NÓS DE RESISTÊNCIA ENTRE MIGRAÇÃO E TRABALHO

Resumo

O trabalho é elemento essencial na vida de migrantes e refugiados, bem como compõe a mobilidade como fenômeno político, econômico e social. Além disso, o tema da busca por melhores condições de trabalho é fundamental para a distinção do regime jurídico que se faz entre migrantes, no sentido geral, e refugiados. O objetivo do texto é apresentar questões proeminentes no debate sobre trabalho digno no escopo da gestão da política migratória brasileira e das linhas de fuga e resistência construídas pelos trabalhadores migrantes.

Artigo

NÓS DE RESISTÊNCIA ENTRE MIGRAÇÃO E TRABALHO

 Aryadne Bittencourt Waldely[1]

Fabrício Toledo de Souza[2]

Resumo: O trabalho é elemento essencial na vida de migrantes e refugiados, bem como compõe a mobilidade como fenômeno político, econômico e social. Além disso, o tema da busca por melhores condições de trabalho é fundamental para a distinção do regime jurídico que se faz entre migrantes, no sentido geral, e refugiados. O objetivo do texto é apresentar questões proeminentes no debate sobre trabalho digno no escopo da gestão da política migratória brasileira e das linhas de fuga e resistência construídas pelos trabalhadores migrantes.

Palavras-chave: Trabalho; Migração; Resistência; Fronteira; Cidadania.

De que modo é possível aos migrantes resistir às violações aos seus direitos trabalhistas no país que os acolhe? É conhecida a situação dos migrantes em trabalhos degradantes[3], de quase escravidão, quando não em escravidão mesma[4]. São abundantes as notícias sobre os chineses em situação de cárcere no trabalho[5], como antes eram comuns as notícias sobre bolivianos trancafiados em oficinas têxteis que funcionavam em salas sem janela[6]. E mais recentemente, soubemos dos venezuelanos trabalhando 16 horas diárias ou sobre haitianos e os congoleses aos quais são reservados os trabalhos mais pesados.[7]

A grossura das canelas e o tamanho do órgão sexual foram critérios para definir a contratação dos homens haitianos que chegavam na região norte do país, a partir especialmente de 2010. Eram indícios de um corpo apto para o trabalho mais pesado. Este procedimento utilizado para a classificação e seleção dos escravos africanos que chegavam ao Brasil no início de sua história moderna teve sua atualização na seleção dos migrantes haitianos.[8]

Em primeiro lugar, portanto, seria preciso esclarecer quem são os migrantes, já que não há migrante em abstrato. O termo não é neutro e não explica o status jurídico formalmente atribuído à pessoa. Em geral, quando o termo aparece, ele se refere àquelas pessoas que vieram das partes mais pobres do mundo, buscando uma vida melhor ou ao menos um pouco mais de dignidade. As manifestações de hostilidade e de xenofobia[9] – da mais evidente até a mais sutil – que infestaram as redes sociais no primeiro semestre desse ano, expressam de modo inequívoco o valor que o termo carrega.

As hostilidades não se dirigiam a um migrante qualquer, mas ao migrante cuja chegada abalaria o já frágil sistema de proteção dos brasileiros. Era do migrante pobre de que se falava, ou seja, daquele que disputaria com os brasileiros mais vulneráveis a nossa precária rede de serviços públicos e as rarefeitas vagas de trabalho, que agravam a crise em que vivemos, como foi o caso da queda no preço do trabalho oferecido pelas prostitutas brasileiras em Roraima depois da chegadas das venezuelanas.[10]

Deste modo, antes de nos perguntarmos sobre os modos como os migrantes resistem à violência no trabalho, é preciso que nos perguntemos quem são os migrantes. Qual sua cor, sua raça, seu sexo, seu status econômico e social, sua língua – se ele fala um idioma ou um dialeto. Se é um refugiado, um estudante estrangeiro, um ilegal ou ainda,  um expatriado. Antes de nos perguntarmos qual a razão para que a carteira de trabalho dos estrangeiros tenha uma cor diferente da carteira de trabalho dos brasileiros – mesmo que todos tenham o mesmo direito de trabalhar, sem distinção – seria preciso se perguntar para quem a carteira de trabalho ainda é importante e de que maneira.

