O PROCESSO CONSTITUINTE DE 1987/88 E A LEITURA INTERCULTURAL DA CONSTITUIÇÃO

Resumo

Ao revisitar o processo de elaboração da Constituição de 1988, a importância da mobilização dos povos indígenas e de seus aliados em favor de um tratamento jurídico singular aos seus territórios contrapunha-se à atuação de forças conservadoras para impedir a sua concretização. As disputas interpretativas seguiram após a promulgação do texto, e a oposição aos direitos territoriais indígenas cresceu, com novos adversários e empecilhos à superação do regime tutelar. Como consequência, a leitura da Constituição permaneceu voltada para o retrovisor, mediante a utilização de regimes jurídicos pretéritos ou marcadamente ocidentais para orientar a interpretação constitucional. O desafio é assegurar uma leitura intercultural do texto, que procure enfrentar as colonialidades existentes na sociedade brasileira e esteja verdadeiramente aberta aos anseios dos povos indígenas.

Artigo

O processo constituinte de 1987/88 e a leitura intercultural da Constituição

Júlio José Araújo Junior[1]

 Resumo: Ao revisitar o processo de elaboração da Constituição de 1988, a importância da mobilização dos povos indígenas e de seus aliados em favor de um tratamento jurídico singular aos seus territórios contrapunha-se à atuação de forças conservadoras para impedir a sua concretização. As disputas interpretativas seguiram após a promulgação do texto, e a oposição aos direitos territoriais indígenas cresceu, com novos adversários e empecilhos à superação do regime tutelar. Como consequência, a leitura da Constituição permaneceu voltada para o retrovisor, mediante a utilização de regimes jurídicos pretéritos ou marcadamente ocidentais para orientar a interpretação constitucional. O desafio é assegurar uma leitura intercultural do texto, que procure enfrentar as colonialidades existentes na sociedade brasileira e esteja verdadeiramente aberta aos anseios dos povos indígenas.

Introdução

A distinção entre memória e história, feita por Pierre Nora[2], permite compreender as hierarquizações do presente e a perpetuação de dominações em favor dos vencedores, em contraposição aos despojos a que se apegam os vencidos. Longe de serem sinônimos, memória e história são ideias opostas. A memória é sempre carregada por grupos vivos e está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, suscetível de longas latências e de repentinas revitalizações, ao passo que a história é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais.

A memória é algo sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a história, uma representação do passado. A memória baseia-se em lembranças vagas, particulares ou simbólicas, sensível a todas as transferências, cenas, censura ou projeções. Já a história, por ser uma operação intelectual e laicizante, impõe análise e discurso crítico. A memória provém de um grupo que ela une, logo existem tantas memórias quantos grupos existem, sendo, por natureza, múltipla e desacelerada, coletiva, plural e individualizada. Já a história, ao contrário, é de todos e ao mesmo tempo não é de ninguém, o que lhe dá uma vocação para o universal.

As autorrepresentações nacionais constroem uma história oficial, na qual heróis e episódios marcantes são cultivados e “lugares de memória” são criados. Esses lugares de memória compreendem discursos, ritualização de condutas cívicas, símbolos e valores, e produzem de maneira colateral os esquecimentos que esse conjunto de narrativas elabora. Os esquecimentos tornam inferiores e insignificantes os fatos e personagens envolvidos e não possuem monumentalidade nem grandiosidade[3].

Embora a inferiorização tenha sido uma forma permanente de tratamento dos povos indígenas desde a colonização, a construção da história oficial elaborou algumas percepções que moldaram o imaginário. João Pacheco de Oliveira menciona a existência de pelo menos quatro regimes de memória diferenciados que se misturam hoje na compreensão das trajetórias e do papel dos indígenas em nossa sociedade[4]. Da visão do paraíso terrenal[5], passa-se, em um segundo regime de memória, a uma distinção entre o índio colonial, amistoso, que trabalha nas fazendas e é recrutado nos aldeamentos, e o índio bravo, que é inimigo de guerra e merece ser escravizado, fruto das distinções já produzidas pelo Regimento de Tomé de Souza, de 17 de dezembro de 1548[6].

É no século XIX, porém, que se constroem as imagens que mais se enraizaram e persistem até hoje. No Brasil pós-independência, construiu-se um terceiro regime de memória, no qual a figura do indígena vai desempenhar um papel importante na narrativa de fundação da nação, como parte de uma identidade brasileira que difere de Portugal. A literatura vai contribuir para a elaboração de um passado mítico, em que o indígena ocupa o papel do cavaleiro feudal do romantismo europeu[7]. Os indígenas são os legítimos senhores da terra, os primeiros brasileiros, o que remete a uma existência no passado[8] e cuja imagem está reduzida ao exótico e ao repetitivo, em completa falta de sintonia com a realidade que os grupos étnicos estavam vivenciando no contexto pós-independência. Na mesma época, o uso retórico de nomes indígenas para denominar linhagens e títulos era uma prática constante, apesar da ausência de conexão das elites imperiais com a cultura e os interesses indígenas reais[9]. Qualquer alusão a um indígena concreto corria – e corre até hoje – o risco de ser acusada de fraudulenta.

Na República, um quarto regime de memória vai retomar o indianismo, mas para tratar de um indígena atual, de carne e osso, pelo qual se nutre simpatia, mas que está distante, embrenhado nas matas, e não vive entre nós. Esse indígena não nos é familiar e também é idealizado como primitivo, por isso desperta o interesse da opinião pública, desde que não interfira no projeto nacional, calcado em uma certa de ideia de desenvolvimento e no progresso. Há uma busca de um indígena tradicional, genérico, que precisa ser tutelado para integrar-se à civilização.

Quando as terras se tornam formalmente mercadorias, em 1850, e a propriedade privada é introduzida na legislação de terras, a consolidação de um modelo autoritário de ação indigenista de homogeneização da população, apoiado nas transformações promovidas pela percepção liberal de cidadania e de tratamento igual de todos os cidadãos perante o Estado, favorecerá a operação, nos documentos estatais, de uma perspectiva que igualmente decreta a morte dos indígenas, desta vez para reconhecê-los imiscuídos na “massa” da sociedade nacional.

Com a República, a omissão da Constituição de 1891 sobre a temática consolida a apropriação de terras dos índios pelos Estados, que as consideram devolutas. A legitimidade dessa titularidade será buscada nos tribunais mesmo após as previsões constitucionais, que assegurariam desde 1934 os direitos dos índios às suas terras. A sociologia das ausências[10] apresenta-se, então, com clareza, por meio da inferiorização do seus modos de vida e do tratamento dual entre primitivos e civilizados, e o regime tutelar será o mote para reduzir ou negar as suas terras, exigindo a presença física nas áreas e ignorando os processos de apropriação por que os grupos haviam passado e os modos abusivos de formalização da propriedade.

A Constituição de 1988, ao ser precedida de um processo político em que os indígenas demandaram o reconhecimento de terras e o respeito ao modo tradicional de ocupação, abre um novo capítulo nesta história, pois a partir dela a territorialidade não pode prescindir da construção da interpretação pelos próprios indígenas, ditas por eles mesmos, apartada de paradigmas integracionistas ou de leituras reducionistas que tentam legitimar a concentração fundiária. A construção da norma jurídica oriunda do art. 231 não pode mais estar vinculada à mentalidade colonizada do passado, pois isso seria afrontoso ao próprio projeto constitucional, que não admite o silêncio sobre o genocídio e a espoliação territorial que perpetuam as desigualdades e as cidadanias de segunda classe.

Não surpreende, é verdade, que haja uma tentação em interpretar o texto constitucional com o olhar voltado ao retrovisor, homologando-se como fato consumado a concentração de terras em poucas mãos. Apegar-se ao discurso assimilacionista e reduzir o alcance do art. 231 da Constituição são manifestações de regimes de memória ainda presentes, pois conferem ênfase à exigências de demonstração de indianidade e de traços distintivos estigmatizantes, a serem apreciados por quem se coloca externamente ao indígena.

A crença de que os índios iriam desaparecer ou integrar-se à sociedade nacional não se confirmou. As memórias e os esquecimentos devem servir como contrapontos aos diversos mecanismos de que as elites se valeram para legitimar a concentração fundiária. Nesse ponto, a interculturalidade demanda que a interpretação constitucional esteja atenta não apenas à pluralidade, mas aos despojos, aos vencidos, às feridas coloniais e à afirmação étnica.

De forma sintética, pode-se afirmar que a perspectiva intercultural viabiliza a horizontalidade no reconhecimento da pluralidade de culturas e almeja o diálogo em igualdade de condições entre os grupos que compõem uma sociedade, pressupondo uma troca de cosmovisões e um efetivo aprendizado recíproco. Só pode haver interculturalidade mediante a descolonização do ser, do saber e do poder[11], sob pena de os paradigmas serem construídos unicamente sob uma concepção[12]. Tais premissas permitem constatar as limitações do projeto do multiculturalismo ao apostar nas acomodações e no tratamento mais ornamental da diferença, muitas vezes instrumental ao próprio capitalismo e desatento à historicidade que envolveu a construção da inferiorização de grupos por meio de epistemologias, signos e símbolos.

A interculturalidade fortalece mecanismos mais atentos à historicidade dos conflitos sociais e aos processos políticos que embasam a etnicidade e a afirmação identitária. A sua construção não é um processo fácil, mas vem sendo buscada pelo chamado novo constitucionalismo latino-americano, que alude às Constituições da Bolívia e do Equador, e pode ser extraída da atuação de alguns tribunais constitucionais do Sul Global.

Diferenciando-se da proposta multicultural, que avaliza uma mera acomodação da diferença e pressupõe uma certa superioridade de valores hegemônicos, sobretudo os de natureza liberal, a interculturalidade vislumbra caminhos mais dialógicos e está preocupada com a crítica às colonialidades ainda muito presentes na estigmatização e na inferiorização dos indígenas, notadamente as do ser, do saber e do poder.

