A APLICAÇÃO DO MARCO TEMPORAL PELO PODER JUDICIÁRIO E SEUS IMPACTOS SOBRE OS DIREITOS TERRITORIAIS DO POVO TERENA

Resumo

Com base na análise quantitativa e qualitativa da jurisprudência acerca do domínio e da posse
de três terras Terena em Mato Grosso do Sul - Buriti, Cachoeirinha e Taunay-Ipegue -, o presente estudo analisa como o marco temporal tem sido aplicado pelas diferentes instâncias do Poder Judiciário e como ele tem impactado o direito do Povo Terena à terra tradicionalmente ocupada. Nossa análise revela que a jurisprudência sobre direitos territoriais dos Terena pode ser dividida em três períodos: um que precede a enunciação do marco temporal, no qual grande parte das decisões favoreciam a o caráter tradicional das terras disputadas bem como a posse indígena (2003-2009); um período de disseminação e aplicação intensificada do marco temporal para suspender ou anular a demarcação de terras e impedir a posse indígena sobre territórios demarcados (2010-2014); e um terceiro período de surgimento de novas soluções institucionais para as disputas fundiárias. Sugerimos que a transição entre o segundo e o terceiro período resulta da mobilização dos Terena, sua insistência na demarcação de territórios e o desenvolvimento de novas arenas e formas de diálogo entre o movimento indígena e Poder Judiciário, e concluímos descrevendo caminhos apontados pela nossa análise para avançar os direitos territoriais dos Terena.

Abstract

Based on the qualitative and quantitative analysis of legal decisions concerning the ownership and possession of three Terena territories in Mato Grosso do Sul – Buriti, Cachoeirinha and Taunay-Ipegue –, the present study analyzes how the temporal mark has been applied by different instances of the Judiciary in Brazil and how it has impacts the Terena people's right to their traditionally occupied territories. Our investigation reveals that legal decisions about the Terena's territorial rights can be divided into three periods: one that precedes the enunciation of the temporal mark, in which the majority of decisions favored the traditional character of the territories (2003-2009); the second period comprises the dissemination and intensified application of the temporal mark in order to annul or suspend the demarcation of indigenous lands and hinder indigenous possession over disputed territories (2010-2013); and a third period in which new institutional solutions for land tenure disputes emerge (2014-2017). We argue that the transition between the second and third periods resulted from the mobilization of the Terena and the insistence of the social movement in the demarcation of their territories, as well as the construction of new forms of communication between indigenous groups and the Judiciary.

Artigo

 A APLICAÇÃO DO MARCO TEMPORAL PELO PODER JUDICIÁRIO E SEUS IMPACTOS SOBRE OS DIREITOS TERRITORIAIS DO POVO TERENA

Ana Carolina Alfinito[1]

Luiz Henrique Eloy Amado[2]

RESUMO

Com base na análise quantitativa e qualitativa da jurisprudência acerca do domínio e da posse

de três terras Terena em Mato Grosso do Sul – Buriti, Cachoeirinha e Taunay-Ipegue -, o presente estudo analisa como o marco temporal tem sido aplicado pelas diferentes instâncias do Poder Judiciário e como ele tem impactado o direito do Povo Terena à terra tradicionalmente ocupada. Nossa análise revela que a jurisprudência sobre direitos territoriais dos Terena pode ser dividida em três períodos: um que precede a enunciação do marco temporal, no qual grande parte das decisões favoreciam a o caráter tradicional das terras disputadas bem como a posse indígena (2003-2009); um período de disseminação e aplicação intensificada do marco temporal para suspender ou anular a demarcação de terras e impedir a posse indígena sobre territórios demarcados (2010-2014); e um terceiro período de surgimento de novas soluções institucionais para as disputas fundiárias. Sugerimos que a transição entre o segundo e o terceiro período resulta da mobilização dos Terena, sua insistência na demarcação de territórios e o desenvolvimento de novas arenas e formas de diálogo entre o movimento indígena e Poder Judiciário, e concluímos descrevendo caminhos apontados pela nossa análise para avançar os direitos territoriais dos Terena.

