O ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL E SUA INCOMPATIBILIDADE COM O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO: REFLEXOS DA RESOLUÇÃO 181.2017 DO CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO

Resumo

O presente artigo visa analisar a viabilidade do acordo de não persecução penal diante do ordenamento jurídico vigente e se o instrumento normativo regulamentador da prática detém sustentação jurídica para a geração de efeitos. A confrontação do instituto do acordo de não persecução penal com as premissas do Estado Democrático de Direito permitirá uma conclusão acerca da possibilidade de dispensabilidade da observância ao devido processo legal e ao exercício da ampla defesa e contraditório com vistas a alcançar uma celeridade em um Sistema Judicial genérico que, nesses moldes, funcionaria com mero espectador do aparelho acusatório gerenciador de práticas negociais. A metodologia utilizada no presente trabalho é descritiva com o fito de analisar a viabilidade do acordo de não persecução penal no ordenamento jurídico nacional sob o comparativo da produção doutrinária a jurisprudencial.

Abstract

The purpose of this article is to analyze the viability of the agreement of non-prosecution before the legal system in force and if the normative instrument regulating the practice has legal support for the generation of effects. The confrontation between the institute of the non-prosecution agreement with the premises of the Democratic Rule of Law will allow a conclusion on the possibility of dispensability of observance of due process and the exercise of ample defense and contradictory with a view to achieving a speed in a Judicial System generic that, in these ways, would work with mere spectators of the accusatory device manager of business practices. The methodology used in the present work is descriptive in order to analyze the feasibility of the agreement of non-prosecution in the national legal system comparing doctrinal production to jurisprudence.

Artigo

­O ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL E SUA INCOMPATIBILIDADE COM O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO: REFLEXOS DA RESOLUÇÃO 181.2017 DO CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO

 

Mário Cesar da Silva Conserva[1]

RESUMO

O presente artigo visa analisar a viabilidade do acordo de não persecução penal diante do ordenamento jurídico vigente e se o instrumento normativo regulamentador da prática detém sustentação jurídica para a geração de efeitos. A confrontação do instituto do acordo de não persecução penal com as premissas do Estado Democrático de Direito permitirá uma conclusão acerca da possibilidade de dispensabilidade da observância ao devido processo legal e ao exercício da ampla defesa e contraditório com vistas a alcançar uma celeridade em um Sistema Judicial genérico que, nesses moldes, funcionaria como mero espectador do aparelho acusatório gerenciador de práticas negociais. A metodologia utilizada no presente trabalho é descritiva com o fito de analisar a viabilidade do acordo de não persecução penal no ordenamento jurídico nacional sob o comparativo da produção doutrinária e jurisprudencial.

Palavras-chave: Ministério Público; Constituição Federal; Acordo; Persecução Penal; Ampla defesa e contraditório.

ABSTRACT

The purpose of this article is to analyze the viability of the agreement of non-prosecution before the legal system in force and if the normative instrument regulating the practice has legal support for the generation of effects. The confrontation between the institute of the non-prosecution agreement with the premises of the Democratic Rule of Law will allow a conclusion on the possibility of dispensability of observance of due process and the exercise of ample defense and contradictory with a view to achieving a speed in a Judicial System generic that, in these ways, would work with mere spectators of the accusatory device manager of business practices. The methodology used in the present work is descriptive in order to analyze the feasibility of the agreement of non-prosecution in the national legal system comparing doctrinal production to jurisprudence.

Keywords: Public Prosecutor; Federal Constitution; Deal; Criminal prosecution; Wide defense and contradictory.

  1. INTRODUÇÃO

A persecução penal representa a junção dos procedimentos administrativo e judicial que garantem ao Estado a possibilidade de atribuir determinada penalização ao indivíduo que tenha cometido ato ilícito capaz de lesionar bem juridicamente tutelado. A persecutio criminis deve, como qualquer outro procedimento ou processo, estar lastreada nos ditames constitucionais e regulamentada em normativas infraconstitucionais atinentes a matéria. O trabalho abordará se o Ministério Público enquanto legitimado à propositura de persecução penal possui extensivas prerrogativas para a tomada de decisão unilateral quanto à instrumentalização da imputação penal e se goza de autonomia para a pactuação de cláusulas punitivas extrajudiciais alheias à análise do Poder Judiciário e do regular processo de construção de convencimento quanto à culpabilidade.

O Ministério Público possui a titularidade para a propositura da ação penal pública diante da previsão constitucional de sua legitimidade para a defesa da ordem jurídica e o exercício da pretensão punitiva estatal, ocupa o polo ativo da demanda judicial que objetiva a imputação penal a um indivíduo sob a observância de direitos fundamentais incorporados ao rol pétreo da Constituição Federal.

O dever legal de agir diante de um conjunto probatório que indique a ocorrência de prática delitiva consubstancia-se como resposta estatal à atuação transgressora do indivíduo em ofensa ao bem-estar social e, nesse sentido, o arcabouço normativo vigente urge como aparelho de constituição de regras pré-definidas e propostas por órgão competente para a edição da legislação, sendo este dotado de poder político que ratifica a soberania popular por meio da representação.

