O TRATAMENTO DAS VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS DA DITADURA NAZISTA NO PÓS-SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

Artigo

O TRATAMENTO DAS VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS DA DITADURA NAZISTA NO PÓS-SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

Wolfgang Thiele¹

O PROCESSO DO “TRIBUNAL MILITAR INTERNACIONAL” CONTRA OS PRINCIPAIS CRIMINOSOS DE GUERRA, EM NUREMBERG, DE 20 DE NOVEMBRO DE 1945 A 1° DE OUTUBRO DE 1946

Já em 30 de outubro de 1943, as Potências Aliadas, os Estados Unidos, a Grã-Bretanha e a União Soviética haviam decidido tratar, de modo jurídico- penal, como crimes as atrocidades alemãs na Europa a ser ocupada depois da guerra. Para isso, foi formada, igualmente em outubro de 1943, uma “Comissão de Crimes de Guerra” que deveria instruir, juridicamente, os processos.

Isso conduziu ao “Estatuto de Londres sobre o Tribunal Militar Internacional”, em língua inglesa “International Military Tribunal Militar” (IMT). Também a França, como Potência Vitoriosa, integrava, agora,  esse tribunal.

[1] Procurador do Estado, Procuradoria do Município de Gießen.

Esse estatuto previu quatro categorias de tipos penais, que, para maior clareza, não serão necessariamente apresentados aqui  segundo sua  ordem numérica.

Crimes de Guerra

Trata-se, aqui, de violações da Convenção de Haia sobre a Guerra Terrestre, de 18 de outubro de 1907, e da Convenção de Genebra de 27 de julho de 1927.

Entre eles, incluem-se maus-tratos ou assassinatos de prisioneiros de guerra (cerca de 3 milhões de prisioneiros de guerra russos morreram de fome nos campos  alemães), assim como a perseguição e morte de civis ou danos  a seus  patrimônios.

Crimes contra a Humanidade

Objeto desses crimes foram os assassinatos ou o extermínio de seres humanos por motivos políticos,  raciais ou religiosos.

Crimes contra a Paz

Aqui, inclui-se a condução de guerra agressiva. Como fundamento legal, utilizou-se o Pacto Kellogg-Briand da Liga das Nações de 1928, no qual a guerra havia sido proibida enquanto ferramenta de política.

Conspiração ou Plano em Comum

Esse instituto de Direito, originário do sistema jurídico anglo-americano, pressupõe um plano em comum para a prática de crimes das categorias Crimes contra a Humanidade e Crimes contra a Paz.

Na Europa continental, não existe um delito comparável de conspiração para a prática de um crime, o qual, entretanto, é subsidiário relativamente ao crime efetivamente perpetrado e, portanto, existe apenas na forma da tentativa.

Infratores que não pertenciam ao grupo dos principais criminosos de guerra deviam ser entregues aos seus respectivos países, onde haviam cometido suas infrações. O exemplo mais conhecido é o do Primeiro Comandante do campo de concentração (KZ) de Auschwitz, Rudolf Höss, que fizera uma confissão completa e foi condenado à morte e executado, em 1947, na cidade de Varsóvia. Mais cerca de 650 membros do esquadrão de Auschwitz foram leva- dos aos tribunais poloneses.

Depois de os principais responsáveis, Adolf Hitler, Joseph  Goebbels  e Heinrich Himmler, terem cometido suicídio, no final da guerra, 22 importantes criminosos de guerra foram postos como representantes do Império  Alemão, perante o Tribunal de Nuremberg, em 20 de novembro de 1945.

Tratava-se de ministros, militares de alta patente e personalidades públicas do partido. Na cumeeira, encontrava-se Hermann Göring, Marechal do Império e Ministro da Aviação, que descreveu o processo como Justiça dos Vencedores. Todos os acusados declararam-se, pessoalmente, inocentes, mesmo que os crimes tivessem sido preponderantemente reconhecidos enquanto tais. Um dos acusados enforcou-se em sua cela durante o processo. Onze acusados foram condenados à morte por enforcamento, incluindo Hermann Göring, que, imediatamente antes de sua execução, suicidou-se ingerindo uma cápsula de cianureto que escondera.

Três réus  foram  condenados à prisão  perpétua, dos quais  dois foram agraciados em 1954 e 1957.  Apenas o “adjunto do Führer” Rudolf Hess não o foi. Suicidou-se, em 1987, em seu cárcere de criminoso de guerra na cidade de Berlim. Quatro acusados receberam penas de prisão temporária que variavam de 10 a 20 anos. Três foram absolvidos.

