confissão, em que através da relação de troca entre quem fala e quem escuta, aquele que recebe e recolhe o discurso, seria nomeado “o dono da verdade”:

não é somente porque aquele que ouve tem o poder de perdoar, de consolar ou de dirigir que é necessário confessar. É que o trabalho da verdade a ser produzida, caso se queira validá-lo cientificamente, deve passar por essa relação. A verdade não está unicamente no sujeito, que a revelaria pronta e acabada ao confessá-la. Ela se constitui em dupla tarefa: presente, porém incompleta e cega em relação a si própria, naquele que fala, só podendo completar-se naquele que a recolhe. (…) Aquele que escuta não será simplesmente o dono do perdão, o juiz que condena ou isenta: será o dono da verdade. Sua função é hermenêutica. Seu poder em relação à confissão não consiste somente em exigi-la, antes dela ser feita, ou em decidir após ter sido proferida, porém em constituir, através dela e de sua decifração, um discurso de verdade. O século XIX tornou possível fazer funcionar os procedimentos de confissão na formação regular de um discurso científico, fazendo dela não mais uma prova, mas um sinal e, da sexualidade, algo a ser interpretado. (FOUCAULT, 2014, pp.65-66)

Desde os tempos da pastoral cristã, a prática da confissão teria sido utilizada pelas instituições como meio de produzir uma verdade que lhes fosse favorável sobre a sexualidade. O estímulo à descrição minuciosa sobre o sexo seria uma constante na sociedade ocidental. E, a partir do século XIX, toda uma scientia sexualis teria sido criada para, ao mesmo tempo, produzir e mascarar essa verdade. Essa forma de poder seria inovadora pelo fato de ocultar a sua função de coação daqueles para os quais se direciona. Ocorre, então, que o poder é exercido na sociedade através da prática discursiva entre o agente que requer a confissão – materializado na figura de pai, médico, professor ou juiz – e aquele que a emite. A verdade, portanto, não é apenas libertada, mas sim construída a partir da emissão de juízos de valores acerca do que é dito.

Há alguns séculos que toda essa teia discursiva sobre a sexualidade casou bem com a cultura patriarcal. Com isso, abriram-se espaços para a limitação e castração de certas atitudes, determinando-se, desse modo, o que deveria ser dito, feito, seguido, proibido e os locais adequados a cada conduta.

Atualmente podemos constatar, inclusive na jurisprudência, que houve e ainda há – mesmo que inconscientemente – uma construção social no íntimo dessa microfísica do poder, com base no que são considerados bons costumes e condutas socialmente adequadas. Destarte, baseado no método de interpretação exposto por Foucault, um rico campo de pesquisa se encontra nas análises discursivas de magistrados que avaliam a legitimidade da narrativa da vítima. Transformá-la (ou não) em “verdade” é um processo que depende de uma variedade de outros fatores interrelacionados, que podem ser apreciados pela Teoria das Interseccionalidades.

Com efeito, a multiplicidade de desigualdades com as quais convivemos nos leva a confrontar as várias formas de opressão. Tal confronto permite visualizar a dominação não apenas no eixo de gênero, mas em variadas confluências de raça, etnia, classe, idade etc. As consequências estruturais e dinâmicas das intersecções entre dois ou mais eixos de subordinação são capturadas para a conceituação do problema. Especificamente, a interseccionalidade trata

da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento (CRENSHAW, 2002, p.177).

Considerando a problematização enfrentada por esta Teoria, compreendemos que a construção da verdade “revelada” pelas confissões/depoimentos de vítimas em casos de estupro varia conforme o olhar interpretativo do Juiz sobre os fatos e sobre a figura-mulher estereotipada a partir do cruzamento das categorias de dominação/opressão: Esses são os contextos em que os danos interseccionais ocorrem – as desvantagens interagem com vulnerabilidades preexistentes, produzindo uma dimensão diferente do desempoderamento” (CRENSHAW, 2002, p.177). Assim, através de indagações a respeito de aspectos que não se referem ao momento da prática do crime e sim à própria vida da vítima, o juiz avalia a credibilidade do seu discurso.

As práticas institucionais na construção dos tipos penais e nos julgamentos de estupros

Se na história do Judiciário presenciamos situações como as que serão narradas a seguir, longe não estava a legislação que sustentava as decisões imperiais e republicanas.

