Artigo

 ORANGE IS THE NEW BLACK:

O encarceramento feminino sob a perspectiva criminológico-feminista.

Lorene Barbosa Louvem

Advogada inscrita na Ordem dos Advogados do Brasil, seccional Rio de Janeiro, sob n.º 202.537. Pós-graduada em Gênero e Direito pela EMERJ. Graduada pela Faculdade de Direito da UFRJ.

Luiza Gomes Carneiro

Advogada inscrita na Ordem dos Advogados do Brasil, seccional Rio de Janeiro, sob n.º 205.981. Pós-graduada em Gênero e Direito pela EMERJ. Graduada pela Faculdade de Direito da UNIRIO.

Mariana Louback Lopes

Advogada inscrita na Ordem dos Advogados do Brasil, seccional Rio de Janeiro, sob n.º 201.477. Pós-graduada em Gênero e Direito pela EMERJ. Graduada pela Faculdade de Direito da UERJ.

Nayra Gomes Mendes

Advogada inscrita na Ordem dos Advogados do Brasil, seccional Rio de Janeiro, sob n.º 205.363. Pós-graduada em Gênero e Direito pela EMERJ. Graduada pela Faculdade de Direito da UFRJ.

 RESUMO – A população carcerária feminina, mesmo apresentando um crescimento atual alarmante e superior ao da masculina, permanece invisibilizada. O estigma do cárcere, quando aliado às opressões inerentes ao patriarcado, confina essas mulheres em um duplo isolamento. Nesse sentido, a mídia, enquanto instrumento de poder, adquire especial relevância na construção do perfil e na difusão do universo prisional feminino. Objetiva, portanto, o artigo analisar, a partir da ótica criminológica-feminista, como são concebidas e quais os possíveis efeitos de tais representações identitárias perante a população em geral, com foco no trabalho realizado pela série que intitula o presente.

Palavras-Chave – Gênero. Criminologia feminista. Encarceramento feminino. Sistema penitenciário.

INTRODUÇÃO

Inicialmente, versa o presente sobre o encarceramento feminino, a partir da ótica da Criminologia Feminista, tema este que necessita de especial atenção, não somente pelo fato de ter sido analisado reiteradamente por estudos negligentes às questões de gênero, como também em razão de ter se mantido, ao longo do tempo, um sistema penal indiferente às múltiplas realidades de mulheres que praticam delitos, seja pela falta de avaliação dessas realidades, seja pelo tratamento fornecido pela própria instituição prisional.

A organização do sistema prisional foi passível de inúmeras mudanças, passando, então, a se adaptar, no decorrer dos séculos, de acordo com as novas formas de concepção dos direitos humanos. Assim, no primeiro momento, será possível verificar tais transformações, cabendo, por ora, destacar que os sistemas de penas privativas de liberdade evoluíram, de modo geral, do “Separate System” ao “Silent System”, chegando, enfim, ao “Sistema Progressista ou Inglês”.

Não é demais ressaltar que, à época da criação das instituições prisionais, em meados do século XVIII, ainda não havia uma unidade direcionada somente às mulheres, pelo que se poderá perceber que as penas imputadas a elas passaram a ter aplicação no final do século XIX. Nesse sentido, a história do encarceramento feminino no Brasil inicia-se com a criação do Instituto Feminino de Adaptação Social, atualmente conhecido como Penitenciária Madre Pelletier.

Por conseguinte, o enfoque passará ao efetivo encarceramento feminino, sob a ótica de diferentes correntes criminológicas, as quais avaliaram, e permanecem avaliando, as razões que levariam as mulheres a delinquir. Assim, interessante observar que, quando do surgimento dessa pesquisa por parte da Criminologia, partia-se de uma verificação de cunho majoritariamente moral para compreender o universo da mente feminina criminosa, tendo as teorias lombrosianas muito contribuído para a formação de um suposto (e caricato) perfil da “mulher delinquente”.

Nessa feita, traçado o aparato teórico que cerca a temática do encarceramento feminino, será abordada a influência da mídia na reprodução de estereótipos de gênero, principalmente aqueles concernentes à mulher em situação de privação de liberdade, e avaliados os efeitos da propagação dessas representações sobre o imaginário do grande público. Para tanto, utiliza-se como objeto a série norte-americana “Orange is the new black”, distribuída pelo provedor Netflix desde julho de 2013, cujo enredo principal trata do cotidiano das detentas de uma unidade prisional ficcional e, a partir daí, aborda os dramas vivenciados pelas mulheres no cárcere, sob uma perspectiva – acredita-se – mais humanizada e, portanto, inovadora.

