REFORMAS CONSTITUCIONAIS E LEGAIS ELEVAM A EFICIÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA E O SEU COMPROMISSO COM O DESENVOLVIMENTO?

Resumo

É natural que governantes eleitos, nos estados democráticos de direito, reafirmem, uma vez empossados, a necessidade de reformas constitucionais e infra constitucionais tidas como necessárias para a promoção de modificações estruturais, gerenciais e operacionais que atendam aos compromissos que assumiram perante os eleitores durante a campanha. Não se trata de um fenômeno propriamente jurídico, embora tenda a produzir reflexos na ordem jurídica, nem se restringe a determinados padrões sócio-culturais e econômicos encontrados neste ou naquele país, dessa ou daquela região do planeta. Trata-se de fenômeno político, inerente ao manejo do poder, que historiadores, politicólogos, sociólogos, juristas e economistas conhecem e analisam ao longo da saga humana. Convém, pois, examinar os anunciados projetos de reformas de modo sistêmico e prudente, com os olhos postos em experiências do passado e do presente, à luz de um processo permanente cuja gestão poderá conduzir a êxitos ou fracassos, dependendo dos recursos organizacionais, humanos, econômicos e financeiros existentes ou mobilizáveis, considerados conceitos e institutos que, permeados pela ética, tendem a acompanhar as tentativas humanas de alcançar uma imaginada utopia de bem-estar para todos, sem exclusão.

Artigo

REFORMAS CONSTITUCIONAIS E LEGAIS ELEVAM A EFICIÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA E O SEU COMPROMISSO COM O DESENVOLVIMENTO?

 

Jessé Torres Pereira Junior, desembargador, professor emérito e coordenador do curso de especialização em direito administrativo da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Diretor da área cível do Centro de Estudos e Debates do Tribunal de Justiça desse Estado. Professor convidado de cursos de especialização em direito público, da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro.

O HOMEM NÃO DEIXA DE SER LIVRE SE ACEITA REGRA QUE O NÃO DESNIVELA, COMO HOMEM, ABAIXO DOS OUTROS HOMENS. ENTENDAMOS: SE A ACEITOU POR DECISÃO PRÓPRIA, OU EM PROCESSO DE VOTAÇÃO EM QUE A SUA VONTADE ATUOU, IGUAL E LIVREMENTE, AINDA QUE NÃO VENCESSE. PORTANTO, A ACEITAÇÃO DE REGRAS QUE PÕEM O HOMEM ABAIXO DOS OUTROS HOMENS LHE TIRA A LIBERDADE. AÍ, A TÉCNICA DA IGUALDADE OPERA COMO LIMITAÇÃO AO PRÓPRIO IMPULSO INDIVIDUAL QUE CONDESCENDE COM A DESIGUALDADE. PROTEGE-O CONTRA SI MESMO; NÃO LHE SERIA DADO ACEITAR SER DIMINUÍDO ATÉ ONDE FOI. TAL PRINCÍPIO DE IGUALDADE, POSTO EM CERNE IMUTÁVEL DE CONSTITUIÇÃO, NÃO OFENDE DE MODO NENHUM A LIBERDADE DO HOMEM, AINDA QUE NUNCA SE LHE PERMITA MUDA-LO. (Pontes de Miranda, Democracia, Liberdade, Igualdade (os três caminhos). São Paulo: Ed. Saraiva, 2ª ed., 1979, pág. 573).

Sumário: 1. Prólogo. 2. Política e desenvolvimento. 2.1 a gestão do estado em face das acepções de política. 3. Os desafios permanentes das opções políticas de gestão do estado. 4. Ética e coeficiente político. 5. Natureza humana e política: o manejo dos poderes estatais. 6. À guisa de conclusão: o incremento da eficiência na gestão pública pós-moderna depende da participação dos administrados, em busca de possíveis e prévios consensos.

 RESUMO

É natural que governantes eleitos, nos estados democráticos de direito, reafirmem, uma vez empossados, a necessidade de reformas constitucionais e infra constitucionais tidas como necessárias para a promoção de modificações estruturais, gerenciais e operacionais que atendam aos compromissos que assumiram perante os eleitores durante a campanha. Não se trata de um fenômeno propriamente jurídico, embora tenda a produzir reflexos na ordem jurídica, nem se restringe a determinados padrões sócio-culturais e econômicos encontrados neste ou naquele país, dessa ou daquela região do planeta. Trata-se de fenômeno político, inerente ao manejo do poder, que historiadores, politicólogos, sociólogos, juristas e economistas conhecem e analisam ao longo da saga humana. Convém, pois, examinar os anunciados projetos de reformas de modo sistêmico e prudente, com os olhos postos em experiências do passado e do presente, à luz de um processo permanente cuja gestão poderá conduzir a êxitos ou fracassos, dependendo dos recursos organizacionais, humanos, econômicos e financeiros existentes ou mobilizáveis, considerados conceitos e institutos que, permeados pela ética, tendem a acompanhar as tentativas humanas de alcançar uma imaginada utopia de bem-estar para todos, sem exclusão.

Palavras-chave: Reforma constitucional; política; desenvolvimento; natureza humana; poderes estatais; gestão pública; consenso.

 Prólogo

É universal e recorrente a tendência de governantes, recém eleitos para o desempenho de cargos públicos em estados tidos como democráticos de direito, manifestarem prioritária preocupação com a adoção, tão rápida quanto possível, de medidas corretivas do que possam ser políticas públicas erráticas ou desvios do uso probo da gestão pública para a produção de resultados que, com eficiência e eficácia, atendam às expectativas da sociedade, sem discriminações ou exclusões de qualquer espécie ou natureza. Quanto maior for a dimensão dos supostos ou comprovados erros e desvios, tanto mais candente será o compromisso anunciado com aquelas medidas, ora definidas como sem cor partidária ou viés ideológico, ora vinculadas a programas partidários ou a ideologias, mais à direita ou à esquerda, pouco importando tal matiz para o estudo crítico do fenômeno – mostra a experiência planetária que todos os extremos se parecem quanto aos métodos de que se utilizam para a consecução de seus respectivos objetivos.

Daí desde logo cogitarem, os novos governantes, de alterações na Constituição – especialmente as chamadas “normológicas”, pródigas em normas e regras disciplinadoras da ordem jurídica – como passo indispensável a repactuar com a sociedade uma nova linha de ação programática, conducente a reformas estruturais, gerenciais ou operacionais supostamente aptas a corrigir, prevenir e reprimir, com ou sem repercussões em conceitos políticos e jurídicos, econômicos e sociais, históricos e culturais. Ou seja, uma quase refundação da ordem constitucional e infraconstitucional.

Todos aqueles que se querem ver investidos, ou venham a ser investidos, mediante eleições gerais, para o desempenho dos poderes constitucionais nas sociedades coevas, tendem a cometer essa quase contradição, qual seja a de percorrerem os caminhos constitucionais e legais estabelecidos para alcançarem o poder e, uma vez este alcançado, terem-se por legitimados para alterar os caminhos percorridos, na crença, sincera ou não – só se saberá ao final do percurso -, de que, assim agindo, lograrão elevar o grau de eficiência da gestão pública e majorar o índice de bem-estar da população, vale dizer, o seu nível de desenvolvimento, em correspondência às promessas lançadas durante a campanha eleitoral.

Quais os limites e cuidados que o estado contemporâneo conhece para compreender o fenômeno e a ele opor freios e contrapesos institucionais efetivos é o objeto desta breve digressão – breve em relação ao tempo histórico que abrange -, e que em larga margem se valerá da literatura produzida por reconhecidos juristas, politicólogos, sociólogos e historiadores que viveram as experiências de reestruturação do pós-guerra, coincidindo com o material de estudo indicado nos cursos de pós-graduação em direito público que concluí, na década de 1970, na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, cuja atualidade a mim mesmo fortemente surpreendeu ao relê-lo, a confirmar a similitude dos discursos que marcam períodos de confrontos políticos e ideológicos na gestão do estado, como aqueles que vêm de caracterizar, no País, a recém finda eleição nacional para presidente e governadores de estado.

E me veio à lembrança o chiste que o saudoso Afonso Arinos de Melo Franco – minha turma da pós foi a última a que lecionou, em 1975, antes de aposentar-se, com a experiência de constituinte de 1946. Contou, com o evidente fim didático de despertar a atenção dos alunos para a crônica inconsistência de algumas soluções adotadas por nossas cartas constitucionais, sempre sujeitas a dezenas de emendas, que, certa feita, visitando um sebo parisiense, indagou se dispunham para venda de um exemplar da Constituição do Brasil então vigente, ao que o atendente respondeu que “aqui não se trabalha com periódicos…”. É provável que a resposta fosse a mesma se o exemplar procurado fosse, hoje, da Constituição de 1988, que ultrapassou, em trinta anos de vigência, a casa da centena de emendas, e outras se prenunciam, notadamente ao raiar de novos governos, na União e nos estados membros, qualquer que seja a filiação partidária dos eleitos.

  1. Política e desenvolvimento

Na história dos agrupamentos humanos, poucas palavras terão sido usadas em tantas e tão diversas acepções, nas mais variadas circunstâncias e para os mais insuspeitados propósitos, como política. Não é sem razão que o seu conteúdo ganhe cores peculiares para cada caso particular, nem é de estranhar-se que se adote, conforme o tempo e o lugar, uma compreensão de política que sirva a certas situações ou interesses, ou, especialmente, nas situações incertas.

Para Engene Poiton, “em política nem sempre é verdade que dois mais dois fazem quatro, nem que a linha reta seja a mais curta entre dois pontos”, o que pode traduzir sagaz malícia, porém não define o que seja política. De certos pragmáticos, como o presidente norte-americano Theodore Roosevelt, já se ouviu que “política é falar suavemente, tendo um cacete na mão” – precursor de seu colega presidente Trump? -, o que outros pragmáticos menos ostensivos, como Capus e Talleyrand, temperaram com argúcia quando afirmavam que “em política, há serviços que só podem ser solicitados aos adversários” e que “a política tem demonstrado que as verdades políticas não são de utilidade prática em todos os momentos”. Sem esquecer a ardilosa ingenuidade de quem professe acreditar em que política “apenas exige bom senso”, frase atribuída à não tão ingênua Mme. Pompadour. O que parece induvidoso é a exigência de ter-se a prudência de admitir, com Thomas Jefferson, que “em uma ciência tão complicada como a Política, não é possível formular-se um preceito que seja bastante judicioso e adequado para qualquer tempo e circunstância, e para os casos contrários”.