Apenas em 1791, por exemplo, é que tivemos a primeira tipificação do crime de estupro. O Código Penal Francês, em seu art. 29, dispõe: O estupro será punido com seis anos de ferro. Antes, só haveria o crime se cumulado com o rapto (CABETTE & PAULA, 2013).

No Brasil, no Código Criminal do Império de 16 de dezembro de 1830, há um capítulo designado dos “Crimes Contra a Segurança da Honra”, onde se encontram as Seções I e II, de Estupro e Rapto, respectivamente. Isso demonstra que a honra e a virgindade eram os bens jurídicos tutelados pelo Estado, e não a liberdade sexual ou liberdade do corpo da própria mulher. A virgindade e a honra eram seus maiores bens e, sem estes, a mulher não mais seria considerada honesta ou apta a se casar – o que era imprescindível à época, visto que quase todos os direitos da mulher eram atrelados a um homem, ora seu pai, ora seu marido.

Ainda no Código Criminal de 1830, o artigo 222 cominava pena de 3 a 12 anos para o crime de “Ter cópula carnal por meio de violência ou ameaças com qualquer mulher honesta”, mas ressalvava: “Se a violentada for prostituta”, a pena era reduzida para de 1 mês a 2 anos, endossando a ideia de que a tutela da “mulher honesta” valia mais do que a da “prostituta”, que seria, nessa lógica interpretativa, uma mulher desonesta. Logo em seguida, o artigo 228 explicava que “Seguindo-se o casamento em qualquer destes casos, não terão lugar as penas”, isto é, o casamento celebrado entre o estuprador e a mulher violentada ou entre a mulher com terceiro constituía fator de “perdão” ao agressor.

O Código Penal de 1890 traz algumas inovações. O Título VIII, no qual se insere o tipo penal estupro, se denomina “Dos Crimes contra a Segurança da Honra e Honestidade das Famílias e do Ultraje Público ao Pudor”. O artigo 268 cominava prisão de 1 a 6 anos para o crime de “Estuprar mulher virgem ou não, mas honesta”, demonstrando que a virgindade não era mais o principal bem jurídico a ser protegido, mas sim a honestidade da mulher – embora ainda não fosse a dignidade da pessoa humana da mulher. Se esta fosse prostituta, a pena era de 6 meses a 2 anos.

O Código Penal de 1940, em vigor até hoje, apontava o Título VI como o “Dos Crimes contra os Costumes” e o Capítulo I como o “Dos Crimes contra a Liberdade Sexual”. Seu artigo 213 previa pena de reclusão, de 6 a 10 anos, para o ato de “Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça”. A caracterização do crime de estupro, portanto, apenas se dava mediante efetiva conjunção carnal e o crime representava lesão aos costumes, fato que bem ilustra a mentalidade da sociedade do século XX. Em 2009, a Lei n º 12.015 trouxe profundas alterações ao artigo, suprimindo a palavra mulher e considerando a prática de atos libidinosos como estupro, além de alterar o Título VI para “Crimes Contra a Dignidade Sexual”.

De notar-se que o “perdão” acima mencionado vigorou em nossa legislação até 2005, quando foi revogado, no art. 107, CP, seus incisos VII e VIII, in verbis:

Art. 107 – Extingue-se a punibilidade:

VII – pelo casamento do agente com a vítima, nos crimes contra os costumes, definidos nos Capítulos I, II e III do Título I da Parte Especial deste Código;

VIII – pelo casamento da vítima com terceiro, nos crimes referidos no inciso anterior, se cometidos sem violência ou grave ameaça e desde que a ofendida não requeira o prosseguimento do inquérito policial ou da ação penal no prazo de 60 (sessenta) dias a contar da celebração (BRASIL, 1940).

Embora a república e a democracia criem expectativas de comportamentos institucionais voltados à promoção da igualdade e da dignidade da pessoa humana como princípio fundante de uma sociedade livre, justa e solidária, não é difícil notar instituições que reproduzem discursos e práticas promotoras de desigualdade dos gêneros. Ainda esperando pelos comportamentos “típicos” de homens e mulheres, e a partir da chancela moral, não raramente se negam a prover tutela de direitos ou a promover o exercício da cidadania feminina.