Antecipando aquilo que poderíamos ter como respostas ou conclusões, diremos que para os migrantes – incluindo aqui os refugiados e todas as pessoas que deixaram seus países porque a violência era intolerável, seja ela na forma da guerra ou da opressão política, seja na forma da miséria, da fome ou da desesperança – migrar já é a possibilidade de resistir ao trabalho indigno. Poderíamos dizer ainda, que no deslocamento, os migrantes demonstram a capacidade de expressar sua recusa e, ao mesmo tempo, de criar a oportunidade de ascender a um trabalho melhor.

O trabalho como força constituinte na vida migrante

 O trabalho não é um detalhe menor na vida dos migrantes e refugiados, mas, ao contrário, elemento essencial que compõe a mobilidade como fenômeno político, econômico e social (SAYAD, 2006) e, ainda, elemento que faz da migração movimento de resistência. Ou, como afirma o Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (IFAD, 2017, p. 9), “migrantes são geralmente referenciados como trabalhadores migrantes porque é isso que eles fazem: trabalham!”[11].

Ao mesmo tempo, o trabalho aparece como causa do deslocamento, em sentido negativo e reativo, mas também como elemento ativo e positivo, na medida em que dá ao deslocamento a qualidade de movimento constituinte: por melhores condições de trabalho e de vida, mais direitos, mais criatividade e, enfim, de uma vida melhor.

Para os migrantes, o trabalho é quase sempre o motivo do deslocamento. É em busca de um trabalho melhor, ou, em muitos casos, é em busca de trabalho, que migram muitas pessoas. Deixando países atingidos por miséria e crises, os migrantes partem em busca da sobrevivência e de uma vida melhor para si e para sua família. As remessas de dinheiro por migrantes aos familiares que ficaram nos países de origem representam mais do triplo da soma da assistência oficial para o desenvolvimento (IFAD, 2017). Esta tem sido a marca principal da história das migrações: o deslocamento como luta por sobrevivência e por dignidade (MEZZADRA, 2012). Esta é a história da construção e do crescimento das grandes cidades do mundo (SIMMEL, 2005), como as conhecemos hoje.

E mesmo para os refugiados – essas pessoas que depositaram em sua fuga a possibilidade de sobreviver às mais variadas formas de opressão e violência, e que mal tiveram tempo de arrumar suas malas – o trabalho é tão ou mais importante que o reconhecimento jurídico de sua condição e o documento de identidade correspondente. E isso é especialmente verdade quando nos referimos aos fluxos de refugiados em contexto urbano, ou seja, daqueles fluxos que chegam às grandes cidades, em oposição aos refugiados contidos ou amparados nos campos montados próximo ou logo após as fronteiras.

Ainda que o refugiado seja definido e marcado pelo deslocado forçado, como aquele motivado pela pura e mera sobrevivência imediata, o trabalho também é um fator importante no momento em que ele decide fugir e quando escolhe seu destino. A possibilidade de conseguir renda ou meio para sobreviver, assim como a maior ou menor liberdade para trabalhar é um elemento importante em suas decisões.  Na medida em que os países do norte global, onde as estruturas e a capacidade de amparo social e econômico é maior, fecham suas fronteiras e aumentam os mecanismos de controle, os refugiados incluem em seus cálculos as outras opções de destino, considerando a questão do trabalho. Neste sentido, o fechamento das rotas para o norte, junto com o crescimento econômico, seguido de altas taxas de empregabilidade, explica, em maior ou menor grau, o aumento do fluxo de migrantes e refugiados na última década no Brasil.

A construção da condição de refugiado é construída dentro de uma retórica que os diferencia dos “migrantes econômicos”. A despeito da liberdade dos migrantes em decidir pela conveniência e destino de sua mudança ser o elemento que os diferencia dos refugiados,[12] cuja situação de deslocados forçados é motivo para que os Estados lhe abram exceções, o trabalho é uma questão comum. A propósito disso, seria importante destacar de que modo o tema do trabalho é fundamental para a distinção que se faz entre estas duas categorias de deslocamento e de sujeitos e de regimes jurídicos. Mais do que isso, seria importante analisar como o tema do trabalho é mobilizado para fazer esta distinção, que é sempre arbitrária e problemática.

