REFORMAS TRABALHISTA E PREVIDENCIÁRIA: RETROCESSO SOCIAL E DIREITO DE RESISTÊNCIA

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REFORMAS TRABALHISTA E PREVIDENCIÁRIA: RETROCESSO SOCIAL E DIREITO DE RESISTÊNCIA

 Luís Fernando Silva[1]

Desde a posse de Michel Temer na Presidência da República a sociedade brasileira vem se deparando com o recrudescimento de iniciativas governamentais e legislativas voltadas à redução de direitos sociais e das políticas de proteção estatal aos setores menos favorecidos da sociedade, como são exemplos gritantes a PEC nº 241 (já transformada na Emenda Constitucional nº 55, de 2016), que “congela” os gastos públicos por 20 (vinte) anos; a PEC nº 287, de 2016 (ainda em tramitação), que modifica os regimes públicos de previdência social; e o PLC 38, de 2017 (também em tramitação), que modifica profundamente a legislação trabalhista, mitigando ou revogando direitos conquistados pela classe trabalhadora brasileira em décadas de muita luta e sacrifícios.

Todas estas propostas tem uma sustentação política comum, calcada nos velhos e surrados argumentos de que o desenvolvimento do País e a retomada de níveis razoáveis de emprego exigem, de um lado, a flexibilização das relações de trabalho, a liberdade para que os patrões possam impor acordos de trabalho que não assegurem sequer a legislação protetiva básica, e a possibilidade de terceirização de todas as atividades, com a evidente redução dos vínculos formais de trabalho, enquanto de outro lado reclamam a redução das despesas públicas com a manutenção de direitos sociais como saúde, educação e previdência, esta última acusada de ser geradora de um déficit que estaria alcançando patamares “insuportáveis”, ameaçando explodir o orçamento público e jogar o País numa crise fiscal sem precedentes.

No fundo, entretanto, todos sabemos que estes “argumentos” apenas escondem uma visão política reducionista do papel do Estado, fundada na concepção neoliberal, que coloca os interesses “do mercado” – mais precisamente, os interesses dos grandes grupos econômicos, nacionais e transacionais -, acima dos interesses do povo, e que tem como objetivo principal a superação e a derrogada dos ideais de construção de uma sociedade fundada nos postulados da dignidade da pessoa humana, da igualdade, do valor social do trabalho, e da soberania nacional, preceitos extraídos da Declaração Universal dos Direitos da Humanidade, de 1948, incorporados à Carta de 1988 como princípios fundadores de uma sociedade que recuperava a democracia após mais de duas décadas de ditadura militar.

Cumpre relembrar, neste ponto, que a incorporação destes direitos humanos aos ordenamentos internos dos países se intensificou após o fim da Segunda Grande Guerra, como ocorreu com as Cartas da Itália (1948) e da Alemanha (1949), ambas respectivamente promulgadas logo após o fim do fascismo e do nazismo; de Portugal (1976), levada a termo ainda na efervescência da “Revolução dos Cravos”; e da Espanha (1978), que substituiu o regime “franquista” por um Estado social e democrático de direito, todas Constituições que – a exemplo da brasileira -, possuem como característica fundante aquilo que alguns constitucionalistas, como FERRAJOLI (2015, p. 100), consideram um novo paradigma constitucional, marcado pela elevação dos direitos fundamentais ao ápice do ordenamento jurídico e das fontes de direito, impondo limites e vínculos à toda atividade estatal e privada.

Daí porque enquanto no ordenamento constitucional brasileiro anterior os direitos sociais encontravam-se diluídos dentre os dispositivos relativos à ordem econômica, a Carta de 1988 acabou por lhes dedicar todo um Título (colocado logo após o seu Preâmbulo e os princípios formadores da República), para tratar especificamente dos chamados “Direitos e Garantias Fundamentais”, alguns deles novamente invocados até mesmo quando a Carta da República passa a tratar “Da Ordem Econômica e Financeira”, em seu “Título VII”, mais particularmente no art. 170.