A Constituição Federal ocupa o pico da escala hierárquica normativa nacional, todos os instrumentos normativos devem guardar compatibilidade com a Carta Magna e dela extrair fundamentação para sua edição. Nesse espectro as regras processuais e penais devem sua validade ao atendimento do processo legislativo constitucional, evitando unilateralidades e devaneios institucionais que visem agrupar conveniências funcionais em dissonância o que foi estabelecido pelo legítimo poder político representativo do povo brasileiro.

A instituição de direitos fundamentais acarreta a vinculação da atuação estatal à sua observância ao mesmo modo que urge como instrumento indisponível ao próprio indivíduo, na seara penal a aplicação de sanção deriva fundamentalmente do respeito ao alcance de juízo condenatório por meio de um devido processo legal garantidor do exercício da ampla defesa e contraditório, não havendo, pelo menos por ora, a assunção automática derivada de imputação penal ou negociação da culpabilidade.

Nesse mister, o presente trabalho será elaborado com vistas a tecer fundamentos contrários à validade da Resolução 181 de 2017 editada pelo Conselho Nacional do Ministério Público, bem como, a inclusão do instituto da não persecução penal em nosso ordenamento jurídico ante a incompatibilidade com o Estado Democrático de Direito. A utilização de diversos posicionamentos doutrinários e interpretações da legislação serão utilizados como base para a presente pesquisa ao passo que a Jurisprudência atinente ao presente caso terá ímpar importância ao repreduzir as análises já existentes sobre o tema.

  1. BREVE SÍNTESE ACERCA DA HIERARQUIZAÇÃO NORMATIVA NO BRASIL

O Estado de Direito consolida-se como vigente a partir da edição de uma Constituição Federal escrita e formadora de uma hierarquia que vincula ao conjunto legal já existente ou ulterior a subordinação aos seus preceitos, tem seu nascedouro com o Poder Constituinte originário que advém de uma construção social que estabelece o início de uma ordem normativa, Sarlet (2017, p. 101) leciona:

O processo constituinte (de fundação de uma nova ordem constitucional) é portanto, sempre- e de certa forma- um novo começo, visto que não se encontra na dependência, pelo menos não no sentido jurídico-formal, no plano de uma hierarquia normativa, das regras constitucionais anteriores, ou mesmo de outra fonte normativa superior e externa, razão pelo qual à expressão poder constituinte se costuma agregar o qualificativo originário.

A Doutrina bem explicita que o Poder Constituinte inaugura uma nova ordem constitucional soberana e vinculativa, submetendo a legislação já existente à análise de compatibilidade que, em caso positivo, vigorará com novo fundamento sob o espectro da recepção material da regra, como dispõe Novelino (2014, p.74):

A revogação de uma Constituição faz com que todas as demais normas do ordenamento jurídico percam seu fundamento de validade e, portanto, sua vigência. Com o objetivo de dar continuidade às relações sociais, tendo em vista a impossibilidade fática de nova regulação imediata de todas as hipóteses indispensáveis, as normas infraconstitucionais, cujo conteúdo seja compatível com o da nova Constituição, são recepcionadas por ela (novação legislativa), adquirindo um novo fundamento de validade.

A necessidade de compatibilidade das normas infraconstitucionais deriva da subordinação das mesmas ao texto constitucional que urge como instrumento instituidor da nova ordem normativa do Estado. Dito isso cumpre destacar que a própria Constituição Federal encampa competências legislativas distintas aos entes federados, a exemplo da União, que a Carta Magna reserva a privativa atividade legiferante sobre as seguintes matérias:

Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: I – direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho; […]

Da determinação constitucional absorve-se que a produção legislativa apta a surtir efeitos no plano jurídico deve atender ao devido processo legislativo, previamente disposto, sob pena de ter decretada sua inconstitucionalidade formal com base na teoria Kelseniana que estatui que a normativa ordinária deve encontrar lastro na disposição superior, nesse sentido explica Novelino(2014):

[…] no sistema de “supra-infra-ordenação” proposto por KELSEN, a norma superior regula a forma de produção da norma inferior, sendo que esta só será válida quando elaborada da maneira determinada por aquela, que é o seu fundamento imediato de validade”.

A conjunção entre a competência legiferante e a necessidade de observância às formalidades entabuladas na Constituição Federal, em seus artigos 59 e seguintes quanto ao processo ao processo legislativo, representa indiscutível resultado da observância ao princípio da Legalidade. A primazia do exercício de edição de norma é atribuída ao Poder Legislativo que não detém a exclusividade, como explica Moraes (2017, p.677)

A primazia do processo legiferante foi constitucionalmente concedida ao Poder Legislativo, que, porém, não detém o monopólio da função normativa, em virtude da existência de outras fontes normativas primárias, tanto no Executivo (medidas provisórias, decreto autônomos), quanto no Judiciário (regimento interno dos Tribunais e poder normativo primário do Conselho Nacional de Justiça). O respeito ao devido processo legislativo na elaboração das espécies normativas é um dogma corolário à observância do principio da legalidade, consagrado constitucionalmente, uma vez que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de espécie normativa devidamente elaborada pelo Poder competente, segundo as normas de processo legislativo constitucional, determinando, dessa forma, a Carta Magna, quais os órgãos e quais os procedimentos de criação das normas gerais, que determinam […].

