SELETIVIDADE PENAL E MANIFESTAÇÕES SOCIAIS: CONTRIBUIÇÃO À CRÍTICA DA CRIMINALIZAÇÃO DA RESISTÊNCIA

Resumo

O presente artigo pretende analisar o confronto dos Estados com as resistências ao poder, o alcance do uso da racionalidade nas tecnologias de poder, as consequências do excesso de poder nos regimes políticos de todos os matizes ideológicos existentes no planeta. Neste contexto será pensada a Lei nº 12.850/13, responsável por conferir sistematização ao tratamento jurídico-penal das organizações criminosas no Brasil. A sua abordagem, neste ensaio, está atravessada por uma análise transdisciplinar em que se move a Criminologia, a Ciência Política e o Direito Penal, todos orientados à reflexão crítica do poder punitivo e à necessária imposição de limites à opressão pública. Não se trata, entretanto, de uma descrição das disposições e controvérsias que surgiram da promulgação da lei. O artigo pretende enfrentar a aplicação da Lei nº 12.850/13 ao contexto das manifestações populares que, sobretudo no contexto das jornadas de junho de 2013, emergiram no Brasil. Pretende-se desenvolver uma análise crítica imbuída de três abordagens. Em primeiro lugar, pretende-se analisar a ofensiva de autoritarismo global e a disseminação de estratégias de resistência em rede. Em um segundo momento, pretende-se pôr em análise a seletividade penal através do decisionismo no emprego político da Lei nº 12.850/13 (Lei de Organizações Criminosas) para dirigir-se à repressão penal de manifestantes sociais.

Artigo

Título: SELETIVIDADE PENAL E MANIFESTAÇÕES SOCIAIS: CONTRIBUIÇÃO À CRÍTICA DA CRIMINALIZAÇÃO DA RESISTÊNCIA

Autores: Antonio Pedro Melchior e Taiguara Libano Soares e Souza

 Palavras-chave: Seletividade Penal, Manifestações Sociais, Lei de Organizações Criminosas

 Resumo: O presente artigo pretende analisar o confronto dos Estados com as resistências ao poder, o alcance do uso da racionalidade nas tecnologias de poder, as consequências do excesso de poder nos regimes políticos de todos os matizes ideológicos existentes no planeta. Neste contexto será pensada a Lei nº 12.850/13, responsável por conferir sistematização ao tratamento jurídico-penal das organizações criminosas no Brasil. A sua abordagem, neste ensaio, está atravessada por uma análise transdisciplinar em que se move a Criminologia, a Ciência Política e o Direito Penal, todos orientados à reflexão crítica do poder punitivo e à necessária imposição de limites à opressão pública. Não se trata, entretanto, de uma descrição das disposições e controvérsias que surgiram da promulgação da lei. O artigo pretende enfrentar a aplicação da Lei nº 12.850/13 ao contexto das manifestações populares que, sobretudo no contexto das jornadas de junho de 2013, emergiram no Brasil. Pretende-se desenvolver uma análise crítica imbuída de três abordagens. Em primeiro lugar, pretende-se analisar a ofensiva de autoritarismo global e a disseminação de estratégias de resistência em rede. Em um segundo momento, pretende-se pôr em análise a seletividade penal através do decisionismo no emprego político da Lei nº 12.850/13 (Lei de Organizações Criminosas) para dirigir-se à repressão penal de manifestantes sociais.

                                                                               Antonio Pedro Melchior[1]

                                                                              Taiguara Libano Soares e Souza[2]

Sumário: Intróito; 1. A onda punitiva global e a resistência em rede; 1.1. Estado, sistema penal e manifestações populares; 2. Seletividade penal e Lei nº 12.850/13; 2.1. Decisionismo e criminalização da resistência; 2.2. Da inadequação do conceito de “organização criminosa” à persecução penal  de manifestantes. 3. Conclusão. 4. Referências Bibliográficas.

Intróito

A violenta repressão às manifestações populares constitui uma característica comum dos Estados contemporâneos e deve ser compreendida enquanto parte de uma “ofensiva global do autoritarismo”.[3]

De um lado, o crescente recrudescimento das medidas de controle social institucionalizado, o discurso público da insegurança e do medo que fundamenta as doutrinas penais conservadoras e repressivas. [4] Por outro, a multidão na rua, expressão prática do poder constituinte, manifestando-se como expansão revolucionária da capacidade humana de construir a história e, consequentemente, como ato fundamental de inovação.[5]

Este é o nosso mundo, hoje. Atravessado por atores, fluxos e agenciamentos coletivos de enunciação[6] que produzem formas estatais e também moleculares de fascismo.[7] Mas não apenas. Há, igualmente, o “desejo de um mundo de igualdade e liberdade, de uma sociedade global democrática” que se coloca em mobilização com o objetivo de proporcionar os meios de alcançá-la. [8]

Do ponto de vista da ciência criminal, os que se propõem a realizar um diagnóstico político das sociedades contemporâneas têm pela frente, portanto, um cenário complexo: analisar “o confronto dos Estados com as resistências ao poder, o alcance do uso da racionalidade nas tecnologias de poder, as consequências do excesso de poder nos regimes políticos de todos os matizes ideológicos existentes no planeta”.[9]

Neste contexto será pensada a Lei nº 12.850/13, responsável por conferir sistematização ao tratamento jurídico-penal das organizações criminosas no Brasil. A sua abordagem, neste ensaio, está atravessada por uma análise transdisciplinar em que se move a Criminologia, a Ciência Política e o Direito Penal, todos orientados à reflexão crítica do poder punitivo e à necessária imposição de limites à opressão pública.

Não se trata, entretanto, de uma descrição das disposições e controvérsias que surgiram da promulgação da lei. O artigo pretende enfrentar a aplicação da Lei nº 12.850/13 ao contexto das manifestações populares que, sobretudo no contexto das jornadas de junho de 2013, emergiram no Brasil. São fundamentalmente dois os objetivos: o primeiro é traçar uma radiografia das práticas repressivas pelo Estado e das suas estratégias para lidar com os novos movimentos sociais estabelecidos em rede[10]. O segundo, demonstrar que o conceito de organização criminosa não é adequado à conjuntura das manifestações populares e, portanto, a Lei nº 12.850/13 deve ser considerada inaplicável para reprimir manifestantes ou grupos que eventualmente dirijam-se contra parte do patrimônio público ou privado para atuar simbolicamente e, ou chamar atenção para suas causas.

Para dar conta destes dois objetivos, pretende-se desenvolver uma análise crítica imbuída de três abordagens.

Em primeiro lugar, o manejo discursivo do conceito de “organização criminosa”, quando aplicado às manifestações populares, parece esclarecer a adesão às práticas tipicamente inquisitoriais, estranhas à democraticidade[11] que deveria reger o sistema político e de administração da justiça criminal. Estas requisições se explicariam, com muita frequência, pela própria estrutura do dispositivo Estado de Direito, permeável à reciclagem permanente do autoritarismo estatal. [12]

A aplicação da Lei de “Organização Criminosa” na persecução penal em face de manifestantes, sob este prisma, impõe uma grande preocupação da cidadania, na medida em que revela uma repressão criminal orientada pelo fim político de constranger a contestação direta ao poder constituído e, assim, assegurar a frágil estabilidade dos governantes.

Em segundo lugar, o emprego da Lei nº 12.850/13 parece ainda revelar os contornos de um Estado Policial em ascensão, operando rearranjos discursivos, por meio da criação de novos inimigos públicos. Dentro deste ambiente, o Estado, utilizando-se da categoria “organização criminosa”, tentará encaixar a constituição de outros atores, fomentando a criação de novos estereótipos (ex. “vândalos”, “black blocs”). Esta criação é indispensável à legitimação de uma política pública abertamente beligerante e, como tal, fundada no uso excessivo da força. [13]

Do ponto de vista da dogmática penal, finalmente, compreendidas as ponderações precedentes, concluiremos pela inaplicabilidade da lei que disciplina a tutela penal das chamadas “organizações criminosas” à repressão de indivíduos ou grupos atuantes em manifestações populares.

  1. A onda punitiva global e a resistência em rede.

 A novíssima constituição dos movimentos sociais, descentralizados, alheios à verticalidade e à hierarquização, os tornam, pela própria natureza, impassíveis de serem encaixados na categoria da “organização criminosa”. Em outras palavras, os atuais “movimentos em rede” operam em uma lógica de atuação que escapam, completamente, à adequação prevista na Lei nº 12.850/13 (art. 1, §1º). Esta análise, contudo, será vista apenas na última parte deste ensaio.