A geração do pós-guerra associou política a outra palavra que parece conter a mesma magia da polivalência: desenvolvimento. O que seria uma política idônea e eficiente de desenvolvimento, apta a construir um padrão de dignidade de existir e conviver, após os conflitos de 1914-1918 e 1939-1945? Haveria uma só política de desenvolvimento? Ao que se extrai da Constituição de 1988 – que seguiu o modelo impulsionado pelo movimento constitucionalista europeu do pós-guerra e gerou as novas Cartas que, a partir de 1958, sucessiva e respectivamente, passaram a viger em França, Itália, Alemanha, Espanha, Portugal, todas inclusivas de direitos sociais fundamentais e traçando normas gerais das políticas públicas das respectivas implantações -, há políticas públicas setoriais, cada qual destinada à efetivação dos direitos sociais fundamentais arrolados no seu art. 6º (educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados). Significa dizer que política de desenvolvimento, uma vez que seja traçado o seu plano estratégico e conceitual pela Constituição, posto ser objetivo fundamental da República (CF/88, art. 3º, II), há de ter um sentido predominantemente gerencial e operativo, tal como o entende H. L. Blum – “as direções gerais, as prioridades e as limitações que, uma vez assumidas, tornem-se a base para um planejamento que aparentemente beneficie uma maioria, prejudica uma minoria e conduz ao maior ganho”. Bentham ponderava que “em boa política, a melhor Constituição para um povo é aquela a que ele está habituado”. A ideia de hábito há de ser conciliada com a de mudança, que caracteriza o desenvolvimento, mas mudanças devem levar em conta o que Summer batizou de “mores”, isto é, os costumes e crenças que constituem a parcela mais essencial da cultura de uma sociedade. Não será bem recepcionada pela população uma proposta governamental de mudança que agrida ou ignore a cultura, ou que pretenda reforma-la de cima para baixo.

A projeção dessas primeiras noções sobre os dados da realidade social, econômica, política e cultural é que permite compor um quadro do que seja política de desenvolvimento centrada no homem – ou, antes, o homem e sua circunstância, o que, como adverte Ortega y Gasset, significa muito mais do que o homem apartado de seu ambiente –, de modo a beneficia-lo mediante instrumentos adequadamente dimensionados e de execução viável em face dos recursos disponíveis, e sem afrontar os valores da dignidade humana postos na Carta Constitucional e por ela protegidos.

2.1 a gestão do estado em face das acepções de política

As acepções de política são agrupáveis em cinco categorias: (a) tudo o que se relaciona com o funcionamento das organizações sociais; (b) conjunto de processos, métodos, expedientes e ardis para alcançar, conservar e exercer o poder; (c) arte de governar e realizar projetos que atendam ao interesse público; (d) orientação ou atitude de um governo em relação a assuntos específicos, compreendidos entre as funções do estado; (e) conhecimento sistêmico dos fenômenos políticos a partir do estado.

Todo esquema é precário, somente justificando-se para fins didáticos. Isto é sobremodo verdadeiro em política. Mas é possível inferirem-se identidades entre essas categorias, aplicáveis, a rigor, a qualquer acepção de política.

2.1.1. A alínea “a”, supra, almejaria sintetizar o pensamento aristotélico e sua visão do “homem político”. Ser político é um dado inerente à natureza dos seres humanos. Basta que se reúnam duas pessoas para que, no relacionamento entre elas, se instalem recíprocas influências e a tendência de uma conduzir a outra a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa, em função de certo interesse. Ocorre em todos os níveis de grupamentos humanos: família, igreja, amigos, colegas da mesma categoria profissional, clube, empresa, partidos políticos. Em suma, em toda organização social de qualquer dimensão fluem interesses que buscam afirmar-se e satisfazer-se pelo manejo de algum tipo de poder, demandando autoridade para discipliná-los, autoridade essa que pode ser imposta ou consentida, fruto de uma liderança natural ou formal, originária ou alegadamente derivada de fatores humanos ou sobre humanos.

Tal acepção tem a virtude de aplicar-se a qualquer agrupamento, independentemente de condicionamentos culturais, mesológicos ou ideológicos. Sua insuficiência está em desconsiderar elementos conjunturais como capazes de determinar ou induzir significativas alterações no comportamento do poder e no exercício da autoridade. Prevalece a estrutura sobre a conjuntura. Esta talvez seja a insuficiência maior do pensamento grego clássico: atribuir a existência de certos costumes sociais à natureza das coisas. Era assim, por exemplo, que os filósofos gregos, incluindo Aristóteles, justificavam a escravatura: há pessoas que nascem livres e outras para serem escravas; isto faz parte da natureza das coisas, por isto que insuscetível de mudança.

Toda vez que acolhemos tal acepção de política de maneira absoluta arriscamos incorrer no erro que leva a humanidade, vez por outra, a tragédias monumentais, como no caso da Alemanha nazista, cujos teóricos manipulavam a concepção do “volksgeist” – lançada por Savigny e Sombart, em fins do século XIX, para demonstrar a prevalência do direito consuetudinário sobre o codificado, bem como a existência de peculiaridades de comportamento coletivo que singularizam uma nação. O discurso nazista valeu-se daquele “espírito do povo” para, incluindo-o ao lado de outros supostos fundamentos da superioridade da raça ariana, a esta classificar como necessária e inevitável por ser da natureza das coisas…

2.1.2. A alínea “b” inverte os termos da proposição grega, de modo a prevalecer a conjuntura sobre a estrutura. A afirmação pode parecer ousada quando se recorda que a origem dessa segunda acepção encontra-se no império romano, alcançando o máximo prestígio, como escola de política, com Maquiavel. É que a análise descritiva que os contemporâneos guardamos do império romano da antiguidade clássica realça uma férrea estrutura de poder, arrolada pelos historiadores entre os fatores primacialmente responsáveis pela duração milenar do império romano. Seria, pois, incongruente dizer-se que os romanos, ao fazerem política, valorizassem a conjuntura de preferência à estrutura.

A resposta está em que o tônus daquela estrutura não repousava, exatamente, sobre uma compreensão política que fortalecesse o poder e a autoridade acima de qualquer outro fator. O fortalecimento existia, porém era devido à estrutura da família romana. Historiadores concordam em estabelecer uma relação de causalidade entre o enfraquecimento da autoridade do poder do pater familia, com a decorrente ruptura da unidade familiar, e o enfraquecimento do próprio império até seu fracionamento e extinção, como deixaram assinalado Toynbee e Burns, entre outros.

A estima reconhecida ao poder e à autoridade não resumia, para os romanos, uma fórmula política, mas, sim, a projeção do sistema patriarcal. Tanto isto é verdade que, em termos de política, o que interessava aos romanos era saber o que, quando, a quem e como obedecer, e o que, quando, a quem e como deixar de obedecer. Os conflitos pela chegada ao poder, seu exercício e sua conservação pelo maior tempo possível preenchiam a vida política do império, desde o Senado até às províncias, passando pelo referendo das legiões, direta ou indiretamente obtido.

Eis a maior inconveniência dessa acepção, se tomada em termos absolutos: interesses acidentais, pessoais ou conjunturais – fortemente influenciados por laços de parentesco e pela divisão entre patrícios e plebeus – ameaçam a estabilidade das instituições; a conjuntura constantemente compromete, quando não corrompe, a estrutura. E sempre se corre o risco de trocar-se o essencial pelo acidental, ou, nos termos da síntese evangélica, contemporânea dos romanos, “coam-se os mosquitos e engolem-se os camelos” (São Mateus, 23:24).

2.1.3. A acepção a que se refere a alínea “c”, supra, introduz o elemento ético na formulação política, que apenas subsidiariamente se apresentava na acepção da alínea “a” e se mostrava ausente da acepção da alínea “b”. É na ideia de “estado justo”, que visa ao bem comum, bem como na preocupação de uma ética social no uso do poder – um retorno ao pensamento aristotélico-tomista – que se vai cristalizar essa terceira proposta do que seja política, levantada por Hans Kelsen, com o qual a ética haveria de integrar a política intrinsecamente. Decerto que para tal concepção terá contribuído a experiência de vida pessoal de Kelsen, cujo ingresso no magistério da Universidade de Viena se deu em 1919, a completar, portanto, em 2019, o seu centenário. É que o fundador da teoria pura do direito e seu positivismo jurídico, tendo chegado a integrar a suprema corte austríaca, viu-se compelido, por pressões do nazismo alemão, a que se opunha e fortemente impregnava a política austríaca, na década de 1930, a dela abdicar, bem assim da cidadania austríaca, indo asilar-se na América do Norte, em cujas universidades passou a lecionar até o seu falecimento, décadas após. Assim igualmente a perda, pela Universidade de Viena (fundada no século XIV), de outros renomados especialistas da época, como Karl Popper e Peter Drucker, que, pelos mesmos motivos, asilaram-se, respectivamente, na Inglaterra e nos Estados Unidos, deixando obra acadêmica admirável no campo das ciências políticas, o primeiro, e no da ciência da administração, o segundo. Por ironia da história, o jovem Adolf Hitler foi recusado pela mesma Universidade quando lá pretendeu ingressar para cursar belas artes, na pretensão de se tornar pintor…

Rememoram-se tais personagens para evidenciar o quão ruinosos podem ser movimentos persecutórios impulsionados por pretextos ditos políticos. Tal como a ética – que de tempos em tempos é alvo das imprecações dos que confundem componentes culturais, oscilantes segundo a variável tempo-espaço, com valores éticos essenciais e universais, e que devem ser perenes e infensos àquela variável -, também a ideia de bem público tem servido a toda sorte de deformações, no campo político. Põe-se em tal relevo o desenvolvimento que se verifica a tendência de ser considerado como a finalidade última e exclusiva da existência dos estados e seus governos. Falso axioma. O fim supremo do estado é o bem estar das pessoas que habitam o seu território, daí a excelência da definição que Jean Dabin, nos idos de 1929, parece haver cunhado de uma vez para sempre, sobre a noção do bem público que cumpre ao estado prover e efetivar, seja diretamente, indiretamente ou mediante regulação: “conjunto dos meios de aperfeiçoamento que a sociedade politicamente organizada tem por fim oferecer aos homens e que constitui patrimônio comum e reservado da generalidade: atmosfera de paz, de moralidade e de segurança, indispensável ao surto das atividades particulares e públicas; consolidação e proteção das instituições que mantêm e disciplinam o esforço do indivíduo, como a família e a corporação profissional; elaboração, em proveito de todos e de cada um, de certos instrumentos de progresso que só a força coletiva é capaz de criar (vias de comunicação, estabelecimentos de ensino e de previdência); enfim, coordenação das atividades particulares e públicas tendo em vista a satisfação harmoniosa de todas as necessidades legítimas dos membros da comunidade”.

O desenvolvimento, na verdade, é o meio de o estado atender ao bem comum. Os governos devem promover o desenvolvimento para viabilizarem o bem-estar coletivo. Ordenem-se os conceitos: o fim do estado é o bem-estar de sua população; os meios eficazes para gerar bem-estar correspondem aos níveis em que se promova o desenvolvimento.

Coisa diversa são as funções do estado, que variam segundo necessidades e realidades conjunturais, nacionais, regionais ou locais. O estado A pode assumir, em dado momento, a execução dos serviços de transportes coletivos, que o estado B delega a concessionárias ou permissionárias privadas, mediante contrato precedido de licitação (vg, CF/88, art. 175). Isto não significa que o estado A estejam atendendo ao bem público e o estado B, não. Expressa, apenas, conjunturas diferentes, segundo opções normativas próprias.