ABSTRACT

Based on the qualitative and quantitative analysis of legal decisions  concerning the ownership and possession of three Terena territories in  Mato Grosso do Sul – Buriti, Cachoeirinha and Taunay-Ipegue –, the  present study analyzes how the temporal mark has been applied by  different instances of the Judiciary in Brazil and how it has impacts  the Terena people’s right to their traditionally occupied territories. Our investigation reveals that legal decisions about the Terena’s territorial rights can be divided into three periods: one that precedes the  enunciation of the temporal mark, in which the majority of decisions  favored the traditional character of the territories (2003-2009); the  second period comprises the dissemination and intensified application  of the temporal mark in order to annul or suspend the demarcation  of indigenous lands and hinder indigenous possession over disputed territories (2010-2013); and a third period in which new institutional  solutions for land tenure disputes emerge (2014-2017). We argue that  the transition between the second and third periods resulted from the  mobilization of the Terena and the insistence of the social movement in  the demarcation of their territories, as well as the construction of new  forms of communication between indigenous groups and the Judiciary.

Introdução: O Marco Temporal e o Judiciário como Palco de Disputas

 O artigo 231 da Constituição Federal de 1988 reconheceu aos povos indígenas o direito originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam, determinando que compete à União demarcá-las e protege-las. Uma leitura sistemática da ordem constitucional vigente revela a centralidade e relevância dos direitos territoriais indígenas na consolidação de uma sociedade verdadeiramente pluriétnica. O direito ao território tradicional, reconhecido como direito originário cuja fonte é anterior à própria Constituição Federal, encontra-se intimamente atrelado aos direitos culturais dos povos indígenas, ao seu direito de viver conforme os usos, costumes e tradições que lhe são próprios ao invés serem assimilados a uma cidadania homogênea e excludente. O território tradicional é aquele que permite a reprodução física e cultural dos povos indígenas, seu desenvolvimento e dignidade. Trata-se de garantia de continuidade da existência desses povos. A posse permanente e usufruto exclusivo dessas terras é um direito fundamental e tamanha sua importância que a Constituição Federal de 1988 estipulou um prazo de cinco anos para que todas as terras tradicionais fossem demarcadas.

Apesar de sua importância e centralidade, o direito dos povos indígenas aos seus territórios tradicionais está hoje sob grave ameaça. De um lado, tal ameaça se manifesta em atos de violência e agressão dirigidos quase que diariamente contra comunidades e lideranças indígenas envolvidas na luta pela terra em todo o Brasil. De outro, a ameaça a direitos fundamentais está presente em diversos processos institucionais que, situados no âmbito dos três poderes do Estado, apontam para o cerceamento e restrição do direito dos povos indígenas aos seus territórios tradicionais.[3] Ao lado dos poderes Executivo e Legislativo, que comportam uma série de ameaças aos direitos indígenas, o Judiciário também se tornou palco de ofensivas contra esses direitos. Desde meados dos anos 2000, proprietários rurais e suas instâncias de representação têm respondido à demarcação de terras indígenas com uma estratégia de judicialização sistemática dos processos administrativos de demarcação.[4] Cada ato ou etapa em cada processo de demarcação é disputado no âmbito de ações judiciais que questionam a legalidade do processo e pedem que o Poder Judiciário declare o domínio do particular sobre as terras em disputa. Além disso, nas inúmeras ações de reintegração de posse impetradas contra as retomadas de terras também são discutidos temas como a natureza constitucional da posse indígena, o domínio sobre a terra, e a extensão do direito à terra tradicionalmente ocupada. Juntas, ações declaratórias e possessórias fizeram do judiciário uma verdadeira arena de disputas sobre os direitos territoriais dos Terena e sobre o sentido do artigo 231 da Constituição Federal de 1988.