São, portanto, direitos que possuem como característica marcante a sua extensão a todos os seres humanos – ou no plano interno a todos os brasileiros e brasileiras -, agora não mais em caráter individual e em torno de obrigações negativas (como se dava no Estado liberal), mas na forma de direitos positivos, deferidos à toda a coletividade, e que por isso mesmo exigem uma intervenção estatal capaz de assegurar as garantias mínimas para a sua realização e manutenção.

Apesar disso, entretanto, o que vemos atualmente no Brasil é a tramitação de propostas de modificações legislativas e constitucionais em franca colisão com os direitos fundamentais referidos alhures, levadas a cabo por um Congresso Nacional absolutamente deslegitimado para tanto, envolvido que está no maior escândalo de corrupção da nossa história republicana recente, e que segundo as denúncias até aqui veiculadas alcançaria direta ou indiretamente centenas de Parlamentares, além dos Presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, lançando seus braços até o Presidente da República, autor originário destas propostas.

Vivenciamos, em suma, um quadro conjuntural no qual o poder econômico subjugou claramente o poder político, seja pela prevalência e consolidação da sua ideologia liberal ou pela simples corrupção dos agentes públicos, enquanto este mesmo poder político – novamente a serviço do poder econômico -, concentra as forças que lhe restam no ataque frontal aos direitos sociais, reproduzindo por estas paragens o mesmo quadro de crise na democracia pintado por FERRAJOLI (2015, pag. 163) ao afirmar que “é neste dúplice processo que reside a crise sistemática que está ocorrendo nas democracias ocidentais: a substituição do governo político e democrático da economia pelo governo econômico e obviamente não democrático da política, que, por sua vez, exige a remoção da Constituição do horizonte da ação do governo e a redução das promessas “excessivas” da democracia constitucional”.

O interesse principal do presente trabalho reside aí, ou seja, em saber em que medida é lícito ao povo – fonte principal do poder -, se indispor contra estas modificações legislativas e constitucionais, seja individualmente ou por meio das suas entidades representativas, sem que esta resistência seja tida como atos delituosos, como o Governo Federal e os grandes meios de comunicação do País costumam trata-la, sempre com o fim de tentar criminalizar estes movimentos perante a opinião pública, reduzindo-lhe o ímpeto e a amplitude social.

A Constituição de 1988 e o necessário respeito dos governantes aos limites e vínculos que marcam as Constituições rígidas

                  Conforme vimos anteriormente, a Carta da República, de 1988, é daquelas Constituições que colocam os direitos fundamentais no ápice do ordenamento jurídico, fixando limites e vínculos a toda atividade estatal ou privada, de tal sorte que enquanto a existência ou vigência das normas continuou dependendo do respeito às formas ditadas para a sua aprovação (legalidade formal), sua validade passou a depender também do seu conteúdo, mais especialmente da coerência deste com os direitos fundamentais que lhe balizam o significado, incumbindo aos órgãos estatais não só a oferta de garantias para a própria realização destes direitos fundamentais, como também o estabelecimento de mecanismos de controle capazes de coibir a violação destes direitos, devendo observar sempre, como afirma CANOTILHO (1991, pag. 105), os limites e vínculos impostos por estes mesmos direitos fundamentais.

Nesta direção FERRAJOLI (2015, pag. 58 e 87) afirma que os direitos fundamentais consistem, de um lado, em expectativas negativas ( como são todos os direitos de liberdade e os direitos de autonomia), impondo limites ou proibições de lesão; e do outro em expectativas positivas(como sabem ser os direitos sociais), neste caso a impor vínculos, ou seja, obrigações de prestação, de modo que tendo estes direitos sido elevados ao patamar de normas supraordenadas, tal posição confere aos seus titulares – ou seja, todos os cidadãos e cidadãs -, uma posição também supraordenada em relação ao conjunto de poderes públicos e privados, que são então funcionalizados ao respeito e à garantia destes próprios direitos.

Nas chamadas Constituições “rígidas”, portanto, é dado ao povo não só o poder de escolher livremente os seus representantes, como também o exercício dos contrapoderes que emanam dos direitos fundamentais (dentre os quais os de liberdade e os direitos sociais), sendo-lhes lícito cobrar dos seus representantes o respeito aos limites e vínculos acima mencionados, que alcançam, por obvio, até mesmo as modificações constitucionais.