No Brasil, a história oficial procurou silenciar a visão de povos indígenas. A construção da interculturalidade deve enfrentar as marcas e os destinos dos vencidos e apontar caminhos diferenciados na participação, com instrumentos que levem em conta os anseios dos povos indígenas em toda esta complexidade. Os institutos jurídicos devem ser repensados de modo a carregarem esta polissemia na resolução de conflitos, e interpretações unilaterais devem ser tidas como violadoras desse diálogo intercultural. A compreensão da trajetória constitucional pode ser útil a esse projeto.

1. A Constituinte de 1987/1988: contra um velho discurso, uma nova mobilização

Uma das principais razões que motivam o apego à defesa intransigente da atual Constituição é o seu processo de elaboração. A Assembleia Constituinte de 1987/1988 padeceu de muitos defeitos e imperfeições, mas não se pode negar que foi o momento constitucional[13] mais importante de nossa história. Até 1988, o Brasil nunca havia passado por um debate com tanta participação em uma Assembleia Constituinte, nem tinha assistido a um envolvimento tão grande de setores marginalizados de sua população nos debates que culminariam na Constituição de 1988.

Embora já tenham transcorrido três décadas desde então, boa parte dos atores sociais que se envolveram no processo de elaboração da Constituição seguem ativos, atuando em postos importantes dos poderes da República ou militando na sociedade civil. Por essa razão, revisitar o momento da elaboração da lei fundamental brasileira é mais do que um exercício de interpretação histórica, pois não só permite compreender os interesses envolvidos, os consensos, os avanços e os retrocessos na nossa trajetória democrática, mas também as disputas atuais de significados com vistas a superar, pela mutação constitucional ou por tentativas de reforma, os compromissos à época estabelecidos.

No caso dos povos indígenas, muitos dos temas discutidos nos vinte meses da Assembleia Constituinte continuam sendo aventados no presente, como o tratamento dos índios como potenciais adversários da soberania nacional e adversários do desenvolvimento econômico. A afirmação identitária que a Constituição propiciou faria emergir, nos últimos trinta anos, uma contestação ainda maior à demarcação de terras indígenas, e as forças conservadoras passariam a dispensar ao tema uma contrariedade similar à oposição que destinaram à reforma agrária em 1988, retomando, pela interpretação constitucional, temas derrotados nos debates que envolveram a formulação do texto.

Ao longo dos anos 1970, enquanto o governo ditatorial ia do auge econômico ao ocaso político, cresciam os episódios de deslocamento forçado e as mortes de indígenas para a realização de obras de infraestrutura e realização de projetos de colonização[14]. À medida que o governo autoritário se enfraquecia, a crescente abertura política permitia a mobilização da sociedade civil e dos próprios indígenas em contestação ao projeto nacional destinado àqueles povos[15]. No fim da década, a causa indígena ganhou força, e os pleitos de reconhecimento dos direitos daqueles povos às suas terras passaram a ter o apoio de diversos setores sociais.

Houve várias movimentações no período que convergiram para a formação de uma organização nacional indígena. Aqueles anos permitiram que, a despeito do regime tutelar, os indígenas de todo o país partilhassem experiências e pensassem em estratégias comuns de mobilização[16]. A realização de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para analisar as violações de direitos dos índios, em 1977, e a mobilização contra a chamada “falsa emancipação”[17] foram momentos que impulsionaram esse processo.

A campanha de resistência à emancipação conferiu visibilidade à causa indígena e gerou a criação e o fortalecimento de entidades, como a Operação Anchieta, o Centro de Trabalho Indigenista (CTI) e a Comissão Pró-Índio, de São Paulo. A mobilização gerou diversos atos de repúdio e saiu-se vitoriosa, e o governo desistiu momentaneamente do projeto. A aglutinação dessas forças impulsionou o chamado processo de retomada de terras por etnias como os Xavante (MT), Xerente (TO), Kaingang e Guarani (PR). No Nordeste, os Xocó (SE), por exemplo, lutavam contra ameaças de remoção por particulares e por atores governamentais[18].

Os índios finalmente passavam a ter alguma voz e veicular, por meio de lideranças[19], as suas demandas, denunciando os problemas que vivenciavam. Cobravam ação do Estado e recusavam a postura paternalista da FUNAI. Em 1979, foi criada a União das Nações Indígenas (UNI), que buscava congregar as diversas etnias em um movimento nacional. O nome “nações” indígenas despertou forte oposição do governo militar, que se negou a conferir o registro de personalidade jurídica à organização, pois interpretava o termo como um ataque à soberania nacional[20]. Não só este termo, mas também as ideias de “territórios” e “povos” passariam a ser frequentemente refutadas, pois indicavam, segundo os opositores, uma afronta à soberania nacional.

A despeito da visibilidade crescente das violações até então praticadas, a ditadura insistia em criar possibilidades de exploração econômica em terras indígenas. O Decreto nº 88.985, de 10 de novembro de 1983, editado durante o governo Figueiredo, a fim de regulamentar dispositivos do Estatuto do Índio[21], previu a possibilidade de concessão de autorizações de pesquisa e concessões de lavra a empresas privadas nacionais[22].

A resistência ganharia peso ao longo da década de 80, unindo-se a um movimento amplo que congregava diversas forças pela volta da democracia ao país. Do outro lado, os militares e as classes dominantes almejavam uma abertura política lenta e sem grandes mudanças estruturais nas condições da população. A crise do regime não impediu que a classe dirigente conduzisse a transição para a democracia, como demonstraram a derrota imposta ao movimento das “Diretas já”[23] e a atribuição de poderes constituintes ao Congresso Nacional, sem a constituição de uma Assembleia Constituinte exclusiva (Emenda Constitucional nº 26, de 27 de novembro de 1985) para a elaboração da nova Constituição[24].

O fortalecimento dos movimentos populares mostrava, porém, que a sociedade civil tentava organizar-se e interferir no processo político. Havia um verdadeiro momento constitucional, e os grupos sociais estavam nas ruas para influenciar nos rumos da Constituição e do país. A luta popular recusava a imposição de uma “transição com transação” e convergia para a construção de um texto constitucional que enfrentasse os problemas mais graves do país. Sobre isso, escreveu Florestan Fernandes, em artigo na Folha de São Paulo em 28/3/1985:

Não se trata de transferir para dentro as ‘melhores constituições do mundo’; nem de impor ao Brasil o ônus de possuir a Constituição mais adiantada e completa da nossa era. Mas de estabelecer uma carta constitucional para um país prolongada e profundamente destruído de uma sociedade civil civilizada (primeiro, por causa da escravidão; em seguida, por causa das sequelas da escravidão, da dominação externa, do subdesenvolvimento e do tradicionalismo mandonista e elitista). O impulso de associar a elaboração dos princípios dessa carta fundamental às condições concretas de existência e reprodução da família pobre, do trabalho operário, do movimento sindical, da violentação do trabalhador agrícola, do menor, do indígena, do negro e da mulher, às carências e frustrações que tornam a miséria um universal e a insegurança uma norma, aparece como o nódulo de uma revolução democrática irreversível e permanente. Se ele vingar, o futuro imediato será diverso do presente e o passado perderá o fulcro político de sua repetição incessante[25].

 Atentas a este processo, e a despeito da sub-representação que as minorias viriam a ter na Constituinte e de não haver um parlamentar indígena[26], as entidades elaboraram em 1986 um programa mínimo, que continha cinco pontos a serem inseridos na Constituição. O texto propunha o reconhecimento de seus direitos territoriais, qualificados como habitat, com primazia sobre outros “por ter origem na ocupação indígena, que é anterior à chegada dos europeus.”, o que aludia à teoria do indigenato. Defendiam a demarcação, mas já manifestavam preocupação com a efetividade das medidas, não bastando o reconhecimento dos direitos:

Conforme a Lei nº 6.001/73, terminou em 21 de dezembro de 1978 o prazo para a demarcação de todas as terras indígenas. Hoje, apenas 1/3 das terras está demarcado. Por isso, é necessário colocar esta questão na nova Constituição Brasileira. Contudo, só a demarcação não basta: é preciso que as terras, uma vez demarcadas, sejam efetivamente garantidas, para evitar as invasões constantes que até hoje ocorrem[27].

Pleiteavam ainda o usufruto exclusivo das riquezas naturais existentes no solo e subsolo dos seus territórios e, aliados aos movimentos camponeses, não deixavam de clamar pelo reassentamento, em condições dignas e justas, dos posseiros pobres que se encontravam em terras indígenas. Não se extrai do programa qualquer pleito de cunho separatista. No mesmo sentido, o PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro), partido que sucedeu o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) e era o mais importante do país, vindo a ter 306 parlamentares na Constituinte[28], aprovou em seu I Congresso Nacional, em 27 de agosto de 1986, uma plataforma favorável aos direitos indígenas, pelo reconhecimento do direito a viver segundo a sua própria cultura e pelo respeito do Estado a suas formas próprias de organização social e política. O documento ressaltava a necessidade de “abandonar a perspectiva assimilacionista da política indigenista oficial” e garantir o direito à terra, em uma definição que também remete à ideia de habitat[29].

A movimentação de indígenas e entidades era vista com preocupação por alguns setores, que apontavam os chamados perigos da demarcação de terras para a segurança das fronteiras e para o desenvolvimento da região amazônica. Entre os opositores principais à causa indígena estavam as Forças Armadas e os representantes dos interesses das empresas mineradoras. O Conselho de Segurança Nacional (CSN), órgão responsável pela assessoria da Presidência da República na formulação e política de segurança nacional[30], produziu documentos sigilosos em que externalizava preocupação com demarcação de terras em faixa de fronteira e sua influência negativa para o desenvolvimento da região amazônica. Propunha a identificação de terras indígenas por meio de comissão composta por vários órgãos e a criação de uma figura jurídica própria (a “colônia”) para as comunidades tidas como aculturadas[31].

A Constituição foi objeto de constantes disputas, a começar pela forma de elaboração. Com a rejeição da proposta de elaboração por uma comissão de notáveis (comissão Afonso Arinos[32]), a Constituição foi construída procedimentalmente a partir da elaboração inicial em subcomissões e comissões temáticas, até chegar ao projeto final[33].