ANALISE CRÍTICA

De modo geral, esses processos são, presentemente, considerados positivos, pois pela primeira vez a culpa individual dos acusados foi apreciada. No período imediato do pós-guerra, esse método foi visto, porém, de maneira mais crítica na Alemanha Ocidental.

A defesa argumentou que, nomeadamente, os pontos de acusação dos Crimes contra a Paz seriam uma lei posterior que ainda não existia à época da prática das infrações.

Quanto a isso, o tribunal reportara-se, enquanto fundamentação desse delito, ao Pacto Kellogg-Briand da Liga das Nações de 1928,  no qual a guerra fora proibida como ferramenta da política. A Alemanha aderira a esse tratado internacional.

A segunda crítica está relacionada com a proibição de defesa, em virtude do “Tu Quoque”-Argumento. Significa que às Potências Aliadas não se podia objetar que também elas haviam cometido crimes de guerra.

Estes existiram, sem margem de dúvida. Assim, a União Soviética os havia facilitado por meio do Pacto de Não Agressão, celebrado com a Alemanha em 24 de agosto de 1939, pouco antes da invasão da Wehrmacht na Polônia, em 24 de agosto de 1939, e havia ocupado, com base em um Protocolo Secreto, partes territoriais da Polônia Oriental, praticando lá mesmo Guerra contra a Polônia.

Na aldeia de Katyn, o serviço secreto soviético, a NKVD, assassinou cerca de 4.400 oficiais poloneses prisioneiros de guerra. Este crime, do qual a Wehrmacht tomou conhecimento após a invasão da União Soviética em 1943, foi lançado pela União Soviética na conta dos alemães.

Um total de pelo menos 24 mil oficiais, padres e outros considerados inimigos do povo da União Soviética foram assassinados. Somente em 1990, o presidente soviético Mikhail Gorbachev reconheceu a responsabilidade de seu país pelos crimes em massa.

Também o bombardeio de alvos civis na Alemanha empreendido pelas Potências Aliadas, especialmente a Grã-Bretanha, deve ser considerado crime de guerra, a partir da perspectiva de hoje. Esses ataques foram dirigidos contra a população civil, com o objetivo de eliminar a resistência dos alemães (bombardeio moral).

Desenvolveu-se deliberadamente a técnica da “Tempestade de Fogo”, segundo a qual grandes incêndios eram desencadeados em centros urbanos densamente povoados, através dos quais se desenvolvia uma  sucção  com a força de uma tempestade, aspirando pessoas para dentro do fogo. Desse modo, sufocavam-se também as pessoas em suas adegas, nas quais procuravam abrigar-se.

Assim, morreram em Dresden, em 12 e 13 de fevereiro de 1945, no quadro dos ataques anglo-americanos, militarmente sem importância, cerca de 30 mil pessoas, crianças, mulheres e idosos.

Com essa exposição de fatos, não se pretende diminuir, de maneira alguma, a culpa alemã. Essas circunstâncias, que foram, outrora, consideradas por muitos alemães a unilateral Justiça dos Vencedores, dificultaram, inicialmente, a aceitação do julgamento, que hoje nem é mais questionado.

OS PROCESSOS SUBSEQUENTES A NUREMBERG

No “Estatuto de Londres sobre o Tribunal Militar Internacional”, de 1945, previu-se que esse tribunal trataria também de outros grupos de criminosos. Isso deixou, porém, de ocorrer em razão das crescentes diferenças havidas entre as Potências Ocidentais e a União Soviética, no dealbar da “Guerra Fria”.

Em vez disso, os Tribunais Militares dos EUA conduziram, entre  1947 e1949,  um total  de 12 processos subsequentes, Envolvendo, de conjunto, 185 réus, entre  os quais 39 médicos  e advogados, 56 membros da SS (Esquadrão de Proteção do Führer) e da Polícia, 42 industriais e gerentes de empresas, 26 líderes militares e 22 ministros e altos funcionários de governo.

Foram prolatadas 24 sentenças de morte, 20 sentenças de prisão perpétua e 98 condenações de privação de liberdade, variando de 18 meses a 25 anos.

Foram absolvidos 35 dos acusados. Oito pessoas foram excluídas do procedi- mento, por razões outras. Das 24 penas  de morte, 12 foram  aplicadas. As demais foram comutadas em prisão perpétua.

