PARECER JURÍDICO ISENTO COMO ATO MATERIALIZADOR DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA: A (IR)RESPONSABILIZAÇÃO DO ADVOGADO PÚBLICO – ANÁLISE DA JURISPRUDÊNCIA DOS TRIBUNAIS SUPERIORES

Resumo

O objetivo do presente artigo é analisar o posicionamento recente da jurisprudência dos Tribunais Superiores no que tange à configuração de ato de improbidade administrativa atribuídos a advogados públicos que atuaram na qualidade exclusiva de pareceristas em processos administrativos, sem qualquer ato de gestão, mas agindo de forma meramente enunciativa.

Artigo

PARECER JURÍDICO ISENTO COMO ATO MATERIALIZADOR DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA: A (IR)RESPONSABILIZAÇÃO DO ADVOGADO PÚBLICO – ANÁLISE DA JURISPRUDÊNCIA DOS TRIBUNAIS SUPERIORES.

FABRICIO GASPAR RODRIGUES

Procurador Municipal – Duque de Caxias/RJ

 

 PALAVRAS CHAVE: Improbidade Administrativa. Parecer Jurídico Opinativo. Responsabilidade. Inviolabilidade do advogado. Dolo. Culpa Grave. Impossibilidade.

Resumo: O objetivo do presente artigo é analisar o posicionamento recente da jurisprudência dos Tribunais Superiores no que tange à configuração de ato de improbidade administrativa atribuídos a advogados públicos que atuaram na qualidade exclusiva de pareceristas em processos administrativos, sem qualquer ato de gestão, mas agindo de forma meramente enunciativa.

  1. Introdução

 

Não são raras as previsões legais que impõem à autoridade pública que pretende praticar determinado ato administrativo prévia submissão de sua intenção ao crivo do órgão jurídico que lhe confira suporte rotineiro. Raros são os processos administrativos que, para atingirem os objetivos que ensejaram sua instauração com eficácia e legitimidade, prescindem da emissão de pareceres jurídicos emitidos por advogados públicos. Esses, por sua vez, exercem suas funções de natureza consultiva com assento constitucional, especialmente nos artigos 131, 132 e 133 da Constituição da República.

Vive-se um momento ímpar da evolução republicana. Existe uma nova cultura em formação, permeada no seio de diversos órgãos de controle da Administração, que se desenvolve no sentido de se construir uma nova rotina obrigatória no trato da coisa pública, banindo toda e qualquer forma de desvio de recursos públicos. A bandeira da luta contra a corrupção hoje é uma realidade vivida pela sociedade brasileira, possuindo amplo apoio da opinião pública.

A corrupção não apenas dilapida os cofres públicos. Ela impede a materialização de políticas que, se implantadas, permitiriam a efetivação de direitos fundamentais, especialmente no que tange à saúde e à educação. Por isso, inclusive, deve ser combatida diuturnamente.

Na busca pela punição de agentes corruptos e do ressarcimento ao erário em decorrência de atos irregulares, Ações de Improbidade Administrativa são reiteradamente ajuizadas pelo Ministério Público. Normalmente, a imensa maioria dos agentes públicos que atuaram nos processos administrativos prévios aos atos reputados ímprobos pelo parquet são arrolados indistintamente no polo passivo da respectiva inicial. Muitas vezes, o servidor não praticou nenhum ato de gestão propriamente dito, mas em algum ato processual, ainda que de pequena monta ou de reflexo econômico inexistente, consta seu nome, sua matrícula e sua assinatura. Em muitos casos, já é o bastante para a inclusão do servidor como réu. Estava no lugar errado, na hora errada.

Já não é mais raro perceber o arrolamento de advogados públicos, que atuaram na qualidade exclusiva de pareceristas em processos administrativos, como réus em ações de Improbidade. Sem qualquer ato de gestão, mas agindo de forma meramente enunciativa, advogados públicos veem suas opiniões reunidas em parecer jurídico serem unilateralmente taxadas como improbidade. Ato contínuo, precisam se defender em tribunais, muitas vezes anos a fio, em causa própria e com seu patrimônio pessoal liminarmente indisponível[1], para desconstituir em juízo tal entendimento ministerial.