A normatização subsidiária alheia ao processo legislativo tem natureza regulamentadora e surge da necessidade de modelar a atuação estatal diante das especificidades da circunstância prevista em lei. As Resoluções, em linhas gerais, são expedidas com o fito de disciplinar matéria de competência específica da autoridade executora, na lógica piramidal da hierarquização normativa nacional ocupariam a base da estrutura jurídica devendo estrita vinculação ao entabulado na Constituição Federal e legislação infraconstitucional, Moraes (2017) defende que:

[…]  o desrespeito às normas de processo legislativo constitucionalmente previstas acarretará a inconstitucionalidade formal da lei ou ato normativo produzido, possibilitando pleno controle repressivo de constitucionalidade por parte do Poder Judiciário.

A solidificada teoria da hierarquização normativa representa à organização legal do Estado, nesse sentido a confecção das normas que vincularão os jurisdicionados deve atender à instituição de competências dos entes pela Constituição Federal, garantindo a segurança jurídica. A tripartição dos poderes e a existência do Ministério Público como instituição essencial serão tratadas no tópico seguinte.

  1. TRIPARTIÇÃO DOS PODERES E O MINISTÉRIO PÚBLICO

A Constituição Federal introduz na ordem social uma estrutura institucional com entes independentes e harmônicos entre si, atribuindo a cada um destes, prerrogativas específicas. A separação dos poderes em corrente tripartite foi adotada pelo Constituinte Originário maximizando a definição do exercício de Poder no Estado de Direito brasileiro, nesse sentido faz-se salutar o ensinamento de Canotilho e Moreira (1991, p.71)

“Um sistema de governo composto por uma pluralidade de órgãos requer necessariamente que o relacionamento entre os vários centros do poder seja pautado por normas de lealdade constitucional (Verfassungstreue, na terminologia alemã). A lealdade institucional compreende duas vertentes, uma positiva, outra negativa. A primeira consiste em que os diversos órgãos do poder devem cooperar na medida necessária para realizar os objetivos constitucionais e para permitir o funcionamento do sistema com o mínimo de atritos possíveis. A segunda determina que os titulares dos órgãos do poder devem respeitar-se mutuamente e renunciar a prática de guerrilha institucional, de abuso de poder, de retaliação gratuita ou de desconsideração grosseira. Na verdade, nenhuma cooperação constitucional será possível, sem uma deontologia política, fundada no respeito das pessoas e das instituições e num apurado sentido da responsabilidade de Estado (statesmanship)”.

O posicionamento doutrinário traz relevante aspecto da tripartição do poder que ascende como ferramenta de estabilidade institucional, é certo que a Constituição Federal[2] reconhece como estrutura do Estado de Direito os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário e institui órgãos autônomos e independentes funcionalmente que são essenciais à ordem social, por exemplo, o Ministério Público.

O reconhecimento do Ministério Público na Carta Magna não vincula a existência de potencialidades excepcionais por este órgão visto que o texto constitucional destina apenas à corrente tripartite a institucionalização do Poder, que é uno, porém rateado entre os demais entes que produzem a rotina do checks and balances[3], nesse diapasão cumpre ressaltar que não representa o parquet um quarto poder instituído por visceral ausência de previsão constitucional.

As competências dos Poderes instituídos são bem delineadas, inexistem espaços para interpretações quanto à existência de um poder moderador, tal qual no período imperial[4], as funções relativas à produção legiferante no âmbito originário correspondem ao Poder Legislativo enquanto o Executivo desempenha a gestão das políticas públicas e o Poder Judiciário, por sua vez, encampa a atividade jurisdicional no julgamento diante da existência de normativas sob o referencial de adequação do fato à norma.

As funções de natureza constitucional alçadas à corrente tripartite de modo originário – ora explicitadas – são reconhecidas como funcionalidades típicas que, nas palavras de Saleme (2011, p.70) representam àquelas “prescritas na constituição, são elas que emprestam o nome ao Poder” sendo preponderantes, não exclusivas, visto que todos os Poderes exercitam as funções de edição normativa, gestão administrativa e julgamento. Ainda segundo Saleme (2011)

A tipicidade se encontra pela simples preponderância de uma função sobre as demais. Por exemplo, o Poder Legislativo tem a função principal de elaborar o regramento jurídico do Estado – é sua função típica –, mas também pode julgar seus servidores e o próprio chefe do executivo, exemplos de exercício de atividades típicas do Judiciário, podendo, ainda, julgar seus pares, assim como a edição de decretos autônomos pelo chefe do Executivo é uma função atípica do Poder Legislativo.