Em 1951, o Alto Comissário dos EUA, John  McCloy, reduziu as penalidades  novamente, de modo significativo, em razão  de as zonas ocidentais da Alemanha, isto é, a vindoura República Federal da Alemanha (RFA), terem sido forçadas pelas Potências Ocidentais a se tornarem aliadas, no curso do aguçamento da “Guerra  Fria”, devendo, posteriormente, ingressar na Otan, em 1955. Em toda a Europa, baixou-se a “Cortina de Ferro”, que, na Alemanha, passava ao longo da fronteira com a nascente República Democrática Alemã (Alemanha Oriental, DDR), desde 1956, convertida em membro do “Pacto de Varsóvia”.

O JULGAMENTO DOS CRIMES NAZISTAS NA ALEMANHA OCIDENTAL (RFA)

Através da Lei n° 10 do “Conselho de Controle Aliado”, de 20 de dezembro de 1945, determinou-se que as quatro categorias de crimes estabelecidas pelo Estatuto de Londres de 8 de agosto de 1945 continuassem a ser aplicadas, em essência, pelos tribunais militares das Potências Ocupantes nas respectivas zonas de ocupação. Essa lei foi direcionada principalmente às infrações come- tidas em prejuízo de militares aliados e em detrimento de civis estrangeiros ou apátridas.

Na Alemanha Ocidental, fez-se raramente uso da opção de, nesses casos, encarregar os tribunais alemães para realizarem o julgamento. Foram também responsabilizados pelos tribunais britânicos, franceses e soviéticos os membros do pessoal da SS Nazista de campos de concentração que se encontravam nas suas respectivas zonas.

Os alemães derrotados se consideravam vítimas enganadas e abusadas. Descobriram, entre eles, apenas poucos assassinos, se algum mesmo. Segundo o entendimento de muitos alemães, fizera-se o bastante para atender à exigência relutantemente admitida de Justiça das vítimas do nazismo com a Justiça extremamente impopular dos assim chamados Vencedores, nos primeiros anos do pós-guerra. Para a maioria dos alemães, os esforços próprios para punir os próprios crimes não pareciam necessários.

Os tribunais alemães, reinstaurados logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, tornaram-se, de início, competentes para julgar crimes  cometidos por alemães contra os alemães. A título de exemplo, esse fato deve ser ilustrado com os assassinatos de pessoas internadas nos chamados sanatórios e asilos por doenças psíquicas, mentais ou por deficiências físicas.

O conceito de eutanásia foi introduzido, já no início do século XVII, na literatura médica, referindo-se ao trato com pessoas moribundas. Até o final do século XX, o significado da eutanásia foi limitado, por razões religiosas, à assistência aos que agonizavam, sem que se lhes encurtasse a vida. O ato de provocar a morte de moribundos foi rejeitado unanimemente.

Tão somente a partir do fim do século  XIX, avançando até  o ano  de

1930, a eutanásia tornou-se sinônimo de morte indolor de moribundos, de doentes incuráveis (psiquicamente) e deficientes mentais. Sob a dominação do Nacional-Socialismo, esse termo foi reinterpretado, tornando-se a “eliminação da vida indigna de ser vivida”, de “comedores inúteis” e “fardos existenciais”.

No início da guerra, em 1° de setembro de 1939, Adolf Hitler ordenou por decreto que dois médicos de alto escalão da SS, o Esquadrão de Proteção do Führer, estariam encarregados, sob sua própria responsabilidade, de expandir atribuições, especialmente, a médicos a serem determinados para que pudesse ser concedida eutanásia, em conformidade com a equidade humana, a doentes incuráveis, com avaliação crítica de seus estados de enfermidade.

Esse decreto infame é um dos poucos que Hitler havia assinado pessoal- mente. Segundo a concepção de Hitler, não possuía nenhuma força de lei. Essas subtrações de vidas humanas haveria, efetivamente, de ser considerado, legalmente, homicídio qualificado que continuava a existir como tipo penal. Porém, não se chegou a formular uma pretendida regulação legal da matéria.

Os sanatórios e asilos foram obrigados a elaborar formulários de registro de suas pessoas internadas, incluindo crianças, nos quais se relatavam o diagnóstico, o histórico da enfermidade e outros detalhes da avaliação do caso concreto. Esse formulário de registro era enviado à “Comunidade de Trabalho do Império dos Sanatórios e Asilos” (AOA), na Tiergartenstr. N° 4, em Berlim. Por essa razão, a operação recebeu o nome de guerra T4.

