TUTELA NORMATIVA DA COMUNIDADE TRADICIONAL DE ÍNDIOS CAIÇARAS: NOVAS PERSPECTIVAS DIANTE DA LEI ESTADUAL DO RIO DE JANEIRO Nº 7790/2017.

Resumo

O presente trabalho apresenta a evolução dos estudos desenvolvidos pelas autoras sobre as comunidades tradicionais do Município de Paraty/RJ, notadamente os índios Caiçaras, que se desdobraram em análises que subsidiaram a defesa dos direitos constitucionais dos Caiçaras. O objeto, portanto, recorta as mediações entre a História e o Direito na defesa de direitos que devem ser assegurados às comunidades tradicionais Caiçaras que são excluídas em virtude de todo o processo de valorização imobiliária do país, em especial o de Paraty/RJ, por meio de práticas baseadas em ameaças e violências próprias dos conflitos agrários envolvendo altos índices de grilagem, gerando uma violação direta ao artigo 231, §1º, da Constituição Federal.

Artigo

TUTELA NORMATIVA DA COMUNIDADE TRADICIONAL DE ÍNDIOS CAIÇARAS: NOVAS PERSPECTIVAS DIANTE DA LEI ESTADUAL DO RIO DE JANEIRO Nº 7790/2017.

Vânia Siciliano Aieta[1]

Marcelle Mourelle Perez Diós[2]

RESUMO: O presente trabalho apresenta a evolução dos estudos desenvolvidos pelas autoras sobre as comunidades tradicionais do Município de Paraty/RJ, notadamente os índios Caiçaras, que se desdobraram em análises que subsidiaram a defesa dos direitos constitucionais dos Caiçaras. O objeto, portanto, recorta as mediações entre a História e o Direito na defesa de direitos que devem ser assegurados às comunidades tradicionais Caiçaras que são excluídas em virtude de todo o processo de valorização imobiliária do país, em especial o de Paraty/RJ, por meio de práticas baseadas em ameaças e violências próprias dos conflitos agrários envolvendo altos índices de grilagem, gerando uma violação direta ao artigo 231, §1º, da Constituição Federal.

PALAVRAS-CHAVE: Caiçara. Direitos Humanos. Sociedades Tradicionais. Reconhecimento.

  • Considerações iniciais

 O presente trabalho apresenta a evolução dos estudos desenvolvidos pelas autoras sobre as comunidades tradicionais do Município de Paraty/RJ, notadamente os índios Caiçaras, que se desdobraram em análises que subsidiaram a defesa dos direitos constitucionais dos Caiçaras. O objeto, portanto, recorta as mediações entre a História e o Direito na defesa de direitos que devem ser assegurados às comunidades tradicionais Caiçaras que são excluídas em virtude de todo o processo de valorização imobiliária do país, em especial o de Paraty/RJ, por meio de práticas baseadas em ameaças e violências próprias dos conflitos agrários envolvendo altos índices de grilagem, gerando uma violação direta ao artigo 231, §1º, da Constituição Federal.

Nosso campo de pesquisa desdobra-se em estudos históricos que nos subsidiam na defesa dos direitos constitucionais dos caiçaras, que, podem ser enquadrados no paradigma de Robert Alexy como Liberdades Protegidas:

Ela [a proteção constitucional] é constituída por um feixe de direitos a algo e também por normas objetivas que garantam ao titular do direito fundamental a possibilidade de realizar a ação pretendida. Se uma liberdade está associada a um tal direito e/ou norma, então, ela é uma liberdade protegida. […] Liberdades que são protegidas por uma proteção substancialmente equivalente são liberdades protegidas diretamente. Tanto a proteção indireta quanto a proteção direta podem ocorrer seja por meio de normas que conferem direitos subjetivos (proteção subjetiva), seja por meio de normas que não conferem direitos subjetivos (proteção objetiva). (ALEXY, 2008, p. 233).

Tais liberdades representam reflexo do princípio do tratamento da pessoa como um fim em si, que, segundo Comparato (2010, p. 36-37):

implica não só o dever negativo de não prejudicar ninguém, mas também o dever positivo de obrar no sentido de favorecer a felicidade alheia, que constitui a melhor justificativa do reconhecimento, a par dos direitos e liberdades individuais, também os direitos humanos à realização de políticas públicas de conteúdo econômico e social.