 Por outro lado, segundo MACIEL (2016, pag. 55) estes direitos fundamentais hão de ser vistos não apenas a partir do texto expresso da Constituição, mas com os olhos voltados ao cumprimento do princípio da máxima efetividade das normas constitucionais e da força expansiva dos valores da dignidade humana e dos direitos fundamentais, devendo-se ter como incorporados a eles (e às proteções que deles emanam) também outros direitos sociais, originados de legislações esparsas e infraconstitucionais, eis que destinados ao atendimento dos postulados da igualdade e da dignidade humana, colocados no centro do sistema jurídico pátrio.

Assim, tendo-se em conta que os direitos protetivos ao trabalho e à Previdência Social – seja sob a forma de normas constitucionais ou infraconstitucionais -, constituem direitos sociais (e, portanto, fundamentais), então é evidente que as propostas de reforma trabalhista e previdenciária, em curso no Brasil, sendo voltadas como são à redução da eficácia destes direitos, encontram-se em franca colisão com a própria Constituição e seus preceitos fundantes, dentre os quais a proibição de retrocesso social.

A proibição de retrocesso no ordenamento constitucional brasileiro

Sem dúvidas que a segurança jurídica é um bem que materializa uma das mais importantes expectativas do ser humano, que almeja a estabilidade das relações jurídicas e do próprio ordenamento, de modo a desenvolver seu projeto de vida livre de surpresas negativas, decorrentes de revisões inesperadas.

Esta necessidade de segurança se acentua ainda mais quando estamos diante da estabilidade dos direitos fundamentais (dentre os quais os direitos sociais), haja vista sua abrangência e imprescindibilidade para a realização da igualdade e da dignidade da pessoa humana, nascendo aí o que chamamos de princípio da proibição de retrocesso, a ser tomado não só em relação à irretroatividade formal, ou seja, relacionada aos efeitos pretéritos das modificações legislativas ou constitucionais, mas também em seus efeitos prospectivos, posto que se tratam de proteções que se voltam à proteger o conjunto da sociedade em sua luta constante pela igualdade e dignidade em seu sentido também não apenas formal, mas sobretudo material e substantivo.

Daí porque CANOTILHO (1982, pag. 374) afirma que ao serem concretizados no nível infraconstitucional os direitos fundamentais reclamam, a um só tempo, a condição de direitos subjetivos a determinadas prestações estatais, de um lado, e à garantia institucional à sua manutenção, do outro, ficando desta forma imunes às modificações legislativas que coloquem sob ameaça o padrão já alcançado, afirmação corroborada por BARROSO (2001, pag. 158) ao lecionar que mesmo que a proibição de retrocesso não seja encontradiça de forma expressa em nosso Texto Constitucional, ele “decorre do sistema jurídico-constitucional”, devendo-se entender que se uma lei, ao regulamentar um mandamento constitucional, institui determinado direito de dimensão social, este se incorpora ao patrimônio jurídico da cidadania, não podendo mais ser suprimido.

SARLET (2011, pag. 124), por sua vez, aponta que a proibição de retrocesso, em matéria de direitos sociais, representa “uma categoria reconhecida e em processo de crescente difusão e elaboração doutrinária e jurisprudencial em várias ordens jurídicas, inclusive em função da sua consagração no âmbito do Direito Internacional e dos direitos humanos”.