Os formulários de registro eram encaminhados aos médicos que nunca haviam visto os pacientes. Os médicos tinham de assinalar, na folha, em cada quadradinho, as palavras sim ou não. “Sim” significava sentença de morte para as pessoas em causa. Estas eram levadas a campos de extermínio, dos quais havia quatro no Terceiro Reich. Ali, os pacientes inalavam monóxido de carbono e eram cremados. Antes, retiravam-se os dentes de ouro e removiam- se as joias dos corpos. O ouro era derretido e enviado ao “Gabinete do Führer”. Em um “bom” mês, ali eram entregues até 27 quilos de ouro fino.

Caso houvesse parentes, estes recebiam “Cartas de Reconforto” com causa e horário da morte falsificada. Além disso, participava-lhes que os cadáveres, em razão do risco de contágio, haviam sido cremados. Mediante solicitação, podia-se obter uma urna, recebendo-a mediante envio por correio. Esta continha cinza do crematório, mas certamente não as do familiar executado. Essa ação, na verdade desenvolvida em segredo, logo se tornou conhecida do público,  provocando protestos.

O cardeal Clemens von Galen de Munster atacou, causticamente, em seu sermão de 3 de agosto de 1941 as mortes nas instituições em tela. Outras personalidades juntaram-se a ele. De modo esparso, formularam-se queixas- crimes por causa de homicídios qualificados, que, entretanto, não foram processadas.

Em 24 de agosto de 1941, a Operação-Eutanásia foi oficialmente encerrada. Entretanto, as mortes continuaram até o fim da guerra, renunciando-se à gasificação em massa, para dar lugar aos assassinatos individuais de crianças e de adultos por meio de injeção letal ou overdose de medicamentos. No total, cerca de 75 mil pessoas  foram mortas dessa forma.

Em Frankfurt, entre 1947 e 1949, vários processos criminais foram movidos contra médicos e enfermeiros do estabelecimento de Hadamar, situado nas proximidades, em virtude da ocorrência de milhares de casos.

Prolataram-se várias sentenças de morte, mas nenhuma delas foi executada. Com a promulgação da Lei Fundamental da República Federal da Alemanha, em 23 de maio de 1949,  a pena de morte  foi abolida na Alemanha Ocidental. As sentenças de morte foram comutadas em prisão perpétua.

O JULGAMENTO DOS JUÍZES E PROMOTORES DA JUSTIÇA NAZISTA

O Tribunal de Justiça Federal – máxima instância em matérias penais e civis na Alemanha Ocidental – estatuiu, em um processo promovido contra os juízes nazistas em 1956, o assim chamado privilégio dos magistrados. Isso significa que um juiz só poderia ser processado por suas sentenças se pudessem ser comprovado que havia prevaricado na aplicação do Direito, com dolo direto, ou seja, com decisão consciente de agir contra a lei. Segundo a lei, também o “dolo indireto ou eventual”, isto é, “o assumir o risco” das consequências, teria bastado para o atingimento de outros objetivos.

Com esse critério, então, ocorreram, regularmente, absolvições, visto que a comprovação de prevaricação na aplicação do Direito era praticamente impossível de realizar. Quanto mais fanático era um juiz nazista, tanto mais se lhe removia a convicção de haver considerado a sentença que prolatara legal e correta. A mudança dessa jurisprudência foi introduzida a partir de um lado inteiramente inesperado: em sua decisão de 11 de setembro de 1991, Az 9a RV11/90, o Tribunal Social Federal concedeu pensão a uma viúva de um soldado executado na “Fortaleza de Breslau”.

Aqui, as circunstâncias da infração imputadas à vítima não eram conhecidas. Além disso, nenhuma sentença havia existido no caso. O tribunal apoiava-se no §1°, alíneas 1 e 2, letra  d, da Lei Federal  de Abastecimento, que assegurava provisão a quem havia sofrido danos  de saúde  mediante medida punitiva ligada  à prestação de serviço militar, caso essa medida, segundo as circunstâncias, devesse ser considerada uma clara injustiça. A pretensão também valia para os sobreviventes.