Nosso objeto, portanto, recorta as mediações entre a História e o Direito na defesa de direitos que devem ser assegurados às comunidades tradicionais, observando os paradigmas trazidos pelo marco teórico do Estruturalismo de Levy-Strauss, que relaciona o fato social em três vertentes: as suas origens, os processos internos do objeto de estudo e os impactos individuais e coletivos destes processos.

Vale ressaltar que em comunidades com cultura predominantemente oral visto ao alto grau de analfabetismo/baixa escolaridade como no caso dos grupos caiçaras, existem escassos registros sobre o passado, de modo que os relatos dos remanescentes, as entrevistas e a observação participante tornam-se de superlativa importância para a produção de material acadêmico que comprove a prévia ocupação das comunidades nos locais em que hoje habitam (DUARTE, 2006).

Nesse sentido, a pesquisa figura como importante elemento nesse esforço acadêmico de apreciação dos direitos constitucionais das comunidades Caiçaras às terras historicamente por elas ocupadas.

  • Comunidades Caiçaras na contemporaneidade atual no município de Paraty/RJ

Inicialmente, pode-se conceituar Caiçara não somente como a cerca feita ao redor da aldeia ou das plantações como forma de proteger do avanço do gado, mas também, como será feito doravante, como o povo descendente do encontro de portugueses e índios e que desde sua origem optaram por viver fora dos centros urbanos, juntos ao mar, tirando dele os recursos necessários à sobrevivência. Pode-se perceber que a tradição desta comunidade decorre diretamente da transculturalidade e da formação de uma centralidade em relação direta com a vida integrada com a natureza, notadamente formando um grupo social com características próprias e que em nenhuma hipótese pode ser tido como primitivo ou inferior. (LEVY-STRAUSS, 1995, p. 138 e ss)

Com relação ao conceito de cultura trazido pelo marco teórico de Levy-Strauss, vale destacar a observação de Lima (1968, p. 17):

A cultura, então, começa antes do homem. Enquanto a pintura é “um modo de matéria”, “a tonalidade musical – quer seja entre os pássaros, quer seja entre os homens – é o modo de sociedade”. Os pássaros “fazem” cultura porque se exprimem e comunicam. Já não é a transformação inteligenciada dos objetos do mundo o característico da cultura. Tal conceito, além de lançar mão da ideia não definível por si de esforço inteligenciado, peca por supor a inteligência dote disposto fora da natureza. Ora, como escreve Edmund Leach à propósito: “o mundo da natureza, o involtório imutávelno qual o homem nasce, existe de pleno direito e é regido por uma ordem; os processos biológicos não são simples acidentes devidos ao acaso. A este respeito o cérebro humano é uma parte da natureza. É verdade que cérebro e inteligência não são sinônimos. Pois, conforme Levy-Strauss, o papel da inteligência é o de atualizar, mediante as pressões de uma situação dada, esquemas mentais inconscientes, trazidos pelo cérebro. Se a inteligência não é natureza está, todavia, em permanente contato com o cérebro natural. Donde o conceito tradicional ser afastado como ingênuo. O vazio que então se estabelece passa a ser ocupado por ideia que tem em conta a maior proximidade entre os dois termos, natureza e cultura. Cultura é comunicação, donde, por acréscimo, expressão, donde realidade observável fora dos homens entre pássaros.

Tendo em vista tal concepção, há que se ver a cultura indígena como eles mesmos nos ensinam: como um comportamento de um dos elementos da natureza. Pois, sob a ótica indígena, cada ser humano é tão parte da natureza e tão digno de respeito e tutela quanto qualquer outro elemento, vivo ou não vivo, da natureza. Afinal, é a teia de interligação deles todos que forma o equilíbrio natural.

Ademais, ainda sobre a adoção do marco teórico de Levy-Strauss, é fundamental frisar que, como expõe Prado Júnior (1971, p. 16):

O núcleo central do estruturalismo de Levy-Strauss e a ideia essencial que o inspira se revelam em sua mais condensada e clara forma, a meu ver, na comparação que o autor faz entre História e Etnografia – ou “Etnologia”, como ele prefere. Verifica-se aí de maneira explícita que Levy-Strauss não objetivava apenas a Etnografia e sim uma concepção geral acerca da vida social, e mesmo do Homem simplesmente como indivíduo. Uma filosofia em suma, uma explicação e interpretação do comportamento humano em seu relacionamento social, bem como no seu modo de ser individual.