Até muito recentemente, por exemplo, a doutrina penal (Nélson Hungria, Heleno Fragoso, Magalhães Noronha, Viveiros de Castro, Paulo José da Costa Jr, entre outros) entendia que não cabia o reconhecimento de crime de estupro entre cônjuges. O dever conjugal da mulher ceder aos desejos sexuais de seu marido autorizava este a agir em exercício regular de Direito, excluindo-se a ilicitude de sua conduta:

Os argumentos apresentados por estes doutrinadores são demonstrativos de suas concepções acerca do feminino e do papel secundário da mulher no matrimônio e, em última análise, na própria sociedade. (…)Nesse sentido, a relação de poder entre marido e esposa reflete o conjunto de representações dos papéis que cabe a cada um representar dentro do casamento; assim, numa visão tradicional, cabe ao marido, legitimado pelo matrimônio, controlar a sexualidade da esposa e, a esta, assumir uma postura de submissão diante da autoridade patriarcal. (…) Diante da instabilidade gerada pela situação (recusa da esposa), o marido utiliza a violência não apenas como forma de satisfazer seu desejo sexual, mas também como meio de restabelecer e confirmar sua autoridade (patriarcal) na relação conjugal, em conformidade com suas representações dos papéis masculino e feminino no matrimônio. (FIGUEIRA, 1998, pp. 68-69)

Não é diferente no âmbito do Poder Judiciário. É aqui que a peneira moral dos aplicadores do direito mais tende a se assemelhar a mero órgão do poder patriarcal:

É falso que o direito penal sexual moderno tenha se configurado consistentemente sobre a distinção entre legalidade e moralidade. Não é certo que o direito penal moderno tenha constituído, nem sequer parcialmente, um âmbito regulatório que, em seus fundamentos, se diferenciara de uma moral social restritiva da sexualidade, deixando a questão da repressão ou liberação do comportamento sexual a outras instituições jurídicas ou à evolução dos costumes. Pelo contrário, ainda no núcleo revolucionário do direito penal sexual moderno a tematização do delito sexual nunca se liberou de um imperativo cultural repressivo da sexualidade (RODRÍGUEZ, s/d, p.12).

Concordando com Rodríguez, Sabadell (2010) tece duras críticas à ciência jurídica baseada em ideais iluministas libertários, que, por originária de uma ideologia patriarcal, limita o exercício desta liberdade (incluindo a liberdade sexual) aos homens, sobretudo os homens possuidores.  O patriarcalismo jurídico, portanto, é a interação da ciência jurídica sob o ponto de vista das relações sociais patriarcais, pondo-se, esta ciência à mercê da visão de mundo androcêntrica (SABADELL, 2010).

Práticas de um Judiciário recente, por exemplo, demonstram a absorção da crença tão intrínseca à sociedade de que, em certas ocasiões, a vítima seria merecedora ou, quando mais, teria incitado à prática do crime de estupro. Uma representação dessa ideia estaria em comentários que fazem referência, por exemplo, a saídas à noite, ao consumo de álcool, às vestimentas da vítima ou ao seu comportamento liberal:

Assim, desde logo, há a constatação de que seria absolutamente anormal o comportamento de duas moças recatadas, que voltando para suas casas, após uma tarde exaustiva, viessem a entrar em conversações com uma pessoa de cor, semi-alcoolizada, para a prática de atos sexuais, sendo ambas virgens. (ARDAILLON; DEBERT, 1987, p. 24)

Finalizando, custa crer que o acusado, um rapaz ainda jovem e casado, tenha querido manter relações sexuais com a vítima, uma mulher de cor e sem qualquer atrativo sexual para um homem. (ARDAILLON; DEBERT, 1987, p. 26)

A ofendida tem péssima conduta. Não reside com sua família. Mora em companhia de prostitutas e, segundo revela a comunicação das fls. 21,22, firmada pelo detetive que levantou a sua vida pregressa, a vítima frequenta o final do ônibus, a discoteca do bairro nos finais de semana, ficando até altas horas da noite. Corre o boato que a mesma é de transa!… As tias da ofendida, segundo a mesma comunicação, informaram que a sobrinha dá muito trabalho, saindo sem avisar, às vezes nem volta, quando está sob seus cuidados. Que tem um mês que ela está sumida!… Diante de um passado tão comprometedor, conclui-se que as declarações da vítima não merecem fé pois não estão corroboradas por outros elementos de prova… Por isso é que se afirma que a veracidade da negativa do denunciado quanto à prática do crime de estupro, sustentada desde a lavratura do auto de prisão em flagrante, tem que prevalecer porque a palavra da vítima está despida do menor prestígio.” (ARDAILLON; DEBERT, 1987, p. 29) (grifo nosso)