 O relevante ensinamento consigna acertada conclusão quanto o raio de atuação dos poderes de maneira atípica, sobretudo no que atine a observância à harmonia , visto que a autonomia administrativa dos entes impede a subordinação, contudo cumpre frisar que por se tratar de atividade atípica, ou seja, subsidiária, os poderes não podem usurpar as competências originárias dos demais, salvo quando expressamente disposto no diploma constitucional.

Não obstante, a própria Constituição Federal impede a mitigação da independência entre os Poderes e embasa a crítica ao ativismo plúrimo destes, por se tratar de carta analítica[5] ela mesma regulamenta as exceções, como no caso da possibilidade de impetração de Mandado de Injunção, no qual o Poder Judiciário mediante análise própria declara omissão da atividade legiferante e define, sob o manto da previsão constitucional[6], a possibilidade de uma resolução provisória do fato jurídico.

Na ordem constitucional o Ministério Público é “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado” e tem garantido pelo constituinte originário função atípica, qual seja, a organização e fiscalização funcional dos seus componentes. O artigo 130-A da Constituição Federal prevê a possibilidade da atividade legislativa do Ministério Público, porém limitada a expedição de normas regulamentares para a categoria, como já indicado, não cumpre ao parquet o exercício do poder político representativo.

O seguinte tópico explanará quais as atribuições funcionais do Ministério Público e seu dever legal perante o ordenamento jurídico pátrio com enfoque na obrigatoriedade da ação penal.

  1. ATRIBUIÇÕES FUNCIONAIS DO MINISTÉRIO PÚBLICO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E A RESOLUÇÃO 181.2017 DO CNMP

O Ministério Público tem suas funções estabelecidas pela Constituição Federal e em conceituação literária representa o órgão acusador na triangulação processual penal e essencial à ordem jurídica, ao regime democrático e à tutela dos direitos sociais e individuais indisponíveis, conforme o artigo 127 da Carta Magna.

A autonomia funcional e administrativa definida ao órgão ministerial garante a possibilidade de exercício das prerrogativas dos seus componentes como também a competência legislativa para definição de orçamento e organização interna, o §2º do artigo 127 da Constituição Federal assim dispõe:

Art. 127 […] § 2º Ao Ministério Público é assegurada autonomia funcional e administrativa, podendo, observado o disposto no art. 169, propor ao Poder Legislativo a criação e extinção de seus cargos e serviços auxiliares, provendo-os por concurso público de provas ou de provas e títulos, a política remuneratória e os planos de carreira; a lei disporá sobre sua organização e funcionamento.

  • 3º O Ministério Público elaborará sua proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias.

A previsão constitucional além de estabelecer a autonomia do Ministério Público  indica a necessidade de edição de legislação complementar para a garantia de sua atuação, nesse sentido convém frisar que o artigo 22, IV da Lei Complementar 75 de 1993 prevê o exercício de “atos próprios de gestão”, cabendo-lhe, portanto, a organização da atuação do seu corpo funcional.

Nesse diapasão surge o órgão máximo administrativo do órgão, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), que representa a instância consultiva, corregedora e normativa do Parquet por força de disposição constitucional advinda da emenda constitucional 45 de 2004, também conhecida como “Reforma do Judiciário”.

Posto isso, dissipando quaisquer ideias contrárias à essencialidade da existência do Ministério Público e a importância de sua atuação autônoma, cabível frisar a edição da Resolução 181 do supracitado conselho superior que, entre outras, institui normas relativas à instauração e tramitação do procedimento investigatório criminal a cargo daquele órgão.

Cumpre destacar que a citada resolução surge no cenário posterior à decisão do Supremo Tribunal Federal quanto à possibilidade de instauração de procedimento investigatório criminal pelo Ministério Público. O Pleno da Corte Suprema no julgamento do Recurso Extraordinário de número 593727 de 2015 decidiu que havia legitimidade do órgão acusador para instaurar de ofício investigação criminal, sem a participação da autoridade policial.

O Código de Processo Penal define a autoridade policial como titular do Inquérito que, em suma, representa o procedimento extrajudicial capaz de constituir elementos indiciários de prática delituosa, assim dispõe o artigo 4º do supracitado diploma processual.

Art. 4º A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria.

Parágrafo único.  A competência definida neste artigo não excluirá a de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a mesma função.

A excepcionalidade do parágrafo único visa tutelar a possibilidade de atuação de autoridades que tenham por força de lei a legitimidade de abertura de procedimento inquisitorial, como por exemplo, as Comissões Parlamentares de Inquérito.

A decisão do Supremo Tribunal Federal representa, ao dissabor da teoria Kelseniana, verdadeira inovação legislativa por meio de posicionamento jurisprudencial, visto que dada a inexistência de previsão legal quanto à legitimidade do Ministério Público em instaurar investigações criminais, assim ficou definido.