O tribunal sacou a conclusão de haver existido “Manifesta Injustiça” a partir das circunstâncias gerais conhecidas, existentes na Fortaleza de Breslau – cercada, então, pelo Exército Soviético, em março de 1945 –, que incluíam a ameaça da pena de morte em procedimentos de execução sumária, aplicada a qualquer tipo de debilitamento da força de defesa. Nisso, referiu-se às pesquisas acerca do tema empreendidas por Messerschmidt / Wüllner em seu livro A Justiça Militar a Serviço do Nacional-Socialismo, publicado pela editora Baden- Baden, em 1987. Aplicou-se, pela primeira vez, a cláusula de “Manifesta Injustiça” a favor das vítimas da Justiça  Nazista.

O ponto de virada no Direito Penal

 Depois de 1989, abriram-se novas áreas de persecução penal que conduziram a uma mudança da Jurisprudência. Os processos eram dirigidos, agora, contra sentenças injustas dos juízes da Alemanha Oriental. Em seguida às decisões individuais preparatórias, o Tribunal de Justiça  Federal – máxima instância em matérias penais  e civis na Alemanha Ocidental – decidiu, com base em seu julgado  de 16 de novembro de 1995,  a favor de penas  de morte prolatadas por juízes da Alemanha Oriental, assinalando o seguinte:

Embora a pena de morte, considerada em si mesma e apreciada segundo o critério de ser uma violação intolerável dos Direitos Humanos, não possa ser valorada, nos tempos de então, como uma reação absoluta- mente inadmissível, inexiste dúvida de que uma irreparável intervenção fundamental como essa no bem jurídico da vida, tal como o são a ordem e a execução dessa consequência jurídica, pode ser admitida, segundo esse critério, apenas em casos excepcionais estritamente limitados.

Ao acusado imputou-se o crime de prevaricação na aplicação do Direito em concurso com homicídio simples. Partipara na prolatação de três sentenças de morte, nos anos de 1954 e 1955, junto ao Supremo Tribunal da Alemanha Oriental. Tratava-se de crimes – nesse  caso cometidos pelo sentenciado Senhor  F. – relacionados com atividades de espionagem realizada a serviço da inteligência britânica.

As constatações efetuadas pelo Supremo Tribunal da Alemanha Oriental acerca das atividades do Senhor F. esboçam um retrato de um homem posicionado muito mais na parte inferior da hierarquia dos agentes espiões que executara serviços essencialmente subordinados e dependentes. O Senhor F. também não havia interagido no ambiente em que circulavam os relevantes segredos de Estado, em nenhum momento.

A imposição da pena de morte no caso do Senhor F. pode ser apenas interpretada como ato arbitrário de violência, perpetrada contra um “inimigo público”, e pretendida dominação com o emprego do terror, destinada a apoiar os poderosos do Estado, mediante intimidação. O julgado do Tribunal de Justiça Federal em realce estabeleceu ainda o seguinte acerca do caso:

Essa Câmara Criminal está ciente de que os padrões, tais quais aplicados, na República Federal da Alemanha, referentemente ao julgamento dos arbítrios da Justiça Nazista, foram muito menos rigorosos. O entendi- mento de que a pena de morte deve ser apenas considerada não constitutiva de prevaricação na aplicação do Direito, quando serve de punição para os mais graves delitos, teria de resultar, em uma variedade de casos, na condenação de juízes e promotores do regime de violência do Nazismo. Tais condenações existem em números muito reduzidos, apesar do abuso praticado, por milhares de vezes, no emprego da pena  de morte, especialmente entre 1939 e 1945.

Deve-se observar que todos os juízes dessa Câmara Criminal nasceram após o fim da Segunda Guerra Mundial. O Tribunal Constitucional Federal indeferiu a Ação Constitucional impetrada contra essa decisão.

O PROCESSO DE AUSCHWITZ DA CIDADE DE FRANKFURT AM MAIN, OCORRIDO ENTRE 21 DE DEZEMBRO DE 1963 E 20 DE AGOSTO DE 1965

Quase 15 anos transcorreram (na terra dos delinquentes e cúmplices, espectadores e indiferentes, embora também terra dos soldados que retornavam aos seus lares e das viúvas de guerra, terras das vítimas do bombardeio e dos proscritos), 15 anos, portanto, até que uma Procuradoria Federal Alemã instaurou, pela primeira vez, investigações sistemáticas contra o pessoal envolvido com a SS, o Esquadrão de Proteção do Führer, do campo de concentração e de extermínio de Auschwitz-Birkenau, empreendendo a tentativa de elucidar o complexo criminoso de Auschwitz no quadro de um processo coletivo.