Com isso, através da conjugação de conceitos da Criminologia Feminista com a análise da supramencionada série televisiva, pretende-se evidenciar a situação das prisões femininas e, ainda, tratar das distintas realidades que ocasionam a privação da liberdade de inúmeras mulheres, em razão da prática de delitos que, muitas vezes, se apresentam como única alternativa a uma vida de parcas oportunidades e muitas opressões.

  1. O SISTEMA PRISIONAL E A PROBLEMÁTICA DE GÊNERO NO CÁRCERE

Durante quase toda a história da civilização humana, as retribuições por condutas consideradas moralmente condenáveis não se davam com o encerramento dos corpos dos desviantes em celas ou espaços apartados da sociedade. A privação de liberdade não era encarada como uma pena autônoma, mas apenas uma fase anterior à pena propriamente dita, que normalmente consistia em castigos físicos.

O desviante, muitas vezes, pagava com seu trabalho, seu corpo e, até mesmo, com sua vida por seu comportamento. A restrição da liberdade somente se tornou uma forma efetiva de punição entre o final do século XVIII e o início do século XIX, conforme assevera Michel Foucault1 em “Vigiar e Punir: nascimento das prisões”:

“A forma geral de uma aparelhagem para tornar os indivíduos dóceis e úteis, por meio de um trabalho preciso sobre o seu corpo, criou a instituição-prisão, antes que a lei a definisse como pena por excelência. No fim do século XVIII e princípio do XIX se dá a passagem de uma penalidade de detenção, é verdade; e era coisa nova.”

O ambiente das penitenciárias era e ainda é formado para, como informa o trecho anterior, “tornar os indivíduos dóceis e úteis”. O local deveria moldar os desviantes, quebrando seu espírito supostamente contestador, através de disciplinas rígidas a serem seguidas. Os horários fixos para se levantar, fazer as refeições, dedicar-se ao trabalho e ao estudo, fazer orações e se deitar procuravam incutir no indivíduo as regras sociais às quais ele deveria se acostumar para ter uma vida ordeira e, principalmente, útil à sociedade.

Gradualmente, os espaços foram se aperfeiçoando em tal sentido, dando origem a medidas de integração social, traduzidas em sistemas de penas privativas de liberdade distintos, a saber:

  1. Sistema da Filadélfia ou Belga – Separate System:

É inaugurado em 1790, na cidade da Pensilvânia, capital do estado da Filadélfia, nos Estados Unidos e posteriormente adotado na Bélgica.

Esse sistema, criado pelos Quaker, pregava que a recuperação do indivíduo se daria através de seu arrependimento, advindo da oração e do isolamento. O convívio social era proibido e o trabalho, desencorajado, “para que a energia e todo o tempo do preso fossem utilizados na instrução escolástica e serviços religiosos, acreditando-se ser esta a forma mais fácil de domínio sobre os criminosos” 2.

Após algum tempo, esse sistema é suavizado, transformando-se no Separate System. Nesse momento, são permitidas algumas visitas (apenas de médicos, funcionários da própria penitenciária e sacerdotes) e a realização de trabalhos, que poderiam ser elaborados na própria cela ou em ambientes comunitários, em casos de presos por crimes com inferior potencial ofensivo. O ambiente, porém, deveria ser completamente silencioso.

  1. Sistema de Auburn – Silent System:

Sistema nascido na cidade homônima, nos Estados Unidos, em 1818. Esse modelo, também chamado de “Silent System”, tem como regra o trabalho comum, mas em absoluto silêncio. Ao final do dia, os internos são recolhidos a celas individuais.

O sistema de Auburn é bastante semelhante ao sistema da Filadélfia, diferenciando-se apenas por permitir o trabalho comum. Logo, recebeu as mesmas críticas do modelo anterior, considerado demasiado severo.

A reformulação dos dois sistemas anteriores dará origem ao sistema inglês ou progressivo.

iii. Sistema Progressivo ou Inglês:

O sistema progressivo se pauta em uma devolução gradativa da liberdade, preocupando-se principalmente com a reabilitação do preso e com seu eventual retorno à sociedade. O modelo busca, através de recompensas, estimular o bom comportamento dos internos, permitindo que eles possam trabalhar e se instruir, o que ajudaria na reinserção social.

O objetivo seria, justamente, a recuperação gradual do preso, pois “a essência deste regime consiste em distribuir o tempo de duração da condenação em períodos, ampliando-se em cada um os privilégios que o recluso pode desfrutar de acordo com sua boa conduta e o aproveitamento demonstrado do tratamento reformador” 3.