Neste tópico, pretendemos elaborar uma abordagem descritiva de como o Estado tem se posicionado diante das manifestações populares que se insurgiram pelo mundo (Turquia, Egito, Tunísia, Brasil, Estados Unidos, países arábes, etc). Embora se trate de um fenômeno relativamente recente, há valiosas contribuições teóricas a respeito. Pensaremos a questão a partir do cientista político Manuel Castells e também, mesmo que brevemente, a partir do filósofo italiano Antonio Negri. Não se trata, porém, de estabelecer um diagnóstico fechado de um movimento que, por definição, está em constante mudança e expansão.

A finalidade é demonstrar que, por todos os lugares em que observamos as manifestações populares, em nenhum deles é possível apontar a existência de uma estrutura que se adeque ao conceito de “organização criminosa”. Esta afirmação se aplica, inclusive, quando nos referimos à prática de grupos que eventualmente resistam ao abuso policial por meio da “resposta violenta” ou se utilizem do ataque a bancos/prédios públicos/sítios de internet, como forma de chamar a atenção ou lutar por suas bandeiras (ex. a chamada tática black bloc ou Anonymous).

1.1 – Estado, sistema penal e manifestações populares

“o conflito direto com o poder, para melhor ou para o pior, eleva a intensidade comum a um nível ainda mais alto: o cheiro cáustico do gás lacrimogêneo mobiliza os sentidos e os confrontos de rua com a polícia fazem o sangue ferver de raiva, elevando a intensidade ao ponto de explosão. A intensificação do comum produz uma transformação antropológica de tal ordem que das lutas surge uma nova humanidade”.

                                                                                            Antonio Negri.

 Um tribunal egípcio sentenciou 529 (quinhentos e vinte e nove) supostos simpatizantes da Irmandade Muçulmana à morte, em razão dos protestos que assolaram o país. De acordo com a Anistia Internacional, este é o maior número de pessoas condenadas à morte, simultaneamente, na história recente do mundo[14]. Este julgamento, ocorrido em 2014, precisou de dois dias para condenar todas aquelas pessoas pela morte de um homem (agente policial). Há notícias de que quando o juiz anunciou a sentença, nenhuma testemunha tinha sido ouvida, e “a maioria dos réus e seus advogados foram retirados da sala onde o julgamento aconteceu” [15].

A Turquia protagonizou uma série de manifestações populares a partir do dia 28 de maio de 2013. Na ocasião, os manifestantes se elevaram contra a derrubada de 600 árvores do Parque Taskim, com o objetivo de reconstruir um quartel militar e abrigar um shopping center. Após a repressão policial, os protestos ganharam nova dimensão, tomando várias cidades turcas e atingindo a marca de aproximadamente 2,5 milhões de pessoas[16].

              Além da detenção em massa (quarenta pessoas em um único dia), as três semanas de movimentações constituintes da Turquia deixaram cinco mortos e milhares de pessoas feridas pelo Estado.[17]

              No Brasil, somente no dia 20 de junho de 2013, mais de 1,25 milhão de pessoas saíram às ruas em mais de 100 municípios[18]. Antes disso, entretanto, as manifestações já vinham ocorrendo e, como consequência, sofrendo grande repressão criminal. No dia 14 deste mês de junho, na cidade de São Paulo, por exemplo, mais de 200 pessoas foram presas e outras centenas ficaram feridas[19]. O Instituto Humanitas Unisinos[20] sistematizou algumas reportagens em que se veicularam notícias da violência abusiva do Estado contra os movimentos. São muitos os exemplos:

“Fotógrafo ferido em manifestação corre o risco de ficar cego, diz mulher: Ele foi atingido por uma bala de borracha no quarto dia de manifestações. Santa Casa atendeu dez pacientes feridos durante protesto de quinta-feira.” (G1 São Paulo, 14/06/13).

Estudante relata como foi atingido no olho na manifestação de segunda no centro: Eric Pedrosa ficou ferido com estilhaços de bomba de lacrimogêneo (R7 Rio de Janeiro, 20/06/13).

Morre estudante que caiu de viaduto em protesto em Belo Horizonte (IG, Belo Horizonte, 27/16/13).

Manifestante do Rio morre por complicações pulmonares após inalar gás lacrimogêneo: Fernando Candido, que era anão, estava internado desde a manifestação do dia 20 de junho. (Estadão, 28/06/13).

Fotógrafos ficam feridos após PM soltar cachorros durante protestos (G1, Brasília, 07/09/13).”

Em documento que se pretendia ser sigiloso, mas que foi publicado na rede mundial de computadores, a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, mais precisamente a 1ª Delegacia de Polícia Civil, orientou os inspetores a formularem questionamentos, cujo conteúdo parece, desde já, confirmar a hipótese de que o Processo Penal está sendo empregado com fins políticos no Brasil.

“Recomendação 1ª Seccional n° 2/2013

Considerando as manifestações que rotineiramente têm ocorrido nesta cidade e que, muitas delas, se concentram na área circunscricional desta Seccional;

Considerando que, em todas as manifestações, esta seccional monitora os registros de ocorrência bem como os atos de polícia judiciária decorrentes;

Considerando a necessidade de estabelecer um arcabouço mínimo de informações acerca dos autores de delitos praticados por ocasião das manifestações, solicito a Vossa Excelência, EM CARÁTER RESERVADO, que sejam consignadas as seguintes informações/providencias:

  1. Endereços residenciais e comerciais completos (bem como endereço de e-mail)
  2. Se estudante, o curso e endereço do estabelecimento de ensino
  3. Se tem filiação partidária (qual partido)
  4. Se integrante do movimento Black Bloc (ou outro movimento)
  5. Como tem conhecimento das manifestações
  6. Se tem antecedentes criminais
  7. Qualificar os advogados que se fizerem presentes para representar os conduzidos
  8. Tirar fotos dos objetos apreendidos, antes de lacrá-los (e valendo-se do banner da Polícia Civil). (Grifos nossos).

              As manifestações populares que ocorrem dentro ou fora das fronteiras nacionais representam ações políticas, movimentações constituintes que colocam em xeque as práticas de governamentalidade neoliberal: relação entre Estado e empresas; mobilidade urbana; projeto de administração da cidade; militarização da polícia e da política; questionamentos sobre democracia e legitimidade da representação; insurgências que demandam o reconhecimento social, etc.

              O uso excessivo da força no combate às mobilizações nas principais cidades do país gerou em resposta a constituição de uma significativa rede de solidariedade de advogados ativistas[21].

A repressão estatal aos manifestantes, nesta conjuntura, constitui um instrumento emergencial utilizado pelo poder constituído (governantes de todos os partidos e matizes ideológicas) para garantir a sua própria estabilidade[22], proteger os interesses do mercado e esmagar os desejos de liberação constituintes da cidadania.

              Por um lado, a repressão criminal, entre o gás lacrimogêneo e as balas de borracha contra a população, exprimem uma violência absolutamente fora e além do Direito[23]. Por outro lado, entretanto, envolvem a utilização da persecução penal propriamente dita, seja pela instauração de investigações criminais, processos penais ou discussões legislativas de recrudescimento legal para reprimir manifestantes.

              A discussão a respeito de uma lei de combate ao terrorismo, especialmente para os casos de protestos no Brasil está incluída nesta conjuntura. O mesmo no que se refere à deliberação do Congresso Nacional quanto ao aumento da pena cominada para o crime de dano, a modificação na natureza da ação penal e a criação de uma qualificadora para o homicídio cometido em manifestações.[24]

              Recentemente, a polícia civil do Estado de São Paulo instaurou Inquérito com fundamento na Lei de Segurança Nacional, intimando vários manifestantes a depor. A revista Carta Capital[25] noticiou o fato nos seguintes termos:

                          “Lei da ditadura é usada para investigar manifestantes:

A polícia Federal está usando a Lei de Segurança Nacional para investigar manifestações contra a Copa do Mundo. Ao menos 25 manifestantes foram chamados a depor nesta segunda-feira 16 na sede da PF em Curitiba. (…) De acordo com a intimação, emitida na sexta-feira dia 13, o inquérito é destinado a “apurar eventual ocorrência dos delitos previstos (…) na Lei de Segurança Nacional (…) tendo em vista a notícia de que pessoas e grupos organizados estariam atuando de forma a extrapolar, de forma violenta e coordenada, o livre direito de manifestações política e social garantido pela Constituição, promovendo depredação de patrimônio público e privado e agressão de servidores ligados à segurança do Estado. (…)

Os manifestantes foram chamados a depor com base em dois artigos desta lei. Um deles contém o crime de “praticar sabotagem contra instalações militares, meios de comunicação, estaleiro, portos e aeronaves”. O outro, que pode levar a até quatro anos de prisão, consiste, entre outros delitos, em incitar “a subversão da ordem política ou social” ou “luta com violência entre as classes sociais”.