Destarte, conquanto no plano interno ainda estejamos longe de atingir um grau satisfatório de proteção social, seja em questões como saúde, educação ou proteção previdenciária e assistencial, força é reconhecer que o (pouco) que temos foi fruto de décadas de lutas sociais que lograram elevar estes direitos ao ápice do ordenamento constitucional, de tal sorte que se é o próprio Estado que pretende destruí-los ou reduzir-lhes a eficácia, o direito de resistência emerge não só como direito, mas como verdadeira obrigação de todo o tecido social

Com efeito, é inadmissível que um País que ainda convive com casos (não raros) de trabalho escravo; que possui diversidades econômicas e sociais regionais tão graves e níveis de concentração de renda típicas de países subdesenvolvidos; que conta com um sistema educacional precário; que tem um dos salários-mínimos mais baixos da América Latina; no qual a expectativa de vida média está abaixo dos 74 (setenta e quatro) anos; e cuja imensa maioria dos trabalhadores que conseguem alcançar a aposentadoria por idade não tem como comprovar mais o que parcos 15 (quinze) anos de relação formal de trabalho, seja capaz de conviver com propostas de reforma trabalhista e previdenciária que tornam ainda mais precárias estas relações de trabalho, incentivam a informalidade, e desequilibram ainda mais a já desequilibrada relação de poder entre o capital e o trabalho, ao tempo em que, no campo previdenciário, passam a exigir o mínimo de 25 (vinte e cinco) anos de contribuição para a aposentadoria, quando se sabe que na atual aposentadoria por idade a imensa maioria dos trabalhadores brasileiros mal consegue comprovar o atual tempo mínimo de 15 (quinze) anos, o que permite concluir que o incremento desta exigência, vis a vis o aumento da informalidade resultante da reforma trabalhista, resultarão na completa impossibilidade destes brasileiros lograrem a aposentadoria antes da morte.

Da mesma forma, ao exigir o mínimo de 40 (quarenta) anos de contribuição para o direito à percepção de uma aposentadoria calculada com base na integralidade da média das contribuições havidas neste longo período, as novas regras propostas jogarão sensivelmente para baixo o valor final destas aposentadorias, impondo a milhões de trabalhadores a necessidade de permanecer no mercado de trabalho para assegurar uma renda adicional, o que dificultará ainda mais a empregabilidade dos jovens.

Como se vê, é inquestionável o retrocesso social que nos está sendo imposto!

Quando o Estado se coloca a serviço do poder econômico/financeiro e contra os direitos sociais, emerge o direito de resistência e à desobediência civil  

Posta a questão nos termos anteriores – em que fica evidente a ofensa aos limites impostos pelos direitos fundamentais à liberdade de legislar ou de reformar a Carta da República, bem assim o caráter de franco retrocesso social que demarca as propostas de reforma trabalhista e previdenciária em curso -, cumpre verificar que papel vêm desempenhando as instituições do Estado brasileiro neste contexto.

Neste ponto, e antes de prosseguir, cumpre relembrar que tão logo os seres humanos passaram a viver em grupos maiores – com as contradições e conflitos de interesses que daí surgiram -, viram-se diante da necessidade de criar uma figura artificial (o Estado) capaz de estabilizar as relações sociais e de defender os interesses comuns destes grupos contra os inimigos externos. Na versão de ENGEL (1979, p. 103) a criação do Estado se deu “para que os antagonistas, as classes com interesses econômicos opostos, não se aniquilem entre si e à sociedade em uma luta estéril, impõe-se a necessidade de um poder que, posto aparentemente acima da sociedade, deva amenizar o conflito, mantê-lo dentro dos limites ‘da ordem’; e tal poder, nascido da sociedade, porém situado acima dela, e que cada vez lhe é mais estranho, constitui o Estado”.

Este Estado, em sua versão moderna, surge com a Paz de Westfália (1648), ocasião em que restaram consolidados e internacionalmente reconhecidos os conceitos de Estado-Nação e soberania estatal, dando azo à ideia de que a paz duradoura resultaria do necessário equilíbrio de poder entre as Nações, e fazendo surgir sua característica básica, qual seja a de uma unidade territorial dotada de um poder soberano, que se impõe a todos os componentes de uma determinada sociedade através do exercício do poder político, de tal modo que os cidadãos passam a lhe dever respeito e atendimento às leis que dele emanam.