A maioria das questões relacionadas aos povos indígenas foram discutidas na subcomissão de negros, populações indígenas, deficientes e minorias[34], que realizou audiência pública sobre o tema e fez visita à Aldeia Kayapó, na Reserva Gorotiré, no sul do Pará. Constaram do anteprojeto do relator da subcomissão previsões como o caráter pluriétnico da sociedade brasileira, a garantia de direitos originários e organização social própria, a posse permanente das terras ocupadas, com a nulidade dos títulos de particulares incidentes sobre elas, e o usufruto exclusivo das riquezas naturais e minerais do solo e do subsolo[35].

Boa parte das propostas de emenda ao anteprojeto do relator contestava a previsão do caráter pluriétnico da sociedade brasileira, a inclusão do subsolo no usufuruto e a conceituação de terra indígena, que era considerada demasiadamente ampla. Por exemplo, o deputado federal Nilson Gibson (PMDB-PE)[36] propôs várias emendas e questionou a previsão da plurietnicidade, sob o argumento de que esse conceito afrontava a harmonia entre as raças e não contribuía para a desejável integração nacional[37].

O anteprojeto final da subcomissão[38], remetido à comissão de ordem social, manteve a previsão do caráter pluriétnico da sociedade brasileira e classificou as terras ocupadas pelos índios como aquelas por eles habitadas, as utilizadas para suas atividades produtivas, e as áreas necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições, incluídas as necessárias para preservação do meio ambiente e do seu patrimônio cultural (art. 11, § 1º). O texto previa o caráter inalienável, imprescritível e indisponível das terras, vedada outra destinação que não fosse a posse e usufruto dos próprios índios (art. 11, § 2º). Manteve-se, ainda, a garantia do usufruto do subsolo.

Após o encaminhamento do anteprojeto à comissão de ordem social, foi novamente contestado o usufruto do subsolo, por suposta afronta à isonomia em relação aos demais brasileiros, e houve novas críticas à conceituação “ampla” de terras indígenas e à previsão de nulidade de títulos incidentes sobre elas. Boa parte das propostas de emendas era de cunho integracionista[39], sendo que uma delas, do Deputado José Lourenço Morais da Silva (PFL-BA), preconizava um tratamento distinto aos indígenas conforme o estágio de desenvolvimento em que se encontravam e defendia a integração à comunhão nacional[40]. Ao final, porém, prevaleceu na comissão de ordem social um texto não assimilacionista que, embora sem a previsão de “direitos originários”, resguardava a autonomia dos índios e ainda permitia o usufruto do subsolo[41].

Na comissão de sistematização, novas resistências foram apresentadas, porém prevaleceu, em linhas gerais, quando da apresentação do primeiro anteprojeto, no início de julho de 1987, as mesmas propostas, inclusive com o restabelecimento da expressão “direitos originários”. A partir de então, porém, passou a existir uma forte pressão pela mudança do texto.

O CSN monitorava os trabalhos da Constituinte e via na comissão de sistematização o único caminho para alterar previsões sobre temas como a extensão das funções das Forças Armadas, matéria indígena e energia nuclear. O projeto era criticado por contrariar o “espírito de integração preconizado pela política indigenista nacional” e “conferir privilégios que contrariam a unidade nacional (nações indígenas, etnia) e a igualdade de direitos entre brasileiros (subsolo)”[42]. Iniciava-se uma articulação mais incisiva para a alteração do texto, que ganharia repercussão midiática. Em 09 de agosto de 1987, o jornal “O Estado de São Paulo” estampou a seguinte capa: “Os índios na nova Constituição – a conspiração contra o Brasil[43]”. No texto da matéria, menciona-se um manifesto subscrito por 47 mil austríacos, que havia sido encaminhado à Assembleia, o qual representaria a ameaça de restrição da soberania em terras indígenas e a não exploração de riquezas minerais nessas áreas[44].

A ofensiva foi bem sucedida e provocou, de imediato, grandes mudanças no texto, que passou a estabelecer, já no primeiro projeto substitutivo da Comissão de Sistematização, elaborado pelo relator Bernardo Cabral, que as terras indígenas seriam apenas aquelas de posse imemorial dos índios onde se achassem permanentemente localizados. O texto excluía o usufruto dos recursos do solo e afastava o reconhecimento de tais direitos aos índios com “elevado estágio de aculturação”, que mantivessem uma convivência constante com a sociedade nacional e que não habitassem terras indígenas[45]:

Art. 302 – São reconhecidos aos índios seus direitos originários sobre as terras de posse imemorial onde se acham permanentemente localizados, sua organização social, seus usos, costumes, línguas, crenças e tradição, competindo a União a proteção desses bens.

Art. 303 – As terras de posse imemorial dos índios são destinadas à sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas naturais do solo, dos recursos fluviais e de todas as utilidades nela existentes.

  • 1º – São terras de posse imemorial onde se acham permanentemente localizados os índios aquelas destinadas à sua habitação efetiva, às suas atividades produtivas e as necessárias à sua preservação cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

Art. 305 – Os direitos previstos nestes capítulo não se aplicam aos índios com elevado estágio de aculturação, que mantenham uma convivência constante com a sociedade nacional e que não habitem terras indígenas. (sem grifos no original)

O texto significava claro retrocesso em relação ao debate que vinha sendo realizado sobre o tema. A previsão de posse imemorial em áreas onde os indígenas estavam permanentemente localizados assemelhava-se aos textos de constituições anteriores a 1967, levando à verificação de presença física quando da promulgação da Constituição. Mais grave ainda era o art. 305, que buscava excluir a proteção constitucional dos indígenas tidos como aculturados, promovendo uma distinção que impediria a reivindicação de terras por indígenas assim classificados. Buscava-se na Constituinte o que o projeto de “emancipação” não havia conquistado.

Note-se que aquela era a primeira vez em que a expressão “posse imemorial” aparecia em um projeto na Assembleia Constituinte. O termo foi utilizado para restringir a interpretação do conceito de “terras indígenas”, e não para ampliá-lo. Para não pairar dúvidas acerca de seu caráter limitador, ele vinha acompanhado da expressão “onde se acham permanentemente localizados”, retomando a dicção dos textos constitucionais de 1934, 1937 e 1946.

A expressão “posse imemorial” remete a uma ocupação pré-existente, dotada de continuidade até o dia da promulgação da Constituição, daí a complementação pela ideia de “localização permanente”. Com esse texto, atendia-se aos grupos de interesse que pretendiam tornar limitado o alcance do dispositivo constitucional a situações consolidadas em que os indígenas haviam conseguido manter sua ocupação. Curiosamente, no entanto, mesmo com a sua retirada do texto final, a expressão continuaria a ser bastante invocada, mas passaria a ser associada a um sentido oposto ao do debate constituinte, desta vez vinculando-a ao temor da chamada “síndrome de Copabacana”, como se ela supostamente autorizasse a demarcação de terras indígenas onde houvesse ocorrido ocupação indígena em qualquer tempo da história brasileira.

Além do retrocesso quanto à caracterização das terras, o projeto substitutivo de Bernardo Cabral adotava uma clara visão integracionista ao prever a não aplicação do dispositivo a “índios com elevado estágio de aculturação”. Com essa caracterização essencialista sobre os índios, o projeto acenava para a ilegitimidade de qualquer pleito formulado por grupo cujas características se assemelhassem às dos grupos majoritários da sociedade nacional, como língua, vestimentas e práticas[46], afastando qualquer resquício da autonomia enfatizada nos projetos anteriores. Completava-se, assim, a empreitada para restringir o alcance do texto.

Como reação à ofensiva e ao projeto substitutivo do relator, os indígenas e entidades apresentaram emendas populares[47]. Em defesa de uma delas, Ailton Krenak fez, em 4 de setembro de 1987, um discurso histórico na Constituinte, rebatendo certas visões, como as de que os índios seriam separatistas ou que impediriam o desenvolvimento:

O povo indígena tem um jeito de pensar, tem um jeito de viver, tem condições fundamentais para a sua existência e para a manifestação da sua tradição, da sua vida, da sua cultura, que não coloca em risco e nunca colocou em risco a existência, sequer, dos animais que vivem ao redor das áreas indígenas, quanto mais de outros seres humanos. Creio que nenhum dos srs. poderia jamais apontar atos, atitudes da gente indígena do Brasil que colocaram em risco, seja a vida, seja o patrimônio de qualquer pessoa, de qualquer grupo humano neste país. (…)[48].

Não obstante, a previsão da “posse imemorial” em terras de localização permanente e a exclusão de direitos aos índios “aculturados” foram mantidas no primeiro[49] e no segundo[50] substitutivos da comissão de sistematização. O texto manteve-se idêntico até a conversão do substitutivo no Projeto de Constituição “A”, apresentado em 18 de novembro de 1987[51].  O projeto era francamente desfavorável aos povos indígenas, agradando aos grupos de interesse que tinham um lobby mais poderoso na Constituinte. Isso forçou os indígenas a intensificarem a pressão sobre os parlamentares, com a organização de caravanas a Brasília para rechaçar os termos do projeto[52].

  1. A consolidação da redação do art. 231

A reviravolta provocada pela insurreição do chamado “centrão”, um grupo de parlamentares de inclinação conservadora que clamava por mais participação nas deliberações[53], alterou os rumos da Constituinte e o formato das deliberações, o que permitiu a construção de um novo texto para os povos indígenas[54]. Havia uma constante necessidade de acordos entre campos ideológicos opostos, com reflexo nos textos, que podiam conter previsões genéricas ou ambiguidades.

Temas como propriedade e reforma agrária[55] não geravam acordos, o que levava aos   chamados “buracos negros”, consistentes em impasses quanto a temas que não obtinham a aprovação da maioria regimental[56]. A preocupação dos constituintes conservadores com temas fundiários não atingia os direitos territoriais indígenas com a mesma intensidade. Como se viu, as Forças Armadas e as empresas mineradoras eram os grupos de interesse que dispensavam a maior atenção ao regime jurídico de terras indígenas. É possível imaginar também que o real impacto das transformações decorrentes da substituição do regime tutelar não era adequadamente percebido por certos setores, dada a consolidação do paradigma assimilacionista e a naturalização de um cenário de privações de direitos territoriais aos indígenas que fazia os grandes proprietários não despertarem para as demandas que adviriam do novo texto.