Em muitos casos, a inclusão dos advogados nessas ações decorre da aplicação, na seara da improbidade administrativa, do revogado crime de exegese (quando o agente emite atos equivocados ou que destoam da lei ou do direito), ou da aplicação do natimorto crime de hermenêutica (quando a interpretação da legislação realizada pelo agente, ainda que não errônea, diverge do entendimento do órgão fiscalizador).

Não se buscará neste artigo discutir a natureza do parecer jurídico porquanto ato jurídico, eis que seu caráter opinativo já se encontra seguramente assentado tanto na doutrina quanto na jurisprudência pátrias. O que se buscará aqui é analisar a possibilidade e a legitimidade da responsabilização do advogado que atua como parecerista. Em outras palavras, a pergunta que se faz é: O parecer jurídico, por si só, pode configurar ato de improbidade administrativa?

  1. O CONCEITO DE DOLO ADMINISTRATIVO E SEU REFLEXO SOBRE O PARECER JURÍDICO – A INVIOLABILIDADE DOS ADVOGADOS POR SEUS ATOS NO EXERCÍCIO DA PROFISSÃO

 

O dolo, em Direito Administrativo, é amplamente discutido pela doutrina, especialmente no tocante à responsabilização por improbidade administrativa, o que se busca discutir neste ensaio – ainda que especificamente voltado para a advocacia pública. Nesse sentido, oportuno o posicionamento do professor Fábio Medina Osório:

“O dolo, em direito administrativo, é a intenção do agente que recai sobre o suporte fático da norma legal proibitiva. O agente quer realizar determinada conduta objetivamente proibida pela ordem jurídica. Eis o dolo. Trata-se de analisar a intenção do agente especialmente diante dos elementos fáticos – mas também normativos – regulados pelas leis incidentes à espécie.”[2]

 

Na mesma linha de raciocínio, leciona o Professor Marçal Justen Filho:

“A configuração da improbidade depende da consciência e da intenção de promover as condutas ímprobas. Não há improbidade culposa, o que não significa exigir dolo específico nem equivale a negar a diversidade de graus de consciência e reprovabilidade.”[3]

 

A jurisprudência pátria, em especial oriunda do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, alberga integralmente tal raciocínio:

AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. INEXISTÊNCIA DE DOLO. VIOLAÇÃO A PRINCÍPIOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. Pode existir irregularidade em fase interna do processo licitatório (cotação de preço), e na autorização de despesa relativa à atualização dos valores contratados, sem que exista improbidade, pois a simples inobservância de regra legal, por si só, não caracteriza ato ímprobo. Não se confundem os conceitos de improbidade administrativa e de legalidade. Para configurar as hipóteses dos artigos 10 e 11 da Lei 8.429/92 mister se faz o dolo na conduta dos agentes, ou (e ainda assim excepcionalmente) pelo menos a culpa grave. Ação civil pública ajuizada pelo Parquet, com base em inquérito civil que apurou evento já apontado pela Controladoria Geral da União. Tomada de Preços realizada pelo Município de Nova Friburgo a partir de repasse de verba federal. Correta a sentença que não considerou provado o ato de improbidade. Apelo desprovido.[4]

***

AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. INEXISTÊNCIA DE DOLO. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. 1. Ação civil pública ajuizada pelo Parquet, tendo por base as informações contidas no Inquérito Civil, no qual se apuraram ilegalidades em contrato de prestação de serviços de apoio técnico e especializado na área de saúde do Município de Nova Iguaçu. 2. Embora se verifique que os réus realmente não cumpriram integralmente o disposto na Lei nº 8.666/93 e há irregularidade praticada pelo 2º réu, ao assinar o contrato na qualidade de Secretário Municipal de Saúde, um dia antes de tomar a posse, a simples falta de cumprimento adequado de certo preceito legal, por si só, não caracteriza ato ímprobo. Não se podem confundir os conceitos de improbidade administrativa e de legalidade. Não basta a simples inobservância da lei para caracterizar a improbidade. 3. Para configurar as hipóteses dos artigos 10 e 11 da Lei 8.429/92, mister se faz o dolo na conduta dos agentes. Do contrário, não há improbidade. E o Ministério Público Federal não logrou comprová-lo. Nem se articulou sobre qualquer lesão ao erário, nem à própria moralidade da Administração Pública, no caso concreto e seus desdobramentos. 4. Apelo desprovido.[5]

É inegável, portanto, que a configuração do ato de improbidade administrativa deve ser precedida não apenas do descumprimento à norma de regência, mas principalmente da intenção danosa do agente, ou sua omissão culposa, grave e consciente dos riscos negativos à integridade do patrimônio público decorrente de sua conduta.