O que importa é a sensibilidade dos governos para decidir entre o que efetivamente demanda a interferência estatal – e até que ponto deve ir – e o que melhor funcionará se deixado à iniciativa particular. O critério para discernir deverá estar sempre impregnado da preocupação ética de acudir ao interesse coletivo, quer interpretando o que seria o consenso nacional, quer buscando promover, por meios legítimos, a obtenção desse consenso.

Como ensinava Giorgio Balladore Pallieri, para nada serviria, do ponto de vista do bem comum, uma liberdade do estado que, sob qualquer aspecto, se assemelhasse à liberdade do particular. O estado não detém o mesmo tipo de liberdade atribuído ao particular. O estado não conta com liberdade para legislar e administrar justiça. Uma certa liberdade de ação, tanto pelo que concerne à escolha dos fins específicos, como no que tange à maneira de satisfazê-los, não pode deixar de existir, porém em nada se equipara à liberdade privada. É, pelo contrário, um poder sempre jungido ao fim a que o serviço é consagrado, e que só será legítimo quando orientado para esse fim.

Por isto que qualquer atividade do estado e de seus agentes deve ser concebida como uma “função”. Os direitos e poderes, em se tratando de estado e governo, nunca devem ser atribuídos em benefício do ente que deles foi investido, de modo a deixá-lo livre para deles fazer o uso que lhe mais agrade; estão sempre conexos ao dever de serem exercidos com os fins para os quais foram instituídos, quer dizer, ao serviço ou em função dessa finalidade. A ética – vale dizer, o respeito à dignidade das pessoas e aos interesses coletivos – deve permear cada degrau da pirâmide de poder e autoridade construída pelos governos assim inspirados. A correta apreensão dessa noção põe em xeque os governos totalitários, qualquer que seja a sua nuance ideológica.

2.1.4. A alínea “d” contém a acepção mais atual e dinâmica da noção de política acolhida pelas Constituições ditas pós-modernas, consistindo na fase preparatória de todo planejamento.

A latitude das necessidades geradas pela complexa e hipertrofiada organização social das grandes metrópoles hodiernas tem conduzido o estado coevo a fazer suas, conforme conjunturas e realidades locais, atividades anteriormente preclusas à função estatal. A incorporação dessas novas funções, por intermédio de instrumentos administrativos os mais variados, cria obrigações e responsabilidades públicas para os órgãos que as efetivem. O estado vê-se na contingência de ampliar seu poder-dever de controlar, supervisionar, tutelar esses instrumentos. Por outro lado, o imperativo da eficácia para solucionar problemas sócio-econômicos crescentemente complexos, obriga o estado administrador a munir-se de cautelas maiores na elaboração e execução de planos e programas de interesse para a coletividade. Daí adotar, como norma geral de comportamento administrativo, o uso do planejamento. Esse planejamento exige prévia definição de diretrizes, clientelas, prioridades e instrumentos de execução. Esse trabalho preliminar compreende o que se tem chamado de definição de políticas setoriais, as quais, visando a certas áreas de necessidades e carências ou interesses prioritários, devem estar integradas à política global de desenvolvimento. Surgem, assim, por exemplo, as políticas do agronegócio, da siderurgia, da exportação, do câmbio, do meio-ambiente etc.

Essa acepção de política tem uma finalidade operacional evidente, especialmente nos países em desenvolvimento. É que as necessidades são tantas e tão diversificadas, que a administração mantida e gerenciada pelo estado deve habilitar-se a prover o desenvolvimento integral; e esse provimento pressupõe, necessariamente, racionalização e organicidade, a fim de que os planos e programas elaborados e executados pela administração atinjam todas as camadas da população de modo equânime, com o máximo de rentabilidade e o mínimo de custo, tal o sentido do princípio da eficiência introduzido no art. 37 da CF/88 pela Emenda Constitucional nº 19/98, com sua dupla face: a da eficiência propriamente dita (relação custo-benefício) e a da eficácia (aptidão para produzir os planejados resultados de interesse público).

2.1.5. A alínea “e” sintetiza o moderno esforço para alinhar a política às ciências sociais. Intenta-se, hoje, sistematizar o conhecimento dos fenômenos ligados ao poder e à autoridade a partir do estado, que seria o fato político básico, a engolfar os demais.

A tanto seria possível rotular de ciência? Aos que a recusam, diga-se que as ciências exatas não criam leis; apenas identificam e sistematizam o que – agora, sim – é da natureza das coisas. Quando Newton enuncia as leis da gravidade e da atração dos corpos, não está inventando. Descobriu-as na natureza, tratou-as, cruzou-as com outros achados e obteve novas explicações e aplicações. O mesmo ocorre com a eletricidade e o átomo. Só que nesse campo – dos elementos naturais – os fenômenos são constantes e iguais, enquanto que sobre a natureza humana, campo em que se passam os fenômenos sociais, incidem outras variáveis. Daí ser possível, nas ciências exatas, a certeza; e nas ciências sociais, a probabilidade. Nem por isso estas deixam de constituir ciência.

O que se busca na ciência política é, pelo estudo sistemático de ações, reações e correlações – como em qualquer ciência -, estabelecer a ocorrência de certos efeitos com razoável grau de previsibilidade e acerto. E enunciar, pela reiteração empírica dos fenômenos, tanto quanto possível, as leis que regem essas reações e correlações.

Essa acepção de política engloba todas as demais, já que, teorética e doutrinária, pretende examinar tudo o que diga respeito aos fenômenos políticos, do ângulo estritamente político. É óbvio que nesse trabalho usam-se ciências afins, ora tomando-lhes os conhecimentos já consolidados, ora usando-lhes os métodos para a pesquisa científica.

Para Francis Sorauf, então professor da Universidade de Minnesota, a ciência política, tal como é hoje entendida, “ocupa-se da tomada de decisão autorizada do sistema político e de todos os processos e atividades pelos quais uma sociedade toma essas decisões, escolhe homens para tomá-las e influencia aqueles que escolheu. Ocupa-se do âmbito dos interesses políticos dos indivíduos e da consciência que estes têm do funcionamento complexo das instituições políticas. Seu enfoque principal se faz sobre os processos de tomada de decisões no sistema político, e sobre qualquer atividade que procura influenciá-la. Qualquer comportamento relacionado com esses processos é um comportamento político”.

Há, portanto, quatro perspectivas sob as quais se faz ciência política:

  1. estudo dos processos, comportamentos e instituições dos sistemas políticos, com o fim de estabelecer generalizações sistemáticas e explicações sobre o que é político;
  2. busca de generalizações sobre relações entre os sistemas políticos, especialmente a política das nações no sistema internacional;
  3. estudo dos produtos finais dos processos políticos, que são as normas públicas;
  4. estudo das ideias e doutrinas sobre governo e sistema político, tais como os conceitos e justificações de democracia, justiça e igualdade.

Tudo isso, porém, ressalvava Sorauf, “não sugere que a periferia da Ciência Política esteja claramente demarcada e isolada das Ciências Sociais vizinhas. Nenhum conceito da vontade política define a disciplina da Ciência Política com exatidão total, pois os processos e instituições sociais do mundo real não estão lançados nos moldes rígidos das disciplinas acadêmicas”.

  1. Os desafios permanentes das opções políticas de gestão do estado.

Segundo Leslie Lipson, então lecionando na Universidade da Califórnia, “a política é o campo de controvérsias sobre alguns problemas permanentes, que hão de ser sempre defrontados, embora equacionados de variadas maneiras”. Tais problemas retratam cinco questões: (a) cidadania; (b) limites das funções do estado; (c) fonte da autoridade e liberdade individual; (d) concentração ou dispersão do poder; (e) relacionamento entre estados.

O problema da cidadania diz respeito aos atores do processo político. Qual será a relação entre os cidadãos? Estarão todos em pé de igualdade ou serão alguns superiores aos demais? A cidadania terá caráter exclusivista ou a todos inclui? Ocorrente a primeira hipótese, os membros de uma sociedade nacional estarão divididos em dois grupos: um gozará dos direitos de cidadania plena, ao passo que o outro reunirá os membros tidos como inferiores em direitos. Se a cidadania abranger a todos, todos desfrutam do mesmo status básico, sem discriminação ou restrição. O princípio diretor é o que estabelece, numa hipótese, regime de privilégio (a divisão entre patrícios e plebeus na sociedade romana clássica), e, noutra, regime de igualdade. A vigente CF/88 optou por este, ao dispor, em seu art. 5º, caput, que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade…”.

O problema seguinte resulta da controvérsia acerca das funções que o estado exerce a favor do indivíduo. Daí a pergunta: existem limites ao que pode o estado realizar de maneira eficaz e deve, pois, realizar? As escolas filosóficas e as práticas da política se têm oposto umas às outras desde sempre a esse respeito. De um lado, sustenta-se que qualquer atividade social ou grupal da sociedade pode ou deve situar-se fora dos limites da jurisdição do estado; contrapõe-se, de outro, a possibilidade de ser traçada uma linha divisória dentre da qual o estado possa mover-se livremente, invadindo, porém, terreno alheio se a ultrapassar. Assim, é de indagar-se se haveria direitos sociais fundamentais, de atendimento e respeito exigíveis do estado brasileiro, além daqueles enunciados no art. 6º da Constituição, a demarcar território sujeito ao controle dos poderes constituídos, uns sobre os outros, como, por exemplo, tem sido exposto nas cada vez mais frequentes demandas judiciais por meio das quais cidadãos cobram do estado o atendimento eficiente e oportuno a necessidades de saúde, educação, transportes etc. – tais os direitos sociais alinhados no art. 6º da CF/88.

O terceiro problema ocupa-se de determinar a origem ou fonte da qual deriva a autoridade. Torna-se crucial porque o estado, ao prestar serviços ao cidadão, há de mobilizar poderes instrumentais e exercê-los. Como as funções do estado concentram-se nas mãos do governo, a relação entre governantes e governados pode tornar-se matéria controvertida. Os que governam, além de invocarem autoridade, procuram justificar-lhe o emprego; os governados tentam conservar o domínio, em última instância, do poder político. Se a distribuição do poder, no estado, for concebida sob a forma de uma pirâmide, como sugere Robert Mac Iver, o governo poderá ser comparado ao ápice, e o restante do povo, à base. A autoridade ou terá origem da base e ascendendo até o ápice, ou provirá do ápice e descendo até a base. Segundo a primeira perspectiva, o governo deve ser fiscalizado pelo povo e responde perante ele. Conforme o segundo, o povo é constituído de súditos dos que governam e lhe cumpre o dever de obedecer.

O quarto problema desdobra-se do anterior. De onde quer que se origine a autoridade – da base da pirâmide ou de seu topo -, há de estabelecer-se o modo pelo qual há de ser organizado o seu exercício. É possível, de um lado, concentrar-se o poder num só núcleo, ou subdividi-lo em atribuições que se dispersam e poderão ser repartidas entre diferentes ramos do governo e distribuídas por diversos níveis. É possível obter-se tal sistema de freios e contrapesos ou afasta-lo, variando a estrutura governamental. Chega-se à interminável discussão sobre o número de ministérios ou de secretarias de estado e suas respectivas áreas de competência, que cada novo governo reordena, a pretexto de melhor sistematizar o funcionamento da máquina governamental e/ou de reduzir custos, com resultados sempre discutíveis.