O referido sistema não impede o convívio social, salvo no primeiro momento. Isso ocorre para que o interno possa demonstrar sua evolução e aptidão para o retorno à vida social sem os vícios pelos quais ingressou no sistema prisional.

No Brasil, foi adotado o sistema progressivo em 1940, com a edição do Código Penal, ainda em vigência. Entretanto, a história do sistema prisional brasileiro, especificamente a do encarceramento feminino, inicia-se antes dessa data.

Os primeiros dados sobre mulheres cumprindo penas privativas de liberdade remontam aos anos de 1870. Essas penas, porém, eram cumpridas em prisões mistas e, frequentemente, em celas mistas, propiciando a ocorrência de estupros e abusos. Diante de tal quadro, o Estado brasileiro se viu pressionado a construir penitenciárias exclusivamente femininas4.

Construído em 1937, em Porto Alegre (RS), o primeiro presídio feminino brasileiro recebeu o nome de Instituto Feminino de Adaptação Social (atualmente Penitenciária Madre Pelletier) e era coordenado por freiras da Congregação de Nossa Senhora da Caridade do Bom Pastor5. A instituição não apenas internava mulheres que incorressem em condutas criminosas, mas todas as mulheres consideradas “desviantes”: prostitutas, mães solteiras, mulheres que não queriam ou que “não conseguiram” se casar.

Nota-se, portanto, uma questão mais moral do que propriamente jurídica: o presídio deveria “consertar” essas mulheres, tornando-as aptas para a vida em sociedade. A função da pena seria transformar os seus corpos em “dóceis e úteis”, porém, agora, para exercer o papel social que lhes cabia: esposa e mãe, ou religiosa. O sacrifício e a abnegação, exaltados nos modelos de privação de liberdade anteriores, impregnados de dogmas religiosos para alcançar a redenção, são retomados nesse contexto, como forma de controle e contenção da sexualidade e da voluntariedade femininas.

Com o passar do tempo, porém, houve um incremento na criminalidade feminina. A emancipação feminina desacompanhada da equiparação salarial levou mais mulheres a obterem ilegalmente o sustento de seus filhos e parentes6. Já que mais mulheres passaram a cometer crimes, tornou-se necessária a construção ou adaptação de mais estabelecimentos prisionais. Entretanto, essa necessidade nem sempre reflete a realidade.

Não raro, a mulher criminosa é vista como uma invasora de espaços eminentemente masculinos, como as prisões e a própria seara criminal. Conforme afirma Samantha Buglione, “a mulher presa é a ‘grande transgressora’, não apenas pelo cometimento do crime, mas pela ‘invasão’ de um universo que, em natureza, não lhe compete” 7.

Por serem minoria nas cadeias, frequentemente as mulheres são relegadas aos piores espaços nos estabelecimentos mistos. São destinados a elas os cantos, os locais mais sujos e esquecidos de um ambiente já degradado. Em razão da pouca expressividade numérica, as mulheres também são preteridas em atividades de estudo e trabalho e, até mesmo, nos momentos de lazer e convivência, como os banhos de sol. Os exames médicos são raros e os kits de higiene, escassos.

Todas essas privações podem ser entendidas como uma forma sutil de punição, uma descaracterização de sua condição específica feminina. A igualdade e a pretensa neutralidade do ambiente prisional tornam-se nocivas, punindo a mulher tanto por sua conduta quanto por sua invasão a um ambiente tipicamente masculino8.

O Estado, ao não olhar atentamente às diferenças, acaba por invisibilizar suas custodiadas, bem como salientou Heidi Ann Cerneka, coordenadora da Pastoral Carcerária Nacional para questões femininas, ao afirmar que “para o Estado e a sociedade, parece que existem somente 440 mil homens e nenhuma mulher nas prisões do país. Só que, uma vez por mês, aproximadamente 28 mil desses presos menstruam” 9.

  1. OS DISCURSOS CRIMINOLÓGICOS E A REPRESENTAÇÃO DA IDENTIDADE DA MULHER TRANSGRESSORA

Lombroso e Ferrero, em sua obra traduzida “The Female Offender”, como expressão dos ditames da Criminologia Positivista10, se propuseram a traçar o perfil de quem seria a mulher delinquente. A pesquisa empírica foi realizada da mesma forma já feita com os homens, ou seja, foi estudado um nicho de mulheres já encarceradas, de modo a ignorar tanto as inocentes presas, quanto as transgressoras em liberdade. Fato é que, ao final do trabalho, os autores listaram as seguintes características da originalmente chamada “donna delinquente”: criminosas natas, criminosas ocasionais, ofensoras histéricas, criminosas passionais, suicidas, criminosas lunáticas, delinquentes epiléticas e moralmente insanas11.