Nessa toada, importante ressaltar que a letra fria do artigo 10 da Lei de Improbidade Administrativa[6], merece interpretação mais garantista em relação à afirmação contida nos excertos doutrinários citados acima, até porque é voz uníssona que o ato ímprobo é mais que ilegal, ele obrigatoriamente deve ser impregnado de algo (elemento subjetivo) que o vicie além da ilegalidade ou irregularidade.

Portanto, ao prever a o dispositivo normativo em estudo[7] que a omissão culposa pode ensejar a ocorrência de atos de improbidade, é flagrante que o ato culposo e ímprobo não prescinde da ciência do agente acerca dos riscos prejudiciais decorrentes daquele ato, o que levaria a uma analogia à figura da culpa consciente, muito estudada no campo do Direito Penal. Em outras palavras, a improbidade culposa só se configura quando a omissão perpetrada pelo agente decorre do fato de este ter previsto o resultado danoso, mas não acreditou que ele iria acontecer.

O artigo 133 da Constituição da República estabelece que o advogado é indispensável à administração da Justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei. Por seu turno, o § 3º do artigo 2º da Lei nº 8.906/94, que institui o Estatuto da OAB, estipula que, no exercício da profissão, o advogado é inviolável por seus atos e manifestações. Pareceres jurídicos, por sua função consultiva, são atos privativos de advogados, na forma da Lei[8].

Joaquim Nabuco, em uma de suas contundentes afirmações, lecionou que: “Nenhum privilégio pode ser respeitado quando falta as razões da sua instituição.”[9] Não é a intenção deste artigo revestir indistintamente todo e qualquer parecer jurídico da imunidade conferida pelo sistema jurídico aos advogados brasileiros para lograr cometer ou acobertar irregularidades.

Característica intransponível que reveste a atividade do operador do direito é o fato de que ele atua numa ciência inexata, que permite compreensões divergentes sobre a mesma situação jurídica ou sobre o verdadeiro alcance e sentido da norma correlata, sem que a aceitação de uma das compreensões resulte na invalidade das demais opiniões. Isso fundamenta a independência do parecerista.

Não é exagerado afirmar que o tolhimento da liberdade intelectual do advogado público é flagrantemente inconstitucional, pois fere garantia dada à advocacia, reconhecida pelo constituinte como função essencial à Justiça, que se consagra diariamente como um instrumento de resguardo e defesa de direitos e garantias fundamentais.

Inequivocamente, quando atua na confecção do parecer jurídico, o advogado age no exercício da profissão, uma vez que, nos termos do inciso II do artigo 1º, também da Lei nº 8.906/94, as atividades de consultoria, assessoria e direção jurídica são privativas da advocacia. Resta cristalina, outrossim, a existência de uma garantia constitucional que resguarda a inviolabilidade do exercício da atividade jurídica pelo advogado.

Essa garantia inclusive está assentada no entendimento de diversos tribunais pátrios, dentre os quais o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro:

Agravo de instrumento. Ação civil pública por ato de improbidade administrativa. Suposto direcionamento de licitação. Alegação de ofensa às normas de Direito administrativo e lesão ao erário. Decisão que recebe a inicial. Procurador do Município. Parecer. Responsabilidade. Inviolabilidade do advogado por suas manifestações e opiniões jurídicas, no exercício do ofício. Prerrogativas da profissão. Carência absoluta de prova indiciária do dolo.[10]