Se a importância do Poder Judiciário enquanto arena de disputa tem crescido desde o início dos anos 2000, foi em 2009 que começou a circular nessa arena uma das maiores ameaças da atualidade contra os direitos territoriais indígenas. Foi este o ano em que, ao julgar a Ação Popular 3.388/RR, referente à demarcação de Raposa Serra do Sol, o pleno do Supremo Tribunal Federal estabeleceu uma série de condicionantes ao reconhecimento dos direitos territoriais indígenas. Surge neste julgamento o chamado marco temporal, uma tese jurídica que restringe o direito dos povos indígenas à sua terra tradicional ao condicionar esse direito à presença física das comunidades na terra na data da promulgação da Constituição Federal. De acordo com esse enunciado, os povos indígenas apenas teriam direito às terras que ocupavam no dia 5 de outubro 1988. Para que essa condicionante seja afastada, é necessário que se configure “renitente esbulho”, isso é, que a reocupação não tenha ocorrido por efeito de renitente contínuo de não-índio.

O próprio plenário do Supremo Tribunal Federal determinou em 2013 que, tendo em vista as particularidades de cada caso envolvendo povos indígenas e conflitos fundiários, o marco temporal, bem como outras condicionantes formuladas na Pet. 3.388, são desprovidos de força vinculante e não se estendem automaticamente a outros processos em que se discuta matéria similar. Ademais, não se trata de matéria pacificada no STF, sendo a doutrina defendida apenas por parte de uma Turma do Tribunal.

Nos anos recentes, juristas e pesquisadores se mobilizaram para fazer face à difusão do marco temporal nas decisões judiciais. A doutrina do marco temporal vem sendo questionada por operadores do direito bem como organizações indígenas e indigenistas. Em parecer recente, o jurista José Afonso da Silva defendeu que o marco temporal e renitente esbulho são enunciados espoliadores de direitos fundamentais, arbitrários e inconstitucionais (SILVA, 2016). Além de estipular arbitrariamente uma data que não encontra respaldo na constituição e ignorar o fato de que a posse indígena sobre suas terras é protegida no nível constitucional desde 1934, a aplicação do marco temporal equivale a anistiar a usurpação de terras indígenas sistematicamente levada a cabo até 1988. Equivale a anistiar também os abusos e violação de direitos humanos que acompanharam essa usurpação[5].

Apesar dessas ressalvas, o marco temporal vem sendo utilizado Brasil afora em diferentes instâncias do judiciário para suspender, anular ou colocar sob suspeição a demarcação de terras indígenas. Trata-se do signo do retrocesso e da ofensiva contra o artigo 231 da Constituição Federal no âmbito do Poder Judiciário. Nos últimos anos, os impactos do marco temporal têm sido especialmente graves em Mato Grosso do Sul, estado que concentra a segunda maior população indígena do Brasil e no qual as comunidades indígenas vivem, em grande parte, confinadas dentro de minúsculas reservas instituídas na primeira metade do século XX (FERREIRA, 2014, 2009; VARGAS, 2003). Ali, demarcação de quatro terras indígenas – Guyraroká, Panambi Lagoa-Rica, Limão Verde e Buriti – foram recentemente anuladas com base no marco temporal. Outras demarcações, como é o caso da terra Taunay-Ipegue e áreas de Cachoeirinha, foram suspensas com base no mesmo enunciado, e estão aguardando providências do poder judiciário. Nas ações possessórias, o marco temporal vem sendo usado para justificar mandados de reintegração de posse em áreas habitadas e cultivadas por povos indígenas. Nessas decisões, o que se alega é que se os indígenas não ocupavam a terra em disputa em 1988 e que não foi provado que houve “renitente esbulho” impedindo essa ocupação, não há de se falar em terra tradicionalmente ocupada[6].