Arranjos institucionais e estratégias de resistência

Definir juridicamente um sujeito como migrante ou refugiado implica definir seu acesso a certos tipos de trabalhos e de produção, ou seja, implica definir seu status econômico, mas também seu grau de liberdade política. Não por acaso, mencionamos como se marcam com diferentes sinais os documentos emitidos para os migrantes e refugiados e, dentre eles, também as hierarquias de migrantes.

A transitoriedade permanente da vida migrante é administrada em atos contínuos de produção de provisoriedade e precariedade (SAYAD, 2006). O documento de trabalho (CTPS), um dos principais instrumentos para garantia de direitos do trabalhador no Brasil, tem cor diferente (verde e não azul) para migrantes e refugiados, data de validade vinculada à regularidade migratória e o registro em caixa alta da palavra “estrangeiro”.

Do mesmo modo, a precariedade do documento dos solicitantes de refúgio, consistente em protocolo de papel, com assinatura digital, marca os limites de sua liberdade. O exercício da cidadania mais básica, que é portar um documento digno de identificação – que evite, por exemplo, que sejam vistos com desconfiança pelas autoridades, que sejam desqualificados nos processos seletivos, ou recusados para as movimentações bancárias mais simples – é um desafio cotidiano. Parte do cenário é também seu lugar no mundo do trabalho: trabalho sempre subalterno, degradante, pesado, nocivo ou mal remunerado. Ou todas as coisas juntas.

São elementos marcadores da discriminação como política. Além do registro documental em si, são inúmeros os efeitos sobre as condições de trabalho e de possibilidade de alocação no mercado de trabalho para migrantes e refugiados. O que distingue um expatriado (como são chamados os migrantes que estão em melhores postos de trabalho, geralmente vindos de países mais ricos) de um migrante ou refugiado não é apenas o país de origem, mas também, ou sobretudo, o lugar social e moral que ocupa na economia. E o lugar que ocupa na rede global de produção. Migrante não diz respeito ao deslocamento ou país de origem, mas a seu lugar nas hierarquias sociais, jurídicas e políticas.

A fragilidade dos documentos que portam os migrantes em geral e, especialmente, a inexistência de documentos para aquelas pessoas que não foram enquadradas em nenhuma via de regularização migratória fecundam um terreno de iniquidades. Aqui, a cidadania é questão central. E o documento – que prova a regularidade migratória – é um instrumento estratégico para fazer oscilar sua condição jurídica e política entre legalidade e ilegalidade.

Nesse cenário restritivo, a clandestinidade e a irregularidade estão próximas a muitas experiências migratórias. Isso não freia, porém, os movimentos migratórios, mas coloca os sujeitos em situação de vulnerabilidade, que é enfrentada em processo contínuo de não submissão. Aliás, o potencial subversivo dos migrantes – pelo próprio ato de migrar – tende a ser mobilizado para o cerceamento da liberdade e da atuação política (SASSEN, 1999).

No Brasil, a consolidação dos sindicatos e da greve como mecanismos coletivos de resistência às explorações nas relações de trabalho foi diretamente influenciada pela chegada expressiva de imigrantes, principalmente europeus. Tanto as fábricas quanto os movimentos políticos tinham participação significativa de imigrantes, que trouxeram em seus corpos a força de trabalho e a potência de lutar (adquirida, por vezes, em experiências políticas anteriores). Seja pela migração, pela sindicalização, ou por qualquer projeto coletivo de luta; a resistência é sempre um cruzamento de fronteira, uma provocação nas relações de poder, uma linha de fuga à subordinação, uma prática política.

Não por acaso, historicamente, os migrantes no Brasil (e no mundo!) têm restrição dos direitos de cunho político. O Estatuto do Estrangeiro (art. 107 da Lei nº 6.815 de 1980), ainda vigente, proíbe aos não brasileiros o exercício de atividades políticas, instituindo pena de privação de liberdade e de retirada compulsória do país. No mesmo sentido, o Código Eleitoral brasileiro (art. 337 da Lei nº 4.737 de 1965), também em vigor, criminaliza a participação política dos imigrantes. Estes são exemplos de dois instrumentos normativos, dentre muitos outros, pelos quais o Estado regula a legalidade e produz a ilegalidade. Neste caso, ao instituir a ilegalidade, fragiliza a legitimidade de algumas formas de vida, valendo-se da nacionalidade para estabelecer hierarquia de direitos. De modo geral, são essas tecnologias de controle e (i)legibilidade que compõem o modo de governar as populações (DAS, 2007).