O quinto problema concerne à magnitude da área coberta pelo estado, ao tamanho da população que a ocupa e aos assuntos pertinentes às relações entre estados. Que dimensões deve possuir a unidade de governo? Quais as proporções físicas ótimas de um estado? De que maneira se devem relacionar estados soberanos? São questões perturbadoras dos teóricos da política e dos cálculos dos estadistas. O mundo ocidental experimentou unidades diversas, tais como a cidade-estado, o estado-nação e o estado-império, e continua a buscar novas formas de organização que posicionem os estados em igualdade recíproca, quaisquer que sejam suas dimensões geográficas, seu padrão cultural ou seu índice de desenvolvimento.

Cada um desses cinco problemas pode ser analisado de per si, dada a especificidade de cada qual. O primeiro concerne aos direitos e deveres recíprocos dos membros do estado e da sociedade civil; o segundo, à amplitude ou ao âmbito das funções do governo; o terceiro, à origem e à legitimação da autoridade; o quarto, à maneira de organizar-se o exercício do poder; o quinto, à dimensão do território e da população do estado. O elo de todos esses problemas é o fato de oferecerem oportunidade de opção entre pelo menos duas possibilidades, tanto que o fator escolha é que constitui a essência da matéria política. Se não houvesse margem para decidir, o problema não existiria. A amplitude da escolha resulta da seguinte série de contrastes: (a) o primeiro problema consiste em escolher entre igualdade e desigualdade; (b) o segundo, entre estado pluralista e estado unitário; (c) o terceiro, entre liberdade e ditadura; (d) o quarto, entre divisão de poderes ou sua concentração; (e) o quinto, entre pluralidade de estados ou estado universal.

Assim resumida, a escolha pareceria limitar-se, em cada categoria, a duas opções, mas, na realidade, existem mais de duas possibilidades, na medida em que há estágios intermediários entre os dois polos de cada opção. Assim, as funções exercidas pelo governo podem ser mais ou menos limitadas; os poderes podem ser dispersos em maior ou menor grau; a liberdade conhecerá graus variados de contenção etc. A chave da compreensão sobre o processo político é reconhecer-se que a diversidade de opções é que borda o fascínio e o desafio da política e dos que sistematizam o seu estudo num conjunto de conhecimentos organizados. Nenhum grupo de pessoas ou partidos será capaz de estabelecer qualquer governo sem enfrentar esses cinco problemas, nem poderá fugir à necessidade de decidir-se a respeito de cada um deles em face do padrão de estado que escolher, cada qual corporificando uma resposta institucionalizada às questões básicas desses cinco problemas, o que já adverte sobre a inexistência de modelos prontos e acabados. Segue-se que nenhuma solução é fixa ou definitiva. Mudam as preferências dos homens, que oscilam entre um polo e outro, reconstruindo, incessantemente, a fachada e a divisão interna de seu estado “ideal”.

A análise das complexidades da política em termos de cinco problemas globais, cada qual oferecendo soluções variáveis, pode conduzir à simplificação da realidade. Seria simplismo exagerado e, por isto mesmo, uma distorção dos fatos, representar a política, em termos finais, como o amálgama de cinco categorias, presas umas às outras. A analogia com um relógio talvez contribua para explicar as coisas. O mostrador do relógio divide-se, de maneira arbitrária, em doze horas, cada qual com sessenta minutos. Tais divisões são necessárias porque nos informam as horas, num dado momento. Mas o tempo é contínuo, num incessante e uno defluir. Assim também acontece com a política. Concluída a análise, permanece a necessidade de proceder-se a nova síntese. Como os governos operam com a realidade, os cinco problemas básicos agem uns sobre os outros, da mesma maneira que se move o ponteiro dos minutos simultaneamente com o das horas.

Qualquer que seja a opção feita, no tocante a qualquer daqueles problemas essenciais da política, dificilmente poderá ele deixar de exercer algum efeito sobre as decisões relativas aos demais. Uma escolha, em qualquer espaço, tende a promover mudanças correlatas noutro espaço. A história da política, se resumida numa única sentença, consiste em experimentar soluções alternativas para os problemas básicos em combinações diversas.

  1. Ética e coeficiente político na gestão do estado

Há dois pontos comuns às acepções e aos problemas fundamentais da política aplicados à gestão do estado.

O primeiro deles é a preocupação, velada ou ostensiva, com as formas sob que se manifeste, a extensão com que se exerça e o uso que se faça do poder. Por conseguinte, cogita-se, invariavelmente, da expressão objetiva do poder, que é a autoridade e as questões técnicas que suscita, tais como, no campo jurídico, a legitimidade, a legalidade e o teor de discricionariedade com que se praticam atos administrativos em dada ordem normativa. A máxima generalização possível acerca do que entender por política seria dizer-se que é o estudo da prática de todos os aspectos do poder e da autoridade, enquanto meios de conduzir pessoas e instituições à consecução de objetivos eleitos como de interesse geral, num certo contexto-histórico-cultural.

O segundo ponto comum é a insuficiência de cada acepção e problema fundamental para abranger, isoladamente, toda a gama de fenômenos e fatos políticos. Nos primórdios de sua formulação, a ciência política sofreu a hesitação dos politicólogos, que vacilavam na delimitação de seu objeto, alguns insistindo em associá-la apenas ao direito, reduzindo-a ao exame comparativo das declarações de direitos insertas nas Constituições, outros relacionando-a somente com partidos e eleições; outros, ainda, restringindo-a ao estudo histórico, ora antropológico, ora sociológico, de certas instituições.

O certo é que todas as acepções e todos os problemas fundamentais coexistem, reclamando três cuidados: (a) a política não se deve desvincular da ética; (b) nenhum dos problemas ou das acepções pode ser tomado em termos absolutos ou exclusivos, posto que todos padecem de limitações e riscos; (c) a consideração política deve sempre constar nas análises que se fizerem de toda e qualquer circunstância que envolva poder e autoridade.

Ilustra tal trilogia a tese do “coeficiente político”, de Georges Burdeau, que, de sua cátedra na Sorbonne, ponderava que a compreensão do fenômeno político é essencial à liberdade responsável e à harmonia nas relações sociais. Para perceber-se a extensão do que Burdeau chamava de “coeficiente político”, tomem-se duas situações que se tornaram corriqueiras na ordem econômica mundial: as oscilações da cotação do petróleo e as relações de comércio internacional. De que modo decisões de política econômica de governos estrangeiros afetam a vida de famílias brasileiras? Decisões sempre foram tomadas por governos estrangeiros, para proteção de seus respectivos interesses no mercado internacional e, para alguns, ainda hoje soaria absurda a ideia de que tais decisões teriam raio de repercussão extenso a ponto de influir, não raro de modo determinante, sobre o tipo de vida de pessoas tão distantes do centro onde foram tomadas, tanto física quanto culturalmente.

O fenômeno, reconhecido como típico da globalização da economia, não é propriamente inédito, guardando certa similitude com a espécie histórica do “noveau riche” produzida pela Revolução Francesa. Este seria caso exemplificativo de repercussão individualizada. Mas as oscilações do preço do petróleo fornece exemplo de repercussão de massa, tanto que pode induzir medidas e alterações em políticas de transportes e até de pagamento de folha de pessoal, em qualquer parte do planeta. O que se evidencia é que as opções, os comportamentos e as decisões de pessoas e instituições, públicas ou privadas, são capazes, como marca de nossa era, de influenciar outras pessoas e instituições sem contar a distância física ou cultural que as separe. Isto acontece porque tais comportamentos, opções e decisões carregam um “coeficiente político” cada vez maior e determinante, que alargam o raio de sua incidência. Entre os fatores que mais contribuem para a elevação desse coeficiente estão os meios e processos decorrentes da informatização e da formação de redes sociais, aptos a produzir transformações cuja rapidez nem sempre é acompanhada por reformas das estruturas legislativas, judiciárias e executivas do estado.

Por isto mesmo seria útil trazer ao cenário atual o que Gaetano Mosca denominou de “fórmula política”. Para o professor italiano da primeira metade do século XX, haveria uma fórmula de grande poder de síntese e generalização, aplicável sempre que se pretenda elaborar uma política sobre qualquer questão, também com serventia para os vários níveis em que uma política haja de ser formulada nas esferas federal, estadual e municipal, alcançando órgãos da administração direta e entidades da administração indireta, na peculiar estruturação adotada para a administração pública brasileira pelo art. 37 da vigente Constituição.

Três componentes devem ser reunidos na fórmula de Mosca: (a) conjunto de doutrinas e procedimentos em que se fundamenta o poder dirigente; (b) as alternativas propostas devem harmonizar-se com o processo de escolha e de organização da classe dirigente; (c) as alternativas devem corresponder à realidade nacional ou local a que se destinam. A viabilidade de implantação de uma política construída no plano teórico dependerá da adequada observância e combinação desses componentes, à cuja falta a formulação proposta terá escassa ou nenhuma chance de vir a ser implementada, o que também adverte para a distinção que se deve fazer entre “cartas de intenções”, costumeiramente dadas a conhecer nos primeiros dias dos governos recém eleitos, e planos de governo, anuais ou plurianuais, que devem orientar a gestão do estado, por isto que indispensável a clara enunciação de objetivos e metas a alcançar, propiciando a mensuração dos resultados efetivados, ou não, em cada caso.

Por óbvio que a fórmula de Mosca não esgota o elenco de variáveis, dependentes e independentes, de fatores e de condições que influenciam o traçado de uma política. Mas da sabedoria de Mosca – que viveu a experiência de duas guerras e seus profundos abalos políticos e ideológicos – é possível extrair relevantes ensinamentos.

O primeiro componente da fórmula significa que toda política setorial há de expressar diretrizes, público-alvo, prioridades e instrumentos, levando em conta a política central ou principal segundo a qual o poder dirigente toma decisões. Uma política setorial dissociada da política central é inviável, embora variantes possam ser habilmente introduzidas.

À primeira vista, pareceria que esse primeiro componente aplicar-se-ia somente quando se tratasse de política governamental. Maior reflexão leva à conclusão de que serve a qualquer organização. Assim, por exemplo, não se admite que diretores imprimam a seus setores orientação colidente ou incompatível com a política geral da empresa. E não se pense que isto só acontece porque, onde haja divergência de pontos de vista, prevalece aquele que for provido de maior poder e autoridade. Acontece porque é impossível a coexistência de dois sistemas na mesma organização: ou há um sistema e seus subsistemas – necessariamente compatíveis -, ou não há sistema algum. Mesmo a forma anárquica representa um sistema, em cujo seio não prosperará qualquer disposição ou organização com ele incompatível; ou se mudará o próprio sistema. Em política, isto deve ser tomado como lei, de cuja plena vigência há inúmeros comprovantes históricos, passados e presentes, aqui e alhures.