Ao aplicar o marco temporal dessa forma, o Judiciário está transfigurando profundamente a Constituição Federal, já que esta em momento algum faz referência a uma data como delimitadora do direito territorial indígena, e contribuindo para a legitimação de todo tipo de esbulhos possessório praticado contra os povos indígenas antes de 1988 (SILVA, 2015). Sabemos que esse não foi o intuito dos constituintes e nem o projeto de sociedade consolidado na Constituição Federal (LACERDA, 2008). Mas como as diferentes vozes do Poder Judiciário estão se posicionando diante dessa situação? Será que o elas estão se portando como meras aplicadoras de uma doutrina que, além de inconstitucional, corre o risco de anular os poucos avanços que fizemos nas últimas décadas no sentido de construir uma sociedade verdadeiramente pluriétnica e diversa? Ou é possível encontrar no Judiciário vozes e decisões que questionam e bloqueiam o avanço dessa doutrina e que buscam contribuir, na contramão do atual contexto, para a consolidação dos direitos fundamentais indígenas? E, se existem divergências e disputas sobre a interpretação e aplicação do marco temporal no âmbito do Poder Judiciário, como elas podem ser usadas por atores engajados com a consolidação dos direitos territoriais indígenas para avançar essa pauta dentro de um ambiente político, legal e institucional ameaçador e desfavorável?

O presente texto aborda essas perguntas por meio de um estudo quantitativo e qualitativo dos impactos do marco temporal em processos judiciais que incidem sobre três terras do Povo Terena em Mato Grosso do Sul: Buriti, Cachoeirinha e Taunay-Ipegue. Com base na sistematização e análise de todas as decisões judiciais tomadas no âmbito de ações declaratórias e possessórias incidentes sobre esses territórios, buscamos responder três questões: Como o marco temporal tem sido aplicado em decisões proferidas nas diferentes instâncias do Poder Judiciário e quais impactos ele tem tido sobre os direitos territoriais dos Terena? Existem variações e disputas sobre a aplicação e significado do enunciado? Como podemos explicar essas variações?

Nossa análise busca especialmente lançar luz na forma como as instâncias inferiores do Poder Judiciário vem interpretando o marco temporal. Afinal, são elas que muitas vezes decidem sobre direitos territoriais primeiro, e suas decisões podem ter impactos imediatos e gravíssimos, como a paralização de processos de demarcação e a expulsão de indígenas de áreas retomadas. Por isso, consideramos fundamental entender como o marco temporal tem penetrado nas capilaridades do Poder Judiciário, e não apenas nas instâncias superiores como o STJ e o STF.

Ao sistematizar as diferentes formas de aplicação e afastamento do marco temporal e levantar algumas hipóteses sobre os motivos das variações e mudanças no posicionamento da jurisprudência, esperamos apontar alguns caminhos abertos para a contestação do marco temporal e contribuir para o debate sobre formas de avançar os direitos territoriais indígenas dentro do Poder Judiciário.

O restante deste artigo está estruturado da seguinte maneira: começamos por descrever a nossa metodologia de coleta, sistematização e análise de decisões judiciais e apresentamos as perguntas-chave que orientam a nossa análise da jurisprudência (item 2). Em seguida, investigamos como o marco temporal vem sendo interpretado e aplicado no âmbito das ações declaratórias de domínio e das ações de reintegração de posse e exploramos o que o atual estado da jurisprudência revela sobre os caminhos possíveis para a consolidação do direito territorial indígena no âmbito do poder judiciário (item 3). Concluímos com uma breve síntese da nossa análise (item 4).

1- Aplicação e Impactos do Marco Temporal: Metodologia de Análise

 O objetivo do presente artigo é analisar os impactos do marco temporal sobre a tomada de decisão nas diversas instâncias do Poder Judiciário, e investigar como a aplicação dessa tese tem afetado a realização dos direitos territoriais das comunidades Terena que reivindicam a tradicionalidade de três terras situadas em Mato Grosso do Sul: Buriti, Cachoeirinha e Taunay-Ipegue. Para realizar essa análise, o primeiro passo foi montar um banco de decisões judiciais referentes aos direitos fundiários incidentes sobre essas terras. A montagem desse banco partiu da premissa de que a judicialização das disputas fundiárias envolvendo terras indígenas ocorre por meio duas vias que são distintas, porém imbricadas. A primeira via corresponde à judicialização dos processos administrativos de demarcação de terras por proprietários rurais afetados. Aqui, a canalização da disputa fundiária para dentro do judiciário ocorre por meio de ações declaratórias, nas quais o proprietário rural busca no judiciário a declaração do seu domínio sobre a terra disputada. Ela ocorre também por meio de mandados de segurança, usados para questionar a legalidade dos atos do poder público que deram prosseguimento ao processo administrativo.