***

Agravo de instrumento. Ação civil pública. Improbidade administrativa. Parecer emitido pelo Procurador Geral do Município de Petrópolis opinando pela celebração de convênio entre o Município de Petrópolis e OCIPS. Órgão ministerial que sustenta a ocorrência de dispensa indevida de licitação sob o simulacro de convênio. Decisão de recebimento da petição inicial. Afastada a preliminar de ilegitimidade passiva ad causam, tendo em vista a teoria da asserção. Petição inicial que satisfaz os requisitos previstos no art. 282 do CPC, a afastar a preliminar de inépcia da exordial. Afastadas as prejudiciais de prescrição da ação e da pretensão de ressarcimento ao Erário. Responsabilidade do advogado público. Inexistência na hipótese. Parecer que possui natureza de ato enunciativo, e, portanto, incapaz de gerar direitos e obrigações. Ausência de fortes indícios acerca da existência de dolo ou culpa grave que apontem para a prática de ato ímprobo por parte do réu. Recurso provido.[11]

Reconhecem os decisum acima ementados que pareceres jurídicos no âmbito de processos administrativos que tramitam perante a Administração pública têm natureza meramente opinativa, e a responsabilidade do advogado público só se materializa desde que estejam presentes indícios de dolo ou culpa grave deste.

Por óbvio, essa garantia – agregada do aqui comprovado respaldo jurisprudencial e doutrinário – não permite uma inviolabilidade genericamente autorizadora de ilícitos ou a liberalidade na prática de atos danosos a terceiros. Em verdade, o sistema jurídico resguarda a autonomia jurídica do advogado autor do parecer, sua capacidade de compreender o direito e defender esse entendimento, sem submissão ou subordinação de suas convicções jurídicas a outro órgão, que não aquele responsável pela aferição de seus atos de indisciplina. Se o advogado consente com ilicitudes, não atua como advogado, mas sim como um criminoso; seu parecer deixa de ser um ato enunciativo revestido de todas as garantias legais já aqui citadas, e transmuta-se em ato fraudulento, submetendo o seu autor às sanções legais.

O raciocínio desenvolvido até aqui põe em xeque a prática processual reiteradamente adotada pelo parquet no sentido de arrolar no polo passivo de ações civis por ato de improbidade administrativa os advogados públicos autores dos pareceres técnicos utilizados como fundamento para a prática do ato materializador da suposta improbidade administrativa, sem prospectar o dolo ou a má-fé do subscritor do parecer (ainda que de forma indiciária). Tal praxe, tristemente comum nos dias atuais, demonstra existir no âmbito do Ministério Público um indevido[12] consenso entre seus membros no sentido de presumirem existir responsabilidade solidária entre o autor do ato ímprobo e o autor do parecer jurídico que fundamentou sua materialização.

Tanto a doutrina acima exposta quanto a correspondente jurisprudência citada até aqui demonstram de forma cabal que a mera lavratura de parecer jurídico não configura, de per si, crime ou improbidade administrativa. Entendendo o membro do Ministério Público que as circunstâncias fáticas podem ensejar a responsabilização do causídico, tal entendimento impõe-lhe a obrigação de descrever e trazer ao processo, já em sua petição inicial, elementos que indiquem a presença de elemento subjetivo que justifique a imputação pretendida em futuro provimento jurisdicional.

  • A JURISPRUDÊNCIA GARANTIDORA DO FORTALECIMENTO E INDEPENDÊNCIA DA ADVOCACIA PÚBLICA SEDIMENTADA PELO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

O Superior Tribunal de Justiça mantém jurisprudência uníssona e absolutamente fortalecedora da tese defendida no item anterior deste ensaio, no sentido de que a responsabilidade do parecerista apenas pode ser configurada em situações excepcionais, casos em que o advogado público renuncia às suas obrigações constitucionais de atenção irrestrita aos princípios da legalidade e moralidade, imiscuindo-se dolosamente na malversação de recursos públicos:

ADMINISTRATIVO – IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA – MINISTÉRIO PÚBLICO COMO AUTOR DA AÇÃO – DESNECESSIDADE DE INTERVENÇÃO DO PARQUET COMO CUSTOS LEGIS – AUSÊNCIA DE PREJUÍZO – NÃO OCORRÊNCIA DE NULIDADE – RESPONSABILIDADE DO ADVOGADO PÚBLICO – POSSIBILIDADE EM SITUAÇÕES EXCEPCIONAIS NÃO PRESENTES NO CASO CONCRETO – AUSÊNCIA DE RESPONSABILIZAÇÃO DO PARECERISTAATUAÇÃO DENTRO DAS PRERROGATIVAS FUNCIONAIS – SÚMULA 7/STJ.[13]