No caso específico do nosso objeto de estudo, a abertura da rodovia BR-101 como eixo integrador do litoral brasileiro trouxe para a região o turismo e a especulação imobiliária, tirando os caiçaras de suas tradicionais vilas em belas praias, concentrando-os em terras novas de Paraty como os bairros Ilha das Cobras e Mangueira, próximos ao centro histórico que concentra grandes fluxos turísticos, mas longe do mar. Alguns, mesmo passando a estar situados na cidade de Paraty mantiveram sua cultura de construção naval (escunas, baleeiras e canoas) montando pequenos estaleiros fora da costa marítima, mas na margem do rio Mateus Nunes. Outros grupos formaram novas vilas caiçaras, em locais na costa continental ou em ilhas como Corumbê, Praia Grande e Araújo.

Vale ressaltar que o papel do mar na cultura caiçara é central de modo que o deslocamento das comunidades de seus locais de origem, sobretudo quando tal distanciamento os retira da praia, faz com que exista um reflexo direto sobre a manutenção dos costumes e práticas tradicionais e do modo de vida ligado diretamente à atividades pesqueira e ao ciclo próprio das marés.

Algumas comunidades caiçaras que vivem em áreas de praias, costeiras e enseadas de difícil acesso e dentro de áreas de preservação ambiental, como por exemplo, as comunidades de pescadores do Sono, Ponta Negra, Pouso, Cajaíba, Saco das Enchovas, Joatinga, Martim de Sá e Cairuçu, não foram tão afetados pela expansão das cidades. Estas comunidades mantêm ainda hoje mais íntegras suas tradições e, estando afastados da civilização, tiveram sua cultura preservada, conservando inclusive os traços mais fortes de semelhança com os daquelas tribos indígenas que lhes deram origem que estão ali desde os tempos pré-coloniais.

Diante de tal quadro, portanto, há que se ter que tais terras devem ser protegidas em todos os casos, pois como leciona Kayser (p. 235, 2010):

[…] O conceito de posse “tradicional “ não se refere, portanto, a um componente temporal, e sim apenas ao modo tradicional dos índios de possuir e utilizar a terra, e com isso, ao modo tradicional da relação dos índios com sua terra (ao contrário do conceito brasileiro de posse, de interpretação cível). A existência dos pressupostos será comprovada processualmente através de laudo antropológico. Não é exigida pela Constituição a imemorialidade da ocupação, ou seja, a ocupação desde o “descobrimento” para identificar uma terra como indígena. Também quando o artigo 231, §1º, da Constituição Federal, exige que a terra tenha sido e ainda seja habitada em caráter permanente pelos índios, no caso de uma expulsão dos índios por terceiros, por meios violentos ou outros meios coercitivos, a posse dos índios continua a ser permanente de acordo com a jurisprudência.

Todo o processo de valorização imobiliária do país, em especial o de Paraty, implicou em um processo de exclusão dos caiçaras, ocupantes originários dessa área, em virtude de ameaças e violências próprias dos conflitos agrários envolvendo altos índices de grilagem em uma violação direta ao artigo 231, caput e §1º, da Constituição Federal, que assim determina:

 Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarca-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

  • São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para as suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. (BRASIL, 1988).

Assim, nas elucidativas lições de Darcy Ribeiro (1996), o contraste entre os índios e o contexto urbano com que eles são obrigados a conviver chega ser tão agressivo que se torna assassino. Além de transformarem o meio ambiente, derrubando as matas, poluindo os rios, inviabilizando a caça e a pesca, os “vizinhos civilizados” lançam sobre os índios toda a brutalidade de sua suposta inferioridade insanável, gerando ondas de suicídios.

Nos últimos tempos, fortaleceu-se uma nova força que hoje é altamente relevante na defesa dos direitos indígenas: que eles sejam e permaneçam índios, atitude afirmativa na defesa dos valores humanos, inclusive na preservação dos poucos povos indígenas que restaram e que hoje são constantemente usurpados de seus direitos constitucionais pelas interpretações maculadas pelas ideologias conservadoras de que eles não seriam detentores desses direitos por serem “mestiços” e não “índios puros”, falácia antropológica em um Brasil “Moreno”, para parafrasear a genialidade de Darcy Ribeiro, como se os brancos e negros, todos nós brasileiros, não fôssemos todos mestiços.