Ressalta, ainda, a obra que a mulher delinquente seria aquela que possui em si quatro ou mais dos adjetivos supralistados12, enquanto a “mulher normal” ostentaria o máximo de dois13. Curiosa, no entanto, a existência também de um tipo intermediário14, possuidor de, ao menos, três dessas características. Poderiam ser enquadradas nesse nível mediano, por exemplo, as prostitutas, as quais, enquanto “loucas morais”, poderiam vir a evoluir para o status de criminosas.

Interessante notar como as prostitutas sempre estiveram no foco dos estudos criminológicos, ainda que sua atividade laboral confronte muito mais regramentos morais do que propriamente normas penais15. Isso ocorre em razão da tendência do aparato repressivo penal incidir sobre quem desempenha função social estranha ao rol aceito e esperado pelos demais, visto que uma das funções precípuas do direito é justamente se conformar à sociedade. Nesse sentido, acrescenta Faria, ao discorrer sobre a história da criminologia e das mulheres no Brasil, que “a prostituta era vista como uma grande ameaça social porquanto disseminava um modelo de liberdade e sexualidade que deveriam ser eliminados para evitar a repetição por outras mulheres” 16.

Nessa feita, torna-se necessário romper com o mito da neutralidade do direito, para que se possa compreender e questionar o processo criminológico. O direito, enquanto instrumento de poder e reflexo da sociedade a que pertence, é androcêntrico, possui gênero definido e este é masculino.

Embora muito se fale na Escola Clássica iluminista17 como ponto de partida do estudo da Criminologia, Zaffaroni identifica os primeiros discursos criminológicos ainda durante a Idade Média e afirma que o primeiro documento criminológico escrito teria sido o “Malleus Maleficarum” 18 – tornando forçoso observar que o dito marco, enquanto produto da Inquisição, seria justamente fruto de um movimento de perseguição, sobretudo, às mulheres. Nesse sentido, destaca-se o exposto pela professora Vera Malaguti19:

“As bruxas, representando as tentativas de controle dos ritos de fertilidade, os partos, enfim, o poder feminino estará no processo de objetificação, como estiveram as ‘ideias erradas’ dos hereges. As pugnas pela hegemonia e centralização da Igreja Católica vão tratar de primeiro desumanizar os hereges e as bruxas, para depois demonizá-los. É por isso que Zaffaroni trabalha a Inquisição como o primeiro discurso criminológico moderno: serão estudadas as causas do mal, as formas em que se apresenta e também o método para combatê-lo.”

As chamadas teorias demonológicas, que permearam o processo da Inquisição, tinham como feiticeiras ou bruxas as mulheres que fugiam ao padrão da mulher casta e submissa da época. Ao “dançar com o diabo”, como apontava a sociedade, aquelas mulheres não estavam cumprindo qualquer papel social proveitoso ao homem. Não por acaso, eram sobre elas que incidiam as sanções da ordem penal vigente.

A Criminologia lida, em última instância, com a luta pelo poder e a demanda por ordem, o que restou ainda mais evidente quando do deslocamento do paradigma etiológico para o da reação social já no século XX20. O Estado, dispondo de um poder punitivo estruturado, é capaz de manter a ordem social intacta, através da segregação daqueles que ousam romper com o status quo vigente.

Nesse diapasão, a “Labeling Approach Theory” 21 ou “Teoria do Etiquetamento Social” emergiu com a ideia de que os conceitos de “crime” e “criminoso” seriam construídos socialmente, a partir da atuação progressiva do Poder Legislativo e das demais instâncias oficiais de controle social. Em suma, sugere-se a análise sequencial dos processos de criminalização, a partir da atividade legislativa empenhada na tipificação de determinadas condutas, seguindo para o efetivo etiquetamento penal através da aplicação das normas incriminadoras e, por fim, a manutenção do rótulo de “criminoso” atribuído àqueles escolhidos como tal, incluindo a internalização desse estigma pelo próprio indivíduo, sobretudo no contexto do sistema penitenciário.

Ocorre que, em se tratando das mulheres, o controle social incide ainda mais fortemente sob dois prismas: o controle formal, exercido pelo Estado, e o controle informal, reproduzido no âmbito privado pela família, pela Igreja, pela mídia, pela escola e demais instituições.