Ou ainda discursos judiciais que se apoiam nos depoimentos de terceiros por não considerar suficientemente crível a versão de uma vítima:

PENAL. CRIME DE ESTUPRO. PROVA SATISFATÓRIA DA MATERIALIDADE E AUTORIA. GAROTA DE PROGRAMA SUBJUGADA À FORÇA E OBRIGADA A PRÁTICAS LIBIDINOSAS E CONJUNÇÃO CARNAL. VALOR PROBANTE DO DEPOIMENTO VITIMÁRIO. SENTENÇA REFORMADA EM PARTE. 1 Réu condenado por infringir 213 do Código Penal, por haver constrangido uma garota de programa a praticar felação e conjunção carnal, depois de abordá-la na rua, agredi-la e levá-la à força para um bosque de pinheiro às margens da rodovia. Ele se mostrou ressentido porque anteriormente lhe propusera um programa sexual e ela recusara. 2 A materialidade e a autoria do estupro são provadas quando o relato convincente da vítima é corroborado por testemunhos idôneos de pessoas que presenciaram as agressões físicas antes do crime acontecer e laudo pericial concluindo pela presença de espermatozoides do agente nas roupas da mulher. 3 Sendo favoráveis as circunstâncias judiciais, o regime inicial de cumprimento da pena é o semiaberto. 4 Apelação parcialmente provida. (BRASIL, 2014) (grifo nosso).

Depreende-se do exposto que algumas operações comuns a esse patriarcalismo jurídico são o julgamento da palavra da vítima, análise comportamental desta, a legitimidade sexual, i.e., se de vida “contida” ou “liberal”, a honestidade. A partir da análise perfilada das vítimas, extrai-se o primeiro veredito: se aceitável (ou não) o perfil da mulher, aceitável será (ou não) seu testemunho e, consequentemente, a tutela jurisdicional:

No processo judicial, é levada em consideração a conduta da vítima, em especial, com relação à sua vida sexual, afetiva e familiar. Há extremos em que se traça o perfil da vítima como de moral sexual leviana ou mesmo como prostituta para (des)qualificá-la. A postura da magistratura, na sua maioria, quanto a isto é de omissão, pouco fazendo para que seja respeitada a dignidade da mulher.” (PANDJIARJIAN; PIMENTEL; SCHRITZMEYER, 1998, p. 204)

Na esteira da aplicabilidade da norma penal, recorremos à Criminologia Crítica para reforçar as robustas revelações quanto à deslegitimação do Sistema Penal, seletivo, segregador e estigmatizante:

O aprofundamento da relação entre direito penal e desigualdade conduz, em certo sentido, a inverter os termos em que esta relação aparece na superfície do fenômeno descrito. Ou seja: não só as normas do direito penal se formam e se aplicam seletivamente, refletindo as relações de desigualdade existentes, mas o direito penal exerce, também, uma função ativa, de reprodução e produção, com respeito às relações de desigualdade. (BARATTA, 1999, p. 166)

Dessa forma atua o Estado também por meio do Sistema Penal como criador de desigualdades. Considerando o Sistema de Justiça Criminal operando nos conflitos relativos à dignidade sexual de mulheres, ANDRADE nota, igualmente, a ideia de seleção aos que serão punidos e, simultaneamente, a construção seletiva da vítima:

Para além, contudo, da ênfase criminológica crítica na construção seletiva da criminalidade, na criminalização seletiva, ou seja, na distribuição desigual do status negativo de criminoso, é necessário enfatizar, na esteira da Criminologia feminista, a construção seletiva da vitimação (que não aparece nas estatísticas), uma vez que o sistema também distribui desigualmente na vitimação e o status de vítima; até porque autor-vítima é um par que mantém, na lógica adversarial do sistema de justiça, uma relação visceral: reconhecer autoria implica, tácita ou expressamente, reconhecer vitimação. A impunidade é a contra-face do processo.