Ao que tudo indica, portanto, o Estado declarado “Democrático de Direito” está aderindo aos dispositivos próprios do regime político autoritário e fascista (práticas institucionais, pensamentos, formulações teóricas, científicas, etc.) para estrangular mobilizações de ação política direta. Trata-se da versão contemporânea do Estado Policial[26].

É dentro deste contexto social e político que a Lei de Segurança Nacional foi exumada e que, também a Lei nº 12.850/13, vem sendo aplicada. É possível afirmar, inclusive, que a “Lei de Organização Criminosa” tem sido ainda mais utilizada, pois cumpre um papel mais relevante e eficiente às investigações criminais. Isto porque, os institutos nela previstos reforçam o aparelhamento persecutório do Estado, por exemplo, permitindo o instituto da delação premiada e a infiltração de agentes, no caso, em assembleias estudantis ou meras reuniões entre coletivos de manifestantes, por ex. (art.3º da Lei nº 12.850/13).

2 – Seletividade penal e Lei nº 12.850/13.

“Faz-se do campo processual penal uma batalha permanente onde se joga, de fato, o sangue do sistema.” (Rui Cunha Martins).

O esforço do poder punitivo em enquadrar penalmente os manifestantes está fora do controle. Em recente relatório, a organização de direitos humanos Justiça Global traçou a seguinte análise de conjuntura:

“o processo de criminalização dos defensores/as se insere no contexto político atual, e expressa-se desde a deslegitimação das lutas sociais até a violência direta, realizada por diversos agentes públicos e privados. Dessa forma, esses agentes se utilizam de diversas estratégias, visando neutralizar as manifestações e demandas políticas dos/as defensores/as e dos movimentos sociais.”[27]

            A estratégia política de criminalização generalizada das mobilizações populares, agora sob a justificativa de combate aos “vândalos” (novos inimigos), envolve a constituição de um discurso estatal que os promova ao status de uma “organização criminosa”, não apenas pelos efeitos jurídico-penais decorrentes, mas também pelas consequências criminalizantes do próprio estigma.

Neste sentido, é reveladora a afirmação de Wagner Giudice, Diretor do Departamento Estadual de Investigações Criminais de São Paulo: “a intenção é descobrir quem são eles, de onde vem. Eles são uma organização criminosa? Sim. E nossa função é provar isso”. [28]

Quando os próprios manifestantes não são taxados de pertencerem a uma organização criminosa, as agências repressivas se encarregam de lhe associarem a uma. Insere-se neste contexto a inusitada afirmação do Ministro da Justiça, José Eduardo Cardoso que, em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, [29] afirmou que “é inadmissível a união entre black blocs e o PCC (Primeiro Comando da Capital) para transformar a Copa do Mundo em um caos. É inadmissível a união para o crime”.

 O discurso oportunista de associação de movimentos sociais com organizações criminosas, sem qualquer prova ou elemento sério de informação, não é novo em nosso país e remonta especialmente aos anos de chumbo, deixando no tempo presente as cicatrizes do entulho autoritário[30].

O emprego político e atécnico do conceito de organização criminosa para reprimir manifestantes não está, entretanto, salvo de críticas institucionais. Confirmando integralmente a hipótese defendida neste artigo, o Procurador da República Rodrigo de Grandis, que atua no Ministério Público Federal em São Paulo, afirmou o seguinte:

“Eu não sei direito o que são os ‘Black blocs’. Precisa verificar se efetivamente essas pessoas que se autodenominam ‘black blocs’ se associam de forma estável e permanente, com a finalidade de praticar crimes cuja pena seja superior a 4 anos de prisão, com divisão de tarefas e hierarquia”. (…) “Pelo que vi na imprensa esse grupo ainda não tem esse grau de sofisticação, estrutura”[31].

O emprego da Lei de Organização Criminosa para criminalizar manifestantes, aos quais as autoridades policiais e de justiça criminal atribuem pertencer aos grupos Black Blocs e Anonymous, deve impor uma profunda reflexão de todos aqueles que sejam comprometidos com o regime democrático.

O primeiro problema, delineado no ponto referente ao “avanço global do autoritarismo”, refere-se ao emprego político da Lei nº 12.850/13, ao lado da violência policial nas ruas, no marco da “legislação de emergência” e medidas penais de exceção. Dentro deste conjunto, como salientado, encontram-se ainda a Lei Geral da Copa (Lei 12.663/12)[32], a aplicação da Lei de Segurança Nacional (Lei nº 7170/83), além da tramitação do PLS 499/2013 destinado à criação de tipo penais de terrorismo[33].

            A segunda questão será enfrentada a seguir e, fundamentalmente, pretende demonstrar que a própria categoria “organização criminosa”, por estar sujeita à manipulação retórica do poder penal (decisionismo), oferece graves implicações à execução legítima da política criminal em um Estado de direito.

            O terceiro problema é um desdobramento dos outros dois. Trata-se de compreender que, a par do desejo punitivo dos governantes, do apoio da mídia tradicional e da falta de taxatividade da norma penal, a conduta eventualmente delituosa praticada por manifestantes/grupos, não pode ser adequada ao conceito de “organização criminosa”.

 2.1. Decisionismo e criminalização da resistência.

Em 02 de agosto de 2013, passa a ter vigência a Lei nº 12.850/13. Este novo marco legal conceitua juridicamente a organização criminosa, cria seu respectivo tipo penal, além de dispor sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, incluindo a colaboração premiada, a ação controlada, a infiltração de agentes e o acesso a registros pela autoridade policial e pelo Ministério Público. Por fim, estabelece infrações penais correlatas e o procedimento criminal.

            Como advertem Rubens Casara e Antonio Pedro Melchior[34], os limites semânticos impostos pelo princípio da legalidade, embora absolutamente fundamentais, tem se demonstrado insuficientes para conter o arbítrio e a opressão. Mesmo quando a definição típica não sofre de anemia semântica[35], caso da categoria “organização criminosa”, os intérpretes, “inseridos em uma tradição autoritária, ao produzirem as normas aplicáveis ao caso concreto, não raro, tendem a produzir comandos normativos autoritários”[36]. Essa tradição autoritária também explica que os Estados produzam espaços de exceção permanente[37] e que a “metáfora da guerra” ainda hoje legitime a produção dos mais variados inimigos:[38]

Antes, terroristas – subversivos. Hoje, vândalos-terroristas.

            O subjetivismo dos agentes públicos no preenchimento do que seja o conceito de organização criminosa é, portanto, um problema que antecede às divergências doutrinárias sobre o tema. O decisionismo é, antes de tudo, um doloroso inconveniente produzido pela prática do poder penal (pela interpretação), que surge como consequência direta da ausência de fundamentos empíricos precisos ou de limites legais/teóricos bem definidos[39], no caso, sobre a categoria “organização criminosa”.

            De qualquer forma, Juarez Cirino dos Santos leciona que existem basicamente dois grandes discursos sobre “crime organizado”, por sua vez estruturados nos pólos americano e europeu do sistema capitalista globalizado: um deles é o discurso americano sobre organized crime, definido como conspiração nacional de etnias estrangeiras (italianos e mexicanos).