A despeito disso, o universo normativo para garantia de direitos trabalhistas abrange, com (suposta) equidade, brasileiros e migrantes (ITTC, 2016). Por estarem em território nacional, são garantidos aos trabalhadores imigrantes e refugiados os mesmos direitos que os brasileiros. A equiparação também vale para o acesso à jurisdição nacional, mesmo que o imigrante esteja em situação irregular (TST, 2012). Ainda assim, somente com a nova Lei de Migração (Lei nº 13.445/17) é que são abertas brechas para o reconhecimento de direitos de resistência, inclusive nas relações de trabalho, para migrantes. Isto porque um dos principais avanços apontados pela sociedade civil[13] sobre a nova lei se refere à garantia dos direitos de reunião para fins pacíficos (art. 3º, VI) e de associação sindical (art. 3º, VII).

Essas previsões legais acolheram antigas reivindicações e lutas por cidadania no campo trabalhista e migratório. Elas se remetem ao nó que liga as práticas políticas de luta ao trabalho não livre. Frente às técnicas de poder, os sujeitos constroem instrumentos intercambiáveis de resistência. As migrações têm o duplo efeito de contestar a precariedade e a restrição à mobilidade. E a greve, tradicionalmente utilizada para protestar por melhores condições de trabalho, tem o potencial de ser acionada para contestar políticas em prol do endurecimento de fronteiras. Recentemente, trabalhadores imigrantes na Argentina[14] e nos Estados Unidos[15] se valeram de sua força de trabalho e organizaram greves para protestar contra as políticas anti-imigração nesses países. São, portanto, mobilizações – sociais, políticas e corporais – que formam um conjunto de movimentos contínuos e interconectados, criando fraturas na governamentalidade que pretende fixar as relações de poder e as metodologias de resistência.

 Territorialização da cidadania

Ao abordar tema dos migrantes e refugiados em relação ao mundo do trabalho, somos convocados ao debate sobre duas expressões de resistência que se atravessam constitutivamente. E é justamente a gestão política sobre as atividades laborais e os movimentos migratórios que faz a divisão internacional do trabalho territorializar a miséria e a violência. Ou, como disse um refugiado congolês no Rio de Janeiro: “o controle das fronteiras é a forma contemporânea de escravidão”.[16]

Temos, portanto, uma série de importantes questões, que nos convida a pensar a relação entre produção, trabalho e migração, e, em especial, a questão da resistência dos migrantes e refugiados frente à opressão e subjugação no trabalho. Como ponto de partida, podemos retomar a relação entre fronteiras e trabalho como primeira e mais importante questão. E desde já colocar tal questão sob a perspectiva das lutas, isto é, a migração e a fuga como resistência. Importante que possamos esclarecer que tomamos a resistência não como simples recusa e reação.

A resistência é sempre primeira em relação à violência e ao poder, pois os antecede em termos de produção e criação (FOUCAULT, 1979). Além da recusa que o gesto de migrar contém e expressa, há a afirmação pela sobrevivência e, mais que isso, pela vida como criação: a resistência é o fundamento mesmo da vida, no sentido de que a constitui. Isso significa, para nós, ao sustentar o caráter antecedente – e, portanto, constituinte – da migração, afirmar que o direito é imanente às lutas dos refugiados e migrantes. Nesta linha, o deslocamento dos migrantes e refugiados tem a potência de desestabilizar os lugares socialmente determinados pelo modo como o trabalho é globalmente organizado e distribuído.

A maior ou menor restrição de mobilidade e acesso pelas fronteiras não é definida apenas por razões ideológicas ou atualizada por furores nacionalistas. É também o modo de organizar hierarquicamente o trabalho e a produção, que hoje, como sempre, é um problema que não diz respeito apenas ao território de um estado. O trabalho e a produção são organizados, distribuídos e hierarquizados globalmente, assim como o valor do trabalho e o direito de maior ou menor mobilidade dos trabalhadores (MEZZADRA, 2005).