Por outro lado, a compatibilidade sistêmica não consagra o imobilismo. Ao contrário, pretende assegurar que as mudanças se operem em função do processo político. Não há processo político – ou ele é inútil ou conduz ao caos – onde se radicalizem posições antagônicas. As mudanças devem fluir como resultantes de constante auto avaliação, mediante indução ou pressão, mas, sempre, segundo as regras do sistema. Estas também são suscetíveis de mudanças, desde que conduzidas buscando-se uma base consensual, não importa o tempo que isto possa levar. O consenso, uma vez obtido, dará legitimidade, autoridade e estabilidade a decisões que, de outra forma, retratariam mero arbítrio, infrutífera contestação ou conflito somente composto pela força. Daí a necessidade de manterem-se, em toda organização, canais e foros adequados para o debate político, do qual poderão resultar desde alterações conjunturais até mudanças substanciais, de ordem estrutural, no sistema vigente.

O segundo componente da fórmula – alternativas propostas harmonizam-se com o processo de escolha e organização da classe vigente – visa a que esta seja desde logo digerida pelos canais políticos. É que a durabilidade no tempo e a eficácia na execução dependerão do grau de aceitação e de corresponsabilidade com que a fórmula seja apreendida e assumida. A fórmula será tanto mais durável e eficaz quanto maior for esse grau. Uma vez aceita a fórmula, a própria execução encarregar-se-á de institucionalizá-la, ora adaptando-a, ora aperfeiçoando-a, ou demonstrará ser ela inexequível ou inadequada. Esta segundo hipótese será remota se a fórmula houver sido absorvida pela classe dirigente, que se esforçará para adaptar e aperfeiçoar, considerando a extinção medida extrema e desgastante do poder e da autoridade. Por outro lado, a absorção da fórmula, dependendo do êxito em sua execução, a despersonalizará e a fará patrimônio comum, o que contribuirá para integrá-la ao sistema e a porá a salvo de eventuais alterações personalistas, mesmo porque, sendo constante e aberto, o fluxo do processo político receberá a regular influência de lideranças que se renovam.

A adequação da fórmula política de Mosca à realidade nacional ou local é tema dos mais versados no Brasil. Inúmeros autores, dentre políticos, sociólogos, filósofos e juristas, desde o Império, abordaram a questão, clamando contra o vezo brasileiro de transplantar para o nosso meio soluções em nada compatíveis com a maturidade política e com as diversidades culturais regionais de nossa sociedade. Texto que bem ilustra a asserção é o de Gilberto Amado, já a propósito de nossa primeira Constituição, a imperial de 1824, verbis:

Tome-se, por exemplo, o recenciamento de 1872, o primeiro que se fez no Brasil. Foi Paranhos, um dos raros que, com Tavares Bastos, Mauá, Capanema, tiveram a preocupação dos assuntos práticos fora ou dentro do Governo, quem o realizou… Vê-se que a população total do Brasil era então de 9.330.479 habitantes, compreendendo 8.419.672 homens livres e 1.510.860 escravos. Segundo a raça, eram 3.801.782 mulatos e mestiços de vários graus; 3.787.289 brancos, 1.959.452 de raça africana e 386.955 de raça índio-americana. Segundo os sexos, o número de pessoas do sexo masculino era de 5.123.869 livres e escravos; 4.806.609 do sexo feminino, livres e escravos. Nesse total cumpre contar quase 300.000 estrangeiros, portugueses na maioria.

Fazendo o desconto do número de crianças naquele total de 5.123.869 habitantes livres e escravos, apurando o grau da sua capacidade econômica e da instrução do seu espírito, verificando a sua eficiência como cidadãos, tendo em vista a extensão enorme do país…, considerando que a Província da Bahia possuía naquele ano (1872) a população de 1.271.792 habitantes livres e 167.824 escravos; que a da Província do Rio de Janeiro era de 409.087 livres e 297.637 escravos; a de São Paulo, de 490.087 livres e 156.612 escravos; a de Minas, de 1.669.276 livres e 370.459 escravos; a de Pernambuco, de 752.511 livres e 89.028 escravos, para falar apenas dos núcleos sociais predominantes; verificando que até esse ano o número de escolas primárias não excedia de 4.000 em todo o Brasil, e o número de alunos não chegava a 160.000, pois, em 1879, em uma estatística destinada à propaganda do Brasil na Europa, o Governo calculava o primeiro número em 7.000, e o segundo em 300.000, pode-se imaginar, depois de pensar nessas coisas, qual podia ser o coeficiente de pessoas verdadeiramente capazes sobre as quais, em um país que a extensão territorial desarticula, haviam de exercer-se a instituições constitucionais, cuja decadência irremediável, na linguagem dos estadistas do tempo, era só devida ao “poder pessoal do Imperador”.

Realmente, teria sido possível sobre essa população tornar efetiva a prática de um sistema originado dos próprios costumes do mais político dos povos, e não apenas “adaptado” como nós o adaptamos, sobre uma “gens” adventícia, sem hábitos de organização e de trabalho, pouco fixada ao solo, de todo inapta à iniciativa mais comezinha na ordem dos seus interesses privados, entregue ao muçulmanismo de uma imprevidência poética relacionada com o sobrenatural das superstições pueris dos selvagens e dos negros, com um espírito afeito ao devanear das contemplações no deserto, uma população enfim que dos seus deveres não podia ter senão uma noção vaga e cujos direitos desconhecia de todo? Seria possível levantar essa população à altura das liberdades que a Carta de 1824 lhe outorgava?

É claro que a Constituição erguida no alto sem contato nenhum com ela, não poderia ser senão uma ficção, um símbolo, uma figura de retórica destinada ao uso dos oradores. A ação política havia de exercer-se através da ditadura dos homens mais aptos ou que reunissem, em virtude do equilíbrio de forças ocasionais, uma soma de prestigio predominante. Ao tempo da dominação conservadora, era um Paraná que representava esse papel ditatorial, como depois da fragmentação do bloco conservador, quebrada a unanimidade que articulava as opiniões e os interesses, esse papel ia naturalmente tornar-se um “dever” do Imperador, por falta de quem o exercesse sem contraste sobre a anarquia dos políticos divididos.

Levada mais longe a análise estatística, veremos que, ainda em 1872, não existia, nem podia existir, aquilo que tanto enchia a boca dos políticos – “o povo brasileiro”. O “povo brasileiro” não podia ser o milhão e meio de escravos, o milhão de índios inúteis que a contagem do Governo reduziu, com evidente imprecisão, a quatrocentos mil apenas; não podia ser os cinco milhões de agregados das fazendas e dos engenhos, caipiras, matutos, caboclos, vaqueiros do sertão, capangas, capoeiras, pequenos artífices, operários rurais primitivos, pequenos lavradores dependentes; não podia ser os dois milhões ou o milhão e meio de negociantes, empregados públicos ou particulares, criados e servidores de todas as profissões. O povo brasileiro, existente como realidade viva, não podia deixar de ser apenas as 300.000 ou 400.000 pessoas pertencentes às famílias proprietárias de escravos, os fazendeiros, os senhores de engenho, de onde saíam os advogados, os médicos, os engenheiros, os altos funcionários, os diplomatas, os chefes de empresas, únicas pessoas que sabiam ler, tinham alguma noção positiva do mundo e das coisas, e podiam compreender, dentro da sua educação, o que vinham a ser monarquia, república, sistema representativo, direito de voto etc.

É por demais evidente a inexistência nesse tempo, como em geral ainda hoje, dessas aglomerações coesas de população, desses núcleos vivos e conscientes de trabalhadores rurais ou urbanos, dessas massas agrícolas disciplinadas e esclarecidas, de onde pudessem sair um corpo eleitoral capaz e responsável.

Diminuída a riqueza da classe única organizada, destruída a preponderância das zonas açucareiras, não equilibrada então pelo surto da prosperidade do sul, como hoje acontece, sob a impressão angustiosa dos déficits da guerra do Paraguai, o país se entregou a uma inquietação natural que, dominando os espíritos, encaminhou a uns para o pessimismo de Francisco Otaviano, de José de Alencar, de Silveira da Mota, de Silveira Martins, de Ferreira Viana, de Saraiva, e a outros para o ideal, ainda nebuloso, da República (À Margem da História da República, Rio de Janeiro, 1924, págs. 57-78).

À “fórmula” de Mosca devemos acrescentar um quarto elemento: a conversão das diretrizes políticas em normas que as tornem exequíveis e criem os instrumentos para sua implementação. Tem sido frequente, nos países em desenvolvimento, a elaboração farta de planos, programas e projetos que não se concretizam por falta de um conjunto de regras que materialize as intenções e institua uma base operativa para transformá-las em ações aptas à produção de resultados.

A institucionalização de uma política depende, fundamentalmente, da adequação entre seu ideário e os instrumentos eleitos para dar-lhe consequência prática. Não raro, criam-se ou adaptam-se – por vezes desnaturando sedimentados institutos jurídicos – instrumentos cuja índole jurídico-administrativa mostra-se incompatível com o grau de agilidade, flexibilidade e autonomia que exige a índole do problema a enfrentar; índole até mesmo reconhecida pelas diretrizes traçadas pela política, mas a que não tem condições de responder o instrumento criado ou adaptado, tanto que se observa, em sociedades tendentes, em processo cultural de amadurecimento, como a brasileira de fins do século XX em diante, a crescente “judicialização” de demandas contra o estado, para o fim de compeli-lo ao cumprimento de políticas públicas constitucionais. Igualmente comum tem sido a simples divulgação de planos sem previsão dos aspectos gerenciais e operacionais da execução, nem clara definição de objetivos e metas, estas devendo retratar a quantificação daqueles.

Nas sociedades cuja maturidade cultural habituou seus membros à observância de regras de comportamento tão somente sancionadas pelo costume, a ausência de normas expressas é suprida, em parte, nessas ocasiões, pela disposição da comunidade em participar de novos planos ou programas, mesmo desprovidos de instrumentos coercitivos. Nas sociedades cujo estágio cultural ainda não atingiu tal maturidade, mostra-se indispensável a qualquer plano a inclusão expressa de normas precisas e bem definidas quanto à execução: divisão de atribuições, responsabilidades, controle, avaliação.

  1. Natureza humana e política: o manejo dos poderes estatais

Todos os seres humanos são iguais e desiguais entre si. Iguais quanto à sua natureza; desiguais quanto à personalidade individual. Para a sociologia jurídica de Recaséns Siches, a universalidade da natureza humana reside: (i) em um conjunto de caracteres biológicos; (ii) em um conjunto de caracteres psicológicos; (iii) no sistema de funções que constituem a vida humana, presentes em todos e cada um, em qualquer época, lugar e circunstância.

Do primeiro ponto de vista, o corpo de todo ser humano tem análoga estrutura (cabeça, tronco, membros, postura ereta etc.); conta com os mesmos órgãos (coração, estômago, pulmões etc.), cumprindo idênticas funções (circulatória, digestiva, respiratória etc.); experimenta as mesmas necessidades orgânicas (alimentar-se, movimentar-se, repousar etc.), submetidas às mesmas lei naturais (físicas, químicas, biológicas).