E assim chegamos ao Século XX, marcado pelo flagelo deixado pelas Primeira e Segunda guerras mundiais, o que obrigou a comunidade internacional a adotar profundas reformulações no papel do Estado, de modo que além das atribuições que já tinha em sua fase liberal, assumiu também a responsabilidade de garantir os direitos fundamentais, razão pela qual é de se esperar de um Estado do Século XXI – sobretudo quando forjado em uma “Constituição Rígida”, como a nossa -, que o poder político que detém seja exercido com vistas à plena e constante realização e ampliação dos direitos humanos, eis  que voltados estes exatamente à realização da igualdade e da dignidade da pessoa humana, postulados principais do ordenamento constitucional pátrio e imprescindível para a própria paz social.

Vimos antes, contudo, que não é isto que estamos vivenciado no Brasil!

Por aqui tramitam propostas abertamente voltadas à redução da eficácia ou mesmo a extinção destes direitos fundamentais, originárias de um Presidente da República que galgou o cargo através de um evidente golpe parlamentar, patrocinado pelo poder econômico e seu braço midiático exatamente para consolidar a sobreposição do poder econômico ao poder político, e tendo como horizonte o completo aniquilamento de qualquer esperança na instauração de uma democracia substancial no País. Vemos, assim, que os Poderes Executivo e Legislativo se deixaram subjugar pelo poder econômico, em favor do qual promovem as mencionadas reformas, ao tempo em que, assim procedendo, consolidam um modelo econômico excludente e concentrador de riquezas, recebendo em troca vultosas quantias destinadas ao financiamento de Partidos Políticos e campanhas eleitorais, quando estes recursos não se dirigem diretamente à riqueza particular de diversas autoridades públicas.

E tudo sob o olhar complacente do Poder Judiciário!

Diante de um quadro tão grave, é de perquirir se prevalece o dever político de aquiescência e submissão do povo para com as leis vigentes e as decisões adotadas pelas instituições do Estado, em especial quando nos encontramos diante de leis ou iniciativas estatais em claro retrocesso social e em desrespeito a direitos fundamentais? Ou, por outro ângulo de visada, cumpre questionar se quando afirmamos que constitui um dever político do povo obedecer às ordens estatais justas, também não constituiria um direito (e um dever) resistir às ordens injustas, mister quando em evidente confronto com os interesses do povo?

Para DINIZ (2005, pag. 181/182) o direito de resistência “concretiza-se pela repulsa a preceitos constitucionais discordantes da noção popular de justiça; à violação do governante da ideia de direito de que procede o poder cujas prerrogativas exerce; e pela vontade de estabelecer uma nova ordem jurídica, ante a falta de eco da ordem vigente na consciência jurídica dos membros da coletividade. A resistência é legítima desde que a ordem que o poder pretende impor seja falsa, divorciada do conceito ou ideia de direito imperante na comunidade”.

Do ponto de vista do ordenamento jurídico brasileiro, por sua vez, podemos afirmar que o direito de resistência encontra amparo no que dispõe o art. 5º, § 2º, da Carta da República (como cláusula constitucional “aberta” que é), ao estabelecer que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros, decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados ou dos tratados internacionais aos quais a República Federativa do Brasil haja aderido, sendo reforçado também pelos direitos à liberdade de expressão, de manifestação e de reunião; encontra eco no Código Civil, cujo art. 188, Inciso I, define que não constituem atos ilícitos aqueles praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido; e tem consonância, ainda, com o que disciplina o art. 25, do Código Penal, ao esclarecer que deve-se entender como em legítima defesa aquelas situações em que o cidadão repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.

Com efeito, um simples olhar sobre a história da humanidade permite constatar que o direito de resistência tem sido imprescindível para a conquista e consolidação de inúmeros direitos sociais, em especial aqueles relacionados às liberdades civis e às relações trabalhistas, como foi o caso da Greve Geral de 1917, que acabou por alcançar um aumento geral de salários e o reconhecimento das entidades sindicais como espaços de representação política dos trabalhadores, dentre outras conquistas; da luta pelos direitos da mulher no mundo do trabalho, que deram origem ao dia 8 de março; a resistência das Mães da Praça de Maio, em Buenos Aires; o movimento Diretas-Já, em 1984, no Brasil; dentre tantos outros exemplos marcantes.