Um exemplo. A China – expressão emblemática da relação entre trabalho, mobilidade e direitos – por um lado, regula a mobilidade interna, especialmente restringindo e controlando a migração entre zonas rurais e zonas urbanas, definindo, assim, a divisão do trabalho e de cidadania de acordo com sua vocação de país-fábrica, e, por outro, expande suas atividades comerciais por grande parte do mundo, incluindo países africanos ainda marcados pelos processos de descolonização, como é o caso da República Democrática do Congo, que não consegue superar conflitos que duram décadas e que mataram mais de seis milhões de pessoas (COCCO, 2009).

Alguns paradoxos envolvem a relação entre trabalho, produção e mobilidade em seus aspectos mais radicais e atuais. Porque o estilo de vida que o marketing apreende e utiliza para construção da aura que cerca os produtos, dando-lhes não somente o acabamento final, mas a singularidade que faz deles produtos indispensáveis de consumo, é expropriado justamente daqueles para os quais a cidadania e a mobilidade são mais escassos.

Depois de fabricadas em condições de trabalho precárias, as mercadorias são “processadas” por uma imensa rede desterritorializada e descentralizada que lhes agrega a marca, isto é, o valor de sua singularidade. E é justamente o estilo de vida produzido no terreno comum da vida dos trabalhadores que é expropriado como valor (COCCO, 2009). São estes bens comuns que o capital apreende para construir a marca dos produtos e sem o qual não teriam valor: os modos de vida, de ser e de se comportar dos migrantes, dos refugiados e dos precários em geral, enfim, dos que estão a inventar não apenas os meios de sobrevivência, mas os meios de criação viva.

O paradoxo é justamente este: a restrição e controle da mobilidade estão relacionados com a expropriação da produção comum realizada pelas pessoas a quem são negadas a mobilidade, seja em termos geográficos e geopolíticos, mas também em termos de ascensão social e financeira. Se hoje os estados conclamam nossas subjetividades para viver incessantes crises, incluindo a trágica crise dos refugiados e dos migrantes, isso não significa que se aumentou a sensibilidade, mas, ao contrário, que a crise é o nome que se dá à tentativa de recomposição das hierarquias e dos controles. A crise é o nome que se usa para legitimar a perseguição aos migrantes e refugiados e a crescente violação aos seus direitos mais básicos, justamente aqueles que os estados mais ricos se orgulham de ter criado.

Tal modo de organização e hierarquização não se faz a partir de um comando centralizado e totalitário, nem se faz desacompanhado de estratégias diversificadas e conectadas de comando, captura e subjetivação. E nem se dá sem resistência e conflitos. É justamente dessa relação conflituosa que se vale o capitalismo, em sua forma global e integrada, para produzir valor, neutralizando novas insurreições e insubordinações (MEZZADRA, 2005). Sempre espreitando, apreendendo e expropriando aquilo que é produzido pelas pessoas. Não apenas no âmbito das fábricas e empresas, mas nas suas relações afetivas e pessoais, nas suas formas de expressão, na sua maneira de se comunicar e existir. Neste sentido, a distribuição da cidadania e de acesso a direitos é fundamental como estratégia de controle e hierarquização e isso envolve inclusive a valoração jurídica e política dos movimentos migratórios e o modo como cada um será identificado.

Subjetividade de resistência

É na possibilidade de disputar a cidadania, em suas questões mais básicas, é na possibilidade de disputar a própria cidade e de incluir nela novas formas de vida – mais do que passivamente aguardar a inclusão e as políticas de integração – que está situado o trabalho hoje: essencialmente corporal, econômico e político. A presença, portanto, do corpo negro do haitiano, mesmo quando subjugado a contratos injustos de trabalho, tem a força de determinar novas formas de trabalho e produção, inclusive em termos globais: basta pensarmos como o grande êxodo haitiano tem o potencial de influenciar a vida das famílias que ficaram no país, graças às remessas enviadas. E na marca que a migração haitiana certamente deixará nas cidades por onde passou.