Também na esfera criminal o posicionamento jurisprudencial do Egrégio Superior Tribunal de Justiça respalda a independência do parecerista, senão veja-se:

RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. DENÚNCIA. ART. 89 DA LEI N.º 8.666/93. PROCURADORES MUNICIPAIS. SIMPLES EMISSÃO E APROVAÇÃO DE PARECER JURÍDICO OPINANDO PELA DISPENSA DE PROCEDIMENTO LICITATÓRIO. IMUNIDADE DO ADVOGADO. ATIPICIDADE DA CONDUTA. AUSÊNCIA DE QUALQUER ELEMENTO INDICIÁRIO VÁLIDO. TRANCAMENTO. RECURSO PROVIDO.[14]

Já se escreveu alhures que o Direito é ciência inexata, e como tal, deve banir toda e qualquer ação que impute punição de qualquer natureza a atos de hermenêutica divergente do entendimento do órgão detentor da competência acusatória.

O choque de posições é eficaz método para que prevaleçam os entendimentos mais eficazes para a harmonia da vida em sociedade – razão máxima da existência do Direito. A evolução social reflete-se nas leis pátrias, mas em inúmeros casos as mudanças legais são precedidas de alterações jurisprudenciais e doutrinárias, testadas em exercício diário de confronto de ideias, onde os tribunais e universidades são a arena democrática para o desenvolvimento do debate e assentamento de posições devidamente fundamentadas.

Em julgamento realizado em Outubro de 2015 pela 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, sob a relatoria do Ministro Benedito Gonçalves, assentou-se um dos mais significativos julgados hodiernos de fortalecimento da advocacia pública, reconhecendo que, mesmo nos casos em que o parecer remontar equivocado, ou seja assentado em premissas erradas, não haverá a responsabilização do parecerista em caso de não comprovação do dolo na elaboração do dictamen:

DIREITO PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. DECISÃO QUE REJEITA A PETIÇÃO INICIAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO CABÍVEL. JURISPRUDÊNCIA PACIFICADA NESTA CORTE. PARECER EQUIVOCADO. AUSÊNCIA DE INDÍCIOS DE ERRO GROSSEIRO OU MÁ-FÉ. INVIOLABILIDADE DOS ATOS E MANIFESTAÇÕES. EXERCÍCIO DA PROFISSÃO. REJEIÇÃO DA PETIÇÃO INICIAL QUE SE IMPÕE. RECURSO ESPECIAL PROVIDO EM PARTE. [15]

Trata-se de decisão histórica para o enfrentamento do tema a que se propõe este ensaio. A análise do voto do relator permite identificar o respeito, em máximo grau, a um dos mais importantes valores constitucionais atuais: o pluralismo de ideias (Art. 1º, V, da Constituição Federal de 1988), concebido a partir de uma leitura ampla e legítima do termo pluralismo político previsto no texto constitucional.

O acórdão cuja ementa se transcreveu acima estatui que não configura ato de improbidade administrativa a lavratura de parecer jurídico, mesmo que equivocado em seus fundamentos intrínsecos. O advogado público, ao emitir parecer, deve ser albergado pela inviolabilidade prevista no artigo 2º, §3º[16], do Estatuto da Ordem do Advogados do Brasil[17] mesmo quando emitir parecer equivocado ou quando adota tese minoritária. Somente se configurará responsabilidade quando presente o dolo ou má-fé na elaboração de seu ato.

  1. O ATUAL POSICIONAMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL QUANDO DO JULGAMENTO DO MS 24.631-6/DF E 30.982/DF

Por seu turno, o Supremo Tribunal Federal também respalda o entendimento aqui defendido, como, aliás, foi citado na lavratura dos votos e acórdãos acima citados. Parece cabível uma análise pormenorizada de alguns dos precedentes do STF que são citados nos julgados que instruem este ensaio.