Em 1945, quase todos os alemães levantavam, ao lado de questões prementes de sobrevivência em um país devastado pela guerra e ocupado, a problemática da culpa, ao menos em termos políticos e morais.  A questão da culpa alemã era levantada não apenas pelas vítimas do regime nazista, não apenas pelos vencedores sobre a Alemanha Nazista. Essa questão era também dirigida pelos alemães a si mesmo. Partiam do entendimento de que autorreflexão e arrependimento seriam indispensáveis ao povo alemão, rebaixado do mundo civilizado.

O genocídio praticado contra os judeus da Europa com a intenção de erradicar esse povo da face da Terra, o assassinato em massa de ciganos Sinti e Roma e de pessoas internadas em sanatórios e asilos foram, segundo diferentes concepções, “crimes contra a humanidade” que, de acordo com o “Processo de Nuremberg”, deveriam ser tratados, se necessário, também no termo de leis posteriores.

O Procurador Geral do Estado Federado de Hessen, Sr. Fritz Bauer, ele mesmo perseguido pelo regime nazista, defendia a opinião de que os alemães tinham o dever de realizar um julgamento contra si mesmo: “para promoverem uma autodepuração”. No entanto, nesse processo, deveria ser aplicado o Direito vigente no momento do crime, tal qual o parágrafo de homicídio qualificado.

Em Auschwitz, matou-se – assim como em outros campos de concentração – de modo inteiramente arbitrário. Esses atos foram cometidos principalmente por funcionários de níveis hierárquicos inferiores. Os assassinatos de prisioneiros individuais, na sua maior parte, foram realizados no interior do campo ou nos comandos de trabalho forçado. Uma grande variedade de testemunhas oculares estivera presente. As mortes eram individualmente imputáveis. A concretização dos requisitos do fato espécie do §211 do Código Penal podia ser certamente comprovada nesses casos.

No campo de extermínio de Auschwitz, praticaram-se, igualmente, sob ordens impostas pelo Comando Superior, crimes em massa, no âmbito de um plano de assassinato organizado pelo Estado.  Na “Conferência de Wannsee” de Berlim, ocorrida em 20 de janeiro de 1942, 12 altos funcionários de ministério e dirigentes da SS Nazista decidiram erradicar, industrialmente, os judeus da Europa, que somavam um total de cerca de 11 milhões de pessoas.

Desde o início de 1942, os trens da morte rolaram em direção de Auschwitz, situado na área fronteiriça teuto-polonesa de outros campos de extermínio. O Departamento para a Questão dos Judeus na Repartição de Segurança do Reich (RSHA) é que ordenou os transportes. O principal responsável, Adolf Eichmann, foi executado em Israel em 1960.

Em Auschwitz, entre 1942 e o fim de 1944, chegaram, em Auschwitz- Birkenau, um total de 640 transportes do Departamento para a Questão dos Judeus (RSHA) com mais de um milhão de vítimas da “Solução Final”. Na administração do campo, havia um plano de serviço para as assim chamadas ações especiais na rampa, aonde chegavam os trens de carga repletos de pessoas. Os médicos da SS Nazista escalados triavam os recém-chegados em homens, mulheres e “inaptos para o trabalho” (ou seja, os idosos, os doentes e as crianças).

Esse último grupo era imediatamente eliminado nas câmaras de gás, situadas nas proximidades, que operavam com o inseticida ciclone B (cianeto), desprovido, porém, do odor de amêndoa, substância a ele normalmente acrescentada para servir de advertência às gentes em geral nas áreas civis, a fim de não perturbar, prematuramente, as pessoas que acreditavam estar-se dirigindo a um banho de chuveiro. Nas salas revestidas de azulejos, existiam, de fato, chuveiros no teto, a partir dos quais, no entanto, a água não fluía, mas sim o gás mortal.

A queima dos cadáveres ocorria nos crematórios. Antes, porém, as vítimas tinham seus dentes de ouro arrancados. Os cabelos das mulheres eram tosquiados. Objetos de valor eram roubados. Os homens e as mulheres “sãos” eram levados ao acampamento e designados para atuar em “Comandos de Trabalho”, nos quais produziam inclusive para a indústria alemã e eram entregues ao “Extermínio Mediante o Trabalho”.

Processos contra os criminosos de Auschwitz

Um ex-prisioneiro de Auschwitz, condenado por fraude, denunciou, no início de março 1958, no Ministério Público de Stuttgart, o ex-membro Wilhelm Boger da Polícia Secreta (Gestapo) do campo de Auschwitz. Boger vivia, sem ser molestado, perto da capital  do Estado de Baden-Württemberg.