Assim, destacam-se as lições de Alessandro Baratta22 sobre o tema:

“A introdução da variável do gênero na ótica do etiquetamento permitiu que fossem confirmados e ampliados os resultados a que havia chegado a criminologia crítica na análise da seletividade do processo de criminalização. A relação de condicionamento recíproco entre esta seletividade e a realidade social não é mensurável apenas com a escala das posições sociais e com a sua reprodução. A estrutura dos papeis nas duas esferas da divisão social de trabalho, quais sejam, a da produção material e a da reprodução, não é menos importante. É nesta diferenciação das esferas e dos papeis na divisão social do trabalho que age a construção social dos gêneros. A sociedade patriarcal reservou, de forma ampla, o protagonismo da esfera produtiva aos homens e do círculo reprodutivo, às mulheres.”

Logo, o que se quer afirmar é que, no caso das mulheres, o sistema de justiça criminal resta por se integrar ao controle social informal23, pois incide sobre aquelas que extrapolam as barreiras do patriarcado privado, tornando-se alvo do controle público.

O cárcere, enquanto fase última do processo de criminalização, é ainda mais agressivo com as mulheres, pois, como já visto, se trata de um sistema pensado e construído para homens, aos quais se atribui a possibilidade da natureza violenta. Ignora-se a transgressão feminina como um tabu capaz de romper com o mito da “feminilidade pacífica” 24. O estigma do cárcere, quando aliado aos preconceitos do patriarcado, cria uma massa de mulheres duplamente invisíveis à sociedade.

Nesse contexto, a mídia, enquanto instrumento importante do controle social informal, possui influência decisiva no processo de construção e representação da identidade dessas mulheres perante a sociedade. Por se tratar de uma classe de pessoas isoladas do convívio social, a imagem escolhida para ser veiculada pelos meios de comunicação torna-se muito mais difícil de ser refutada, além de mais facilmente absorvida pelos espectadores, que, em sua maioria, desconhecem a real situação do cárcere.

Infelizmente, o pouco que se viu tratar, até hoje, da vida dessas mulheres pelos canais de massa ainda remete ao conceito determinista e patológico do desvio, como nos estudos já mencionados de Cesare Lombroso. A mulher transgressora é representada basicamente sob dois estereótipos: as masculinizadas, que esteticamente remetem à figura padrão de um homem, ou as erotizadas, que se utilizam da feminilidade e da sexualidade exacerbada para ludibriar os homens e satisfazer seus interesses espúrios. Ou seja, o desvio comportamental feminino é, ainda, difundido como o rompimento da mulher para com seu papel socialmente estabelecido de delicadeza e castidade, sobretudo no que tange ao exercício de sua sexualidade, ressaltando que historicamente “o chamado ‘desvio sexual’, seja ele quando a mulher apresentava comportamento masculino ou quando tinha uma erotização exacerbada para os padrões sociais, representava um sinal de periculosidade” 25.

Nota-se, então, que a mídia, que deve também ser lida como instrumento de manutenção do poder em uma sociedade patriarcal e androcêntrica, vem reforçando, na esfera do controle privado, a ideia de que “a mulher que infringe a lei compõe um duplo desvio, cuja compreensão pela sociedade é feita através da desconstrução dela como ‘mulher boa e virtuosa’” 26.

Em razão disso, optou-se por trabalhar neste artigo a dinâmica da série norte-americana “Orange is the new black”, especialmente no tocante ao processo de construção e representação das personagens, bem como nos impactos da narrativa sobre os telespectadores. Acredita-se que, sob a ótica criminológica-feminista que permeia a corrente dissertação, a forma como foi escrita e vem sendo conduzida a trama possa funcionar como ferramenta para humanização da figura patologizada da mulher em situação de privação de liberdade e maior compreensão do fenômeno criminológico do cárcere feminino pelo público respectivo.

A série é inspirada no livro “Orange is the New Black: My Year in a Women’s Prison”, escrito e protagonizado por Piper Kerman, que narra sua experiência ao cumprir pena numa instituição federal por conta de envolvimento com o tráfico internacional de entorpecentes e lavagem de dinheiro. Piper, representada na série pela personagem Piper Chapman, é uma mulher branca, abastada e bem instruída, que teria cometido os crimes pelos restou condenada em razão de sua namorada à época, representada pela personagem Alex Vause.

Nesse contexto, embora possa parecer em um primeiro momento que o enredo se concentre na figura de uma mulher branca de classe média alta, enquanto essas são minoria no cárcere, a trama, ao longo de suas atuais cinco temporadas, vai se pulverizando entre a história das demais detentas e abrindo espaço para os mais diversos questionamentos, entre os quais se destacam os a seguir expostos.