Nesse sentido visando à uniformização de atuação dos Promotores e Procuradores, o Conselho Nacional do órgão definiu os moldes a serem seguidos na atuação funcional, porém tal qual um reflexo do ativismo judicial outrora exercitado pelo Supremo Tribunal, a normativa interna inovou em sua literalidade. A resolução 181 ao definir o que se convencionou chamar de “acordo de não-persecução penal” usurpa competência legislativa da União e impõe ao sistema legal total insegurança jurídica.

O artigo 18 da resolução 181 do CNMP assim dispõe:

Art. 18. Não sendo o caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor ao investigado acordo de não persecução penal quando, cominada pena mínima inferior a 4 (quatro) anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça a pessoa, o investigado tiver confessado formal e circunstanciadamente a sua prática, mediante as seguintes condições, ajustadas cumulativa ou alternativamente: […].

A Legislação vigente sequer ventila medida sinônima ao acordo de não-persecução, tecnicamente é possível se afirmar que não há “direito de ação” por parte do Ministério Público e sim dever de agir, este fundamentado no princípio da Legalidade e consubstanciado pela legislação penal que impõe a propositura da ação quando da existência de notícia crime fundamentada.

O Código de Processo Penal dispõe que mesmo diante da resistência do órgão do Ministério Público ao oferecimento da denúncia poderá o juiz, diante da improcedência das razões suscitadas, remeter os autos para o Procurador Geral de Justiça para que ele o faça (artigo 28), da acepção normativa depreende-se que apenas após o crivo do Judiciário se é possível arquivar autos que impliquem a ocorrência de prática delituosa.

A Resolução 181 inova ao instituir conduta persecutória carente de previsão legal ou constitucional ao passo que inaugura a prática negocial da culpabilidade no sistema legal nacional, invadindo competência legislativa e incorporando ao processo penal conduta tipicamente incompatível com o ordenamento jurídico, nesse ponto cumpre destacar que o acordo de não-persecução baseia-se na teoria anglo-saxã nos institutos jurídicos do “plead guilty”  e “plea bargaing” que consistem fundamentalmente em permissões jurídicas à práticas negociais no âmbito da persecução penal.

O tópico seguinte abordará mais profundamente a incompatibilidade do direito penal acordado e as disposições constitucionais vigentes.

  1. CARACTERÍSITCAS GERAIS DO “PLEA GUILTY” E “PLEA BARGAING”

O “plea guilty” e “plea bargaing” são expressões em inglês que referem-se à modalidade de propulsão dos procedimentos inquisitoriais em determinados ordenamentos jurídicos, em tradução literal significam “declarar-se culpado” e “negociação de confissão”, reprodutoras do múnus do sistemas legais penais de matriz Common Law.

Os aparelhos acusatórios nos sistemas legais que adotam as práticas inerentes a estes dois conceitos possuem, por força normativa, atribuições funcionais para a formalização de acordos quanto à culpabilidade diante de determinados eventos com matéria indiciária sobre o cometimento de crimes. O Departamento de Justiça norte-americano define o acordo de não-persecução penal como uma ferramenta que privilegia a economicidade ao evitar um processo penal diante da confissão do indivíduo, em sua página oficial o referido departamento dispõe que “quando o Governo tem um caso forte, o Governo pode oferecer ao réu um acordo judicial para evitar o julgamento e talvez reduzir sua exposição a uma sentença mais longa”.

Alguns teóricos defendem a utilização de ferramentas garantidoras da não-persecução penal em nosso ordenamento jurídico, SANCHES e SOUZA (2018) defendem que “o uso corriqueiro da justiça negociada e dos acordos penais demonstrou que este instituto é útil para determinados tipos de infrações e, principalmente, apto a evitar o colapso do sistema de Justiça” e defendem o entendimento de que ao Ministério Público é lícito o protagonismo de definição de políticas criminais:

Ao Ministério Público, titular exclusivo da ação penal, é franqueado inegável

protagonismo de agente político definidor de políticas criminais, notadamente na fase inquisitorial, sendo que o recorte efetuado pela resolução é absolutamente legítimo, sobretudo se considerarmos o ciclo restrito de infrações que serão por ele alcançadas.

 A defesa das práticas negociais relativas à culpabilidade cinge-se à suposta redução sistêmica dos processos judiciais na esfera criminal, definindo extensivas prerrogativas ao órgão acusatório para a possibilidade de pactuação de cláusulas penais diretamente com o acusado e com apenas a participação homologatória do Judiciário.

  1. Direito Penal acordado e sua compatibilidade com a Constituição Federal

A persecução penal no Estado brasileiro ancora-se no princípio da obrigatoriedade que não faculta ao aparelho estatal a atuação jurisdicional repressora, indica que “ocorrida a infração penal, ensejadora de ação penal pública incondicionada, deve a autoridade policial investigá-la e, em seguida, havendo elementos, é obrigatório que o promotor apresente denúncia” (NUCCI, 2008, p. 47-48).