A segunda via corresponde à impetração de ações possessórias por proprietários ou detentores de terras retomadas por comunidades indígenas. Em Mato Grosso do Sul, a retomada de terras se tornou uma importante forma de reivindicação territorial utilizada pelo movimento indígena. Tendo em vista o caráter lento e conturbado dos processos de demarcação – caráter esse que está associado à estratégia de judicialização empregada pelos proprietários rurais – diversas comunidades Terena têm optado por retomar as terras que já foram identificadas como tradicionais no âmbito de processos de demarcação, buscando dar visibilidade às suas demandas e consolidar sua posse sobre o território que lhes pertence. Essas retomadas ensejam ações de reintegração de posse, dentro das quais são posse indígena, o domínio sobre a terra, e a extensão do direito à terra tradicionalmente ocupada.

Para entender como o marco temporal tem impactado a tomada decisão no âmbito do poder judiciário, analisamos todas as decisões – liminares, sentenças, decisões monocráticas nos tribunais e acórdãos – proferidas dentro das ações declaratórias e possessórias incidentes sobre essas três terras entre 2003 e 2017. Optamos por incorporar processos e decisões anteriores à edição do marco temporal para poder comparar se o padrão de tomada de decisão mudou, e como, depois do julgamento da Pet. 3.388.

Num primeiro momento, montamos um banco de dados contendo ações declaratórias de domínio e possessórias incidentes sobre as terras que tenham decisões datadas de 2003 a 2017.[7] Em seguida, consultamos cada um desses processos no sítio da Justiça Federal de Mato Grosso do Sul, do Tribunal Regional Federal da 3a Região e do Supremo Tribunal Federal para ter acesso às decisões referentes às terras analisadas e reconstruir a trajetória das decisões tomadas dentro de cada processo. [8] Cada decisão foi classificada de acordo com três critérios: (1) conteúdo da decisão: nas ações possessórias, dividimos a jurisprudência em duas categorias, a primeira referente a decisões que ordenam a posse indígena (PI) sobre a terra disputada e a segunda referente a decisões que ordenam a posse particular sobre o imóvel (PP). Como todas as decisões foram proferidas em ações de reintegração de posse que atacavam retomadas de terra, reconhecer a posse particular equivale a ordenar a reintegração da posse a favor dos proprietários ou posseiros e contra as comunidades Terena. Nas ações declaratórias, criamos quatro categorias de conteúdo. A primeira e a segunda se referem a decisões que ordenam a suspensão e anulação do processo de demarcação (SPD e APD, respectivamente), a terceira e quarta se referem a decisões que validam ou que permitem o prosseguimento de procedimentos de demarcação (VPD e PPD, respectivamente); (2) grau de jurisdição: Analisamos decisões proferidas pelo Juízo de 1a instância (1a), pelo Tribunal Regional Federal da 3a Região (TRF3) e pelo Supremo Tribunal Federal (STF); (3) forma de aplicação ou afastamento do marco temporal: Finalmente, classificamos as decisões em três tipos: a) decisões que aplicam o marco temporal para definir e limitar o conteúdo os direitos territoriais indígenas; b) decisões que não mencionam o marco temporal; e c) decisões que reconhecem o marco temporal, mas buscam outras maneiras de garantir a posse indígena sobre o território.

Procedemos à análise de cada uma das decisões no nosso banco, de suas justificativas, estrutura e dispositivo. Cada processo no nosso banco é representado por uma sequência de decisões categorizadas conforme os critérios descritos acima. No total, analisamos 33 processos, sendo 24 referentes a ações possessórias e 9 a ações declaratórias, e 118 decisões, sendo que 14 delas foram tomadas no âmbito de ações declaratórias e outras 104 em ações possessórias. A maior parte dessas decisões foi proferida por juízes federais de primeira instância e desembargadores do Tribunal Regional Federal da 3a Região. Apenas seis foram proferidas por ministros do Supremo Tribunal Federal.