Desse modo, no atual cenário do município de Paraty/RJ, há uma pressão dos setores turístico e imobiliário para a ocupação “produtiva” do litoral daquela região, tendo em vista todo o potencial de atração de recursos econômicos em um ambiente que congrega a especial localização entre as maiores metrópoles do país São Paulo e Rio de Janeiro, uma posição resguardada para a navegação pela posição na Baía da Ilha Grande como fator de atração para os veleiros e expedições de mergulho, uma flora e fauna exuberante pelo domínio do bioma da Mata Atlântica, que já fora eliminado de grande parte da faixa litorânea nacional.

Logo, a formação de hospedagens, empreendimentos turísticos e condomínios de veraneio voltados para as classes mais abastadas das metrópoles nacionais voltaram uma ganância sobre a região historicamente ocupada pelos Caiçaras, que sem a devida regularização da sua situação fundiária foram em vários casos compelidos forçosamente a deixar tais áreas e, consequentemente, passaram ao contexto atual de alta vulnerabilidade diante das pressões mercadológicas sobre os direitos constitucionalmente assegurados sobre o território ao povo Caiçara.

  •  Tutela normativa sobre as Comunidades Caiçaras

Há que se salientar também os reflexos da legislação e das medidas oficiais de proteção ambiental sobre os grupos caiçaras.

Em 1971, a União Federal criou o Parque Nacional da Bocaina, por meio dos Decretos Federais nº 68.172/1971 (BRASIL, 1971) e 70.694/1972 (BRASIL, 1972), que colocou toda a área da Serra da Bocaina do município de Paraty dentro na área do parque e todo o restante do território em sua área de amortização.

Logo em seguida, ocupando área contida na área de amortização do Parque Nacional da Bocaina, houve a formação do Parque Estadual de Paraty-Mirim, com a desapropriação das Fazendas Paraty-Mirim e Independência, por meio do Decreto Estadual nº 15.927/1972 (RIO DE JANEIRO, 1972), que passou a ser denominado Área Estadual de Lazer de Paraty-Mirim, com a edição do Decreto Estadual nº 996/1976 (RIO DE JANEIRO, 1976).

Em 1983, a Área de Proteção do Cairuçu foi criada pelo Decreto nº 89.242/1983 (BRASIL, 1983), integralmente contida na área do Parque Nacional da Bocaina e em sua área de amortização, no território sul do município de Paraty/RJ, já trazendo menção ao seu objetivo de tutela das comunidades tradicionais Caiçaras, bem como daquelas oriundas do Quilombo do Campinho. Sendo este já um fator de afirmação dos direitos Caiçaras, mas que nunca pode ser visto como um motivo de confinamento dos Caiçaras na APA Cairuçu, eis seus territórios tradicionais vão além, atingindo, em Paraty, áreas de controle exclusivo do Parque Nacional da Bocaina e de sua área de amortização.

Já em 1992, surge a Reserva Ecológica da Juatinga, criada pelo Estado do Rio de Janeiro por meio do Decreto Estadual nº 17.981/1992 (RIO DE JANEIRO, 1992), notadamente sobre a área de amortização do Parque Nacional da Bocaina e com a previsão expressa em seu artigo 4º que “A Fundação Instituto Estadual de Florestas IEF/RJ desenvolverá programa específico de Educação Ambiental, com o objetivo de fomentar a cultura caiçara local, compatibilizando a utilização dos recursos naturais com os preceitos conservacionistas estabelecidos neste Decreto.” (RIO DE JANEIRO, 1992).

No entanto, por mais louvável que seja a previsão de políticas públicas de Educação Ambiental para o fomento da cultura Caiçara pelo Poder Executivo estadual, o que deveria ter ocorrido era a regularização fundiária do território caiçara, eis que este é um direito constitucionalmente assegurado e que, de fato, representa uma das melhores maneiras de proteger a própria cultura Caiçara.

Sendo certo que tal processo gerou sobreposições que refletiram em um quadro de conflito na definição de competências e responsabilidades. Apesar do ideal de conservação da sociodiversidade, tal como ocorre em todos os grandes projetos na prática, o que se observa é uma visão calcada na crença no fator humano como agressor ao meio ambiente e que a permanência caiçara poderia ser algo danoso.