Primeiramente, a organização da própria instituição prisional evidencia uma questão importante: as alas se subdividem entre as mulheres brancas, negras e latinas. Dentro dessa ordem, ainda reivindicam espaço grupos minoritários, como o das asiáticas e o das idosas. Ou seja, essa divisão por si traz à luz uma problemática muito cara ao Feminismo contemporâneo: as diferenças dentro da diferença. Apesar de se tratar de um nicho exclusivamente feminino, confrontam-se entre si, ainda, outras características diferenciadoras para além do gênero, como raça, classe, etnia, geração e capacidade física.

No tocante ao processo de formação das personagens das detentas, que vem a ser o principal foco desta análise, merece destaque, em primeiro lugar, a forma escolhida para apresentar o universo de cada uma delas, através de flashbacks para momentos anteriores ao da prisão, de modo a traçar as situações vividas que culminaram na privação de liberdade. O processo de desumanização da mulher encarcerada, perpetrado pelas instâncias hegemônicas do controle social, que como já visto busca formar a ideia e o medo do “outro” criminalizável, faz com que a sociedade ignore a existência de uma vida por trás do sujeito institucionalizado, o que torna interessante e necessária tal abordagem.

Assim, quando se adentra na história das personagens da série, é inevitável relacionar cada uma delas a uma questão latente na interação das mulheres com o cárcere. Dayanara traz à tona a problemática da gravidez no cárcere, da carência de tratamento médico adequado e da privação do convívio e cuidados com sua filha recém-nascida. Sophia representa o drama das mulheres transexuais encarceradas, a dificuldade de obtenção do tratamento hormonal necessário, a luta pela visibilidade e pela própria autoaceitação. Suzanne traz ao público a questão psiquiátrica e as falhas do sistema e da sociedade ao lidar com a situação. Gloria dá voz às mulheres vítimas de violência doméstica, além de sofrer no cárcere o drama de todas as mães encarceradas, que são obrigadas a deixar seus filhos sob a tutela de outrem e a perder seu crescimento nos anos de maior desenvolvimento infanto-juvenil. Maria tem sua personalidade serena alterada para uma faceta agressiva, após o marido a privar do convívio com sua filha durante as visitas, a fim de impedir que a criança tomasse ciência de sua condição enquanto presidiária. Taystee demonstra a crueldade da institucionalização e a dificuldade de ressocialização após o cumprimento da pena. Seriam, enfim, inúmeros exemplos fictícios com outras inúmeras correspondências reais.

As histórias individuais não serão mais detalhadas do que o já feito, tanto para não tornar a explanação maçante, quanto, e sobretudo, por não se tratar de um trabalho sobre o enredo da série, mas sobre os seus possíveis efeitos e reações do público, no tocante à compreensão da identidade da mulher transgressora e a problemática do cárcere.

Defende-se, aqui, que a humanização das detentas da penitenciária ficcional de Litchfield pode funcionar como ferramenta contra-hegemônica na formação identitária da mulher encarcerada no ideário social. Como já visto, demonstra a Criminologia Crítica que faz parte da estratégia do Estado repressor demonizar a imagem daqueles que não servem aos seus propósitos, de modo que a própria sociedade apoie a sua segregação. Nesse sentido, adquire extrema relevância um instrumento de comunicação que, dentro da dinâmica do controle social informal, veicule uma ideia distinta da usual.

Ao expor a vida das personagens para além do corpo institucionalizado, o programa é capaz de fazer questionar no público o estereótipo falho construído e veiculado pelas instâncias detentoras do poder. Entender a trajetória que levou da vida cotidiana ao castigo do cárcere pode fazer questionar, inclusive, a eventual (in)justiça da pena aplicada, alcançando a clássica inquietação criminológica do status criminoso como imposição social, e não condição pré-determinada.

Portanto, a apresentação das personagens nos moldes expostos e a veiculação dessa imagem ao grande público podem influir, positivamente, no imaginário popular até então aterrorizado por figuras tão caricatas e medonhas quanto à donna delinquente lombrosiana. Essa mudança de paradigma é interessante tanto para desconstruir a imagem desumana sobre a qual se impõe o rótulo do desvio no momento final da criminalização, como para promover a compreensão e o apoio por parte da população no tocante a políticas públicas em favor das mulheres encarceradas, cujas necessidades permanecem invisíveis e confinadas a um sistema eminentemente masculino.

Encerra-se, então, o presente com a cena que também encerrou a quarta temporada de “Orange is the new black”: três corredores que se interceptam em um ponto central, cada um ocupado pelas detentas de suas respectivas alas em rebelião, um guarda rendido no centro com uma arma apontada para sua cabeça por uma das rebeldes. O desfecho não será contado, mas o desenho da situação já havia sido feito por Kimberle Crenshaw27 alguns anos antes. Afinal, como idealizar esse cruzamento entre vias brancas, negras, latinas e o estigma do cárcere, sem pensar em intersecionalidade?