Aliás, tamanha é a importância do direito de resistência na construção de uma sociedade realmente democrática que o art. 35, da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1793 (editada no ápice da Revolução Francesa), assim dispunha: “Quando o governo viola os direitos do povo, a insurreição é, para o povo e para cada parcela do povo, o mais sagrado dos direitos e o mais indispensável dos deveres”.

Neste passo é de ressaltar que o direito de resistência – em qualquer das suas espécies, aí incluída a desobediência civil -, não se destina precipuamente a combater o direito, tendo como finalidade, regra geral, exatamente a restauração da ordem jurídica, vilipendiada pela ação ou omissão dos órgãos do Estado, ou (como na situação em exame), pela participação destes mesmos órgãos na propositura e tramitação de propostas que contrariam direitos fundamentais e implicam em insofismável retrocesso social.

Ora, se todo poder emana do povo, nos parece claro que quando os representantes deste povo (em especial as autoridades imbuídas dos Poderes Legislativo e Executivo) atuam em desconformidade com a vontade daqueles que lhes outorgaram a representação, chegando mesmo a patrocinar mudanças legislativas e constitucionais que vem em seu (do povo) prejuízo, emerge daí a inequívoca legitimidade do direito de resistência.

Assim, conquanto alguns comunguem esta resistência há de ser operada nos marcos das medidas constitucionalmente postas à disposição dos cidadãos (como o direito de petição ou de representação; a participação em entidades representativas capazes de materializar as reivindicações dos respectivos segmentos ou categorias representadas; a pressão política sobre Parlamentares; etc.), parece-nos evidente que o seu pleno exercício não cabe em limites tão rígidos, típicos de apenas uma de suas espécies, qual seja a desobediência civil.

Ao tratar sobre as formas de expressão do direito de resistência, aliás, BOBBIO (2002. Pag. 25), nos relembra que estas podem ir desde um tumulto, um motim, uma rebelião ou insurreição, até em uma revolução, que estaria no limite do exercício deste direito.

É aqui que ingressamos na parte final deste trabalho, destinada a colocar os preceitos acima sob a perspectiva das recentes mobilizações populares e sindicais contra as reformas trabalhista e previdenciária, em particular no que diz com a tentativa governamental (e da grande mídia) de criminalizar estes movimentos,

Ora, sabendo-se que estas mobilizações se voltam contra os retrocessos sociais, contidos nas propostas em curso, causadoras que são de evidente ofensa aos direitos fundamentais, mostra-se claro que tais manifestações apenas materializam o – legítimo -, exercício do direito de resistência, não podendo, por isso mesmo, serem enquadradas como atos delituosos ou como prática de ilegalidades, muito menos a ponto de ensejar algumas decisões judiciais estapafúrdias que vimos serem exaradas País afora em tempos recentes, como os interditos proibitórios, as detenções de manifestantes, a apreensão de material de convocação de mobilizações, etc.

Afinal, se as reformas trabalhista e previdenciária se destinam mesmo a atingir a espinha dorsal da Carta de 1988, ferindo de morte postulados basilares da República, como os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana, como evidentemente se destinam, e se estas mesmas “reformas” estão sendo levadas a cabo num momento de grave crise moral, ética e de deslegitimação por que passam praticamente todas as instituições do Estado brasileiro, mais do que o exercício de um direito estas mobilizações constituem uma obrigação política e cívica de todos aqueles que desejam um País livre do flagelo da corrupção e dotado de instituições capazes de colocar os direitos sociais fundamentais acima dos interesses econômicos e financeiros de algumas corporações.

Bibliografia:

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Sarlet. Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 10ª ed. rev. atual. e ampl. Porto Alegre. Livraria do Advogado. 2011.

Notas de Rodapé:

[1] Advogado, é Pesquisador-colaborador da ENSP – Escola Nacional de Saúde Pública, vinculada à Fundação Oswaldo Cruz. Integra o Escritório SLPG Advogados Associados, com sede em Florianópolis, especializado na defesa de direitos funcionais de servidores públicos, direitos trabalhistas e previdenciários