Nos autos do Mandado de Segurança n.º 24.854-1/DF, discutiu-se a legalidade e a legitimidade da convocação de advogados públicos para prestarem esclarecimentos ao Tribunal de Contas da União, na qualidade de responsáveis, por terem analisado termos aditivos a convênio pré-existente no âmbito do Instituto Nacional do Seguro Social. A ordem foi denegada, mas mesmo assim o julgamento do caso levou o plenário a intenso debate, tendo inclusive o Ministro Gilmar Mendes se posicionado no seguinte sentido (em voto-vista posteriormente ratificado):

“(…) A segunda imputação é a de que os procuradores teriam burlado o processo licitatório, “tendo em vista os planos de trabalho anteriores definidos, natureza da classificação da despesa (aplicação direta) e subcontratação da execução evidenciaram não se tratar de convênio (mútua compreensão e interesse recíproco das partes), mas sim contrato administrativo (contraprestação de serviços).

A imputação chega a ser imprópria. Pretender que a formulação do convênio tenha sido responsável por eventual burla ao sistema licitatório afigura-se abusivo.

(…)

É certo que os procuradores emitiram pareceres – até de forma extremamente cautelosa, ressalto –, para a formalização do convênio. Na espécie, o que se discute é a execução desse convênio (fls. 31 e segs.).

No entanto, não vejo como extrair das referidas manifestações a responsabilidade solidária por sua má execução ou pela falta de prestação de contas por parte do convenente.

(…)

Por isso, exatamente como essa Corte decidiu no precedente MS 24.073/DF, Rel. Carlos Velloso, DJ 31.10.03, é impossível responsabilizar o advogado solidariamente com o administrador que decidiu pela contratação, “dado que o parecer não é ato administrativo, sendo, quando muito, ato de administração consultiva, que visa a informar, elucidar, sugerir providências administrativas a serem estabelecidas nos atos da administração ativa. Celso Antônio Bandeira de Mello, ‘Curso de Direito Administrativo’, Malheiros Ed., 13ª ed. p. 377.”[18]

Oportuna e justamente, o Supremo Tribunal Federal alijou do ordenamento jurídico qualquer conceito amplo de responsabilidade em relação a pareceres exarados por advogados públicos, quando do julgamento unânime do Mandado de Segurança n.º 24.631-6/DF, da relatoria do Ministro Joaquim Barbosa, em julgamento conjunto ao MS n.º 24.854-1/DF:

EMENTA: CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. CONTROLE EXTERNO. AUDITORIA PELO TCU. RESPONSABILIDADE DE PROCURADOR DE AUTARQUIA POR EMISSÃO DE PARECER TÉCNICO- JURÍDICO DE NATUREZA OPINATIVA. SEGURANÇA DEFERIDA.

I – Repercussões de natureza jurídico – administrativa do parecer jurídico: (i) quando a consulta é facultativa, a autoridade não se vincula ao parecer proferido, sendo que se poder de decisão não se altera pela manifestação do órgão consultivo; (ii) quando a consulta é obrigatória, a autoridade administrativa se vincula ao emitir o ato tal como submetido à consultoria, com parecer favorável ou contrário, e se pretender praticar ato de forma diversa da apresentada à consultoria, deverá submetê-lo a novo parecer; (iii) quando a lei estabelece a obrigação de decidir à luz de parecer vinculante, essa manifestação de teor jurídica deixa de ser meramente opinativa e o administrador não poderá decidir senão nos termos da conclusão ou, então, não decidir.

II – No caso de que cuidam os autos, o parecer emitido pelo impetrante não tinha caráter vinculante. Sua aprovação pelo superior hierárquico não desvirtua sua natureza opinativa, nem o torna parte de ato administrativo posterior do qual possa eventualmente ocorrer dano ao erário, mas apenas incorpora sua fundamentação ao ato.

III – Controle externo: É lícito concluir que é abusiva a responsabilização do parecerista à luz de uma alargada relação de causalidade entre o parecer e o ato administrativo do qual tenha resultado dano ao erário. Salvo demonstração de culpa ou erro grosseiro, submetida às instancias administrativo- disciplinares ou jurisdicionais próprias, não cabe a responsabilização do advogado público pelo conteúdo de seu parecer de natureza meramente opinativa. Mandado de Segurança deferido.[19]

Já o julgamento, nas últimas semanas de Maio de 2014, do MS n.º 30.982/DF, sob a relatoria do Ministro Luiz Fux, assim restou ementado:

ADMINISTRATIVO. TRIBUNAL DE CONTAS. FIXAÇÃO DE MULTA. RESPONSABILIDADE DE COORDENADOR JURÍDICO DA CODESA POR ELABORAÇÃO DE PARECER MERAMENTE CONSULTIVO. INOCORRÊNCIA. EXCLUSÃO DA MULTA. PRECEDENTES: MS 24.073, REL. MIN. CARLOS VELLOSO, E MS 24.631, REL. MIN. JOAQUIM BARBOSA. SEGURANÇA CONCEDIDA.[20]

Porém, no que interessa ao presente estudo do citado writ, deve ser mencionada parte do voto exarado pelo Ministro Luiz Fux, em que esse magistrado estabelece, com sua percuciente argumentação, o perigo de se admitir denúncia contra membros de órgãos jurídicos de assessoramento quando a imputação está calcada, apenas, no equivocado entendimento jurídico do procurador e inexiste a demonstração de atendimento a algum interesse escuso na manifestação escrita do parecerista:

“No Superior Tribunal de Justiça, tivemos a oportunidade de decidir uma causa semelhante, por isso que, neste caso, também há essa coincidência. Lá acentuou-se que quem pretende praticar um ilícito não consulta parecer de procuradoria jurídica para saber se vai fazer bem ou mal; faz mal, assumindo o risco de produzir o resultado. Aqui houve, então, uma consulta da procuradoria. Então, pode-se partir da premissa de que o procurador também estava em conluio para a prática desse ilícito – esse conluio não foi demonstrado nos autos. Então, restaria o quê? Atribuir ao procurador do Estado, do município, procurador ou advogado, um crime de exegese, que já foi banido do ordenamento de há muito. Quer dizer, a má interpretação do Direito não pode conduzir à configuração de um ilícito penal, salvo se determinar o elemento subjetivo do tipo – como Vossa Excelência destacou – com a finalidade de fraudar.” [21]

Percebe-se, portanto, plena consonância entre a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, em caráter deveras justo, no que tange ao respeito às garantias de independência e às prerrogativas da advocacia pública.

  1. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Buscou-se neste trabalho proceder a uma crítica aberta acerca da rotina adotada processualmente pelo Ministério Público buscando desenfreadamente e sem qualquer critério objetivo prévio, a responsabilização de advogados públicos por pareceres lavrados. A premissa ministerial que justifica, via de regra, tal responsabilização é a discordância do parquet acerca das opiniões exaradas no respectivo dictamen.

Definitivamente, isso não é legítimo, sequer democrático e republicano.

Ações de Improbidade Administrativa que tenham sido instauradas em desfavor de advogados públicos com base exclusivamente em hermenêutica divergente ou premissas jurídicas equivocadas e sem demonstração prévia, ainda que indiciária, de dolo ou culpa consciente do parecerista, devem ser rejeitadas[22], inclusive por atribui-se eficácia plena e imediata ao artigo 133 da Constituição da República, já estudado neste artigo. É ônus processual inicial do parquet  descrever e demonstrar minuciosamente que a hipótese posta em juízo ultrapassa essas duas situações.

Nesse sentido, a legitimidade para a propositura da Ação Civil por Ato de Improbidade Administrativa reservada ao parquet deve ser materializada por seus membros com harmonia, responsabilidade e, sobretudo, respeito às funções essenciais à Justiça constitucionalmente previstas, especialmente à Advocacia Pública.

Portanto, é vedado ao Ministério Público declarar unilateralmente como inquinado o parecer jurídico cuja tese ali defendida afronte o seu próprio entendimento, e em consequência de tal discordância buscar a responsabilização do advogado público autor de tal entendimento materializado no respectivo dictamen.

O parecer jurídico que remonte equivocado, ou seja, aquele cuja tese ali defendida contenha efetiva impropriedade decorrente de premissas jurídicas destoantes da lei de regência ou de entendimento minoritário também não é, por si só, considerado ato de improbidade administrativa. Tal ato enunciativo, ainda que errôneo, não legitima a propositura de ação em desfavor de seu autor.