“O discurso americano do organized crime, originário das instituições de controle social, nasce com o objetivo de estigmatizar grupos sociais étnicos (especialmente italianos), sob o argumento de que o comportamento criminoso não seria uma característica da comunidade americana, mas de um submundo constituído por estrangeiros, aqueles maus cidadãos que ameaçavam destruir a comunidade dos bons cidadãos.”[40]

Outro discurso é o italiano sobre crimine organizzato, que tem por objeto de estudo original a Máfia siciliana. Constitui-se enquanto simbiose entre o lícito e o ilícito, entre o poder político e econômico. Nas palavras de Cirino dos Santos:

“O objeto original do discurso italiano não é o chamado crime organizado, mas a atividade da Máfia, uma realidade sociológica, política e cultural secular da Itália meridional: falar da Máfia como a Cosa Nostra siciliana, ou de outras organizações de tipo mafioso, como a Camorra de Nápoles, a ‘Ndranghetta da Calábria, é falar de associações ou estruturas empresariais que realizam atividades lícitas e ilícitas – aliás, como muitas empresas –, com controle sobre certos territórios, em posição de vantagem econômica na competição com outras empresas e de poder político no intercâmbio com instituições do Estado.”[41]

Os estudos sociológicos e criminológicos acerca do crime organizado, em vez de avançar da percepção do problema para sua definição, aparentam retroceder da definição do problema para sua percepção – aquilo que o explicaria. Esta análise sobre a categoria assume contornos peculiares na periferia do capitalismo. Como afirma Zaffaroni:

“O conceito de crime organizado, desenvolvido no centro do sistema de poder econômico e político globalizado, recebeu na periferia desse sistema homenagens de cidadania, como se fosse um discurso criminológico próprio. (…). O transporte de uma categoria frustrada ao campo da lei penal não é mais que uma criminalização que apela a uma ideia difusa, indefinida, carente de limites certos e, por fim, uma lesão ao princípio da legalidade — isto é, à primeira e fundamental característica do Direito Penal liberal ou de garantias”. [42]

A primeira Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional foi realizada em 2000, em Palermo. A partir da Convenção de Palermo, ratificada pelo Brasil por meio do Decreto 5.015/2004, estabeleceu-se (artigo 2º) uma terminologia a ser utilizada pelos Estados membros nos seguintes moldes: “Para efeitos da presente Convenção, entende-se por: a) ‘Grupo Criminoso Organizado’ – grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertada mente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na presente Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material.”

Durante alguns anos, houve importante controvérsia doutrinária entre o Superior Tribunal de Justiça e a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal acerca da vigência do conceito de organização criminosa na ordem jurídico-penal[43].

No Direito Penal pátrio o instituto vem sendo tratado na legislação penal extravagante de modo oscilante. O primeiro dispositivo legal a tratar do tema no Brasil foi a Lei nº 9.034/95, tratando da utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas. Em 2011, foi sancionada a Lei nº 10.217/01 que alterou disposições da Lei nº 9.034/95, além de contemplar dois novos institutos investigativos: interceptação ambiental e infiltração policial. No ano seguinte, entrou em vigor a Lei nº 12.694/12 que dispôs sobre o processo e o julgamento colegiado em primeiro grau de jurisdição de crimes praticados por organizações criminosas.

Finalmente, foi promulgada a Lei nº 12.850/13 que se propõe como a Lei de Organizações Criminosas, quase um ano após a criação do tipo penal de constituição de milícia privada. [44] Segundo Luis Flávio Gomes, “de se notar que a nova lei não apenas definiu o que é organização criminosa, como também criou o delito que podemos denominar de crime organizado (art. 2º).” [45]

Em suma, a abertura que a categoria “organização criminosa” oferece ao subjetivismo/decisionismo cumpre, no contexto da repressão aos movimentos sociais e mobilizações populares, a função política de permitir a execução de medidas penais e processuais penais extraordinárias e incompatíveis com as garantias liberais[46].

Consequentemente, é preciso, de plano, colocar em questão o mito do crime organizado, difundido pela mídia, pela literatura de ficção, por políticos e instituições de controle social. Esta reflexão, especialmente na atualidade, quando o conceito passa a ser utilizado para reprimir manifestações populares ou perseguir manifestantes em particular, parece inadiável.

Dito isto, tomaremos o conceito de “organização criminosa” conforme a descrição legal, consoante dispõe o art. 1, §1º da Lei nº 12.850/13. O objetivo é refletirmos acerca da sua inadequação à repressão no contexto das manifestações populares[47].

2.2. Da inadequação do conceito de “organização criminosa” à persecução penal de manifestantes.

            Juarez Cirino dos Santos[48] oferece bons motivos para repensar a própria relevância penal de certas condutas praticadas na conjuntura de uma desobediência civil. Não é, porém, a finalidade deste ensaio refletir, nem se os movimentos sociais em rede, as ocupações e manifestações populares em geral se enquadram neste conceito[49], tampouco se as condutas praticadas, em tese, típicas, estão asseguradas sob a égide de uma causa excludente da culpabilidade.

             O nosso problema derradeiro é simplesmente o de constatar que: a luta em rede, a multidão na rua, composta por múltiplas singularidades (pessoas individualmente consideradas, classes profissionais – professores, garis, rodoviários, etc. – partidos políticos, grupos anarquistas, movimentos feministas, da luta LGBT, black blocs, ambientalistas, redes de advogados, mídias independentes, e assim infinitamente) não pode ser reduzida ao conceito de organização criminosa.

            Deve ficar claro que, tampouco os “pequenos grupos”, assim considerados atomizadamente, são adequáveis ao art. 1, §1º da Lei nº 12.850/13. Desta forma, todos os comportamentos eventualmente considerados criminosos pelo Estado não podem ser tipificados nesta lei, assim como não estão autorizadas quaisquer das medidas previstas no art. 3º.

A este respeito, realizaremos algumas ponderações acerca das manifestações populares, enfrentando mais diretamente os requisitos descritos na Lei nº 12.850/13 à configuração de uma “organização criminosa”. Em razão do espaço, trataremos apenas de alguns, cuja repercussão para a nossa reflexão é mais proeminente.

            Estes requisitos são fundamentalmente os seguintes: a) quantitativo mínimo de agentes: 4 (quatro) ou mais; b) modus operandi: pessoas estruturalmente ordenadas e caracterizadas pela divisão de tarefas, ainda que informalmente; c) objetivo: obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais; d) número de infrações penais: mais de 01 (um); e) natureza da infração penal: crime ou contravenção penal com penas máximas superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional.

            Com relação ao modus operandi, sabe-se que a constatação da estabilidade e permanência é indispensável à configuração de uma organização criminosa. Esta organização, como o próprio nome sugere, deve estar estruturada, ordenada e conter alguma espécie de divisão de tarefas. Luis Flávio Gomes faz a seguinte ponderação:

“associação de forma estável, duradoura, permanente, pois do contrário configura uma mera coautoria (autoria coletiva) para a realização de um determinado delito. Se quatro ou mais pessoas, num evento cultural (um baile, por exemplo), se reúnem naquele momento para bater ou matar uma pessoa, estamos diante de uma autoria coletiva (coautoria), não de uma organização criminosa (que exige estabilidade prévia). A associação de várias pessoas numa passeata, desde que seja ato isolado, não permanente, não configura a organização criminosa. A permanência e estabilidade do grupo deve ser firmada antes do cometimento dos delitos planejados.”[50]

Os atuais movimentos sociais em rede, para utilizarmos a categoria proposta por Manuel Castells[51], não estão em sintonia com a tradicional configuração do chamado “crime organizado”. A constatação empírica de qualquer das manifestações populares, desde junho de 2013 no Brasil, permitem um diagnóstico mais ou menos seguro no sentido de que não há pessoas ou grupos especialmente estruturados como organizações, tampouco criminosas. Em termos mais precisos: aquilo que a “grande mídia tradicional” e os governos passaram a chamar de “vandalismo”, a par de representarem condutas supostamente típicas do ponto de vista penal, não podem ser encaradas sob o prisma da Lei nº 12.850/13.

            Isto ocorre em razão da própria ontologia dos movimentos.

Em primeiro lugar, estes movimentos, ainda segundo Castells, devem ser pensados enquanto inseridos em uma sociedade em rede[52], influenciada pelas novas formas de conexão pela internet e pela comunicação sem fio[53].