O princípio supracitado deriva fundamentalmente da necessidade de coibição da autotutela resultante de ofensas a bens privados tutelados, impõe que devido à existência do Estado e sua função de pacificação social o mesmo tem a incumbência do exercício obrigatório da tutela repressiva.

A atuação repressiva penal do Estado tem como titular o Ministério Público que precisa vincular-se às disposições claras quanto à deflagração da persecução penal. A resolução 181 do CNMP funda ferramenta processual de natureza negocial na qual, após a confissão expressa e detalhada dos fatos e o aceite das condições impostas pelo Ministério Público ao suspeito, extrai-se uma isenção processual, totalmente desvencilhada do devido processo legal.

A acepção literal da normativa interna em questão assemelha-se à atuação dos órgãos equiparados em países de matriz jurídica anglo-saxã, porém a natureza do sistema legal nacional impede que o indivíduo possa dispor de direitos fundamentais em negociação extrajudicial alheia ao devido processo legal e exercício da ampla defesa e contraditório, tal afirmação deriva da análise sistemática dos direitos fundamentais instituídos na Constituição Federal, que assim dispõem

Art. 5º […] II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; […] LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;  LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;

A análise, mesmo que superficial, dos direitos fundamentais encampados pela Carta Magna demonstra que resta instituída na atuação estatal a observância ao princípio da Legalidade onde ninguém será compelido senão pela Lei, frise-se, em sentido formal, derivada do devido processo Legislativo o que, no caso em tela, não representa a Resolução 181 do CNMP. De outro lado, o devido processo legal consubstancia-se pela possibilidade do exercício da ampla defesa e contraditório em rito presidido pelo Poder Judiciário, a proposição de um acordo extrajudicial de assunção de culpabilidade entre o parquet e o suspeito fere a garantia processual do indivíduo que encontra-se em posição totalmente desproporcional para defesa de sua liberdade.

Os institutos jurídicos do “plea guilty” e “plea bargaining” merecem especial atenção porque representam o norte conceitual do acordo de não-persecução penal e são ferramentas processuais naturais do sistema commow law, não adotado em nosso ordenamento. Sobre o tema Messite (2010) explica:

A negociação judicial (plea bargaining) é um procedimento dentro de um sistema de justiça criminal em que os promotores e os réus negociam um pedido e descartam um caso antes do julgamento. Existe para servir o interesse da economia judiciária, embora seja frequentemente criticado, garante a cooperação dos meliantes como testemunhas em outros processos criminais em troca de uma “barganha” quanto a acusações criminais contra si mesmos. (tradução do autor)

O exercício de uma negociação extrajudicial acerca da culpabilidade não encontra fundamento positivo na Constituição Federal, visto que o que se entende por devido processo legal desenvolve-se em na instrumentalização de um procedimento garantidor da ampla defesa e contraditório, na pura resistência à imputação estatal ora ventilada.

O Ministério Público tem suas atribuições funcionais definidas pela Constituição Federal e suas prerrogativas não são extensivas ao ponto de se decidir de maneira discricionária quanto à impulsão da persecução penal diante de elementos sólidos de prática delituosa. Destarte, põe-se como infrutífera a competência legislativa interna para alteração do status funcional do órgão, o próximo tópico enfrentará a ausência de previsão legal para a não persecução penal.

 

  1. AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL DO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL

O princípio da Legalidade, hegemônico em nosso ordenamento, pode ser definido como base para a vinculação do indivíduo ao Estado, tem sua principal matriz no dizer constitucional que define o arbítrio do cidadão, salvo quando da existência de norma coibitiva ou limitadora.

A estrita atividade estatal deve vincular-se à previsão legal que a sustenta que, por sua vez, encontra fundamento nos preceitos constitucionais do Estado de Direito. A previsão legal surge do movimento legislativo legitimado no qual institui regramento ao ordenamento vigente por meio de processo previamente definido, salutar tal afirmação, pois inibe o equivocado raciocínio de surgimento abstrato, deve-se entendê-la como resultado do desenvolvimento democrático ativo, a mais pura consecução popular, o atendimento positivado dos anseios do povo.

Destarte a teoria Kelseniana basilar ao Estado de Direito Brasileiro institui a hierarquia normativa, como já explicitado, dispondo a cada espécie de norma sua função executiva no arcabouço legislado. A Resolução 181 do CNMP representa norma de função executiva interna, direcionada ao específico exercício funcional dos componentes do Ministério Público e nesse diapasão deve observar as previsões legais vigentes.

Sobre a natureza jurídica gerencial da Resolução faz-se salutar entendimento de Meirelles (2007, P.183,184)

As resoluções, normativas ou individuais, são sempre atos inferiores ao regulamento e ao regimento, não podendo inová-los ou contrariá-los, mas unicamente complementá-los e explicá-los. Seus efeitos podem ser internos ou externos, conforme o campo de atuação da norma ou os destinatários da providência concreta.