Todavia, é necessário ressaltar que a inviolabilidade constitucionalmente prevista para o exercício da advocacia apenas recai sobre pareceres lavrados com isenção e independência. Se o ato foi lavrado dolosamente e destinado a permitir irregularidades, perde a natureza de ato opinativo e passa a ser uma fraude processual, submetendo inclusive seu agente à possibilidade real de perder a função que exerce. Logo, havendo dolo na atuação do advogado público, haverá um ato de improbidade administrativa dissimulado sob a forma de parecer jurídico, devendo seu agente ser regularmente punido, na forma da lei, respeitando-se o direito ao contraditório e à ampla defesa.

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[1] O artigo 16 da Lei  Federal n.º 8.429/92 permite que, havendo fundados indícios de responsabilidade, o juízo decrete o sequestro dos bens pessoais do agente, para que, na forma do artigo 7º da mesma lei, tal indisponibilidade possa futuramente assegurar o integral ressarcimento ao erário, após o trânsito em julgado de eventual condenação.

[2] OSÓRIO, Fabio Medina. Improbidade Administrativa. Ed. Síntese, Porto Alegre, 1998, p. 135.

[3] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. Ed. Saraiva, São Paulo, 2005, p. 687.

[4] AC – APELAÇÃO CIVEL – 518083 Processo: 2009.51.05.001805-0 UF : RJ. Orgão Julgador: SEXTA TURMA ESPECIALIZADA. Data Decisão: 15/08/2011

[5] AC – APELAÇÃO CIVEL – 487887. Processo: 2008.51.10.003590-2. UF : RJ Orgão Julgador: SEXTA TURMA ESPECIALIZADA. Data Decisão: 04/10/2010.

[6] Art. 10, caput, da Lei Federal n.º 8.429/92: “Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta lei, e notadamente: (…)”

[7] Art. 10, Lei Federal n.º 8.429/92.

[8] Lei Federal n.º 8.906/94: Art. 1º. São atividades privativas de advocacia: (…) II – As atividades de consultoria, assessoria e direção jurídicas.

[9] NABUCO, Joaquim. Um Estadista do Império. 5ª Edição. Rio de Janeiro, Topbooks, 1997, p. 369.

[10] Agravo por Instrumento n.º 0045037-31.2012.8.19.0000, 19ª Câmara Cível. Rel. Des. Marcos Alcino Azevedo Torres. Data do Julgamento: 02.06.2015.

[11] Agravo por Instrumento 0018366-63.2015.8.19.0000, 17ª Câmara Cível. Rel. Des. Wagner Cinelli de Paula Freitas. Data do Julgamento: 01.07.2015

[12] Diz-se indevido tal consenso difundido entre os membros do Ministério Público por absoluta ausência de previsão legal. A solidariedade não se presume, ela decorre da lei ou do contrato, de acordo com o artigo 896 do Código Civil Brasileiro.

[13] REsp n.º 1.183.504-DF (2010/0040776-5). 2ª Turma, REl. Min. Humberto Gomes de Barros. J. em 18.05.2010. DJ-e 17.06.2010.

[14] RHC 39644 / RJ RECURSO ORDINARIO EM HABEAS CORPUS 2013/0238250-5. Quinta Turma. Min. Laurita Vaz. D.J. 17/10/2013. DJe 29/10/13.

[15] REsp n.º 1.454.640-ES (2014/0009629-2). 1ª Turma, REl. Min. Benedito Gonçalves. J. em 15.10.2015.

[16] Art. 2º (…)

  • 3º No exercício da profissão, o advogado é inviolável por seus atos e manifestações, nos limites desta lei.

[17] Lei Federal n.º 8.906/94.

[18] MS 24.854-1/DF. REl. Min. Marco Aurélio. Julgamento em 09.08.2007.

[19] MS 24.631-6/DF. Rel. Min. Joaquim Barbosa. Julgamento em 09.08.2007.

[20] MS 30.982/DF. Rel. Min. Luiz Fux. Julgamento em 20.05.2014.

[21] Transcrição da sessão de julgamento do Inquérito 3.077/AL, Relator Min. Dias Toffoli. Julgado 20/03/2012, publicado no DJe 25/09/2012.

[22] Artigo 17, § 8º, Lei Federal n.º 8.429/92.

Palavras Chaves

Improbidade Administrativa. Parecer Jurídico Opinativo. Responsabilidade. Inviolabilidade do advogado. Dolo. Culpa Grave. Impossibilidade.