O menor acirramento no debate não significava, obviamente, que forças conservadoras e o próprio “centrão” não se posicionassem ou não podiam vislumbrar, ainda que sem total clareza sobre os efeitos da afirmação étnica, as consequências que o capítulo que se gestava poderia acarretar. O tema, contudo, não gerava o mesmo tipo de oposição aguerrida que a reforma agrária havia proporcionado. A explicação que se pode vislumbrar é a de que, na visão desses setores, o reconhecimento de terras indígenas, embora não desejado, não provocaria grandes perturbações na concentração fundiária, pois havia poucos grupos indígenas (estimava-se a população à época em 220 mil indígenas) e existia uma compreensão de que o indígena tido como “aculturado” não pleitearia – ou seria impedido de pleitear – terras. Por isso, pode-se dizer que a oposição mais aguerrida aos direitos territoriais indígenas não era dos latifundiários, mas de setores igualmente fortes, como as Forças Armadas e as mineradoras, o que repercutia em temas como soberania nacional e defesa das fronteiras, com implicações sobre termos como “terra”, “território” e “nação”.

Tampouco se pode falar em relação não conflituosa com os índios, pois houve episódios de enfrentamentos e intimidações aos grupos indígenas no campo[57]. A ofensiva existente não era nada desprezível, tendo recebido a capa de um dos principais jornais do país. Como resposta, as lideranças indígenas procuraram participar ativamente das discussões, enfatizando a dívida histórica do país. Em discurso, o cacique Kayapó Raoni Mentuktire reforçou o apelo pela mudança do texto contido no Projeto “A”[58]:

 Toda a terra do meu povo tá ocupada. Lá tem garimpo, tem madeireira, tem fazendeiro que tava mexendo na terra do meu povo dentro da área. Eu tou explicando pra vocês, pra vocês lembrar minhas palavras. Vocês tão pensando que avó seu nasceu primeiro aqui? Vocês tão pensando isso? Nós nasceu primeiro, aqui, no Brasil inteiro. (…) Vocês têm que pensar, vocês têm que respeitar meu povo. Meu povo estava morrendo na mão do seu povo. Eu não aceito.

Com a colocação em discussão de um novo projeto integral, a partir de pressão do “centrão”, os textos passariam a ser votados novamente em um Projeto “B” da Constituição, independentemente do teor anteriormente apresentado. Os capítulos eram discutidos separadamente, e conseguiu-se obter um acordo em relação ao capítulo dos índios. Em 1º de junho, o capítulo foi votado, com 497 votos favoráveis, 5 contrários e 10 abstenções[59]. O projeto final contemplou a retirada das previsões “posse imemorial” e “localização permanente”, bem como previu o conceito de “terras tradicionalmente ocupadas”, além de ter afastado as distinções para os indígenas “aculturados”. O uso do subsolo não foi garantido. Sua redação manteve-se praticamente idêntica até o texto final (projetos “C” e “D”), chegando à redação final do art. 231[60].

Na votação do texto final em segundo turno, os indígenas ainda lograriam mais uma vitória: a supressão da previsão de que as terras de extintos aldeamentos indígenas seriam bens dos Estados (art. 28 do Projeto “A”[61]). A proposta tentava fazer prevalecer o antigo entendimento de que os aldeamentos haviam sido apropriados pelo Estado, o qual já havia sido rechaçado pelo STF em várias decisões.

3. A leitura intercultural da Constituição de 1988 como mecanismo de ativação de novas memórias

 Durante séculos da história do Brasil, a construção de certos regimes de memória sobre os povos indígenas carregavam consigo os esquecimentos e os silenciamentos que fizeram desses grupos meros coadjuvantes da história oficial, mediante representações idealizadas e um tratamento inferiorizante.

Apesar da imposição de violências materiais e simbólicas, os indígenas, mesmo reduzidos a uma cidadania de segunda classe, resistiram e estabeleceram suas estratégias adaptativas[62], procurando amoldar-se e reiventar-se, em constantes negociações com os colonialismos de cada época. Os genocídios não foram plenos e, apesar do aparato instrumental do campo jurídico, a estratégia de imiscuição na sociedade nacional ou branqueamento da população brasileira não teve pleno êxito.

 Com o “problema” indígena em evidência, a perspectiva positivista levou-nos ao regime tutelar, em que o Estado assume um papel mais incisivo no tratamento da temática, oferecendo-lhe referencial constitucional. A partir de então, as espoliações do passado, inclusive pela via legal, começam a ser revisitadas e, em muitos casos, chanceladas.

Nesse contexto, a teoria do indigenato demonstrou que já era possível extrair da cadeia legislativa colonial um regime protetivo das terras dos índios, o qual foi mantido pela lei que instituiu a propriedade privada no país. Havia, desde o período colonial, um fundamento normativo para a proteção dos direitos dos índios às suas terras, que seria reforçado pela atribuição de titularidade dessas terras à União e pela negação da roupagem como “terra devoluta”.

O paradigma assimilacionista, porém, ainda estava vigente, o que subordinava o interesse dos povos indígenas a interesses nacionais e a visões hegemônicas. A realidade começa a mudar quando os índios entabulam mobilziações e buscam os seus aliados, culminando na participação ativa para a elaboração da Constituição de 1988.

À guisa de uma análise mais geral, é possível destacar a importância da Constituição de 1988 e o giro que ela provocou ao tocar em pontos sensíveis à formação nacional e não fechar os olhos à ferida colonial. O caráter compromissório[63] da carta, fruto de mobilizações em sentidos opostos, não impediu a aprovação de um texto inovador, que assegura o pluralismo e a autonomia dos povos indígenas.

Comparada com os textos constitucionais anteriores, a Constituição de 1988 foi verdadeiramente transformadora. Fazendo uma leitura sistêmica do texto, verifica-se a consagração do caráter plural da sociedade brasileira e o sepultamento do paradigma assimilacionista antes vigente. A nova ordem constitucional repudia o racismo e enfatiza a autonomia desses povos, com respeito a seus modos de vida, costumes, tradições e mediante o reconhecimento das terras que tradicionalmente ocupam.

O regime tutelar foi abolido, assim como a hierarquização e homogeneização de grupos. A Constituição de 1988 não dá margem a uma perspectiva que veja no destino dos indígenas a obrigatória e inexorável “paulatina integração à comunhão nacional”. Rejeita-se a inferiorização para colocar em pé de igualdade os modos próprios de vida de cada grupo ou indivíduo.

Nesse contexto, a leitura da própria Constituição deve estar atenta a uma forma de pensar que encare os institutos jurídicos em diálogo com as percepções e cosmovisões dos grupos indígenas. Como afirma Souza Filho, a Constituição reconhece como legítima uma ordem que ela mesma desconhece, uma vez que a organização social dos povos indígenas se baseia nos usos, costumes e tradições[64]. Diante disso, a lei não é capaz de enquadrar aquela realidade dinâmica ou mesmo dar conta, sob parâmetros já estabelecidos (social e juridicamente), dos novos paradigmas apresentados. É necessário também uma outra leitura sobre os institutos já existentes, como propriedade, usufruto, terras e bens públicos, que extrapole os limites ocidentais e absorva uma perspectiva intercultural.

Cabe ressaltar, por oportuno, que a ausência de previsão do caráter pluriétnico da sociedade brasileira no texto da Constituição, que chegou a constar de projetos na Assembleia Constituinte, não afasta o reconhecimento da plurietnicidade no país, pois os diversos dispositivos do texto apontam para isso, a começar pelo fundamentos e objetivos da República Federativa do Brasil, que relacionam dignidade da pessoa humana, pluralismo político e a superação das desigualdades e da marginalização. O artigo 216 detalha essa realidade, ao tratar dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, e o art. 231 consagra a distintividade dos povos indígenas. Nesse sentido, existe um vínculo intrínseco dos direitos territoriais com a etnicidade – em razão do caráter existencial da terra – e com o pluralismo político – em virtude do reconhecimento de diferentes formas de relação com a terra. Dessa forma, é viável afirmar que, a despeito da ausência de previsão expressa, a sociedade brasileira é pluriétnica, nos termos da Constituição de 1988.

Apesar de reconhecer o fato do pluralismo e da plurietnicidade, o texto constitucional não contém as cosmovisões indígenas nem prevê qualquer tipo de deliberação que conte com uma participação específica dos povos tradicionais. Não há previsão diferenciada sobre as relações com a natureza ou a valorização dos mecanismos próprios de deliberação dos índios. Sem embargo, é necessário que a leitura que esses grupos fazem da Constituição seja sempre levada em consideração, de forma a permitir uma efetiva ecologia dos saberes e a tradução intercultural[65].

Pode-se dizer, assim, que o texto constitucional atende, na sua literalidade, ao anseio liberal multicultural de assegurar proteções externas[66] aos direitos de grupos, o que o faz, por exemplo, em relação às suas terras, a seus modos de vida e à educação. Incorporam-se assim certos direitos especiais a esses povos, que são reconhecidos expressamente e servem de diretriz à interpretação da legislação infraconstitucional. Não houve, porém, a internalização de cosmovisões indígenas – como constou de Constituições posteriores de outros países, que desenvolveram um diálogo mais profícuo com esses povos.

A despeito dessas características do texto, que refletem a conjuntura da época e a ainda incipente mobilização do movimento indígena, a interpretação da Constituição pode conduzir-nos  para além do multiculturalismo. O fato de o texto em si não conter expressamente a mesma abertura à interculturalidade de outras Constituições latino-americanas não obstrui, de modo algum, o exercício de uma interpretação intercultural. O compromisso constitucional não se omite no dever de enfrentamento das colonialidades do ser, do saber e do poder, nem ignora o seu papel transformador.

Deve-se assinalar, ainda, que a Constituição de 1988, ao assegurar os direitos indígenas por todo o texto e quebrar hierarquias entre seres e saberes, constitui, de certa forma, um caminho de transformação sem volta. Não se pretende com esta afirmação engessar a interpretação constitucional, mas apenas observar que certas visões, de caráter assimilacionista, não encontram respaldo na lei fundamental e não podem acarretar a mudança do texto constitucional, em razão da própria limitação material ao poder de reforma. Depreende-se, portanto, que os índios não podem ser mais tratados como seres inferiores, incapazes, não civilizados, possuidores de saberes menos importantes ou pessoas obrigadas a encararem a vida da maneira que os brancos enxergam. Essa não hierarquização vai além do discurso, devendo abranger toda e qualquer questão, inclusive as próprias formas de interpretar a Constituição. As visões que coloquem outros bens jurídicos em patamar superior aos interesses indígenas ou que confiram menor status aos saberes, práticas, seres e modos de vida dos indígenas são, além de racistas, inconstitucionais.