O esclarecimento doutrinário ascende à cristalina função do instrumento normativo interno e sua limitação, qual seja, vinculação às normas hierarquicamente superiores. Nesse sentido cumpre esclarecer que não há em matéria processual previsão quanto à negociação extrajudicial de culpa, porém no intuito de precaver o intérprete desatento, faz-se relevante a citação à transação judicial constante na Lei 9.099 no âmbito dos Juizados Especiais Criminais ou a colaboração premiada na lei 12.850 no âmbito das organizações criminosas.

A transação judicial  e a colaboração premiada são instrumentos do nosso ordenamento compatíveis com a possibilidade de negociação no processo penal, porém possuem constrangedoras diferenças, quais sejam, são frutos do devido processo legislativo no Congresso Nacional e assim revestidos de legitimidade e validade executória e, não menos importantes, são implementadas sob a supervisão e homologação do Poder Judiciário.

O acordo de não persecução penal instituído na Resolução 181 do Conselho Nacional do Ministério Público resta prejudicado formalmente apresenta grave inconstitucionalidade por vício de iniciativa e por desrespeito ao devido processo legislativo, pois se trata de norma produzida unilateralmente por órgão sem competência legislativa.

A Resolução em apreço ao instituir o acordo de não-persecução penal não apenas almeja a prática negocial da culpabilidade em seara extrajudicial como também institui penas a serem aceitas pelo suspeito antes mesmo do exercício de sua ampla defesa e contraditório

Art. 18[…] I – reparar o dano ou restituir a coisa à vítima; II – renunciar voluntariamente a bens e direitos, de modo a gerar resultados práticos equivalentes aos efeitos genéricos da condenação, nos termos e condições estabelecidos pelos arts. 91 e 92 do Código Penal; III – comunicar ao Ministério Público eventual mudança de endereço, número de telefone ou email; IV – prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito, diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo Ministério Público. V – pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Código Penal, a entidade pública ou de interesse social a ser indicada pelo Ministério Público, devendo a prestação ser destinada preferencialmente àquelas entidades que tenham como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito. VI – cumprir outra condição estipulada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal aparentemente praticada.

A ausência de previsão legal que preveja o acordo de não persecução penal o faz formal e materialmente inaplicável ao ordenamento jurídico vigente, como exaustivamente apresentado, porém muito mais do que rejeição técnica cumpre destacar que tal acordo representa ferramenta falível ao seu fim, na breve análise do Direito comparado a seguir será possível a percepção da inutilidade do supracitado acordo e sua natureza de subterfúgio.

  1. A ANTIDEMOCRÁTICA “CONTRATUALIZAÇÃO DO DIREITO PENAL” E A NECESSIDADE DE UM SISTEMA JUDICIAL EFICAZ

O Estado Democrático de Direito tem nos avanços civilizatórios sua base para a progressividade dos direitos individuais e efetividade de suas garantias, principalmente a existência das limitações da imposição estatal em detrimento da posição do indivíduo. A celeridade dos processos judiciais representa um objetivo do Estado Democrático, tendo como base o princípio da Eficiência encampado pela Carta Magna, mas tal busca não pode servir de subterfúgio para desvirtuamentos democráticos.

A Resolução 181 tem como linhas inaugurais a consideração de que “processos que se acumulam nas varas criminais do País e que tanto desperdício de recursos, prejuízo e atraso causam no oferecimento de Justiça às pessoas, de alguma forma, envolvidas em fatos criminais”(preâmbulo) representa fundamentação idônea à sua literalidade normativa. Deveras mostram-se urgentes medidas que visem impor uma celeridade aos trâmites judiciais, porém não devem ocorrer em detrimento das bases organizacionais do Estado de Direito.

O Direito Penal tem como fundamento o in dubio pro reo, não por preferência do Legislador ao criminoso, mas por privilégio à tutela cautelar de abusos estatais, nesse sentido não se pode considerar a existência de recursos ou meios de defesa como a razão da morosidade judicial, não no Estado Democrático de Direito. A Democracia tem como pilar de sua estrutura a possibilidade do livre exercício de defesa da sua liberdade e a existência de garantias que proporcionem ao cidadão a sensação e a instrumentalização de mecanismos que inibam a hegemonia da ação coativa.

Destarte, práticas negociais no âmbito da culpabilidade já são utilizados em outros países, como por exemplo, nos Estados Unidos da América, país de matriz jurídica anglo-saxã que institui extensivas prerrogativas ao órgão acusador, havendo inclusive flexibilização quanto aos fatos imputados, nesse sentido Maynard (1984, p.21) em estudos iniciais quanto à aplicação da “barganha” penal nos EUA lecionava

A barganha é uma atividade interna porque é executada apenas pelos profissionais de maneira burocrática […] em alguns casos, o juiz que julga os pedidos dos réus sobre negociação de culpa. Mas outros são claramente subordinados às negociações ritual e ecologicamente protegidas contra intrusões. (tradução nossa).