Em janeiro de 1959, um residente em Frankfurt, sobrevivente do Holocausto, entregou a um jornalista documentos que havia recebido pouco antes do fim da guerra em Breslau (hoje Wroclaw). Tratava-se de uma carta do Comando de Auschwitz e do Tribunal de Polícia e da SS de Breslau, datada de 1942.  Nessa correspondência, listavam-se os nomes de prisioneiros assassinados supostamente por encontrarem-se “em fuga”, bem como os nomes dos atiradores de elite.

O jornalista repassou-a imediatamente ao Procurador-Geral do Estado Federado de Hessen,  Fritz Bauer. O Ministério Público de Frankfurt não era, evidentemente, responsável pelos crimes cometidos em Auschwitz. A cena do crime encontrava-se na distante Polônia. Nenhum ex-membro suspeito da SS de Auschwitz vivia, segundo se sabia,  na comarca do Tribunal Distrital  da cidade de Frankfurt a. M.

Bauer, promotor-chefe desde 1956 em Hessen,  aproveitou a oportunidade que se lhe oferecia para interpor uma demanda de declaração de jurisdição no Tribunal de Justiça Federal (Bundesgerichtshof / BGH), com esteio no §13, alínea a, do Código de Processo Penal. Por despacho de 17 de abril de 1959, o tribunal referido transferiu a investigação e a decisão sobre a ação intentada contra os criminosos de Auschwitz (95 suspeitos estão listados) ao Tribunal Distrital de Frankfurt.

Finalmente, em 16 de abril de 1963, formulou-se uma acusação contra 22 acusados, dos quais 20 membros da SS Nazista e dois prisioneiros-funcionários, por autoria ou auxílio de homicídio qualificado. Os réus não contestaram os crimes cometidos em Auschwitz, mas negaram, por várias razões, a sua responsabilidade pessoal.

No processo principal, foram interrogadas, ao longo de 154 dias de audiências, 360testemunhas, incluindo 211 sobreviventes de Auschwitz e 54 ex-membros da SS Nazista.

O acórdão, datado de 19 e 20 de agosto de 1965, fixou seis penas de prisão perpétua em penitenciária, uma pena de 10 anos para menor de idade (um dos réus tinha apenas 19 anos quando foi levado a Auschwitz) e 10 penas privativas de liberdade que variavam de três anos e meio a 14 anos. Três réus foram absolvidos por falta de provas. A fundamentação “Estado de Necessidade por Ordem de Superiores” repercutiu de modo a atenuar a intensidade das penas.

O Tribunal de Justiça Federal confirmou o acórdão, com exceção de um caso. Neste, o réu foi posteriormente absolvido. Em contraste com as condenações havidas até 1949, cujos condenados foram soltos prematuramente, no início dos anos 50 do século XX, foram regularmente executadas as penalidades agora aplicadas.

JULGAMENTO DE CRIMES NAZISTAS NA ALEMANHA ORIENTAL (DDR)

A Alemanha Oriental pretendia apresentar-se como um Estado antifascista e socialista ou comunista, cujos representantes, situados em Moscou, haviam sobrevivido à guerra, encabeçando, em seguida, uma nação vencedora da Segunda Guerra Mundial. Foi, no entanto, “pilhada” pela União Soviética em termos de bens econômicos e de indústria e, por isso, teve um início consideravelmente pior do que a República Federal da Alemanha, apoiada, desde logo, durante a reconstrução, pelo Plano Marshall estado-unidense.

A Alemanha Ocidental, com sua exclusiva pretensão de ser a sucessora do Reich Alemão, havia, finalmente, assumido o dever de reparação econômica, em cifras bilionárias, especialmente quanto a Israel e à “Conferência Judaica de Reclamações”, que representava as vítimas.

Na zona soviética, transformada posteriormente em Alemanha Oriental, numerosos processos contra criminosos nazistas foram promovidos, com esteio na Lei de Controle do Conselho e no pressuposto da culpa coletiva dos alemães, os quais terminaram, em muitos casos, com a imposição da pena de morte. Na Alemanha Oriental, quase todos os juízes nazistas e os procuradores foram demitidos. Em cursos de breve duração, formaram-se os assim denominados “juízes populares”, que assumiram as funções de juízes e promotores.