Ainda que não seja um documento profundo quanto à recusa expressa do eurocentrismo e à formulação de alternativas, todo o conjunto de compromissos que a Constituição carrega indica que ela abriu as portas para a descolonização e para a interculturalidade. Estas, todavia, não vão desabrochar pacificamente, sobretudo se for levado em conta que as instituições continuaram forjadas sob a ordem constitucional anterior. Afinal, em muitos espaços e em diversos temas, a leitura da Constituição continuou sendo feita como se nada houvesse ocorrido. Voluntária ou involuntariamente, muitos intérpretes ainda insistem em ver uma linha de continuidade no tratamento dos direitos indígenas desde a ordem constitucional autoritária, fenômeno também observados em outras matérias caras à concretização de direitos fundamentais. Na matéria indígena, esse comportamento favorece o esvaziamento das conquistas positivadas na Constituição por meio de uma interpretação com forte carga assimilacionista.

Conclusão

Sabe-se que o texto normativo não é capaz de assegurar, sozinho, a efetivação dos direitos que enuncia. As brechas na colonialidade e a desobediência epistêmica[67] devem, pois, ser escancaradas, fazendo florescer o caráter transformador do projeto de 1988. A leitura sistemática da Constituição, associada ao capítulo específico destinado aos direitos indígenas, é dirigente de um enfrentamento do passado colonial e da superação de suas feridas, cabendo ao intérprete extrair a máxima efetividade das normas constitucionais a partir de uma postura de ruptura quanto à naturalização do racismo, do genocídio e da inferiorização dos índios na sociedade brasileira. Esse agir implica revisitar o passado não com o fim de estabilizar uma realidade desigual em nome de uma seletiva segurança jurídica, mas para promover os objetivos enunciados na Constituição e pensar criticamente as relações de poder envolvidas.

Na qualidade de sujeitos de direito coletivos, plenamente capazes e não inferiorizados, os índios devem ser partícipes desse processo, sobretudo nas matérias que lhes afetam. À hierarquização de bens jurídicos em detrimento de seus direitos fundamentais, ainda tão frequente, deve ser contraposta uma interpretação que esteja permanentemente atenta às compreensões desses grupos quanto a todo e qualquer conceito expresso no texto, bem como a seus saberes, promovendo-se a valorização de aspectos cognitivos, estéticos, afetivos, inclusive mediante a descolonização dos sentidos. Neste projeto constitucional, impõe-se a recuperação de memórias reprimidas ou esquecidas, para a valorização das culturas indígenas[68].

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Notas de Rodapé:

[1]    Procurador da República, mestre em direito público pela UERJ. Coordenador do Grupo Trabalho Povos Indígenas e Regime Militar e membro do Grupo de Trabalho Demarcação de Terras Indígenas, ambos da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal.

[2]    NORA, Pierre. Entre memória e história: A problemática dos lugares. Tradução de Yara Aun Khoury. Proj. História, São Paulo, 10, jul/dez, 1993, p. 07-28.

[3]    OLIVEIRA, João Pacheco de. As mortes do indígena no império do Brasil: o indianismo, a formação da nacionalidade e seus esquecimentos. In: ______. O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de alteridades. Rio de Janeiro: ContraCapa, 2016, p. 75-116.

[4]    Ibid., p. 7-44.

[5]    Em seus relatos de viagem, a atenção de Colombo está voltada à falta de vestimentas, o que seria, segundo Todorov, um sinal da falta de propriedades culturais, o que os associaria ao paraíso bíblico, pois os homens só teriam passado a vestir-se após a expulsão do paraíso, quando a identidade cultural se inicia. Cf. TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. Tradução de Beatriz Perrone Moi. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, p. 20. Veja-se também: HOLANDA, Sérgio Buarque. Visão do Paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. 3ª reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

[6]    O regimento contém orientações distintas quanto aos tratamentos a serem dispensados aos Tupinambás, tidos como inimigos, e aos Tupiniquins, vistos como aliados. Os primeiros devem ter suas aldeias e povoações destrtruídas e uma parte deve ser morta ou escravizada para dar exemplo e castigo a todos. Já os Tupiniquins, que são inimigos dos Tupinambás, devem receber auxílio e até terras: “e alguns dos ditos gentios quiserem ficar na terra da dita Bahia, dar-lhe-eis terra para sua vivenda, de que sejam contentes, como vos bem parecer”. Disponível em: <http://lemad.fflch.usp.br/sites/lemad.fflch.usp.br/files/1.3._Regimento_que_levou_Tom__de_Souza_0.pdf> Acesso em 06 ago. 2017.

[7]    Cf. BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 49ª ed. São Paulo: Cultrix, 2013, p. 96-97.

[8]    A recorrência do tema da “morte” dos indígenas simbolizava a inexistência ou insignificância contemporânea, podendo ser tratada de forma gloriosa, como na poesia de Gonçalves Dias, trágica, conforme “O Guarani”, de José de Alencar, ou vegetal, como adaptação simbiótica para a construção de um ser novo, como ocorre em “Iracema”, de José de Alencar”. Os seguintes trechos do poema “I-Juca Pirama” demonstram a perspectiva lírica do nativismo de Gonçalves Dias: “Meu canto de morte, Guerreiros, ouvi: / Sou filho das selvas,/ Nas selvas cresci;/ Guerreiros, descendo/ Da tribo tupi. / Da tribo pujante,/ Que agora anda errante/ Por fado inconstante,/ Guerreiros, nasci;/ Sou bravo, sou forte,/
Sou filho do Norte; Meu canto de morte,/ Guerreiros, ouvi”. A própria expressão “Juca Pirama” significa, em tupi, “aquele que vai morrer”. Sobre a influência do romantismo indianista na construção da imagem do indígena no Brasil, veja-se: OLIVEIRA, João Pacheco de. As mortes do indígena no império do Brasil: O Indianismo, a formação da Nacionalidade e seus esquecimentos. In: _______. O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de alteridades. Rio de Janeiro: ContraCapa, 2016.

[9]    A designação de lugares, grupos políticos e periódicos passa a remeter a nomes indígenas. Como exemplo, pode-se citar a cidade de Niterói, antes Praia Grande, que ganha este nome de origem tupi (“água que se esconde”) em 1834. Outro exemplo é o jornal produzido por José Bonifácio de Andrada e Silva durante os debates da constituinte de 1823, que se chamava “O Tamoio”. Nesse sentido, veja-se: SPOSITO, Fernanda. Nem cidadãos, nem brasileiros: Indígenas na formação do Estado nacional brasileiro e conflitos na província de São Paulo (1822-1845). São Paulo: Alameda, 2012, p. 42.

[10]  Este conceito foi cunhado por Boaventura de Sousa Santos para mostrar como  aquilo que aparentemente não existe corresponde, em verdade, a algo que é ativamente produzido como não existente. Isso ajuda a entender as formas como o direito orienta e ordena as relações sociais.O sociólogo português aponta cinco lógicas que compreendem a não ausência: o ignorante, o atrasado, o inferior, o local ou particular e o improdutivo ou estéril. O ignorante é fruto da monocultura do saber, em que a ciência moderna e a alta cultura são critérios únicos de verdade e de qualidade estética, de modo que aquilo que não é reconhecido ou legitimado pelo cânon é declarado inexistente. O atrasado liga-se à monocultura do tempo linear, segundo a qual a história tem sentido e direção únicos e conhecidos, rumo ao progresso e à modernização. Assim, é atrasado tudo aquilo que se mostra assimétrico em relação a este avanço. A inferioridade relaciona-se à lógica da classificação social, mediante a naturalização das diferenças, já mencionada, em que a relação de dominação é consequência e não a causa da hierarquia social. Só importa o que é universal e global, com precedência sobre todas as outras realidades que dependem de contextos e que, por isso, são consideradas particulares. O improdutivo atende à monocultura dos critérios de produtividade capitalista, logo aquilo que não maximiza a geração de lucro – seja oriundo da natureza, seja oriundo do trabalho humano – não existe. No caso do trabalho, há improdutividade; no caso da natureza, esterilidade. Cf. SANTOS, Boaventura de Sousa. Epistemologías del Sur. Revista Utopía y Praxis Latinoamericana, Año 16, n. 54, jul/set, 2011, p. 32-34.

[11]  Em linhas gerais, pode-se dizer que a colonialidade do poder consiste em um padrão de poder, gerado pela colonização, que naturalizou as diferenças e permitiu a distinção entre pessoas com base na ideia de raça. A colonialidade do ser importa a inferiorização de certos seres humanos, como negros e indígenas, ao passo que a colonialidade do saber pressupõe a superioridade da forma eurocêntrica de compreender o mundo. QUIJANO, Aníbal. “Colonialidad del poder, eurocentrismo y America Latina”. In: LANDER, Edgardo (org.). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas Latinoamericanas. Buenos Aires: Clacso, 2000.

[12] A reivindicação de identidades negadas é uma parte fundamental da descolonização do ser, ancorada na não indiferença, e a descolonialidade é a prática na qual todos os grupos buscam relacionar-se de forma não condescendente entre si e militantemente em favor dos mais marginalizados, despossuídos e desumanizados na busca por justiça e “vivir bien”. TORRES, Nelson Maldonado. Del mito de la democracia racial y el mestizaje a la descolonización del poder, del ser y del conocer. In: SAAVEDRA, José Luis. Teorias y políticas de descolonización y decolonialidad. Cochabamba: Verbo Divino, 2009, p. 206.

[13]  Adota-se aqui o conceito de momento constitucional formulado por Bruce Ackerman. Segundo o autor estadunidense, momentos constitucionais são períodos marcados por grande mobilização social e deliberação popular sobre a Constituição e temas constitucionais, que diferenciam-se de momentos de decisões governamentais ordinárias, pois são marcados por debates sérios entre forças opostas, sendo resultado deste processo uma deliberação legítima. Nesse sentido, ver: ACKERMAN, Bruce. We the people 1: foundations. Cambrindge; London; Harvard University Press, 1991, p. 6.