Como referência exemplar de postura estatal com foco na propriedade e de desconsideração do fator humano na região há as Contrarrazões em Agravo de Instrumento nº 9098/2001, tendo sido o feito julgado pela 17ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, publicadas juntamente com o respectivo acórdão na Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro (MASCARENHAS,2002). Neste caso, terras ocupadas por Caiçaras foram reintegradas ao Estado do Rio de Janeiro, em um julgado que confirma a tese defendida pelo Procurador do Estado do Rio de Janeiro de que as terras eram públicas desde a formação do Parque Estadual de Paraty-Mirim. Quando, uma leitura constitucional dos fatos exigiria o reconhecimento dos direitos históricos das Comunidades Caiçaras àquele território.

Vale destacar que esta hipótese se mostrou falha, eis que o modo de vida caiçara, em regra, é integrado ao meio ambiente e preservacionista, sem que isto possa ser um salvo conduto, ou seja, as posturas, sobretudo as não-tradicionais, de membros de comunidades caiçaras devem observar o dever geral de defesa do meio ambiente, tal como reconhece o art. 231,§1º,da Constituição Federal, supracitado.

Afinal, como leciona Villares (2009, p. 216):

O usufruto exclusivo não quer dizer que o índio possa utilizar as riquezas naturais presentes dentro e fora das terras indígenas de qualquer forma. Se a Constituição protege a organização social, os costumes e tradições indígenas, quer dizer que a forma de utilizar qualquer recurso natural é protegida enquanto ela for compatível com esses atributos. Dentro e fora das terras indígenas, a produção consoante com a organização social, os costumes e tradições indígenas jamais devem ser limitados. A caça, a pesca, a agricultura de subsistência, a pecuária, o extrativismo e a produção de artesanato não podem sofrer restrições, pois são amparadas constitucionalmente, mesmo que os excedentes destas atividades sejam utilizados para a comercialização.

Já Duarte (2006) destaca que:

Quanto à legislação existente, há apenas duas leis, estaduais, que cuidam diretamente da questão caiçara: a Lei 2303/95 (RIO DE JANEIRO, 1995), que prevê a permanência de populações nativas residentes em unidades de conservação do Estado do Rio de Janeiro, e a Lei 3192/99 (RIO DE JANEIRO, 1999), que garante aos pescadores artesanais o direito a permanecer na terra que ocupam. A implementação do disposto nestas normas não ocorre, contudo, em decorrência de inúmeras indefinições na regulamentação dessas leis e da falta de vontade política.

Tudo isto gera conflitos na relação dos ocupantes com os órgãos ambientais. Sendo certo que, por sua vez, a ação dos órgãos ambientais reforça a exclusão social dessas famílias, conjugando-se à omissão do Governo local, que não interfere nos conflitos fundiários e sócio-ambientais.

Assim, percebe-se o contexto percebido em campo (CENTRO EDUCACIONAL ANÍSIO TEIXEIRA, 2012) que na Praia Grande da Cajaíba a história dos moradores insere-se nesse contexto. A sua permanência no lugar onde sempre viveram vem se tornando inviável, com constantes ameaças e atos de violência, por parte tanto do suposto proprietário da terra quanto dos órgãos ambientais. A maioria dos moradores tem deixado a área, passando a viver miseravelmente na cidade de Paraty.

É neste cenário que emerge a Lei do Estado do Rio de Janeiro nº 7790, de 28 de novembro de 2017 (RIO DE JANEIRO, 2017), que não só reconhece o patrimônio cultural, histórico e imaterial dos caiçaras e de outras sociedades tradicionais fluminenses, mas também considera as comunidades de especial interesse social, bem como impede a remoção ou o remanejamento dos grupos de seus locais de origem, mesmo quando estes encontram-se situados em Unidades de Conservação da Natureza.

Trata-se de norma de contenção do poder estatal que se enviesava no sentido contrário ao da tutela dos povos caiçaras, absolutamente alinhada com o texto constitucional e que reconhece a inafastável realidade: os povos caiçaras tem o seu locus dentro de muitas áreas litorâneas que foram incluídas como Unidades de Conservação da Natureza pela presença de mata atlântica em melhores condições de biodiversidade do que em outros sítios.