A vitimação, assim como a criminalidade, também é uma possibilidade majoritária, mas desigualmente distribuída de acordo com estereótipos de vítimas que operam no senso comum e jurídico. (ANDRADE, 2005, pág. 82)

Demonstra a autora, pois, que o Sistema de Justiça Criminal distribui o status de vítima com o mesmo critério que a sociedade distribui honra e representação feminina, sendo o controle da sexualidade o núcleo desse controle social patriarcal (ANDRADE, 2005). Não à toa a retomada do conceito relacional de gênero acarreta o reforço da estigmatização do agressor/vítima nessa dupla via: ao se encaixar no perfil de inimigo (louco, monstro, pervertido, amoral) – aquele a quem se nega a condição de pessoa –, facilmente se estabelece a correspondência com a vitimização da mulher submetida ao constrangimento sexual:

Em nossa pesquisa, verificamos que não é qualquer acusado que será condenado por estupro. Como foi possível perceber, somente indivíduos reincidentes, “marginais” que estupram e roubam suas vítimas, de preferência à mão armada, serão condenados, além de caso de estupro contra crianças, já que esta prática causa tanto repúdio na sociedade que sua “anormalidade” receberá do saber psiquiátrico a denominação de “pedofilia” (COULOURIS, 2004, p.201).

Por outro lado, quando o agente não se reveste dos estereótipos de um agressor sexual, a situação de vítima de violência sexual é questionada:

Os discursos jurídicos sobre o estupro deslocam sua atenção na intenção/desejo da mulher que foi estuprada. Investigam seu vestido, comportamento e história sexual. Assim, discursivamente se constrói uma sexualidade da “verdadeira vítima” de estupro. Se ela se comportou “mal”, então não é verdadeiramente uma vítima de estupro. Independente de parecer estar falando a verdade. Um exemplo é a diferença que fazem entre as prostitutas e as mulheres “inocentes” que foram violentadas de forma semelhante. […] Assim, o modo como o crime de estupro é definido pela mídia e pela lei baseia-se, na prática, em uma construção específica de sexualidade masculina e feminina. De acordo com os discursos midiáticos e jurídicos, o estupro só aconteceu realmente quando a vítima e o acusado encarnam determinada sexualidade masculina e determinada sexualidade feminina, respectivamente”. (COULOURIS, 2010, pp.96-97)

Nesse contexto, Andrade (2005) afirma que o Sistema de Justiça Criminal é incapaz de proteger a mulher vítima de violência sexual, primeiro porque não busca compreender as estruturas e dinâmicas da violência contra a mulher; porque não possui estrutura condizente com uma resposta penal adequada, apresentando o castigo como único caminho; e porque essa “distribuição do castigo” é realizada desigualmente. Assim, o Sistema de Justiça Criminal não apenas não cumpre com suas funções formalmente declaradas, como também duplica a violência sofrida pelas mulheres; não repele a violência nem a previne, mas reforça a cultura patriarcal e revitimiza a mulher.

Conclusão

A violência contra a mulher é discutida neste trabalho sob a perspectiva da lógica de distribuição de justiça pelo Sistema de Justiça Criminal, demonstrando não só como a legislação em si foi historicamente insuficiente para atender às demandas das pautas da cidadania feminina, do empoderamento das mulheres e do acesso à justiça, mas também como nos processos de violência sexual contra a  mulher a submissão à análise e julgamento da fala das próprias vítimas pode configurar um processo contínuo e desigual de revitimização, por meio de uma violência institucional.

O fenômeno estudado aqui se encontra fortemente enraizado no imaginário social e na cultura jurídica, que, muitas vezes sem notar claramente, introduzem em seus discursos valores, perfis e conceitos sobre gêneros, raças, etnias, classes sociais.

Com enfoque na Justiça Criminal, e conforme já denunciado pela Criminologia Crítica, o Sistema Penal não repele a violência nem a previne; não erradica o androcentrismo, nem põe fim a práticas machistas. Não raramente, ao contrário, reforça a cultura patriarcal, segrega as mulheres, desestimula a reivindicação por direitos e as revitimiza.

Não se pode esperar que o funcionamento de nossas instituições públicas ainda dependa da concepção particular do julgador sobre o que é ou não violência de gênero, sobre a concepção conservadora de “mulher” e “pessoa” ou sobre a leitura acrítica dos estereótipos de gênero, especialmente quando dispomos de todo uma produção legislativa consagradora dos Direitos Humanos das Mulheres.