[14]  Além de casos já citados, pode-se mencionar o Projeto Grande Carajás, no sul do Pará, destinado à exploração de minérios, que teve como suporte a construção da hidrelétrica de Tucuruí e a estrada de ferro Carjá, impactando o povo Parakanã. Outro exemplo, já mencionado na introdução, é a construção da rodovia Transamazônica, que atingiu o povo Tenharin. Sobre o tema, ver: ARAUJO JUNIOR, Julio José. A rodovia transamazônica e os indígenas Tenharim: ontem e hoje. Artigos da Associação Nacional dos Procuradores da República. 2014. Disponível em <http://www.anpr.org.br/artigo/70> Acesso em 06 out. 2017.

[15]  O mesmo fenômeno era observado em sede internacional. Em 1975, realizou-se a primeira conferência internacional dos povos indígenas, no Canadá, que reuniu grupos de 19 países, e em 1977, a primeira conferência internacional de organizações não governamentais acerca dos direitos indígenas. Cf. CUNHA, Manuela Carneiro da. Os direitos do índio: ensaios e documentos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.

[16]  Nesse sentido, pode-se citar o depoimento de Ailton Krenak: “Ao longo dos séculos de colonização, em diferentes regiões do país, os índios sempre fizeram movimentos de resistência e de organização. Mas uma representação a nível nacional só foi possível agora, no final dos anos 1970, quando esses povos começaram a se encontrar, começaram a ver que tinham problemas comuns e que podiam encaminhar algumas soluções juntos”. COHN, Sérgio (org.). Ailton Krenak. Série Encontros. Rio de Janeiro: Azougue, 2015, p. 25.

[17]  O projeto da “emancipação” consistia na pretensão da ditadura de “emancipar” de forma coletiva os chamados indígenas “aculturados”. O termo “emancipar” era utilizado com o sentido previsto no Código Civil, ou seja, o de afastar a incapacidade absoluta e o regime tutelar. A “falsa emancipação”, como foi chamada pelos índios e seus apoiadores, baseava-se no art. 9º do Estatuto do Índio, que já autorizava a emancipação aos indivíduos indígenas, mediante a observância de determinados requisitos, como o conhecimento da língua portuguesa ou a habilitação para o exercício. Com o projeto, buscava-se a emancipação de toda a comunidade, regulamentando o art 11 do Estatuto. O problema do projeto não era afastar o regime tutelar, mas sim usar a “emancipação” para negar direitos ou excluir a atuação estatal em favor de certos grupos. Embora aparentemente generosa, a proposta buscava, de fato, excluir a condição indígena de determinado grupo e, por conseguinte, afastar o direito à terra na forma prevista no art. 198 da Constituição, já que esta só eventualmente poderia ser doada à comunidade. Sobre o tema, ver: COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO/SP. A questão da emancipação. Cadernos da Comissão Pró-Índio, v. 1 (São Paulo), ago, 1979; Conselho Indigenista Missionário – CIMI. Outros 500: Construindo uma nova história. São Paulo: Salesiana, 2001, p. 121; CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no brasil: história, direitos e cidadania. São Paulo: Claro Enigma, 2012, p. 114.

[18]  Sobre a luta dos Xocó por suas terras, veja-se a publicação da Comissão Pró-índio de São Paulo: DANTAS, Beatriz Góis; DALLARI, Dalmo de Abreu. Terra dos índios Xocó: estudos e documentos. São Paulo: Editora Parma/Comissão Pró-Índio, 1980.

[19]  As assembleias e encontros deram visibilidade a alguns indígenas como novos atores políticos no cenário nacional, substituindo a representação por indigenistas ou sertanistas. No entanto, como observa Oliveira, a atuação como mediador junto ao Estado trazia dificuldades, pois afastava essas lideranças do cotidiano das aldeias e dos processos locais de decisão, ao mesmo tempo que os colocava sob a influência ora do Estado, ora de organizações não governamentais, que acabavam influenciando na pauta do movimento indígena. Cf. OLIVEIRA, João Pacheco de. “Regime tutelar e globalização: um exercício de sociogênese dos atuais movimentos indígenas no Brasil”. In: ______. O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de alteridades. Rio de Janeiro: ContraCapa, 2016, p. 277-278.

[20]  Segundo a liderança do Rio Negro Álvaro Tukano, o temor dos militares não se confirmava: “Na verdade, ninguém queria formar outros Estados dentro do Estado brasileiro. O que defendemos foi a demarcação das terras indígenas, à luz da Constituição Federal, Lei nº 6001, Estatuto do Índio. Como cidadãos brasileiros, defendemos as culturas e tradições dos povos indígenas que têm suas terras tradicionais. O General não poderia desfazer a Constituição Federal que defende os nossos direitos. Via Funai, o Estado brasileiro tinha que demarcar os territórios das tribos distintas que vivem pelo nosso país e entender que as terras indígenas são os bens da União”. Cf. WERÁ, Kaka (org.). Tembeta: Álvaro Tukano. Rio de Janeiro: Azougue, 2017, p. 94-95.

[21]  Os artigos 44 e 45 da Lei nº 6.001/73 tratavam da exploração das riquezas do solo e do subsolo da seguinte forma: Art. 44. As riquezas do solo, nas áreas indígenas, somente pelos silvícolas podem ser exploradas, cabendo-lhes com exclusividade o exercício da garimpagem, faiscação e cata das áreas referidas; Art. 45. A exploração das riquezas do subsolo nas áreas pertencentes aos índios, ou do domínio da União, mas na posse de comunidades indígenas, far-se-á nos termos da legislação vigente, observado o disposto nesta Lei; § 1º O Ministério do Interior, através do órgão competente de assistência aos índios, representará os interesses da União, como proprietária do solo, mas a participação no resultado da exploração, as indenizações e a renda devida pela ocupação do terreno, reverterão em benefício dos índios e constituirão fontes de renda indígena; § 2º Na salvaguarda dos interesses do Patrimônio Indígena e do bem-estar dos silvícolas, a autorização de pesquisa ou lavra, a terceiros, nas posses tribais, estará condicionada a prévio entendimento com o órgão de assistência ao índio.

[22]  A medida atendia a interesses de empresas como a Paranapanema, empresa de construção civil que participou da abertura de estradas na Amazônia e que, após a descoberta de cassiterita na região, passou a diversificar suas atividades, realizando a exploração na terra indígena Tenharin, no Amazonas (Cf. BERTOLIN, Gabriel Garcês. Entre outros: uma análise da transformação ritual entre os Kagwahiva. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social). 2014. 216 f. Universidade Federal de São Carlos, 2015, p. 55-56). Na década de 1980, ela viria também a explorar o mesmo minério na Terra Indígena Waimiri Atroari, no Amazonas. (Cf. CARVALHO, José Porfirio F. de. Waimiri Atroari: a história que ainda não foi contada. 2ª ed. Brasília, 1982).

[23]  A derrota da proposta de emenda constitucional que previa eleições diretas para a Presidência da República (Emenda Dante de Oliveira), na madrugada de 26 de abril de 1984, mostrou o peso das Forças Armadas e da base de apoio político do governo para dar as cartas no jogo sucessório. Cf. SCHWARCZ, Lilia M.; STARLING, Heloisa M. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 484.

[24]  Prevaleceu a proposta do governo José Sarney, que preconizava uma Assembleia Constituinte congressual, que cumularia funções com as atividades rotineiras do Parlamento (Cf. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO; Daniel. Direito Constitucional. Teoria, história e métodos de trabalho. 2ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p. 158). Com esse caráter, a Constituinte apresentava uma imagem de transição sem rupturas, o que era evidenciado pela participação de senadores “biônicos”, nomeados pelo governo militar, nos trabalhos.

[25]  FERNANDES, Florestan. A luta popular pela Constituição. In: Que tipo de República. 2ª ed. São Paulo: Globo, 2007, p. 148.

[26]  Havia uma notória sub-representação de minorias na Assembleia Constituinte: 26 congressistas mulheres (4,6% do total), 11 constituintes negros (2%) e nenhum indígena. Cf. SOUZA NETO, Cláudio Pereira; SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. 2ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p.p. 161.

[27]  O programa mínimo foi elaborado pela União das Nações Indígenas (UNI) com entidades de apoio ao índio, centrais sindicais e associações profissionais e científicas, além de movimentos sociais do campo. Cf. CUNHA, Manuela Carneiro da. Os direitos do índio: ensaios e documentos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987, p. 169-170.

[28]  O PMDB já não era, à época, um partido com mínima homogeneidade, pois continha em suas fileiras políticos que lutaram pela democracia, como Mário Covas (SP), e viria a abrigar, com a redemocratização e ascensão de José Sarney, dezenas de parlamentares egressos da antiga Arena, partido que sustentara o governo militar. Essa heterogeneidade geraria divisões no debate constituinte, especialmente quanto a temas polêmicos, como reforma agrária e a regulamentação das comunicações. Sobre o PMDB e o seu comportamento, veja-se: NOBRE, Marcos. Imobilismo em movimento: da abertura democrática ao governo Dilma. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

[29]  “O Estado brasileiro deverá garantir os direitos à continuidade de ocupação e uso destas terras pelas populações indígenas. Aliás, este direito, em que pese a sistemática violação, já está reconhecido na legislação colonial, no Império e nas Constituições republicanas a partir de 1934, faz parte de nosso sistema jurídico. O conceito de terra indígena, na definição de sua extensão, deve ser o conceito de habitat, isto é, a terra indígena é aquela necessária para que o grupo possa não só sobreviver fisicamente, mas, acima de tudo, reproduzir sua cultura. Assim, o território indígena compreende o espaço utilizado para habitar, produzir alimentos, caçar, pescar e desenvolver a coleta de frutos. Urge a regulamentação das terras indígenas quanto à preservação do meio ambiente e à compatibilização com reservas florestais e parques nacionais, estaduais e municipais”. CUNHA, Manuela Carneiro da. Os direitos do índio: ensaios e documentos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987, p. 169-170.