A relevante conceituação impõe a natureza desvencilhada de tal instrumento processual do nosso ordenamento constitucional, a imposição de um acordo pré-processual desincumbido de observância ao exercício da ampla defesa e contraditório ascende o desvencilhamento da prática com a estrutura basilar do Estado de Direito brasileiro.

A alavancagem de sistemas burocráticos que visam à celeridade processual em detrimento de direitos fundamentais do indivíduo macula a percepção do senso de Justiça e consequentemente expõe o Estado Democrático a uma ruptura, ao passo que destina ao aparelho estatal poderes deveras excessivos frente à liberdade individual.

A Doutrina reforça o entendimento quando afirma que “na negociação de culpa, obviamente, um tópico central é “o que deve ser feito” com os réus” (Maynard, p.22), encampa ao processo judicial a discricionariedade dos atores, quando tal possibilidade resta inconveniente aos moldes democráticos. A disposição de capacidade funcional ao Ministério Público suficiente à imposição de penas, acordos de não-persecução e isenção penal em rito extrajudicial que dispense o atendimento aos direitos fundamentais do indivíduo representa nódoa inapagável nos avanços civilizatórios. Tal qual no absolutismo, individualiza-se o poder de condenar e não condenar nas estruturas administrativas ministeriais.

A literalidade normativa da Resolução 181 do CNMP visa garantir ao órgão acusador o acúmulo da função julgadora, visto que haveria a previsão de imposição de sanções ao acusado de forma extrajudicial, o que demonstra-se expressivamente incompatível com o Estado de Direito.

  1. CONCLUSÃO

Com o exposto neste artigo, urge clarividente a inconstitucionalidade da Resolução 181 do Conselho Nacional do Ministério Público ao passo que inexiste competência Legislativa ao órgão supracitado e restou desrespeitado o devido processo legislativo instituído na Constituição Federal de 1988.

A própria Carta da República dispõe que deverá haver submissão ao princípio da Legalidade em todos os atos coativos praticados, nesse diapasão cumpre destacar que a ausência de previsão legal dos termos da Resolução em apreço impede a sua validade, afinal o tipo normativo existe para regulamentar aquilo que já possui previsão no ordenamento jurídico vigente.

De outro lado, o acordo de não-persecução penal instituído pela norma viciada impacta diretamente os ditames constitucionais vigentes e as regras processuais atinentes, ao passo que visa suprimir direitos fundamentais e cercear o exercício da ampla defesa e contraditório na análise concreta do cometimento de ilícito penal. Ademais, o Ministério Público não possui prerrogativas extensivas à negociação extrajudicial da culpabilidade, o processo judicial garantidor do exercício da plena defesa visa possibilitar ao indivíduo a tutela da sua liberdade.

Por fim, depreende-se da análise sistemática ora aduzida que se apresenta incompatível com o próprio Estado Democrático de Direito a unificação da acusação e julgamento no mesmo órgão, qual seja, o Ministério Público, vê-se como medida imprescindível à normalidade democrática e estabilidade jurídica o expurgo da Resolução 181 do CNMP do ordenamento jurídico, por ato da mais plena e vigorosa Justiça.

  1. REFERÊNCIAS:

 

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[1] Advogado. OAB/SE 12559. Endereço eletrônico: [email protected].

[2] Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. (Constituição Federal, 1988)

[3] O checks and balances (freios e contrapesos) representam um sistema incluso à teoria tripartite que visa instituir harmonia entre os poderes constituídos no sentido de unificar o exercício do Poder Político do Estado, funciona diante da limitação de atuação de um ente em detrimento de outro, evitando assim unilateralidades e descompassos nas respectivas competências.

[4] A carta imperial de 1824 instituía em seu artigo 10º a existência de um quarto poder moderador, constituído pelo exercício do poder da monarquia diante dos recentes traços republicanos sob a justificativa da necessidade da manutenção da harmonia entre os poderes constituintes do Estado. Posteriormente, dados os avanços civilizatórios e a consciência de um Estado de Direito representativo, tal conceito foi substituído pelos checks and balances.

[5] A Constituição é dita analítica quando empreende em seu texto normatização que extrapola conceitos materiais do Estado de Direito e impulsiona uma previsão extensiva de assuntos amplos dos subordinados, SALEME advoga considera como matérias essencialmente constitucionais aquelas relativas a “a forma e o sistema de governo, o tipo de Estado, os direitos e garantias fundamentais, a nacionalidade e a cidadania, as formas de aquisição e exercício do poder, a tripartição das funções estatais e o rol de atribuição dos órgãos estatais.”

[6] A previsão constitucional no Estado de Direito Brasileiro constitui-se como condição sine qua non de fundamentação da atividade jurisdicional visto que, dada a hierarquização normativa, a carta constitucional ocupa o pico da estrutura piramidal e toda atuação estatal deve vinculação a esta.

Palavras Chaves

Ministério Público; Constituição Federal; Acordo; Persecução Penal; Ampla defesa e contraditório