O sentido de justiça deve estar ligado à ideia de ser tratado igualmente e isto pressupõe que bens, oportunidades e outros recursos devam ser distribuídos igualmente. Deve-se esperar que as decisões e políticas públicas sejam coerentes com os anseios de igualdade e justiça que esperam as mulheres que buscam o Judiciário e o Estado para a resolução de conflitos e para garantir sua proteção.

Diante desse fato social notável, é importante incutir, em todos os ramos do conhecimento, a problemática da violência de gênero e, assim, fornecer instrumentos ao operadores do Estado, a fim de não reproduzir a violência contra a mulher, não revitimizar, não naturalizar os papéis de gênero, não culpabilizar a vítima, mas sim tratar a violência – e, neste trabalho especificamente, a violência sexual – com a atenção devida: como grave violação de direitos humanos das mulheres, prática sistematizada e articulada com as mais diversas formas de controle social formal e informal.

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Texto de autoria do Grupo PEVIGE (Pesquisa e Estudo em Violência de Gênero), da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ), coordenado pela Profa. Adjunta de Direito Penal e Criminologia da FND/UFRJ, Dra. Cristiane Brandão Augusto, e integrado, à época, pelos seguintes discentes de Graduação:  Ana Carolina Arruda Vasconcelos, Fernanda Dias de Oliveira, Isadora Maria Tavares de Oliveira, Jamila Santos D’Almeida, Mariana Balbino e Renato Villar Trindade.

Obs. O título foi retirado do texto de PANDJIARJIAN; PIMENTEL; SCHRITZMEYER (1998): “O pensamento jurídico crítico emergente, em sua vertente feminista, encontra respaldo e alimento nesta pesquisa, que revela a ideologia patriarcal machista em relação às mulheres, verdadeira violência de gênero, perpetrada por vários operadores do Direito, os quais, mais do que seguirem o princípio clássico da doutrina jurídico-penal – in dubio pro reo – valem-se precisamente da normativa social: in dubio pro stereotypo.” (pp. 206-207)

 

Notas de Rodapé:

[1] De acordo com o Dossiê Mulher (2015), o Estado do Rio de Janeiro registrou, em 2014, uma média diária de 15 estupros, sendo que 83,2% eram do sexo feminino. Quanto às tentativas de estupro, percebe-se um aumento sucessivo do número de vítimas (642, em 2014), sendo que 91,3% eram do sexo feminino. Ademais, deve-se considerar o significativo número de subnotificações, que, “Segundo Kenarik Boujikian (2015), dentre as razões apontadas por pesquisadores para que o registro não seja efetuado estão: temor, vergonha, sentimentos de autorresponsabilização, temor em enfrentar o fato perante os tribunais, carga emocional e física da agressão e desconfiança sobre o sistema” (PINTO; MORAES; MONTEIRO, 2015, p.28).

[2] A opção pela vítima “mulher adulta e não incapaz” se justifica, aqui, pelo fato de se pretender analisar o julgamento moral da Justiça Criminal sobre o comportamento da vítima. Daí porque preferimos excluir os casos de estupro de vulneráveis.

3 Não se descarta a possibilidade do abuso ser praticado por mulheres, haja vista também a redação atual do art. 213, do CP, que contempla como sujeito ativo o homem ou a mulher. Todavia, considerando que, em 88,5% dos estupros, se tem a mulher como vítima e, em mais de 96%, o homem como autor, nos restringimos a estes casos (https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/entenda-a-violencia/pdfs/estupros-no-brasil-uma-radiografia-segundo-os-dados-da-saude, acessado em 20.06.2017). Sobre a culpabilização da vítima pela Sociedade e pela Polícia/Justiça, ver http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/09/1815301-um-terco-dos-brasileiros-culpa-mulheres-por-estupros-sofridos.shtml, acessado em 15.05.2017.

4 Rota crítica é o termo adotado pela OMS/OPAS (1998) para se referir ao caminho percorrido pela mulher quando busca uma resposta do Estado à violência sofrida, num trajeto repleto de repartições, burocracias, múltiplos deslocamentos, nem sempre com sucesso ao final.

Palavras Chaves

Direito Penal; Gênero; Patriarcado; Poder Judiciário; Estupro.