Do segundo ponto de vista, todos os homens contam com os mesmos atributos volitivos (sensações, percepções, memória, imaginação, abstração, raciocínio, sentimentos de aceitação e de repulsa, impulsos, desejos).

Do terceiro ponto de vista, todos os seres humanos compartilham, em maior ou menor proporção, um sistema de funções inerentes à condição humana (conhecer o ambiente ao redor; capacidade de adaptação à natureza e disposição para dela extrair a satisfação de necessidades imediatas; preocupação religiosa ou mística; organização social, jurídica e política).

Assim, a natureza humana, mercê de sua universalidade, não é um dado do indivíduo fulano ou beltrano, porém uma constante que identifica a raça humana. Não é, pois, fator de diferenciação individual, mas está à base de qualquer consideração em torno da vida social e, pois, de sua organização política.

Recorra-se também ao depoimento de eminentes mestres contemporâneos da antropologia e da história, respectivamente, James Frazer e Arnold Toynbee. Para este, a uniformidade da natureza humana “é tão estreita que o cruzamento de seres humanos de todas as variedades físicas pode resultar em procriação, do mesmo modo que seres humanos de todas as variedades de cultura são capazes de dominar os idiomas uns dos outros e de comunicar suas ideias”.

Segundo Frazer, a unidade da natureza humana não se limita aos traços essenciais do intelecto. Também pode ser divisada na estrutura da vida instintiva e afetiva, onde há algo de permanente nas variações sofridas, através das épocas, quanto à forma e à intensidade de suas manifestações ou quanto aos objetos sobre que recaem as tendências e paixões humanas. Assevera que certa constância existe na direção do espírito e das sociedades humanas em relação aos valores. As apreciações sobre o útil, a verdade, o belo, o justo, o bem e o sagrado variam no tempo e no espaço, contudo ainda não foi encontrado grupo humano que não fosse sensível a tais valores e não desenvolvesse, por conseguinte, uma técnica, um corpo de conhecimentos reputados válidos, uma arte, normas jurídicas, preceitos morais e religiosos, por mais rudimentares que possam ter sido tais projeções culturais.

A unidade da natureza humana é pórtico obrigatório ao aprofundamento do exame de qualquer das ciências do homem. É significativo que os ramos mais modernos desse grupo de ciências confiram relevância à questão. Entre os psicossociólogos, por exemplo, Jean Maisonneuve informa que pesquisadores insistem em que a antropologia, associada à psicologia e à psiquiatria, está em vias de construir um modelo de natureza humana “bruta”, presente em todos os tempos e espaços, a repercutir, destarte, na gestão de organizações sociais e estatais por toda parte. Isto não deve levar, entretanto, ao que Toynbee chama de “falsa concepção da unidade da história”, extraída, comumente, da ideia de um progresso retilíneo de toda a humanidade. Se as civilizações diversificassem os homens de tal modo que os seus respectivos representantes já não reconhecessem entre si traços comuns, não poderíamos compreender o fenômeno da difusão cultural e, muito menos, o fato de que uma civilização, quase sempre, dá nascimento a outra, que se sente sua herdeira. Tanto a difusão de traços culturais como a sua criação independente, em épocas e lugares diferentes, atestam um mínimo de uniformidade humana, sem o qual a História não teria sentido ou não poderia estender-se fora da civilização do historiador, o qual não encontraria meios de escapar da clausura de seu círculo cultural.

Tais reflexões são indispensáveis a que se compreenda como, num país de tantas diversidades como o Brasil, o acesso ao poder e o manejo deste por governantes há de levar em conta o processo evolutivo por que passam, em variados estágios, as populações de regiões distintas, mas ao mesmo tempo irmanadas por laços comuns. Por maiores que sejam as diferenças de cenários e enredos dos dramas que se desenrolam nos palcos das diversas civilizações e espaços territoriais, sentimos interesse em sua história porque sabemos que não é vivida por personagens diferentes de nós. Como assinalou Hegel, “em todos esses acontecimentos e acidentes, vemos sobrenadar a ação e o sofrimento humanos; em toda parte algo nosso e, portanto, uma inclinação de nosso interesse pró e contra”.

Eis porque todo historicismo condena-se à autodestruição sempre que acolher, como verdade isolada, o fato de que os homens têm sido, em todos os tempos, fundamentalmente os mesmos, esquecendo-se de levar em conta as mudanças e a diversidade das configurações que experimenta a vida psicológica e espiritual do indivíduo e das comunidades, em múltiplas contingências, não obstante a permanência dos atributos humanos fundamentais.

De outro turno, a noção, em si verdadeira, de que “a história não se repete” é interpretada de modo tão rigoroso que faz perder de vista outra verdade: a de que todos os fenômenos da vida, incluídos os fatos históricos – como, por exemplo, o predomínio de uma reduzida elite no comando dos destinos de um país continental, em dada época de sua história, como se deduz da estatística censitária retro transcrita de Gilberto Amado -, são, ao mesmo tempo, mas sob diferentes aspectos, únicos e comparáveis, além de se manterem, em certa medida e em determinados espaços, na cultura brasileira, daí aconselharem ética e perspicácia no manejo dos poderes públicos.

A vida em sociedade exige um mínimo de conhecimento social de seus componentes, pressuposto necessário à reciprocidade de reações. Toda ação social implica um mínimo de previsão de suas prováveis consequências. O homem que se dirige a outro calcula, antecipadamente, a reação deste, e o mesmo faz em suas relações com os grupos ou instituições, quer se trate da abertura de um estabelecimento comercial, da fundação de um partido político, da adoção de uma política pública, da gestão financeira do erário ou da prática de um crime. Apenas as ações puramente reativas ou o comportamento dos alienados escapam a essas condições.

Quanto ao grau de certeza e previsibilidade dos fatos, as fórmulas que as ciências sociais podem oferecer são modestas em comparação com as das ciências naturais. O rigoroso determinismo destas somente reina em sistemas de fatos isolados. Seus cálculos valem sob a condição de que todas as circunstâncias permaneçam iguais, o que é absolutamente inviável tratando-se de estruturas de instável equilíbrio, nas quais a conjuntura lida com a unicidade e o jogo de fatores fortuitos imprevisíveis ou contingentes. Nada justifica, entretanto, que se menosprezem as ciências sociais. Se é verdade que muitos dos postulados teóricos dessas ciências não resistem à prova da aplicação prática, não será prudente ignorar suas lições e advertências. Em todo momento histórico, a influência do fortuito ou do contingente pode ser considerável, mas, depois de concretizado, nem sempre o rumo de seus efeitos é de todo imprevisível.

Todas essas digressões incidem na esfera da política. Os métodos, os recursos ou as manifestações da vida política por certo variam através dos tempos, porém em todas as épocas as atitudes políticas e seus objetivos sob forma institucional revelam traços comuns. Os processos técnicos de governo têm conhecido muitas mudanças, mas os problemas fundamentais da autoridade política denotam certa constância: a divisão do povo em classes ou camadas, a porfia por poder e prestígio, a distribuição entre correligionários de posições de mando e influência são fenômenos comuns às mais diversas sociedades. Quanto às formas de governo, a classificação legada pelos filósofos gregos – autocracia, oligarquia, democracia – ainda vige em linhas gerais. Não por outra razão James Bryce (1838-1922) escreveu, em seus notáveis estudos sobre o império romano, que “em nenhuma coisa a humanidade é menos inventiva e mais escrava do costume do que em matéria de estrutura social”.

Os vícios e virtudes que os homens expõem na vida pública são mais ou menos os mesmos em todas as épocas. Há certa patologia dos regimes autoritários, nas monarquias e nas democracias. Em suma, a ação política só tem mudado em seus meios e aparências, não em sua substância. Os antigos demagogos de Atenas ou de Roma, Demóstenes ou os Graco, não se distinguem, essencialmente, em sua atividade política, de Mirabeau ou Danton, da Revolução Francesa, de Castro e Nasser, na segunda metade do século passado, nem de figuras de líderes políticos que frequentam o noticiário internacional deste século. Tais similitudes devem-se à uniformidade da natureza do homem por toda parte, em todos os tempos, sempre conduzido pelas mesmas ansiedades, paixões, virtudes e fraquezas.

Não se nega, em face do espectro histórico reiterado, que o pensamento político seja estimulado pelas condições ambientais ou que conserve estreita ligação com as particularidades de época e local. Se esses aspectos são inegáveis, não o é menos o de que o pensamento político transcende as circunstâncias de seu surgimento, contendo interesse e ensinamento para outras épocas. Tal característica se comprova pelo fato de que quase tudo que o homem escreveu sobre política e estado não perde de todo a sua atualidade.

Registram-se coincidências de pontos de vista entre escritores das mais distanciadas épocas e sociedades. Não seria difícil apontar proposições políticas aceitas por todos, as quais podem ser rotuladas como generalizações empíricas, cuja validade universal é atestada pelos séculos. A assertiva de que todo detentor de poder tende a dele abusar não foi verdadeira apenas ao tempo de Montesquieu, mas para todos os que tenham alguma experiência e conhecimento da História. E a prevenção dessa inexorável tendência tem encontrado, em termos gerais, a mesma receita política em todos os tempos: impedir que as alavancas do prestígio e do poder reúnam-se em uma só mão, devendo-se distribuí-las, inteligentemente, entre as classes sociais e os organismos políticos. Outra coisa não propôs Aristóteles sob a fórmula do governo misto; nem disso divergiu o que praticaram a república romana e a monarquia medieval; ou o que ensinaram Maquiavel e Montesquieu, este apresentando a doutrina da tripartição dos poderes, alçada, não raro, à categoria de cláusula pétrea nas Constituições contemporâneas; ou o que estabeleceram as democracias modernas e pós-modernas, com o processo dos freios e contrapesos constitucionais.

Igual validade anima o princípio de que um inimigo comum aumenta a coesão interna das unidades políticas, do mesmo modo que não se põe em dúvida a verdade, enunciada desde Platão, de que desordens e crises preparam o caminho para um governo de que se espera o restabelecimento da ordem mediante o reforçado exercício da autoridade, a recomendar aos governantes, então, resistência à tentação de fazer uso de meios tão ou mais violentos do que aqueles manejados por organizações criminosas.

Os homens entrelaçam-se em diferentes grupos, desenvolvendo variadas atividades. Somos, simultaneamente, membros de uma família, de um sindicato, de um clube recreativo, de uma igreja, de uma sociedade empresária, de uma instituição pública. A todo momento trocamos experiências e influências com nossos semelhantes e, de certa forma, em graus variados, devemos lealdade a todos esses grupos.

Tais associações e atividades existem em decorrência do caráter sociável da natureza humana, mas a viabilidade e a permanência da vida social dependem de um ordenamento capaz de dar consistência à sociedade. Como erigir esse ordenamento, suas funções, seus limites, a distribuição e a delegação de poderes que o mantenha e dirija, bem como a investidura de sua respectiva autoridade, a elaboração de suas normas diretivas, o grau de sujeição do indivíduo ao sistema, a responsabilização por eventuais abusos de conduta dos agentes públicos – são questões formuladas desde que exista vida social e, portanto, desde que se reconheça a necessidade de organiza-la com o fim de tornar possível a coexistência de pessoas que, conquanto geralmente sociáveis, diferem em personalidades, interesses e objetivos particulares.