CONCLUSÃO

Ao refletir, com base na série norte-americana “Orange is the new black”, sobre questões relacionadas ao sistema prisional, em especial sobre o cárcere feminino, que é pouco explorado, nota-se que o protagonismo das encarceradas, além de suas histórias vividas antes de terem contato com o sistema prisional, é trazido à tona. Conforme dito anteriormente, surge, de forma quase inédita para o grande público, uma humanização da figura patologizada da mulher em situação de privação de liberdade e, consequentemente, a possibilidade de maior compreensão do fenômeno criminológico do cárcere feminino por parte desses espectadores.

Nesse sentido, o engajamento social nessa questão torna-se ainda mais urgente quando se observam os dados. No Brasil, o volume de mulheres encarceradas multiplicou-se por oito em dezesseis anos, alcançando o total alarmante de 44.721 detentas em 2016, de acordo com o Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) do Ministério da Justiça28. Com isso, apesar de ser ainda inferior em quantidade, a população carcerária feminina vem crescendo em nível superior ao da masculina, sendo certo que a mesma rapidez não se nota no aprimoramento dos estabelecimentos prisionais respectivos, tampouco na prestação de serviços especializados e formalmente assegurados a essas mulheres, como atendimentos médico-ginecológicos adequados e fornecimento de produtos de higiene íntima.

Por outro lado, surgem alguns sinais de esperança em se reduzir a cegueira de gênero inerente ao sistema penal, como, por exemplo, através do habeas corpus coletivo impetrado pelo Coletivo de Advogados em Direitos Humanos (CADHu), em favor de todas as mulheres submetidas à prisão cautelar na condição de gestantes, puérperas ou mães de crianças com até doze anos de idade sob sua responsabilidade, que se encontra pendente de julgamento perante o Supremo Tribunal Federal (HC 143641). O pedido respalda-se em outro avanço no campo das políticas públicas penitenciárias, que foram as alterações trazidas pela Lei n.º 13.257/2016, de modo a possibilitar a substituição da prisão preventiva por prisão domiciliar para gestantes, independentemente da idade gestacional, e mães de crianças, nos novos termos do art. 318 do Código de Processo Penal.

Assim, ao final, fica claro que a mulher encarcerada ainda sofre preconceitos no sistema penal, quando na verdade deveria ser tratada com dignidade, levando-se em consideração todas as suas necessidades particulares. O estigma carregado, além dos abalos físicos e psicológicos, por ter passado pelo cárcere, é muito mais gravoso, sendo as chances de reincidência bastante frequentes. Nota-se, outrossim, que a supressão da liberdade poderia ser mitigada através da disposição de meios de educação, como cursos profissionalizantes, no intuito de promover a reinserção no convívio social.

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QUEIROZ, Nana. Presos que menstruam. 5ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2016.

Notas de Rodapé:

1 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 42 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. p. 223.

2 SILVA, Alexandre Calixto da. Sistemas e Regimes Penitenciários no Direito Penal Brasileiro: Uma Síntese Histórico/Jurídica. 2009. 112 p. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Estadual de Maringá, Maringá. p. 41.

3 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal : parte geral, 1 / Cezar Roberto Bitencourt. – 16. ed. – São Paulo : Saraiva, 2011. p. 151.

4 QUEIROZ, Nana. Presos que menstruam. 5ª edição. Ed. Record – Rio de Janeiro. 2016, p. 131.

5 Ibid., p. 131.

6 Ibid., p. 63.

7BUGLIONE, Samantha. O Dividir da Execução Penal: Olhando Mulheres, Olhando Diferenças. In: CARVALHO, Salo de (org.) Crítica à Execução Penal – Doutrina, Jurisprudência e Projetos Legislativos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 131.

8 Ibid., p. 140.

9 QUEIROZ, op. cit.

10 Denomina-se Escola Positivista a corrente teórica surgida no século XIX, sob influência das ideias do determinismo de Charles Darwin, cuja proposta buscava aplicar ao processo criminológico o método científico e a experimentação empírica, de modo a classificar os indivíduos e identificar aqueles propensos ao crime em razão de sua própria natureza biológica.

11 Tradução livre, constando, na obra consultada em inglês, as seguintes nomenclaturas: the born criminal, ocasional criminals, hysterical offenders, crimes of passion, suicides, criminal female lunatics, epileptic delinquents and moral insanity.