Esta é, então, a principal contribuição que os migrantes e refugiados fazem em sua fuga com destino à vida: a criação de possibilidades de onde emergem, de forma imanente, o terreno para cidadania e novos direitos. Enfim, a disputa por cidadania e por democracia. Eis o terreno onde se dá o trabalho hoje. Ainda que sejam capturados em novas formas de violência e subjugação e ainda que sucumbam. Este terreno de instabilidade e insubordinação é que importa, na medida em que permite a emergência e experimentação de novas subjetividades, novas subjetivações e novas expressões e formas de vida. Não apenas a transposição e replicação de culturas “estrangeiras” e exóticas, como nos quer fazer crer a retórica do “multiculturalismo”, absorvendo os conflitos e estranhezas, mas a emergência de outras possibilidades de existir e de produzir.

Produzir novas formas de vida significa transformar e produzir a própria cidade e a sua composição política, este lugar no qual hoje se dá o trabalho, desde que as fábricas deixaram de ser o lugar por excelência da produção e desde que elas se estenderam para todo o campo das relações sociais. A cidade composta pela sua materialidade mais óbvia e, ao mesmo tempo, por todos os signos imateriais que lhe dão vitalidade. Dos senegaleses e nigerianos que ocupam o comércio das ruas no centro de São Paulo – a cidade erguida e sustentada pelos migrantes de toda parte do Brasil e do mundo e que acolhe mil idiomas e sotaques – aos congoleses e angolanos que dão ao entorno da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, a imagem de uma fronteira próxima e acessível, entre Brasil e África.

Podemos afirmar, portanto, que a migração é em si um gesto de resistência. Mesmo que se diga que o deslocamento seja involuntário, ainda assim pode ser tomado como um modo de resistir. Embaralhando e desestabilizando as hierarquias, insubordinando-se contra os regimes de controle e contra a regulação da cidadania por meio da escassez, os migrantes e refugiados retomam a possibilidade de escolher o regime de cidadania e trabalho em que viverão. Ainda que sejam poucas, raras ou quase escassas as opções, escolher já é criar e determinar um campo possível de autonomia (HUBERMAN, 2011).

E no caso dos refugiados, sobre os quais pesa toda a retórica condescendente e vitimizante, que os reduz a meras vítimas passivas e impotentes, mesmo para eles a escolha se faz presente, afirmativa e produtiva. Escolher sobreviver é também escolher como se viverá. A sobrevivência não é habitar a margem do abismo, mas, ao contrário, é o esforço crescente de retomar a tragédia em sua plenitude vital e constituinte. Manter-se vivo e decidir viver implica também em construir mundos onde a nova vida poderá florescer e isso significa, afinal, produção de trabalho. A vida investida de trabalho, o trabalho investido de vida. E a vida como produção, justamente neste ponto onde se encontram a arte, a vida e o trabalho. E por que não dizer também da democracia.

Esses são alguns apontamentos, por ora, finais. A conclusão, porém, fica adiada e, em seu lugar, cabe produção constante de sensibilidade, debate e luta, como nos ensinam migrantes e trabalhadores, sempre em movimento.

Referências Bibliográficas

 BRASIL. Lei nº 4.737 de 15 de julho de 1965.

BRASIL. Lei nº 6.815, de  19 de agosto de 1980.

BRASIL. Lei nº 9.474, de 22 de julho de 1997.

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DAS, Veena. The Signature of the State: The Paradox of Illegibility. In: Life and words: violence and the descent into the ordinary. Berkeley: University of California Press, 2007. P. 162-183.

COCCO, Giuseppe. Mundo Braz: o devir-mundo do Brasil e o devir-Brasil do Mundo. Rio de Janeiro. São Paulo: Record, 2009.

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IFAD – International Fund for Agricultural Development. Sending Money Home: Contributing to the SDGs, one family at a time. IFAD, 2017. Disponível em: <https://www.ifad.org/documents/36783902/4a5640d9-e944-4a8c-8007-a1bc461416e6>. Último acesso em: 01/07/2017.

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SIMMEL, Georg. 2005 (1908). O estrangeiro. RBSE 4(12): 265-271.

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Notas de Rodapé:

[1] Doutoranda em Direito pela UFRJ. Agente de Proteção da Cáritas RJ [email protected]

[2] Doutor em Direito pela PUC-Rio. Advogado da Cáritas RJ. [email protected]

[3] Exemplo da situação mencionada: “Estrangeiros resgatados de escravidão no Brasil são ‘ponta de iceberg’”. BBC Brasil, 13 maio 2013. Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2013/05/130508_trabescravo_estrangeiros_fl>. Último acesso em: 01/07/2017.