Pensar em sentido contrário seria punir as comunidades tradicionais em nome da proteção da mata atlântica justamente quando historicamente foi a presença dos grupos caiçaras que conteve o avanço da mancha urbana devastadora.

Afinal, na ponderação entre os direitos dos Caiçaras e a proteção ambiental, há a manutenção dos direitos da comunidade tradicional, eis que somente ali eles são plenos. Contudo, no caso de cidadão alienígena à comunidade Caiçara, a ponderação tende para o lado da proteção ambiental, eis que o bem ambiental protegido possui um sobrevalor frente as diversas outras opções da parte ré para adquirir um imóvel de veraneio cuidado inclusive por caseiros.

Desse modo, a norma estadual foi técnica e rigorosa ao delimitar que somente os membros da comunidade Caiçara poderiam ali construir, seguindo os seus hábitos e tradições, que se alinham com os preceitos da sustentabilidade ambiental. Qualquer outra interferência de habitante alheio a este grupo deve ser repelido, pois trata-se de área de proteção ambiental, de modo a alinhar os ditames dos artigo 225 e 231, ambos da Constituição Federal, para que coexistam os direitos indígenas e o meio ambiente equilibrado.

Nesta linhagem de direitos fundamentais, há que se destacar que “os direitos humanos constituem simultaneamente um princípio de engrandecimento do Estado e um princípio protetor contra o poço sem fundo do desejo do Estado.” (DOUZINAS, 2009, p. 379). De tal forma que a tutela dos direitos indígenas deve atrair a proteção estatal, mas também deve repelir a ameaça imposta por posturas do próprio estado como aconteceu no caso do IEF/RJ supracitado.

Por fim, há que se tecer a crítica ao posicionamento de algumas das partes mencionadas que exclui das comunidades caiçaras o status de legítimas herdeiras diretas das tribos que habitavam a região historicamente, pois colocam como requisito para o exercício dos direitos indígenas a existência de uma comunidade de “linhagem pura e direta” dos índios é fazer uso de uma linha interpretativa de negação dos direitos humanos, em violação direta aos fundamentos da hermenêutica jurídica que determinam a interpretação ampliativa para a expansão de liberdades e direitos e a restritiva para a análise das normas que impõem sanções e deveres.

  • À guisa de conclusão: avanços percebidos na novel legislação estadual

Desse modo, percebe-se que existe o direito das comunidades tradicionais Caiçaras à defesa de seus saberes e hábitos, bem como aos territórios por eles historicamente ocupados.

Para tanto, não basta o mero acesso igualitário ao Poder Judiciário. É necessária a nova dimensão da igualdade, que valoriza a tutela das minorias, como leciona Castro (2010, p. 359-362):

Auscultando, pois as mensagens que emanam do preâmbulo e dos direitos e garantias fundamentais da Constituição de 1988 relacionados com o ideal de igualdade, recolhe-se a convicção de que – conquanto sob uma dicção aparentemente tradicionalista – o artigo 5º instaura o que podemos denominar de a nova igualdade, haja vista o seu conteúdo substantivo e dirigido alcance transformador […] Extraordinário potencial equalizador apresenta, também, o estabelecimento da diretriz segundo a qual, na promoção do bem de todos, o Poder Público há de atuar sem preconceitos de qualquer ordem, abstendo-se, por isto mesmo, de qualquer modalidade de discriminação (art. 3º, IV). Aqui temos, cristalinamente fixado na porta de entrada do ordenamento constitucional, o complexo de parâmetros necessários e suficientes para a compreensão de todos os dispositivos constitucionais em que se desdobra o conteúdo do princípio isonômico, uma vez que são proscritas as distinções de caráter odioso, desarrazoado e irracional.

  1. Ações positivas e as discriminações benignas

Dentre esses mecanismos de superação do sentido jurídico-liberal da igualdade destaca-se a promissora teoria das denominadas ações afirmativas, de inspiração norte-americana (positive actions), apregoando que somente pela via de um tratamento diferenciado, preferencial e benéfico no plano da ordem jurídica se poderá verdadeiramente alcançar maior igualdade no plano social e econômico para os segmentos sociais historicamente discriminados, a exemplo das populações negras e das mulheres. Preconiza-se, em suma, que as discriminações em razão de raça, sexo e status econômico só são corrigíveis, ou minorados, mediante a implantação de políticas legislativas protecionistas e recuperadoras da inferioridade social determinada por preconceitos históricos e culturais enraizados no inconsciente coletivo.