O Estado, neste contexto, constituiria uma espécie de rede-padrão, garantido o exercício de outras redes de poder (finanças, mídia, por ex.). Estes poderes, conforme Castells, “são exercidos por meio da coerção (o monopólio da violência, legítima ou não, pelo controle do Estado) e/ou pela construção de significado na mente das pessoas, mediante mecanismos de manipulação simbólica”.[54]

Os movimentos sociais, por sua vez, devem ser pensados enquanto redes de contra-poder, na medida em que desafiam o “poder embutido nas instituições da sociedade com o objetivo de reivindicar a representação de seus próprios valores e interesses”[55]. Esta difícil interação entre poder e contra-poder está na base do confronto estabelecido entre os Estados e os manifestantes, descrito anteriormente. Em vários lugares do mundo tem sido, portanto, assim: a intimidação e o exercício da violência representam, por excelência, a forma com que se impõe a vontade dos que controlam as instituições da sociedade.[56]

            O mecanismo de conexão entre as pessoas que integram as manifestações (ou, para empregar o termo de Castells, o movimento social em rede) é essencialmente multimodal, ou seja, inclui “redes sociais on-line e off-line, assim como redes preexistentes e outras formadas durante as ações do movimento”.[57] Isto significa que as mobilizações populares são deflagradas sem que possuam um centro de operação identificável e uma estrutura hierarquicamente organizada.

            Ao prescindirem de lideranças, centro de comando e organização vertical, os atuais movimentos sociais apresentam-se como uma miríade de singularidades, constituindo uma estrutura descentralizada que, per si, garante a participação abrangente da população em geral.[58]

Tanto os chamados Black Blocs, quanto os Anonymous estão precisamente encaixados na mesma configuração e representam apenas táticas de atuação de um múltiplo e vasto movimento constituído em rede. Isto explica o porquê da tentativa das agências repressivas em encontrar uma verdadeira organização criminosa termina com a esdrúxula prisão de meros administradores de páginas veiculadas no facebook, no caso, três adultos e dois menores[59].

            A profunda desconfiança dos participantes que integram as mobilizações populares com as instituições e formas de delegação do poder em geral tornam esta rede totalmente alheia à organização e à liderança. Em outros termos, pode-se afirmar que a horizontalidade das redes importa na exclusão de qualquer sentido de estrutura ordenada ou divisão de tarefas entre os participantes. Isto significa que os comportamentos levados a efeito por manifestantes, mesmo que considerados penalmente típicos pelo Estado, indicam formas simbólicas de atuação a que aderem pessoas, sem necessariamente possuírem vínculos prévios e ordenadamente estruturados.

            Esta marca característica dos atuais movimentos que tomaram as ruas do Brasil e do mundo revela, em suma: ainda quando se cometem danos ao patrimônio público ou privado (quebra de vidraças bancárias, tentativa de incendiar a Assembleia Legislativa, “hackeamento”[60] de um sítio da internet, por ex.), trata-se de condutas praticadas sem interferência organizacional estabelecida. Eventual concurso de agentes, naturalmente, não se confunde com o conceito de organização criminosa.

            Está, portanto, absolutamente excluída a elementar contida no art. 1, §1º da Lei nº 12.850/13, consistente em organização “estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente”. Demonstrar que este requisito não está presente era, sem dúvida, o principal ponto a ser enfrentado.

            No que se refere à exigência de prática de infrações penais com pena superior a 4 anos, algumas breves considerações podem ser pertinentes. Em primeiro lugar, como é cediço, a pena referida no dispositivo exclui os crimes de pequeno ou médio potencial ofensivo, assim como as contravenções penais com pena inferior a 4 anos.

            A mens legis da Lei 12.850/13 é, enfim, a de coibir graves afrontas à ordem jurídica. Por esta razão, como colocou César Roberto Bitencourt “na realidade, nessa opção político criminal o legislador brasileiro reconhece o maior desvalor da ação em crimes praticados por organização criminosa ante a complexidade oferecida à sua repressão e persecução penal.” [61]

            Nada disso parece se adequar à conjuntura das manifestações populares no Brasil. Com relação aos supostos delitos praticados por manifestantes, na ampla maioria dos casos não é possível o enquadramento na Lei nº 12.850/13, simplesmente porque as condutas típicas imputadas são de um modo geral: dano (art. 163), dano qualificado (art. 163 § único), lesão corporal leve (art. 129), desobediência (art. 330), desacato (art. 331), resistência (art. 329), incitação ao crime (art. 286). [62]

            Considerando que as penas cominadas a estas condutas não ultrapassam os 4 anos exigidos pela Lei nº 12850/13, as autoridades policiais tem adotado como estratégia a imputação dos delitos em concurso material. Esta prática não é juridicamente correta. Cada suposto crime praticado deve, individualmente, ter sanção acima de 4 anos, visto que devem constituir grave lesão ou ameaça de lesão a bens jurídico-penais. Portanto, não condiz com o Direito Penal Liberal, a práxis observada nas autoridades policiais de acumular tipificações aos manifestantes acusados para forçar, a golpes de martelo, a caracterização da organização criminosa.

            No que se refere ao dolo específico, qual seja o “objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza”, o legislador alarga o espectro de abrangência do conceito de organização criminosa previsto na Convenção de Palermo, cujo conteúdo estabelece como requisito “um benefício econômico ou outro benefício material”.

De todo modo, também não se observa aqui condições de adequar o dispositivo legal à forma de atuação dos atuais movimentos sociais. Qual seria a vantagem almejada pelos multitudinários movimentos de contestação? Diminuição de tarifas exorbitantes de transportes públicos, valorização dos profissionais da educação, luta contra a corrupção na política, desmilitarização da polícia, direito à cidade e à participação popular. Neste contexto, é importante observar as ponderações de Luiz Flávio Gomes[63]:

“Ainda são relevantes para a compreensão da exigência típica aqui enfocada (estrutura ordenada) alguns dados, como os seguintes: normalmente as organizações criminosas não possuem caráter ideológico, ou seja,“não contam com agendas políticas”, não pretendem mudar o regime político do país, não representam terroristas ou seus propósitos de mudanças na governança do Estado.” Grifos nossos.

As bandeiras levantadas pelos movimentos sociais, seja quando trazem à tona pautas locais, seja quando representem genuínas contestações anticapitalistas[64], não podem ser consideradas “vantagem de qualquer natureza”, porque não há vantagem alguma. Trata-se tão somente de exercer o direito fundamental à liberdade de expressão, liberdade de reunião e livre manifestação do pensamento.  Lutar, por melhores condições de existência, definitivamente, não é crime. A tentativa de enquadrá-las como vantagens que caracterizem uma organização criminosa corresponde, em última instância, à criminalização da ação política, típica de Estados fascistas e autoritários.

Ainda que existam vínculos específicos entre um ou outro manifestante, o fato conclusivo é que as redes se formam horizontalmente, são multimodais e aperfeiçoadas com base em valores de cooperação e fraternidade.             Não se pode dizer que as manifestações populares (envolvam as chamadas depredações ou não) estejam dirigidas à obtenção de qualquer vantagem que não seja simplesmente o desejo de por em prática “a utopia da autonomia do sujeito em relação às instituições da sociedade”[65].

  1. Conclusão

 O Estado de Direito constitui um dispositivo atravessado por linhas contraditórias, organicamente em tensão. Estas linhas traçam, como disse Gilles Deleuze[66], processos que estão sempre em desequilíbrio. Discursos, instituições, práticas, proposições teóricas cruzam o dispositivo Estado de Direito e, assim, sujeitam-no a contaminações e derivas de toda a ordem[67].

A consciência destas desconexões, ruídos intrassistêmicos como colocou Rui Cunha Martins, é o que nos permite refletir sobre os “momentos em que o Estado de direito foi cooptado pelas políticas totalitárias do século passado sem demonstrar então a necessária agilidade ou força para as erradicar da sua órbita”. [68] Em outras palavras, ele, o Estado de direito, move-se e ao se mover evidencia “uma profunda disponibilidade para os apelos da conjuntura”.[69]

A atual conjuntura política e social do país é marcada pela ascensão das manifestações populares. Estas, enquanto processos de insurgência que colocam o Estado no centro da rua, nos reconduzem à velhas e persistentes questões: utilização abusiva da maquinaria repressiva estatal, requisição de práticas e de mecanismos próprios à regimes políticos autoritários, enfim, uma resposta política levada a efeito, em alguns casos pelo gás lacrimogêneo, em outros pelo cassetete, pela prisão ilegal, de qualquer forma, pela violência do Estado.

O emprego da Lei n° 12.850/13 na persecução penal em face de manifestantes se insere neste contexto. Ela representa, ao lado dos outros expedientes jurídico-penais, a resposta das agências estatais aos movimentos deflagrados no país, desde junho 2013 e que, pela sua própria potência, tem confrontado arbitrariedades estatais.