Desde que a História o registra, homens pensam em determinar regras que possam ser aplicadas, com êxito, a qualquer grupo, em qualquer lugar, a qualquer tempo, isto é, regras políticas de aplicação universal, ou, ainda, regras ideais de estado e governo, de relacionamento entre governantes e governados, suficientes para fundamentar e guiar a sociedade, tornando-a apta a alcançar a paz e a felicidade, alvo presumível de todos.

Em todas as fases da História, homens idealizaram e tentaram sistemas políticos que canalizassem a natureza humana para o bem comum da sociedade e o bem-estar de seus componentes, e sempre se defrontaram com o dilema entre reconhecer que o homem não passa de lobo de seus semelhantes ou de aceitar que deve e pode voltar-se para o seu próximo com o amor evocado pelos evangelhos. As características e os valores da sociedade contemporânea – sob o bombardeio de conflitos e contradições, amplificado pela instantaneidade das redes sociais informatizadas, para o bem ou para o mal – certamente constituem um desafio diante do qual até a omissão é destrutiva, tanto quanto a ignorância e o desconhecimento em que se pretendam manter populações politicamente imaturas.

  1. À guisa de conclusão: o incremento da eficiência na gestão pública pós-moderna depende da participação dos administrados, em busca de possíveis e prévios consensos

O direito público brasileiro perdeu, em 2017, um de seus mais acatados doutrinadores contemporâneos, Diogo de Figueiredo Moreira Neto, autor de extensa obra acadêmica cinquentenária. Por engenhosa coincidência da história brasileira, Diogo nutria estreitos laços de parentesco biológico com militares que participaram de governos brasileiros nas décadas de 1960, 1970 e 1980, tanto que contribuiu, em vários períodos, com o corpo docente da Escola Superior de Guerra e desempenhou missões culturais de relevo no exterior, designado por tais governantes.

Dedicou-se, ao final de sua octogenária jornada de vida, à elaboração do que seria o primeiro tomo de um tratado de direito administrativo, com o qual, ao lado de ex-alunos e colegas da procuradoria do Estado do Rio de Janeiro, pretendia encerrar sua contribuição à análise da evolução desse ramo do direito público, tomo esse que veio a ser publicado em 2018. A mensagem de Diogo, ao cabo de um refinado acabamento axiológico de suas ideias, terá sido a de que o direito público pós-moderno, em formação no século XXI, não se limita ao aporte do Estado, nem se esgota na legislação, senão que a ambos transcende.

À guisa de conclusão deste artigo, transcreve-se, a seguir,  excerto do posfácio daquela obra, que elaborei em conjunto com Flávio Amaral Garcia, procurador do estado e professor de direito, também ex-aluno de Diogo.

Os alunos de direito público, nos cursos de graduação e de pós-graduação ministrados, nas últimas décadas, em centros acadêmicos de nomeada, tiveram, continuarão a ter, o ensejo de conhecer o que Diogo entendia ser um processo cultural de doma do Estado pela cidadania, a partir do princípio da participação. A doma da onipotência do Estado pelo exercício da cidadania era, ainda é, o que se reconhecia ser o traço distintivo de uma escola de direito administrativo.

Repetem os professores – muitos ex-alunos de Diogo, como os que subscrevemos esta apresentação -, como se pode prever que permanecerão reiterando durante, pelo menos, as próximas duas décadas, à vista da realidade política e cultural do país, que cumpre “Aproximar o administrado de todas as discussões e, se possível, das decisões em que seus interesses estejam mais diretamente envolvidos, multiplicando, paulatinamente, os instrumentos de participação administrativa, com a necessária prudência, mas decididamente, com vistas à legitimação das decisões que, como ensina a ciência política, serão por isso mais aceitáveis e facilmente cumpridas pelas pessoas… Como consectária da participação, a consensualidade aparece tanto como uma técnica de coordenação de interesses e de ações, como uma nova forma de valorização do indivíduo…, parceria que potencializa a ação desses dois atores protagônicos: a sociedade e o Estado” (Mutações de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2000, p. 22-26).

A tese de Diogo é universal. A participação dos interessados e a consensualidade passam a integrar o devido processo administrativo, tanto que consultas e audiências públicas (right to a fair hearing – USA, França, Bélgica, Alemanha, Suíça, México, Argentina) são previstas como integrantes do processo, tanto na Lei federal brasileira nº 9.784/99, art. 32, quanto na lei estadual do processo administrativo fluminense (Lei nº 5.427/09, art. 46), certamente inspiradas pela mesma orientação – No exercício de sua função decisória, poderá a administração firmar acordos com os interessados, a fim de estabelecer o conteúdo discricionário do ato terminativo do processo, salvo impedimento legal ou decorrente da natureza e das circunstâncias da relação jurídica envolvida, observados os princípios previstos no art. 2º desta lei, desde que a opção pela solução consensual, devidamente motivada, seja compatível com o interesse público.

Arrematava Diogo que “O instituto da audiência pública é um processo administrativo de participação aberta a indivíduos e a grupos sociais determinados, visando ao aperfeiçoamento da legitimidade das decisões da AP, criado por lei, que lhe preceitua a forma e a eficácia vinculativa, pela qual os administrados exercem o direito de expor tendências, preferências e opções que possam conduzir o Poder Público a decisões de maior aceitação consensual” (idem, ibidem).

O direito positivo brasileiro dos últimos vinte anos também foi aos poucos se impregnando da pregação de Diogo, disseminada por discípulos, ao que se extrai da CF/88, art. 58, § 2º; da Lei Geral de Telecomunicações, nº 9.472/97, art. 19, III; da Lei de Normas Gerais sobre Licitações e Contratos, nº 8.666/93, art. 39; da Lei de Responsabilidade Fiscal, art. 9º, § 4º; da Lei do Meio Ambiente, nº 6.938/81, art. 8º, II; da Resolução CONAMA nº 237/97, art. 10, V; da Lei nº 9.427/96, de Energia Elétrica, art. 4º, § 3º; da Lei nº 9.478/97, de exploração e comercialização de petróleo, art. 19; da Lei nº 10.257/01, Estatuto da Cidade, artigos 2º, 4º e 43; da Lei nº 9.868/99 (processo e julgamento de Adin no STF), art. 9º, § 1º; culminando com o acolhimento, pelo Código de Processo Civil promulgado em 2015, da figura do amicus curiae, bem como dos princípios da não surpresa e da colaboração, artigos 10 e 15. Releiam-se as linhas introdutórias do que Diogo aspirava que fosse o primeiro volume de um novo tratado de direito administrativo brasileiro, comprometido com a pós-modernidade:

A laboriosa construção de um Direito Administrativo Pós-Moderno brasileiro, da qual resultou sua vitoriosa evolução em nosso País, ao transcender de uma tradicional percepção de mera legalidade das ações estatais coercitivas unilaterais voltadas à satisfação de interesses públicos pelo Estado e suas agências, para se expandir a uma percepção ampliada e enriquecida da juridicidade do atendimento de interesses gerais da sociedade, quer por agentes públicos ou privados, estendido às possibilidades abertas pela ação consensual e cooperativa entre ambos, é uma ciclópica obra enriquecedora que deve ser creditada a toda uma geração de administrativistas criativos, que se ocuparam entre nós, desde a Segunda Guerra Mundial, de perfazer essa exitosa transição com seus estudos e aportes científicos, graças aos quais toda e qualquer Ciência sobrevive e viceja atual e prestante… A essa plêiade se roga vênia para destacar três momentos… [dessa] transição do Direito Administrativo Moderno para o Pós-Moderno… com a qualidade requerida e uma fácil absorção dos novos paradigmas transformadores. A Era Moderna, que se estendeu do Renascimento até o Século XX, se esgota, convencionalmente, com o fim da belle époque e do período de paz que antecedeu a 1ª Guerra Mundial, em 1914, com as grandes mudanças culturais que, desde então, nos vem tornando a vida civilizada cada vez mais complexa e problemática, como bem descreve e estuda JEAN-FRANÇOIS LYOTARD, filósofo francês, assim batizando esta Era, que adentramos, em sua obra A condição Pós-Moderna (1979). Encompassando todo o espectro cultural no curso dessa transição de Eras, o Direito não ficou à margem das mudanças de paradigmas que se sucederam, envolvendo a ciência, a literatura, as artes e, de modo geral, a convivência social, senão que os absorveram, na configuração de novos princípios jurídicos, a espelhar os valores capitais provindos da Política e da Sociologia, que substituiriam os modelos estatocêntricos e autoritários, inerentes à tradição regaliana, já longa de cinco séculos. O término da Segunda Guerra Mundial, na metade do Século XX, abriria as condições culturais e políticas para um processo de juridicização pós-moderna em escala global, iniciada logo depois do Armistício de 22 de junho de 1940, gerando benéficos reflexos sobre o Brasil, que, incitado pela repatriação da Força Expedicionária Brasileira, vitoriosa sobre o autoritarismo nazifascista, provocou a redemocratização e a reconstitucionalização do País e, graças a ambas, a institucionalização de um Direito Público inspirado pelos novos valores trazidos pela Pós-Modernidade, neles destacados e fundamentalmente os da democracia e dos direitos humanos” (op.cit.).

    Atravesse-se, aqui, a ponte entre a saudade e a posteridade – do passado recente ao futuro previsível -, estendida pelo compromisso de Diogo com a dignidade humana.

Os direitos humanos são direitos subjetivos cujo titular exclusivo é a pessoa humana. São oponíveis, de um lado, ao Estado (e subsidiariamente à comunidade internacional); de outro, aos demais indivíduos e diferentes grupos que integram. Em outras palavras, os direitos do homem estão hoje inseridos no direito positivo e o seu descumprimento é objeto de sanções.

     Definidos nas constituições nacionais e nos principais instrumentos internacionais (como na Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948), esses direitos são de ordinário agrupados em duas categorias, ao que registra o Dicionário Enciclopédico de Teoria e de Sociologia do Direito (Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 1999, p. 272-273):

     (i) os direitos civis e políticos, que visam, em primeiro lugar, proteger a integridade, a liberdade e a segurança da pessoa humana (como direito à vida, a proibição de tortura, o direito à justiça, à liberdade de pensar e à liberdade religiosa, além do direito de voto); essa primeira categoria de direitos, qualificada de “direitos-faculdades” ou “direitos-autonomia”, delimita a esfera de liberdade e de iniciativa da pessoa humana que o estado deve respeitar, abstendo-se de intervir, a não ser para salvaguardá-la;

     (ii) os direitos econômicos, sociais e culturais, que exigem uma atuação específica por parte da sociedade e por parte do estado (como o direito ao trabalho, à seguridade social, a um nível de vida suficiente, à proteção da saúde, à educação e à cultura); essa segunda categoria de direitos, chamada também de “direitos-crédito” ou de “direitos-participação”, abrange o campo das condições necessárias para assegurar o bem-estar e o florescimento da pessoa humana no seio da sociedade e implica a intervenção do estado na qualidade de devedor de prestações que tornem efetivos aqueles direitos para todos, sem exclusão.