12 Espécie nomeada como “complete type” pelos autores da obra (LOMBROSO, Cesar; FERRERO, William. The Female Offender. D. Appleton & Company. New York: 1898. Disponível em: <http://brittlebooks.library.illinois.edu/brittlebooks_open/Books200908/lombce0001femoff/lombce0001femoff.pdf>. Acesso em: 09 nov. 2016. p. 103).

13 Ibid., p. 103.

14 Tradução livre, constando, na obra consultada em inglês, a nomenclatura “half-type”.

15 O Código Penal brasileiro, por exemplo, não criminaliza a prostituição, mas, sim, atos de favorecimento ou proveito dos recursos dela advindos.

16 FARIA, Thaís D. A Mulher e a Criminologia: relações e paralelos entre a história da criminologia e a história da mulher no Brasil. In: XIX Encontro Nacional do Compedi, Fortaleza, 09 a 12 de Junho de 2010. Anais do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós Graduação em Direito. Fortaleza: 2010 p. 6067 – 6076. Disponível em: <http://www.publicadireito.com.br/conpedi/manaus/arquivos/anais/fortaleza/3310.pdf> Acesso em: 08 nov. 2016. p. 6072.

17 Denomina-se Escola Clássica o movimento teórico identificado a partir do século XVIII, como reflexo das ideias iluministas no campo do Direito, tendo como expoente Beccaria e sua consagrada obra “Dos Delitos e Das Penas”. Defendia-se a liberdade individual e a normatização da pena, como forma de barrar o alvedrio do Estado sobre os homens, que deveriam agir segundo seu próprio livre arbítrio. A transição desta para a Escola Positivista de Lombroso se deu amiúde, representada pela mudança do paradigma do formalismo legal para o determinismo biológico.

18 Também conhecido como “O Martelo das Feiticeiras”, consistia em um manual de combate aos hereges, tornando-se o grande guia instrumental da Inquisição.

19 BATISTA, Vera Malaguti. Introdução Crítica à Criminologia Brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011. p. 32.

20 A grande ruptura metodológica se deu no campo da criminologia, por ocasião do advento das teorias de reação social no século XX, em detrimento do paradigma etiológico até então vigente: o objeto criminológico deslocou-se da investigação das causas do crime e da personalidade do criminoso para a reação social da conduta desviada (D’ELIA FILHO, Orlando Zaccone. Acionistas do nada: quem são os traficantes de droga. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 42).

21 Em linhas gerais, defende-se que a formação da identidade desviante seria produto da ação das instâncias oficiais de poder e dos efeitos estigmatizantes do sistema penal.

22 BARATTA, Alessandro. O paradigma do gênero: Da questão criminal à questão humana. In CAMPOS, Carmen Hein de. Criminologia e Feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999, p.19-80.p. 45.

23 Ibid. p. 49.

24 QUEIROZ, op. cit., p. 19.

25 FARIA, loc. cit.

26 GINDRI, E. T. Elize Matsunaga e a Representação do Feminino Criminoso. In: 2º Congresso Internacional de Direito e Contemporaneidade: mídias e direitos da sociedade em rede, 2013, Santa Maria. Anais do 2º Congresso Internacional de Direito e Contemporaneidade: mídias e direitos da sociedade em rede, 2013. Disponível em: < http://coral.ufsm.br/congressodireito/anais/2013/3-10.pdf>. Acesso em: 08 nov. 2016.p. 431.

27 Para melhor explicar o fenômeno da intersecionalidade, Crenshaw estabeleceu a analogia entre o termo cunhado e um cruzamento urbano: as ruas seriam os eixos de opressão e os carros seriam os meios pelos quais tal opressão ocorre efetivamente na vida comum. Isto é, as ruas, cada uma construída ao longo do tempo após a ação contínua e repetida de determinada forma de discriminação, representariam os variados padrões de dominação possíveis. Por sua vez, o tráfego representaria os meios ativos pelos quais são veiculadas as práticas discriminatórias no cotidiano. Assim, por óbvio, um indivíduo colocado no meio do cruzamento sofreria o impacto dos veículos que trafegam por ambas as vias e ali colidem, da mesma forma que um sujeito sofre os efeitos sobrepostos de todos os eixos de opressão que sobre si incidem. (CRENSHAW, Kimberle A Intersecionalidade na Discriminação de Raça e Gênero. Disponível em: <http://www.acaoeducativa.org.br/fdh/wp-content/uploads/2012/09/Kimberle-Crenshaw.pdf>. Acesso em: 08 nov. 16. p. 11).

28 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Número de mulheres presas multiplica por oito em 16 anos. Disponível em: <www.cnj.jus.br/noticias/cnj/85563-numero-de-mulheres-presas-multiplica-por-oito-em-16-anos>. Acesso em: 19 out. 2017.