[30]  Nos termos do art. 89, IV da Constituição de 1969, entre outras atribuições, cabia ao CSN dar, em relação às áreas indispensáveis à segurança nacional, assentimento prévio para concessão de terras, abertura de vias de transporte e instalação de meios de comunicações.

[31]  João Pacheco de Oliveira cita os seguintes documentos: Estudo 007/3º SC/86 – “A questão indígena e os riscos para a soberania e integridade do território nacional” e Estudo 029/3ª SC/87. OLIVEIRA, João Pacheco de. Sem a tutela, uma nova moldura de nação. In: ______. O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de alteridades. Rio de Janeiro: ContraCapa, 2016, p. 289-316. Em 1986, o governo federal concebeu o projeto Calha Norte, um programa de desenvolvimento e segurança para a região norte do país, com atenção especial à faixa de fronteira. A “exposição de motivos” do projeto continha um diagnóstico sobre a região e defendia a retirada dos indígenas das regiões de faixa de fronteira e a demarcação de terras em ilhas, de forma a evitar uma continuidade territorial e assegurar a plena atuação estatal. O documento relatava ainda a baixa densidade demográfica da região norte e mencionava a presença de índios “em diversos graus de aculturação”, que representavam 0,04% da população do país e 22,7% da população indígena nacional. Buscava-se, como resposta a este quadro, a integração da região ao restante do país, com obras de infraestrutura, o incremento da presença militar, pela instalação de unidades militares, e o estabelecimento de vilas, povoados e cidades. Sobre o programa, veja-se: LOURENÇÃO, Humberto. Concepções de políticas de defesa e desenvolvimento da Amazônia de 1985 a 2006. Revista da Escola Superior de Guerra, v.29, n.59 (ju./dez.), 2014. Rio de Janeiro: ESG, 2014, p. 11-29.

[32]  As organizações indígenas chegaram a submeter à Comissão Afonso Arinos uma minuta, na qual reforçavam o caráter inalienável das terras indígenas, o direito à posse permanente pelos índios e o reconhecimento do usufruto exclusivo das riquezas naturais, não só do solo, mas também do subsolo (art. 1º, caput). O projeto da comissão foi mais modesto, pois remetia a questão a uma legislação específica, a qual deveria compreender algumas medidas tendentes à garantia da igualdade de direitos, “sem prejuízo dos seus usos e costumes específicos” e do apoio social e econômico aos índios (art. 381), mas referendava os termos propostos no projeto dos índios. Como dado negativo, o projeto continha também a autorização para a previsão de exploração de minérios, sem falar em qualquer tipo de autorização, mas com garantia de contraprestação em favor das comunidades (art 382). Cf. CUNHA, Manuela Carneiro da. Os direitos do índio: ensaios e documentos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987, p. 177-179.

[33]  O regimento previu a criação de oito comissões específicas, com três subcomissões cada uma, totalizando 24 subcomissões. Instalada a Constituinte em fevereiro de 1987, as comissões temáticas realizaram os seus trabalhos até 15 de junho de 1987, quando os seus projetos foram encaminhados à comissão de sistematização, que ficaria responsável pela unificação e organização dos capítulos, transformando-os em um projeto único de Constituição.

[34]  As principais discussões referentes à temática indígena deram-se na subcomissão de negros, populações indígenas, pessoas deficientes e minorias, mas houve também debates relacionados ao reconhecimento dos povos indígenas enquanto “nações” e ao caráter “multinacional” do estado brasileiro na subcomissão de nacionalidade, da soberania e das relações internacionais (pertencente à comissão da soberania e dos direitos e garantias do homem e da mulher) e discussões na subcomissão de educação, cultura e esportes (pertencente à comissão da família).

[35]  Cf. BRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. VII – Comissão da Ordem Social. VII-c Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias. Anteprojeto e Relatório. Vol. 196. Brasília, Senado Federal, p. 12. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/internet/constituicao20anos/DocumentosAvulsos/vol-197.pdf> Acesso em 7 out. 2017.

[36]  O parlamentar ganhou notoriedade na Assembleia pela defesa que fazia do regime militar. Nesse sentido, ver: Sérgio Montalvão; Cláudia Montalvão (s/d). Verbete “Nilson Gibson”. In: Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro, CPDOC/FGV. Disponível em: <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/jose-lourenco-morais-da-silva> Acesso em 7 out. 2017.

[37]  Cf. BRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. VII – Comissão da Ordem Social. VII-c Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias. Emendas ao Anteprojeto do Relator da Subcomissão. Vol. 197. Brasília, Senado Federal, p. 39. Disponível em < http://www.camara.gov.br/internet/constituicao20anos/DocumentosAvulsos/vol-197.pdf> Acesso em 7 out. 2017.

[38]  Cf. BRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. VII – Comissão da Ordem Social. VII-c Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias. Anteprojeto. Vol. 200. Brasília, Senado Federal. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/internet/constituicao20anos/DocumentosAvulsos/vol-200.pdf> Acesso em 7 out. 2017.

[39]  O Senador Odacir Soares, por exemplo, questionou a previsão de nulidade de títulos, por “provocar total insegurança para qualquer proprietário, pois não se sabe quais as terras ocupadas pelos índios, sendo certo que, em princípio, pelo menos um dia no passado, essas terras foram por eles ocupadas”. Outra proposta de emenda, do constituinte Nilson Gibson, que ressalvava a possibilidade do direito de livre navegação para os não índios.  Havia também emendas em sentido oposto, como a que propunha a vedação de qualquer atividade de exploração mineral nas terras ocupadas pelos índios, do deputado Haroldo Lima. Cf. BRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. VII – Comissão da Ordem Social. VII-c Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias. Emendas oferecidas à VII – Comissão da Ordem Social. Vol. 182. Brasília, Senado Federal. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituicao-cidada/o-processo-constituinte/vol-182_parte1>. Acesso em 7 out. 2017.

[40]  O deputado opunha-se abertamente ao que ele chamava de “salvar o país da insanidade dos radicais de esquerda”. Joaquim Justino Santos; Marcelo Costa (s/d). Verbete “José Lourenço Morais da Silva”. In: Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro, CPDOC/FGV. Disponível em: <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/jose-lourenco-morais-da-silva> Acesso em 7 out. 2017. Em sua justificava, o parlamentar alegava a potencialidade de conflitos em caso de expansão de áreas indígenas sobre núcleos populacionais urbanos e assentamentos rurais.

[41]  Art. 101 – As terras ocupadas pelos índios são destinadas à sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas naturais do solo e do subsolo, das utilidades nelas existentes e dos cursos fluviais, ressalvado o direito de navegação. § 1º – São terras ocupadas pelos índios as por eles habitadas, as utilizadas para suas atividades produtivas, e as áreas necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições, incluídas as necessárias à preservação do meio ambiente e do seu patrimônio cultural.§ 2º – As terras ocupadas pelos índios são bens da União, inalienáveis, imprescritíveis e indisponíveis a qualquer título, vedada outra destinação que não seja a posse e usufruto dos próprios índios, cabendo à União demarcá-las. § 3º – Fica vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo nos casos de epidemia, catástrofe da natureza e outros similares, ficando garantido seu retorno às terras quando o risco estiver eliminado. Fica proibida, sob qualquer pretexto, a destinação para qualquer outro fim das terras temporariamente desocupadas.

[42]  Estas informações constam da Memória nº 038/1ª SC/87, documento reservado do Conselho de Segurança Nacional, cujo acesso é disponibilizado a pesquisadores pelo Arquivo Nacional. O acesso a esses documentos permitiu ao pesquisador Pádua Fernandes não só descrevê-los, mas também traçar um perfil da atuação do órgão na defesa da restrição de direitos indígenas. Cf. FERNANDES, Pádua. Povos indígenas, segurança nacional e a Assembleia Nacional Constituinte: as Forças Armadas e o capítulo dos índios da Constituição brasileira de 1988. Revista InSURgência, Brasília, ano 1, v.1, n. 2, 2015, p. 142-175.

[43]  O Estado de São Paulo. “A conspiração contra o Brasil”. p. 1. 09/08/1987.

[44]  Em vez de opor-se diretamente às demandas indígenas, a matéria atacava entidades que atuavam em defesa dos direitos territoriais indígenas, como o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), que serviam, segundo o jornal, de “testa de ferro” a interesses estrangeiros, ameaçando a soberania nacional. Nesta ofensiva, o Congresso chegou a instalar uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, cuja vida foi efêmera, mas serviu como meio de pressão e instrumento para contestação à amplitude do reconhecimento dos direitos indígenas. O relatório da CPMI sequer chegou a ser votado, por falta de quórum, e no final do ano de 1987 a comissão já havia se encerrado. Cf. SANTILLI, Marcio. A CPMI que evaporou nos idos da Constituinte. Instituto Socioambiental. Disponível em: <https://www.socioambiental.org/pt-br/blog/blog-do-isa-blog-do-ppds/a-cpmi-que-evaporou-nos-idos-da-constituinte> Acesso em 08 out. 2017.

[45]  Cf. BRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Comissão de Sistematização. Projeto de Constituição. Primeiro substitutivo do relator. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/internet/constituicao20anos/DocumentosAvulsos/vol-235.pdf> Acesso em 08 out. 2017.

[46]  Como observa Daniel Pinheiro Viegas, essa proposta retirava o direito de grande parte dos povos indígenas, principalmente do Nordeste, que foram obrigados a deixar suas terras em razão das expedições de “descimento”, além das expedições punitivas, das doenças contagiosas e do avanço sobre as terras indígenas. VIEGAS, Daniel Pinheiro. A tradicionalidade da ocupação indígena e a Constituição de 1988: A territorialização como instituto jurídico-constitucional. Manaus, UEA Edições, 2017, p. 119.

[47]  BRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Comissão de Sistematização. Emendas Populares. Vol. 2. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/internet/constituicao20anos/DocumentosAvulsos/vol-231.pdf> Acesso em 8 out. 2017.

[48]  Discurso na Assembleia Constituinte, em 04/09/1987. COHN, Sérgio (org.). Ailton Krenak. Série Encontros. Rio de Janeiro: Azougue, 2015, p. 34-35.