     Paralelamente a essa classificação, que corresponde à evolução histórica do rol dos direitos reconhecidos, é possível distinguir entre os direitos fundamentais do homem e os outros direitos humanos que devem ser preservados a qualquer tempo e em qualquer lugar, quaisquer que sejam as circunstâncias. São os direitos mais elementares, como o direito à vida e à integridade da pessoa, acerca dos quais nenhuma derrogação é permitida nas convenções internacionais, de sorte a concluir-se que os direitos humanos são indivisíveis e interdependentes.

     Não obstante, o reconhecimento dos princípios e das normas pela comunidade internacional não resolve o problema do fundamento dos direitos humanos, mas apenas o posterga. Persistem justificações que diferem e interpretações que divergem. Resultam incerteza e fragilidade do conceito.

     O processo de universalização dos princípios e das normas choca-se também com a diversidade das culturas às quais estes se pretendem aplicar, considerando, ademais, que esse movimento provém de circunstâncias históricas que afetam as sociedades, desafiadas a escolher um sistema de organização política que permita a concretização desses direitos.

     As garantias continuam insuficientes, ineficazes ou mesmo inexistentes no âmbito nacional; os sistemas internacionais de proteção permanecem subdesenvolvidos, mesmo que se tenham logrado avanços em certas regiões, notadamente no âmbito do Conselho da Europa e da Organização dos Estados Americanos, e novos caminhos se abram em outras regiões (como o que foi inaugurado com a entrada em vigor da Carta da África dos Direitos Humanos dos Povos, já ao findar do século XX). O desrespeito tão comum aos direitos humanos coloca em questão o caráter “operário” das normas universalmente definidas e a sua credibilidade.

     Frente a esses desafios contemporâneos e em face daqueles especificamente ligados ao progresso das ciências e das técnicas, aos novos meios de comunicação, aos problemas do desenvolvimento e da paz, os direitos humanos carecem de pontos de apoio inafastáveis e inadiáveis nas ordens jurídicas internas. Daí a relevância da participação e do consenso.

     Em primeiro lugar, a universalidade que caracteriza o reconhecimento das normas constitui evolução de raiz; além das diferentes concepções e ideologias, concerta-se um tipo de acordo com objetivos pragmáticos que faz com que a Declaração Universal dos Direitos do Homem seja referida praticamente em todos os pontos do globo. E sobre essa base constrói-se um edifício normativo em nível mundial e regional, a consagrar a definitiva inserção dos direitos humanos no direito positivo. Não somente as normas são definidas com precisão cada vez maior, mas as modalidades de sua efetivação estão incluídas em instrumentos internacionais juridicamente obrigatórios para os Estados que os ratificam, em número crescente.

Os direitos humanos não mais traduzem apenas um “estado de alma” ou um devaneio, porém estão inscritos na maioria das constituições e nos tratados, e se transformaram em uma realidade jurídica. A opinião pública mundial, representada na cena internacional pelas organizações não governamentais, desempenhou um papel essencial nesse evolver normativo, e é nele que continua a repousar, em grande parte, o progresso da etapa atual: a da aplicação concreta do direito efetivo.

     Na medida em que os direitos humanos correspondem a uma reivindicação universal, devem, quaisquer que sejam as particularidades de sua emergência histórica, encontrar raízes na diversidade das culturas, bem assim procurar contribuir para o enriquecimento de um conceito cujo monopólio não pertence a nenhuma delas. Mais do que a universalidade, é o potencial de inovação que está em questão.

     A redemocratização do país ensejou a elaboração da Constituição vigente de 1988. Seu Título II dedica-se aos “Direitos e Garantias Fundamentais”. O Capítulo I é intitulado “Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”; o Capítulo II alude aos “Direitos Sociais” e o capítulo IV, aos “Direitos Políticos.” O que se pode observar, averbava o saudoso Celso de Albuquerque Melo,

“é a predominância de uma ótica que podemos considerar como pertencendo ao liberalismo, que é o estabelecimento de uma distinção entre os direitos civis e políticos, de um lado, e os direitos sociais, de outro. Não há dúvida de que é uma divisão metodológica, mas que significa uma diferenciação e se esquece de que na realidade os direitos humanos são indivisíveis. A realização de um depende da efetivação do outro. De um modo geral, o Brasil conta com um bom texto constitucional sobre os direitos humanos, bem como tem ratificado os principais tratados sobre o tema. Contudo, há uma imensa distância entre a Constituição, os tratados e a realidade. No caso da Carta Magna, falta implementá-la; em relação aos tratados, falta ao Poder Judiciário aprender a aplicá-los. O Direito Internacional Público é ignorado pelos juristas brasileiros. Vários tratados não foram implementados pela legislação brasileira, como, por exemplo, as convenções de direito humanitário de 1949, que ratificamos faz mais de 40 anos. Os direitos humanos são, ainda, privilégio de uma pequena parcela da população” (in Dicionário cit, p. 275-276).

Outro ângulo sob o qual se deve perscrutar o tema é o de sua utilidade para o manejo da administração responsiva e de resultados, no estado democrático de direito. Expressando este, como expressa, a contemporânea versão do estado servidor e regulador, é de exigir-se que todos os seus poderes, órgãos e agentes estejam persuadidos de que devem respostas e satisfações à sociedade civil. Ou seja, esta é a titular do poder político de decidir sobre os seus próprios destinos, incumbindo àqueles realizá-los na conformidade das opções da sociedade, na medida em que harmonizadas com a ordem jurídica constitucional e os direitos fundamentais que consagra e prescreve.

Em outras palavras, os planos de ação governamental não são concebidos, como outrora, para atender aos desígnios das autoridades estatais. Estas devem colher os reclamos legítimos da sociedade e atendê-los. Daí a visceral importância de elos permanentes e hábeis de comunicação entre a sociedade e o estado, de sorte a que este absorva os comandos daquela e os implemente no que consensuais. O estado democrático de direito é o garante da efetivação dos direitos elevados à Constituição, sejam os individuais, os econômicos, os políticos ou os sociais. Ser-lhe fiel é o dever jurídico indeclinável do estado.

Essa fidelidade há de estar presente em todos os níveis do planejamento. Cada plano de ação governamental deve ser uma resposta à efetivação dos direitos fundamentais e do respeito à dignidade humana que os inspira. Se assim não for, não haverá estado democrático de direito, nem a administração responsiva e de resultados que lhe deve corresponder.

Nada obstante, há uma condição cultural, em seu sentido sociológico, para que tal ocorra: a sociedade há de emancipar-se da polarizada relação entre tutores e tutelados, que caracteriza a cultura brasileira desde o seu berço colonial. Entendendo-se por tutor todo aquele que ocupe posição de prestígio e poder na hierarquia social – seja qual for a natureza dessa hierarquia – e por tutelado todo aquele que se socorra do tutor para obter vantagem ou proteção de toda sorte.

Não seria necessária maior digressão para perceber-se como essa relação compromete a emancipação da sociedade brasileira; basta lembrar os critérios segundo os quais grande número de candidatos se elege, por prometer vantagens e ganhos pessoais a seus eleitores (material de construção, empréstimos, empregos, cargos, apadrinhamentos, atendimentos pelos serviços públicos etc.). O socialmente patológico dessa relação está em que o tutor compraz-se em ser tutor e o tutelado anseia por encontrar o seu tutor e permanecer como tutelado. Em outras palavras: emancipação não há, nem espaço há para o mérito nessa relação, prevalecendo os interesses egoísticos. Logo, tampouco há real preocupação em controlar e avaliar resultados, com o fim de dar-se início a novo ciclo virtuoso de gestão mediante a correção de erros acaso cometidos no planejamento da ação anterior, na medida em que esses erros refletem aqueles interesses personalistas e partidários, distantes do interesse público e do bem comum.

     Sobrelevam, mais uma vez, os direitos humanos como norte inspirador do direito justo e este como resultado esperável da ordem jurídica. Na qualidade de garante da dignidade das pessoas e do respeito devido a seus direitos fundamentais, erguem-se os agentes públicos entre os principais protagonistas dos esforços tendentes a converter a pauta enunciada desses direitos na Constituição e nas leis em realidade pulsante do cotidiano da cidadania. Há de retratá-lo em todas as suas escolhas e na gestão de todos os seus meios organizacionais, materiais e de pessoas. Que este último texto de Diogo de Figueiredo Moreira Neto os guie – agentes públicos ou não, posto que cidadãos todos são – nesse desafio da adolescente história da pós-modernidade.

Referências bibliográficas

ADISESHIAH, Malcom – O papel do homem no desenvolvimento. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1973.

BURDEAU, Georges – Droit Constitutionnel et Institutions Politiques. Paris: Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 15ª ed., 1972.

DUVERGER, Maurice – Sociologia Política. Trad. Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1966.

KELLER, Suzanne – O Destino das Elites. Trad. Luís Cláudio de Castro. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1967.

LIPSON, Leslie – Os Grandes Problemas da Ciência Política. Trad. Thomaz Newlands Neto. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1967.

MADDICK, Henry – Democracia, Descentralização e Desenvolvimento. Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1966.

MAISONNEUVE, Jean – Introduction à la Psychosociologie. Paris: Presses Universitaires de France, 1973.

MARSHALL, T. H. – Política Social. Trad. Meton Gadelha. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1967.

MERTON, Robert – Sociology Today. New York: Basic Books Inc., 1959.

MIRANDA, Pontes de – Democracia, Liberdade, Igualdade (Os Três Caminhos). São Paulo: Ed. Saraiva, 1979.

MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo – O Direito Administrativo no Século XXI. Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2018.

NOVAES, Paulo – Economia e Recursos Humanos. Rio de Janeiro: Ed. Renes, 1971.

PALLIERI, Giorgio Balladore – Doutrina do Estado. Trad. Fernando de Miranda. Coimbra: Coimbra Editora, 1969.

POPPER, Karl – A Sociedade Democrática e seus Inimigos. Trad. Milton Amado. Rio de Janeiro: Ed. Itatiaia, 1959.

SAMPAIO, Nelson de Souza – Ideologia e Ciência Política. Bahia: Livraria Progresso Editora, 1953.

SAMUELSON, Paul – Introdução à Análise Econômica. Trad. Luiz Carlos do Nascimento Silva. Rio de Janeiro: Ed. Agir, 8ª ed., vol. I, 1975.

SCHILLING, Kurt – História das Ideias Sociais. Trad. Fausto Guimarães. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1966.

SORAUF, Francis – Iniciação ao Estudo da Ciência Política. Trad. Waltencir Dutra. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1967.

TOYNBEE, Arnold – De Leste a Oeste. Trad. Aydano Arruda. São Paulo: Ed. Ibrasa, 1959.

 

Palavras Chaves

Reforma constitucional; política; desenvolvimento; natureza humana; poderes estatais; gestão pública; consenso.