Não há como desconsiderar o quadro de histórica opressão sobre os índios, inclusive os grupos Caiçaras de Paraty/RJ. Sendo assim, devem eles receber a proteção positiva de suas liberdades e as políticas afirmativas necessárias para a proteção de seus costumes e de seus territórios. Para tanto, devem ser verificados os pressupostos do artigo 231, §1º, da Constituição Federal, como meio de caracterização dos grupos indígenas. Afinal, como bem diz Kayser (2010, p. 235):

Todos os quatro pressupostos [do artigo 231, §1º da Constituição Federal] devem ser definidos através dos usos, costumes e tradições dos índios – e não em função dos chamados critérios “civilizados”, de modo que possam ser respectivamente respeitadas as mais variadas formas dos índios brasileiros com referência a suas relações com a terra. No caso de populações seminômades, que retornam ao seu ponto de partida em determinados intervalos de tempo em suas peregrinações, deve ser adotado uma medida diferente para a definição da posse tradicional daquela adotada para as populações sedentárias.

Portanto, os direitos caiçaras recebem pleno amparo constitucional a partir do momento que representam a manutenção da cultura indígena na região de Paraty/RJ nos termos dos artigos 231 e 232 da Constituição Federal (1988), devendo ocorrer a manutenção do território e a conservação dos direitos culturais dessas comunidades, direitos estes que podem ser plenamente exercidos em consonância com os preceitos de preservação do meio ambiente também dotados de status constitucional, tal como finalmente reconhece de modo positivo a Lei do Estado do Rio de Janeiro nº 7790, de 28 de novembro de 2017 (RIO DE JANEIRO, 2017).

REFERÊNCIAS

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RIO DE JANEIRO. Lei Estadual nº 3192/99: promulgada em 15 de março de 1999. Disponível em <http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/CONTLEI.NSF/e9589b9aabd9cac8032564fe0065abb4/96145e613da6cc4c03256735006b6e5e?OpenDocument> Acesso em 11abr2014.

RIO DE JANEIRO. Lei Estadual nº 7790/2017: promulgado em 2017. Disponível em < http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/CONTLEI.NSF/c8aa0900025feef6032564ec0060dfff/352ac3310d35b28a832581e7005d1ff7?OpenDocument> Acesso em 05mai2018.

VILLARES, Luiz Fernando. Direito e Povos Indígenas. Curitiba: Juruá, 2009.

Notas de Rodapé:

[1] Docente do Programa de Pós-Graduação em Direito da UERJ. Doutora em Direito Constitucional pela PUC-SP, Pós-Doutora em Direito Constitucional pela PUC-Rio, Visiting Researcher na Universidade de Santiago de Compostela, Espanha(2018) e Visiting Scholar na Universitá La Sapienza, Roma, Itália(2018). Líder dos grupos de pesquisa no CNPQ Observatório do Direito Eleitoral, Hermenêutica Constitucional e Análise Transacional e Políticas Públicas e Direito da Infraestrutura. Presidente da Escola Superior de Direito Eleitoral (ESDEL). Editora da Revista BALLOT, especializada em Direito Eleitoral Internacional. Além da Faculdade de Direito da UERJ, leciona na Escola da Magistratura, na Escola Judiciária Eleitoral, na Universidade Veiga de Almeida e no Instituto de Direito da PUC-Rio. Presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB/RJ.

[2] Docente da Universidade Santa Úrsula, Universidade Castelo Branco e Faculdade Gama e Souza. Doutoranda e Mestra em Direito da Cidade pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da UERJ. Membro da Comissão de Direito Constitucional da OAB/RJ. Editora-Adjunta da Revista Ballot (Faculdade de Direito/UERJ). Pesquisadora Integrante do Grupo de Pesquisa Hermenêutica Constitucional e Análise Transacional (UERJ-CAPES). Especialista em Direito Empresarial com ênfase em Direito Tributário (FGV DIREITO RIO) e em Direito Privado (UGF-RJ). Graduada em Direito (UERJ).

Palavras Chaves

Caiçara. Direitos Humanos. Sociedades Tradicionais. Reconhecimento.