 A finalidade proeminente deste artigo foi, portanto, a de conduzir todos aqueles que pretendem pensar a “questão criminal”, a partir de um viés democrático,[70] ao epicentro deste contexto. Nele, pudemos cartografar não apenas a dimensão política das práticas repressivas estatais (sobretudo no ambiente das jornadas de junho de 2013), mas também avançar para a desconstrução dogmática da tentativa de enquadrar manifestantes na lei que trata das organizações criminosas, que certamente será acompanhada da aplicação repressivista da Lei nº 13.260/16 que tipifica os crimes de terrorismo, de modo a ampliar o cardápio das legislações de exceção à disposição da seletiva resposta punitiva às resistências democráticas aos arbítrios estatais.

            Há, seguramente, um largo espaço de reflexão quanto às novas formas de movimentação social, um novo desenvolvimento que, para além da consciência de classe, permite que as múltiplas singularidades possam advir em sua potência libertadora. Mas é preciso estar atento. Afinal, como ponderou Zizek, estes são “anos em que sonhamos perigosamente”.

 

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ZIZEK, Slavoj. O ano em que sonhamos perigosamente. São Paulo: Boitempo, 2012.

Notas de Rodapé:

[1]Mestre em Direito. Doutorando em Direito (UFRJ). Professor de Processo Penal da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Professor Substituto de Processo Penal da UFRJ. Coordenador Adjunto da Pós Graduação em Processo Penal e Garantias Fundamentais da Academia Brasileira de Direito Constitucional – Rio de Janeiro. Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise do Programa de Pós Graduação da Universidade Federal do Paraná. Advogado Criminalista.

[2] Mestre e Doutor em Direito pela PUC-Rio, Professor do Programa de Pós-graduação em Direito Constitucional da UFF (PPGDC-UFF), Professor de Criminologia e Direito Penal do IBMEC-RJ, Professor de Direito Penal da UFF, Professor da Pós-graduação em Direito Penal, Processo Penal e Criminologia da UCAM, Diretor Executivo do Instituto de Defensores de Direitos Humanos.

[3] A atmosfera criada após o atentado em 11 de setembro de 2001, nos EUA, corresponde, em grande medida, ao incremento global de medidas emergenciais de caráter autoritário. A disseminação em diversos países do U.S.A. Patriot Act – pacote de leis antiterrorismo que implicou na restrição de direitos civis -, se insere neste contexto.

[4] Assim, proliferam-se as políticas criminais bélicas, os aparatos policiais, as execuções sumárias, a profusão dos cárceres, a tortura como meio de obtenção de prova, ao mesmo tempo em que se restringem os direitos e garantias fundamentais. Diante da onda neoconservadora, o Estado Democrático de Direito vê-se ameaçado pela expansão do Estado Policial, onde a busca da segurança sobrepuja a luta pela liberdade, enfraquecendo a dimensão protetiva dos direitos humanos.

[5] NEGRI, Antonio. O Poder Constituinte. Ensaio sobre as alternativas da modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2002, p. 39/40.

[6] Ao desenvolverem a ideia de subjetividade como produção, Deleuze e Guattari, falam de um inconsciente maquínico (GUATTARI, Félix. Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1981) “um inconsciente de mobilização, cujos objetos, mais do que permanecerem afundados na terra, levantam voo” (DELEUZE, Gilles. O que as crianças dizem. In: Crítica e Clínica, São Paulo: Editora. 2012. p. 86). Este plano subjetivo é composto por um emaranhado de linhas heterogêneas (econômicas, politicas, sociais, tecnológicas, etc.) que se relacionam, se conectam, modulando funcionamentos, processo que tais autores chamam de agenciamento (DELEUZE, Gilles. PARNET, Claire. Diálogos (1977). Lisboa: Relógio d’água, 2004). Os processos de subjetivação, portanto, abarcam agenciamentos coletivos de enunciação. As instituições simbólicas, os códigos morais e de conduta modelam subjetividades, o que nos leva a problematizar a ideia de um sujeito livre e arbitrário. No entanto, isso não significa dizer que os sujeitos são totalmente passivos e submissos; seus atos e suas relações não podem ser reduzidos aos impactos culturais, uma vez que poderá haver sempre movimentos de resistência e afirmação de si no desenvolvendo de modos de subjetivação singulares. (GUATTARI, Félix. ROLNIK, Suely. Micropolítica. Cartografia do desejo, Petrópolis: Vozes, 1986).

[7] É indispensável que a ciência jurídica e política repensem as condições de permanência das práticas fascistas (pessoais ou estatais) desde o ponto de vista da produção de subjetividade. Nas palavras de Gilles Deleuze: “Ora, o conceito de estado totalitário só vale para uma escala macropolítica, para uma segmentariedade dura e para um modo especial de totalização e de centralização; mas o fascismo é inseparável de focos moleculares que pululam e saltam de um ponto para o outro, em interação, antes de ressoar todos juntos”. (DELEUZE, Gilles. Mille Plateaux. Paris: Édition de Minuit, 1982, p.285).

[8] HARDT, Michael e NEGRI, Antonio. Multidão: guerra e democracia na era do império. Tradução: Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2012, p. 09. O Estado, desafiado pelos movimentos sociais e pela multidão, é assim questionado em seu intento de servir-se como um “companheiro de armas dos cidadãos, disposto a defendê-los dos perigos e dos grandes problemas da época” HASSEMER, Winfried. Persona, mundo y responsabilidad: bases para una teoría de la imputación em derecho penal. Trad. Francisco Muñoz Conde e María del Mar Díaz Pita. Santa Fe de Bogotá: Temis, 1999.

[9] BRANCO, Guilherme Castelo (org). Terrorismo de Estado. Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 08.

[10] Ilustrativamente: 1. Mandado de busca e apreensão de livros considerados subversivos: anarquistas, comunistas, em geral; 2. Busca pessoal por policiais homens, em mulheres; 3. Oitivas informais entre o preso e a autoridade policial; Incomunicabilidade do preso e condução para área fora da circunscrição legal da delegacia de polícia; 4. Proposta de juizados especiais criminais itinerantes e centrais ad hoc para exame de autos de prisão em flagrante, em violação ao princípio do juiz natural; 5. Prisão para averiguação e submissão à Identificação criminal do civilmente identificado; 6. Violações sistemáticas às prerrogativas funcionais de advogados; etc.

[11] A respeito da democraticidade como princípio unificador do sistema político, do sistema processual e, consequentemente, do sistema de administração da justiça criminal, conferir a obra de MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do Direito. The Brazilian Lessons. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

[12] Conferir: MARTINS, Rui Cunha. A hora dos cadáveres adiados: corrupção, expectativa e processo penal. São Paulo: Atlas, 2013.

[13] O emprego da Lei 12.850/13 ao contexto da repressão a manifestantes deve, portanto, ser compreendido dentro do ambiente social e político do chamado populismo punitivo. Parece-nos que esta lei, especialmente quando se trata de criminalizar movimentos sociais, integra o conjunto de medidas penais emergencialistas com o fulcro de atender aos interesses do poder constituído, ao arrepio de garantias penais e processuais penais elementares ao Estado Democrático de Direito.

[14]Disponível em: http://www.vice.com/pt_br/read/as-sentencas-de-execucao-em-massa-no-egito-vao-provocar-mais-violencia, acessado em 21 de abril de 2014.

[15] Disponível em: http://www.vice.com/pt_br/read/as-sentencas-de-execucao-em-massa-no-egito-vao-provocar-mais-violencia, acessado em 21 de abril de 2014. Sublinha-se a seguinte passagem: “um dos homens disse que seu irmão, que foi condenado in absentia, é deficiente físico e seria fisicamente incapaz de atacar um policial. Outro, um estudante de medicina, agora escondido na casa de um amigo, disse que estava a centenas de quilômetros dali no momento em que a delegacia foi atacada. Mais de 400 dos réus não estão sob custódia. Ezzat Mohamed, que no momento está escondido bem longe de sua casa em Minya, é um deles. Nihad, sua esposa, disse que ele é inocente e chamou a sentença de “tragédia”, acrescentando que seus quatro filhos – que têm entre seis e 17 anos – não conseguem entender o que aconteceu”.