[49]  O tema foi regulado nos arts. 302 a 305 do projeto. Cf. BRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Comissão de Sistematização. Projeto de Constituição. Primeiro substitutivo do relator. Vol. 235. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/internet/constituicao20anos/DocumentosAvulsos/vol-235.pdf> Acesso em 8 out. 2017.

[50]  O tema foi regulado nos artigos 261 a 264 do projeto. Cf. BRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Comissão de Sistematização. Projeto de Constituição. Segundo substutivo do relator. Vol. 242. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/internet/constituicao20anos/DocumentosAvulsos/vol-242.pdf> Acesso em 8 out. 2017.

[51]  O Projeto “A” da Constituição continha basicamente as mesmas previsões: “Art. 268 – São reconhecidos aos índios seus direitos originários sobre as terras de posse imemorial onde se acham permanentemente localizados, sua organização social, seus usos, costumes, línguas, crenças e tradições, competindo à União a proteção desses bens. (…) Art. 269 – As terras de posse imemorial dos índios são destinadas à sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas naturais do solo, dos recursos fluviais e de todas as utilidades nelas existentes. § 1º – São terras de posse imemorial onde se acham permanentemente localizados os índios, aquelas destinadas à sua habitação efetiva, às suas atividades produtivas e as necessárias à sua conservação cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. Art. 271 – Os direitos previstos neste capítulo não se aplicam aos índios com elevado estágio de aculturação, que mantenham uma convivência constante com a sociedade nacional e que não habitem terras indígenas.” (sem grifos no original) Cf. BRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Projeto de Constituição “A”. Da comissão de Sistematização. Vol. 251. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/internet/constituicao20anos/DocumentosAvulsos/vol-251.pdf> Acesso em 8 out.2017.

[52]  Sobre a atuação do movimento indígena na Constituinte, veja-se: LOPES, Danielle Bastos. O movimento indígena na Assembléia Nacional Constituinte (1984-1988). Dissertação (Mestrado em História Social). 2011. 184 f. – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Formação de Professores, 2011.

[53]  A criação do centrão foi estimulada pelo governo Sarney, insatisfeito com a previsão do projeto de reduzir seu mandato para quatro anos e da chamada “cláusula parlamentarista”. Eles defendiam pautas como a contestação à limitação do direito de propriedade e de canais de democracia participativa. Sobre o tema, ver: SOUZA NETO, Cláudio Pereira; SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. 2ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p. 167.

[54]  O “centrão” conseguiu mudar o regimento da Constituinte e derrubar as decisões das comissões de sistematização, garantindo a discussão sobre novas propostas de projeto da Constituição, que deveriam ser chanceladas previamente pela maioria absoluta. PILATTI, Adriano. A Constituinte de 1987-1988: Progressistas, Conservadores, Ordem Econômica e Regras do Jogo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016, p. 195.

[55]  No caso da reforma agrária, a principal discordância referia-se à desapropriação de propriedades produtivas., Fernando Henrique Cardoso, que era constituinte à época, declarou, em entrevista a Luiz Maklouf Carvalho: “O que complicou todo o processo – e gerou o Centrão – foi a radicalização da questão da reforma agrária e da função social da propriedade. (…) Aquilo desandou, porque não se fez um entendimento razoável. No resto não desandou: quase quebra, mas não quebra, quase quebra, mas não quebra. Mas ali quebrou. Foi ali que uniu o Centrão” (sem grifos no original). CARVALHO, Luiz Maklouf. 1988: Segredos da constituinte. Os vinte meses que agitaram e mudaram o Brasil. Rio de Janeiro: Record, 2017, p. 125.

[56]  Segundo Bernardo Cabral, colocar a expressão “na forma da lei” era o único caminho possível em caso de impossibilidade de acordo. Cf. Ibid, p. 102.

[57]  Ailton Krenak assim relatou: “Eles estavam organizados numa frente chamada UDR, União Democrática Ruralista, que era uma coisa bem fascista mesmo. Eles saíam publicamemnte fazendo linchamentos. Era uma coisa meio Ku Klux Klan, era perigoso, eles mandavam matar sem medo. A UDR se articulou politicamente em torno do ‘centrão’, que era uma convergência de partidos de direita que não tinham vergonha de ser de direita. Eram fazendeiros do Rio Grande do Sul, do Paraná, do Mato Grosso, que realmente barbarizavam, sem esconder nada. Chegavam a ameaçar pessoas publicamente nos meios de comunciação. Foi pouco depois disso que o Chico Mendes foi assassinado. Os fazendeiros não tinham medo não, eles matavam qualquer um sem despistar”. Cf. COHN, Sérgio (org.). Ailton Krenak. Série Encontros. Rio de Janeiro: Azougue, 2015, p. 223.

[58]  Cf. Conselho Indigenista Missionário – CIMI. Outros 500: construindo uma nova história. São Paulo: Editora Salesiana, 2001, p. 123.

[59]  Cf. Centro Ecumênico de Documentação e Informação – CEDI. Povos Indígenas no Brasil 1987/88/89/90. São Paulo: CEDI, 1991, p. 27.

[60]  Art. 231, São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. § 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. § 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. § 3º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei. § 4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis. § 5º É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, “ad referendum” do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco. § 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé. § 7º Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º.

[61]  BRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Comissão de Sistematização. Projeto “A”. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/internet/constituicao20anos/DocumentosAvulsos/vol-251.pdf> Acesso em 10 out. 2017.

[62] Para continuarem sendo o que são, devem deixar de ser o que eram. Em muitas situações, a adoção de certos traços e práticas externas não representam, assim, uma abdicação da identidade, mas sim uma forma de negociação para garantir a sua perpetuação, de maneira a torná-la mais compatível com o que propõe a sociedade dominante. Sobre o tema, veja-se: BARTOLOMÉ, Miguel Alberto. Processos Interculturales: antropología política del pluralismo cultural em América Latina. México: Siglo XXI Editores, 2006, p. 103-104.

[63]  SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO; Daniel. Direito Constitucional. Teoria, história e métodos de trabalho. 2ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p. 171-172.

[64]  SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Comentário ao art. 231. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W. (Coords). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 2150.

[65] Convergindo com esse pensamento, Boaventura de Sousa Santos põe em evidência as epistemologias do sul, com apelo aos novos processos de produção e de valoração de conhecimentos válidos, científicos e não científicos, e de novas relações entre diferentes tipos de conhecimento, a partir das práticas das classes e grupos sociais que sofreram de maneira sistemática as desigualdades injustas e as discriminações causadas pelo capitalismo e pelo colonialismo. Um “Sul” simbólico dos oprimidos, não geográfico, que consiste em uma metáfora do sofrimento humano causado pelo capitalismo e pelo colonialismo em nível global e também da resistência para superá-lo ou minimizá-lo, com uma compreensão mais ampla de mundo que a ocidental, que leve em consideração a diversidade infinita dos modos distintos de ser, pensar e sentir, de conceber o tempo, a relação entre seres humanos e entre humanos e não humanos, de olhar para o passado e o futuro, de organizar coletivamente a vida, a produção de bens e serviços e o ócio. Constitui, assim, não uma alternativa, mas um pensamento alternativo de alternativas, com ênfase na desmonumentalização do conhecimento e em uma sociologia que não seja de ausências, mas de emergências. Os dois fundamentos centrais das epistemologias do sul são a ecologia de saberes e a tradução intercultural. A ecologia de saberes decorre da diversidade epistemológica e pressupõe múltiplas concepções de ser e estar no mundo. Já a tradução intercultural vincula-se a um procedimento que permita criar inteligibilidade recíproca entre as experiências do mundo, tanto as disponíveis como as possíveis. SANTOS, Boaventura de Sousa. Epistemologías del Sur. Revista Utopía y Praxis Latinoamericana, Año 16, n. 54, jul/set, 2011, p. 17/39.

[66]  Remete-se aqui ao conceito elaborado por Will Kymlicka. Segundo o autor canadense, as proteções externas consistem em mecanismos para assegurar os direitos de um determinado grupo em face da sociedade hegemônica, notadamente contra decisões externas. Um exemplo clássico é a demanda por terras, mas podem ser citados direitos próprios de saúde, poderes de autogoverno e direitos de representação. Tais proteções seriam consistentes com a democracia liberal, por promoverem a igualdade entre grupos e não permitirem a opressão de um sobre o outro. Além disso, não entram em conflito com direitos individuais, diferentemente das chamadas “restrições internas”, pela exigência de respeito aos indivíduos que se situam em determinado grupo e que não podem ser oprimidos por decisões internas – o que geraria uma dupla opressão (minorias dentro de minorias). Veja-se: KYMLICKA, Will. Multicultural citizenship. Oxford: Clarendon Press, 1995.

[67]  A desobediência consiste em um agir, proposto por Catherine Walsh, que à episteme hegemônica se contrapõem não apenas uma episteme alternativa, mas várias e novas epistemes. brechas ou fissuras na colonialidade do poder, visualizadas, fomentadas e construídas nos âmbitos, instituições, estruturas da razão e do poder moderno/colonial, que seguem crescendo cotidianamente e costumam passar despercebidas, sem serem vistas ou escutadas. Este é um processo de luta que não ocorre contra, mas para a possibilidade de um modo-outro de vida, e deve vir de baixo para cima, das margens e das fronteiras, das pessoas, das comunidades, dos movimentos, dos coletivos que desafiam, interrompem e transgridem as matrizes do poder colonial em suas práticas de ser, atuação, existência, criação e pensamento. Assim, as brechas “se transformam no lugar e no espaço a partir do qual a ação, militância, resistência, insurgência e transgressão são impulsionadas, onde as alianças se constroem, e surge um modo-outro que se inventa, cria e constrói”. Cf. WALSH, Catherine. Notas pedagógicas a partir das brechas decoloniais. In: CANDAU, Vera Maria (org.). Interculturalizar, descolonizar, democratizar: uma educação “outra”?. Rio de Janeiro: 7 letras, 2016, p. 72.

[68]  OLIVEIRA, João Pacheco de. Sem a tutela, uma nova moldura de nação. In: ______. O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de alteridades. Rio de Janeiro: ContraCapa, 2016, p. 312-313.