[4] Exemplo da situação mencionada: “Quatro chineses são resgatados de trabalho escravo em pastelarias do Rio”. Agência Brasil, Rio de Janeiro, 22 mar. 2016. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2016-03/pastelarias-do-rio-sofrem-fiscalizacao-de-combate-ao-trabalho-escravo>. Último acesso em: 01/07/2017.

[5] Cf: “Ministério Público do Trabalho investiga máfia que alicia chineses para trabalho escravo”. O Globo, 11 abr. 2015. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/rio/ministerio-publico-do-trabalho-investiga-mafia-que-alicia-chineses-para-trabalho-escravo-15843730#ixzz4mezwZ9bo>. Último acesso em: 01/07/2017.

[6] Cf “A vida no Brasil não é normal, é só trabalho’, conta boliviana que foi escravizada em SP”. BBC Brasil, 29 jan. 2015. Disponível em: < http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/01/150127_boliviana_escravizada_ms>. Último acesso em: 01/07/2017.

[7] Exemplo da situação mencionada: “Haitianos são resgatados em condições de escravidão em SP”. G1, São Paulo, 22 ago. 2014. Disponível em: <http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2014/08/haitianos-sao-resgatados-em-condicoes-de-escravidao-em-sp.html>. Último acesso em: 01/07/2017.

[8] Sobre este fato, há diversas fontes de notícias: “Largura da canela é requisito para haitiano conseguir emprego no Brasil”. G1. 26/05/2016. Disponível em: <http://g1.globo.com/ac/acre/noticia/2015/05/largura-de-canela-e-requisito-para-haitiano-conseguir-emprego-no-brasil.html>. Há vídeos com depoimentos sobre o “método” de seleção de trabalhadores entre os haitianos, disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=hsY9RZlkTwA>. Último acesso em 01/07/2017.

[9]Cf: “Protesto da direita anti-lei de migração incorreu em crime, diz especialista”. El País, São Paulo, 03 maio 2017. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/05/04/politica/1493851938_726291.html>. Último acesso em: 01/07/2017.

[10] Cf: “Prostituição de venezuelanas avança com imigração em massa no Norte”. Folha de São Paulo, 29 abr. 2017. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/04/1879719-prostituicao-de-venezuelanas-avanca-com-imigracao-em-massa-no-norte.shtml>. Último acesso em: 01/07/2017.

[11] Tradução livre do trecho original em inglês: “Migrants are most often referred to as migrant

workers because that is what they do: WORK” (IFAD, 2017, p. 9).

[12] A definição jurídica de quem pode ser reconhecido como refugiado no Brasil é regida pela Lei 9.474 de 1997, enquanto que o termo “migrante” se refere a uma categoria social geral.

[13] Cf: “Especialistas avaliam que Lei de Migração representa avanço, apesar de vetos”. Agência Brasil, Brasília, 25 maio 2017. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2017-05/especialistas-avaliam-que-lei-de-migracao-representa-avanco-apesar-de-vetos>. Último acesso em: 01/07/2017.

[14] Cf: “Greve Geral de Imigrantes na Argentina contra políticas anti-imigração no país”. Somos Migrantes, 10 mar 2017. Disponível em: <https://somosmigrantessite.wordpress.com/2017/03/10/greve-geral-de-imigrantes-na-argentina-contra-politicas-anti-imigracao-no-pais/>. Último acesso em: 01/07/2017.

[15] Cf: “Um Dia sem Imigrantes’ paralisa empresas e serviços nos Estados Unidos”. Agência Brasil, Nova York, 10 fev 2017. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2017-02/um-dia-sem-imigrantes-paralisa-empresas-e-servicos-nos-eua>. Último acesso em: 01/07/2017.

[16] Este é um trecho da fala de um refugiado da República Democrática do Congo durante sua exposição na mesa de abertura da exposição “Na Rota dos Refugiados”, que ocorreu na Casa Rio, em abril de 2017.

Palavras Chaves

Trabalho; Migração; Resistência; Fronteira; Cidadania.