[16] Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Protestos_na_Turquia_em_2013 acessado em 21 de abril de 2014. Rapidamente o tema se ampliou e as manifestações antigovernamentais passaram a englobar outras discussões: “os tópicos de discussão entre os ocupantes incluíam os planos controversos de construção de uma terceira ponte sobre o Estreito de Bósforo, leis restringindo o consumo de álcool aprovadas semana passada e a demolição recente do histórico Teatro Emek. Cartazes no parque diziam coisas como “Ombro a ombro contra o fascismo”. Disponível em: http://www.vice.com/pt_br/read/como-a-praca-taksim-em-istambul-se-transformou-numa-zona-de-guerra, acessado em 21 de abril de 2014.

[17] Disponível em: http://g1.globo.com/mundo/noticia/2013/08/manifestacao-perto-da-praca-taksim-acaba-com-40-detidos-na-turquia.html, acessado em 21 de abril de 2014.

[18] Disponível em: http://g1.globo.com/brasil/noticia/2013/06/protestos-pelo-pais-tem-125-milhao-de-pessoas-um-morto-e-confrontos.html, acessado em 21 de abril de 2014.

[19] Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/528155-lista-de-pessoas-mortas-e-feridas-no-brasil-em-manifestacoes, acessado em 21 de abril de 2014: “Lista das pessoas mortas e feridas no Brasil nas manifestações”. Há várias outras notícias importantes para o objeto das investigações, como por ex. o caso do policial militar que responder “porque eu quis” ao ser indagado da razão pela qual havia agredido manifestantes em Brasília

[20] Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/528155-lista-de-pessoas-mortas-e-feridas-no-brasil-em-manifestacoes, acessado em 21 de abril de 2014.

[21] A advocacia comprometida com a defesa dos direitos e garantias fundamentais basilares do Estado Democrático de Direito contribui com a assessoria jurídica pro bono de manifestantes sociais. No Rio de Janeiro foram destacados os coletivos Instituto de Defensores de Direitos Humanos (DDH), o grupo Habeas Corpus, a Associação Mariana Criola, bem como advogados plantonistas da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ. Em São Paulo houve grande contribuição dos Advogados Ativistas. Em outros estados da federação percebeu-se importante atuação da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (RENAAP).

[22] A constatação de que a violência pública é utilizada para manter a estabilidade do governante no poder é clara. As manifestações populares, no caso do Rio de Janeiro, por ex., chegaram a estabelecer ocupações na porta da residência do Governador, naquilo que ficou conhecido como “Ocupa Cabral”. Esta espécie de ação política é inédita no Brasil e, como sói acontecer, foi barbaramente reprimida pela polícia, que levou uma violência também inédita para os moradores do bairro elitista do Leblon.

[23] Cf. AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Trad. Iraci D. Poleti – São Paulo.ed. Boi tempo, 2004. p. 77 – 85.

[24] Discussões realizadas no contexto deliberativo do novo código penal (PL nº 236/2012).

[25] Disponível em http://www.cartacapital.com.br/sociedade/lei-da-ditadura-e-usada-para-investigar-manifestantes-contra-a-copa-6401.html, acessado em 20 de junho de 2014.

[26] Foucault em “O Nascimento da Biopolítica” cunhou o conceito de Estado de Polícia, ou Estado Gendarme para caracterizar o exercício do controle social quase total almejado pelo Estado. Assim descreve: “Para os governantes, o Estado de Polícia trata-se de considerar e encarregar-se não somente das diferentes condições, isto é, dos diferentes tipos de indivíduos com seu estatuto particular, mas, sobretudo, encarregar-se da atividade dos indivíduos até em seu mais tênue grão” FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2008.

[27] Dias, Rafael Mendonça; Carvalho, Sandra; Isabel Mansur (orgs.). Na Linha de Frente: Criminalização dos Defensores de Direitos Humanos no Brasil (2006-2012). Rio de Janeiro, JUSTIÇA GLOBAL.

[28]Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/10/1357784-black-blocs-sao-organizacao-criminosa-diz-diretor-do-deic.shtml. acessado em: 25/06/14. A leitura destas colocações nos obriga a uma pergunta de base: se a intenção é descobrir quem são e de onde vem, como é possível apontar peremptoriamente que se trata de organização criminosa?

[29] Disponível em:http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,elo-entre-black-blocs-e-pcc-e-inadmissivel-diz-ministro-da-justica,1503912. acessado em: 25/06/14.

[30] Neste sentido, conferir a entrevista do líder do partido Democratas (DEM) na Câmara dos Deputados, Ronaldo Caiado (GO), comparando o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) às Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) por causa da destruição de uma lavoura de laranjas no interior de São Paulo. “O MST é as ‘Farc brasileira’ mantida pelo ministro do Desenvolvimento Agrário, Guilherme Cassel e financiada com dinheiro público”. Disponível em: http://noticias.terra.com.br/brasil/politica/lider-do-dem-mst-e-39farc-brasileira39-mantida-pelo- governo,323068f40d94b310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html  acessado em em: 25/06/14.

[31] Disponível em: http://folhapolitica.jusbrasil.com.br/noticias/112550583/procurador-nao-ve-black-bloc-como-organizacao-criminosa. Consultado em: 25/06/14.

[32] Prevê novos tipos penais com o intuito de tutelar os interesses econômicos de uma entidade de direito privado internacional, a FIFA.

[33] Alguns tipos penais do Projeto de Lei chegam à estratosférica pena de 15 a 30 anos para o agente que: “provocar ou infundir terror ou pânico generalizado mediante ofensa à vida, à integridade física ou à saúde ou à privação da liberdade de pessoa, por motivo ideológico, religioso, político ou de preconceito racial ou étnico”.

[34] CASARA, Rubens R R e MELCHIOR, Antonio Pedro. Teoria do Processo Penal Brasileiro: Dogmática e Crítica. Conceitos Fundamentais. Lumen Juris: Rio de Janeiro: 2013, p. 70.

[35] Termo utilizado por Alexandre Morais da Rosa para referir-se às cláusulas abertas, como por ex., a “garantia da ordem pública”. Conferir. ROSA, Alexandre Morais. Decisão Penal. Bricolage de significantes. Rio de Janeiro: Lumen  Juris, 2006.

[36] CASARA, Rubens R R e MELCHIOR, Antonio Pedro. Teoria do Processo Penal Brasileiro: Dogmática e Crítica. Conceitos Fundamentais. Lumen Juris: Rio de Janeiro: 2013, p. 70.

[37] Em sua obra Estado de exceção, Agamben explica que a lógica da exceção permanente é criar dentro do Estado de direito uma zona de anomia que legitimaria o Estado a atuar em desconformidade com as normas jurídicas que ele mesmo impôs. O estado de exceção apresenta-se como a forma legal daquilo que não pode ter forma nenhuma. E prossegue: “Se a exceção é o dispositivo original graças ao qual o direito se refere à vida e a inclui em si por meio de sua própria suspensão, uma teoria do estado de exceção é, então, condição preliminar para definir a relação que liga e, ao mesmo tempo, abandona o vivente ao direito”. Cf. AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Trad. Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 13.

[38] A fusão do momento político com o momento bélico produz justamente o arcabouço teórico que legitima uma guerra suja (dessas que a “política criminal com derramamento de sangue” nos permite ver). Mostra-nos Zaffaroni que a composição do momento político com o bélico obscurece o limite entre a guerra – inimigo – e o poder punitivo – infrator. A consequência disso é a inserção do conceito de inimigo em um contexto equivocado, no qual o direito penal passa a ser o instrumento de uma guerra sem limitações jurídicas. O fim da distinção entre guerra – violência por motivação política entre Estados ou grupos políticos organizados – e crime organizado – violência por motivos particulares, exercida por grupos organizados privados, geralmente por benefícios econômicos – acaba, portanto, por legitimar a indicação de determinados delinquentes como típicos inimigos do Estado, possibilitando respostas estatais por meios ‘não convencionais’. In: ZAFFARONI, Eugênio Raul. O inimigo no Direito Penal. Trad. Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 149.

[39] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: a teoria do garantismo penal. Trad. Fauzi Hassan Choukr. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002- p. 35-37.

[40]CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Crime Organizado. Disponível em: disponível em http://www.cirino.com.br/principal.htm. acessado em 20 de junho de 2014.

[41] Idem.

[42]ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Crime Organizado: uma categorização frustrada, in Discursos sediciosos, 1 (1996).