Após a criação da Alemanha Oriental, a Administração Militar Soviética dissolveu não apenas a si própria, senão também os seus últimos três campos de internação – Bautzen, Buchenwald e Sachsenhausen. Essa Administração Militar repassou às prisões da Alemanha Oriental 10.500 prisioneiros para o cumprimento das penas proferidas pelos Tribunais Militares Soviéticos.  Ade- mais, 3.432 prisioneiros foram entregues à Polícia do Povo. Ainda não haviam sido julgados e foram conduzidos à prisão de Waldheim.

Com toda a pressa, o Partido Socialista Unificado Alemão (SED) prepa- rou os “Processos de Waldheim”, em 1950. Vinte Câmaras Criminais Especiais foram instituídas, que escolheram, no interstício de seis semanas, para atuarem como juízes populares, juízes do Ministério da Justiça de Berlim de toda a Alemanha Oriental, tendo em conta sua confiabilidade política. O presidente do Conselho de Estado Walter Ulbricht havia dado a instrução de que os 3.432 prisioneiros deveriam ser condenados tão rápido e tão severamente quanto possível. “Sentenças com menos de 10 anos não poderiam ser proferidas.”

As audiências não eram públicas e tinham como base registros soviéticos que não eram verificados. Na maioria das vezes, processava-se por crimes pra- ticados contra a humanidade. Uma das poucas audiências “públicas” dos “Pro- cessos de Waldheim” ocorreu em junho de 1950.  Defensores existiam apenas em poucos casos e predeterminava-se ao juiz a medida da pena mediante reuniões mantidas entre o Procurador Geral do Estado e o Ministério de “Segu- rança do Estado” (Stasi). Assim, as punições foram draconianamente severas.

Isso foi criticado até mesmo na Alemanha Oriental, resultando na libertação, tal qual na Alemanha Ocidental, de cerca de um terço dos condenados já em 1952 e de praticamente todos os presos no início da década de 60 do século XX.

PERSPECTIVA: A JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL DISTRITAL DE MUNIQUE NO CASO JOHN DEMJANJUK

John Demjanjuk, nascido em 3 de abril de 1920,  com o nome  de Ivan Demjanjuk, na República Socialista Soviética da Ucrânia, morreu no dia 17 de março  de 2012  em um asilo da Baviera.  Era um ex-prisioneiro ucraniano de guerra que se pusera a serviço da SS Nazista, na qualidade assim denominada de auxiliar voluntário. Durante os anos da Segunda Guerra Mundial, integrou as tropas auxiliares da SS, atuando na contratação do pessoal engajado na operação dos campos de concentração. Ao fim de sua vida, viveu nos EUA.

Em 2009, o Sr. Demjanjuk foi extraditado para a Alemanha e levado aos tribunais, como o primeiro e, até o presente momento, único funcionário subordinado do nazismo de cidadania estrangeira. Em 12 de maio de 2011, foi prolatado pelo Segundo Tribunal Distrital de Munique uma sentença de con- denação, fixando pena privativa de liberdade de cinco anos, por cumplicidade no assassinato de aproximadamente 28 mil pessoas, ocorrido no campo de extermínio de Sobibor, na Polônia.  Nesse contexto, não se imputou nenhum fato concreto individualmente ao Sr. Demjanjuk. O Tribunal considerou o seu serviço em Sobibor, em 1943, já como suficiente para a condenação, visto que ele fazia “parte da máquina de aniquilação”. A decisão não transitou em julgado até a morte de Demjanjuk.

Cerca de 68 anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, os investiga- dores  de Polícia da Alemanha querem instaurar investigações preliminares, com base na jurisprudência do Tribunal Distrital de Munique, contra outros 50 supostos criminosos nazistas. O Escritório Central de Apuração de Crimes do Nacional-Socialismo, sediado em Ludwigsburg, anunciou que ex-guardas do campo de concentração de Auschwitz-Birkenau e de outros campos de extermínio encontram-se em sua mira. A acusação contra essas pessoas, hoje com cerca de 90 anos, consiste em cumplicidade em homicídio qualificado.

Os investigadores possuem nomes e indicações de locais de residência dos suspeitos. Estes vivem em todas as partes da Alemanha. Para os próximos passos, será crucial abordar a questão da capacidade mental dos acusados para estar em juízo. John Demjanjuk tinha 89 anos de idade à época de sua sentença.

Nesses processos, cuja lei surge evocada pelo Ministério Público, não importa que um dos idosos seja efetivamente encarcerado. O sistema de justiça penal alemão vê-se, perante as vítimas, na obrigação de apurar os fatos e as respectivas responsabilidades.