[43] Na ótica do STJ, a conceituação de organização criminosa encontrava-se definida em nosso ordenamento jurídico pelo Decreto 5.015, de 12 de março de 2004 (Convenção de Palermo). Logo, é possível a imputação do crime previsto no art. 1º, VII, da Lei n.° 9.613/98. Para a 1ª Turma do STF A organização criminosa não pode ser usada como crime antecedente da lavagem de dinheiro, considerando que não existe definição legal no país. A definição contida na Convenção de Palermo não vale para tipificar o art. 1º, VII, da Lei n.° 9.613/98. Na sessão do dia 12 de junho deste ano de 2012, a 1ª Turma, no julgamento do Habeas Corpus nº. 96007, decidiu extinguir um processo penal no qual os pacientes respondiam pela suposta prática do crime de lavagem de dinheiro por meio de organização criminosa. A decisão foi unânime.

[44] O delito de constituição de milícia privada foi estabelecido através da Lei nº 12.720/12, que altera o Código Penal, passando a inscrever o art. 288-A.

[45] GOMES, Luiz Flávio. Comentários aos artigos 1º e 2ª da Lei 12.850/13 – Criminalidade organizada. Disponível em: http://atualidadesdodireito.com.br/lfg/2013/08/29/criminalidade-economica-organizada/ Acessado em: 25/06/14.

[46] Ibidem.

[47] Como a Lei nº 12.850/13 não revogou expressamente a Lei nº 12694/12, temos um caso claro de antinomia jurídica. Há incongruências e incompatibilidades entre os institutos em comento, mas não é o nosso objetivo enfrentá-los neste espaço. Entendemos que é não é adequada a manutenção de um conceito de organização criminosa que delineie o procedimento e outro para a definição de crimes. Desta feita, aplica-se o critério cronológico, primando pela prevalência da norma posterior, qual seja o disposto na Lei nº 12.850/13.

[48] Nas palavras de Cirino dos Santos: “autores de fatos qualificados como desobediência civil são possuidores de dirigibilidade normativa e, portanto, capazes de agir conforme o direito, mas a exculpação se baseia na existência objetiva de injusto mínimo, e na existência de motivação política ou coletiva relevante, ou, alternativamente, na desnecessidade de punição, por que os autores não são criminosos – portanto, a pena não pode ser retributiva e, além disso, a solução dos conflitos sociais não pode ser obtida pelas funções de prevenção especial e geral atribuídas à pena criminal”. SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal – parte geral. 3ª ed. Lumen Juris, Curitiba, 2008.

[49] A respeito do conceito de desobediência civil, conferir a clássica obra de THOREAU, Henry David. A desobediência civil, 1817-1862. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012. Ver, igualmente, RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Trad. Cláudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 1997. Ainda a respeito da desobediência civil, é indispensável a leitura de LA BOÉTIE, Étienne, 1530-1563. Discurso da servidão voluntária. Casemiro Linarth (trad.) São Paulo: Martin Claret, 2009

[50] GOMES, Luis Flávio. op. cit,. A definição de “associação estruturalmente ordenada” revela subjetividade que tende a ser preenchida pelo poder discricionário do magistrado. Neste ponto, é afrontado o princípio da legalidade, em especial seu desdobramento enquanto princípio da taxatividade, uma vez que engendra um tipo penal aberto. A este respeito, Gomes aponta que: “não cremos que a jurisprudência (sobretudo a de sabor populista) vá ter coragem de fazer respeitar referida garantia (que, nesta altura da expansividade do poder punitivo – Silva Sanchez -, está se transformando em letra morta ou minúscula). A preponderância do poder punitivo sobre o direito penal (sobre a ciência do direito penal) está mais do que evidente, em tempos de populismo penal midiático”. Tais aporias conduzem, no contexto de ofensiva global do autoritarismo, à banalização do conceito de crime organizado gerando inclusive entendimentos favoráveis à criminalização da ação política.

[51] CASTELLS, Manuel. Redes de Indignação e de Esperança. Trad. de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2013, p. 12.

[52] Nas palavras de Castells, “em nossa sociedade, que conceptualizei como uma sociedade em rede, o poder é multidimensional e se organiza em torno de redes programadas em cada domínio da atividade humana, de acordo com os interesses e valores de atores habilitados. As redes de poder o exercem, sobretudo influenciando a mente humana (mas não apenas) mediante as redes multimídia de comunicação de massa”. CASTELLS, Manuel. Redes de Indignação e de Esperança. op, cit, p. 12.

[53] “Nos últimos anos, a comunicação em ampla escala tem passado profunda transformação tecnológica e organizacional, com a emergência do que denominei autocomunicação em massa, baseada em redes horizontais de comunicação multidirecional, interativa, na internet; e, mais ainda, nas rederes de comunicação sem fio, atualmente a principal plataforma de comunicação em toda parte. Esse é o novo contexto, no cerne da sociedade em rede como nova estrutura social, em que os movimentos sociais do século XXI se constituem”. CASTELLS, Manuel. Redes de Indignação e de Esperança. op. cit. p. 158.

[54] CASTELLS, Manuel. Redes de Indignação e de Esperança. op. cit. p. 10.

[55] Ibidem.

[56] Ibidem.

[57] CASTELLS, Manuel. Redes de Indignação e de Esperança. op. cit. p. 160.

[58] Idem.

[59] Reportagem do sítio G1 do dia 04 de setembro de 2013, reproduzida no blog disponível em http://levantedereacaopopular.blogspot.com.br/2013/09/integrantes-do-black-block-sao-presos.html acessado em 24 de junho de 2014. “RIO – Uma operação deflagrada pela Delegacia de Repressão à Crimes de Informática (DRCI) para desarticular o grupo conhecido como Black Bloc terminou com três presos e dois menores apreendidos nesta quarta-feira. O grupo é acusado de promover baderna e atos de vandalismo durante as manifestações que vêm sendo realizadas desde junho. Os detidos assumiram na delegacia que administravam a página do grupo no Facebook. De acordo com a chefe de Polícia Civil, delegada Martha Rocha, eles responderão a inquérito por formação de quadrilha armada e incitação à violência”.

[60] Por “hackeamento” entende-se a manipulação não autorizada de um sistema computacional alheio.

[61]BITENCOURT, Cezar Roberto. Primeiras reflexões sobre organização criminosa – Anotações à Lei 12.850/2013. Disponível em: http://atualidadesdodireito.com.br/cezarbitencourt/2013/09/05/primeiras-reflexoes-sobre-organizacao-criminosa/ Consultado em: 25/06/14.

[62] Mesmo na hipótese do porte de artefato explosivo, previsto no art. 16, III do Estatuto do Desarmamento, cuja pena base é de 3 a 6 anos, não seria possível o enquadramento da Lei 12.850/13 a manifestantes, uma vez que não há o preenchimento dos demais requisitos.

[63] GOMES, Luiz Flávio. Comentários aos artigos 1º e 2ª da Lei 12.850/13 – Criminalidade organizada. Disponível em:http://atualidadesdodireito.com.br/lfg/2013/08/29/criminalidade-economica-organizada/ Acessado em: 25/06/14.

[64] Como disse André Duarte, hoje, o “novíssimo biopoder não atua apenas segundo o eixo dos exageros do poder soberano estatal em sua ânsia de governamentabilidade – a qual, por certo, nem por isso desapareceu, apenas se transformou -, mas atua segundo o eixo flexível do mercado”. DUARTE, André. Foucault e as novas figuras da biopolítica. o fascismo contemporâneo. In VEIGA-NETO, Alfredo. RAGO, Margareth. Para uma vida não-fascista. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

[65] Ibidem.

[66]DELEUZE, Gilles. O que é um dispositivo. Disponível em http://www.arteria.art.br/wp-content/uploads/2013/10/Deleuze-O-que-e%CC%81-um-dispositivo.pdf, acessado em 06 de abril de 2014.

[67] MARTINS, Rui Cunha, op. cit, p.4.

[68] Idem, p. 5.

[69] Idem, p. 2.

[70] Democracia, onde se falou dela, importa em controle do poder estatal. O Estado de direito, portanto, é um dispositivo que visa ao controle do poder estatal. O seu propósito forte, como disse Ferrajoli, é o de sujeitar os poderes públicos à lei, em última instância a limites de contenção. O direito criminal (especialmente o processo penal) é um dispositivo criado dentro de outro, para exercer este propósito forte.

 

Palavras Chaves

Seletividade Penal, Manifestações Sociais, Lei de Organizações Criminosas