Com esse banco, pudemos analisar o teor das decisões referentes à posse e ao domínio dos territórios e identificar tendências na jurisprudência. Nossa análise comporta uma dimensão quantitativa e outra qualitativa. Sob o enfoque quantitativo, buscamos responder às seguintes questões: com o surgimento do marco temporal, houve uma mudança no padrão de tomada de decisão no âmbito das diferentes instâncias do poder judiciário? Quantas suspensões e anulações de processos de demarcação foram ordenadas antes e depois do enunciado do marco temporal e como essas decisões estão distribuídas ao longo do tempo? Quantas reintegrações de posse foram ordenadas contra comunidades Terena antes e depois do marco temporal?

Já na análise qualitativa, olhamos para o conteúdo das decisões que estão no nosso banco de dados para investigar como os magistrados têm aplicado ou afastado o marco temporal. Afinal, o que a jurisprudência analisada nos mostra sobre a incorporação do marco temporal em diferentes instâncias do Poder Judiciário?  Existe algum consenso ou disputa sobre a doutrina? E quais são as formas utilizadas por vozes dentro do judiciário para afastar o marco temporal ou mitigar seus impactos sobre os direitos territoriais indígenas?

  1. Impactos da aplicação do Marco Temporal sobre a Realização do Direito ao Território do Povo Terena

No presente item, apresentamos os resultados da análise de nossos bancos de dados de jurisprudência. Num primeiro momento, investigamos decisões proferidas no âmbito de ações declaratórias e, em seguida, passamos à análise das decisões proferidas em ações de reintegração de posse.     

2.1  O impacto do marco temporal sobre os processos de demarcação de Terras Terena

Comecemos por analisar as decisões proferidas no âmbito de ações declaratórias de domínio. No total, foram analisados nove processos, nos quais classificamos e sistematizamos um total de quatorze decisões. Das 14 decisões, oito foram proferidas por juízes federais de primeira instância em sede de liminar em ações declaratórias, quatro provém do TRF 3, sendo duas delas acórdãos proferidos em sede de apelações cíveis e duas decisões monocráticas em agravos de instrumentos, e outras duas são decisões monocráticas de ministros do STF.

Uma análise do conteúdo dessas decisões revela que o Poder Judiciário tem sido extremamente intrusivo no desenrolar dos processos demarcatórios e tem se manifestado preponderantemente no sentido de suspender ou anular tais processos, muitas vezes no âmbito de decisões liminares. Do total de decisões analisadas, apenas 28% (n=4) permitem que o executivo dê prosseguimento ao processo de demarcação questionado na justiça, e menos que 7% (n=1) validou a identificação da terra tradicional feita pela Funai. Resta patente que o poder judiciário tem criado importantes empecilhos à demarcação das três terras analisadas. Entre 2003 e 2017, 64% (n=9) das decisões proferidas no âmbito de ações declaratórias suspenderam o prosseguimento do processo administrativo ou anularam o processo. A demarcação da Terra Indígena Buriti foi anulada em 2013 em julgamento do TRF3 e hoje Taunay Ipegue encontra-se suspensa por força de decisão liminar proferida pelo Ministro Luiz Fux em sede de Mandado de Segurança. A demarcação de diversas áreas da Terra Indígena Cachoeirinha está suspensa por conta de liminares proferidas em sede de Ações Civis Originárias no STF. Mesmo com o STF já tendo declinado a competência para julgar tais ações, essas decisões continuam vigentes.

Portanto, a demarcação de uma terra foi anulada pelo Poder Judiciário, e as outras duas estão parcial ou integralmente suspensas. Para responder essa questão, classificamos as decisões em duas categorias – a primeira contém decisões que suspendem ou anulam a demarcação das áreas, a segunda decisões que validam ou permitem que o processo avance –  e organizamos as decisões conforme a data em que foram proferidas. Pudemos então analisar se houve alguma mudança no padrão das decisões antes e depois do marco temporal. Os dados sobre o conteúdo das decisões revelaram a existência de três fases distintas de tomada de decisão no âmbito dos processos analisados. A primeira fase vai de 2003 até 2009 e é caracterizada por uma heterogeneidade no conteúdo das decisões, mesmo que a maioria seja contrária ao prosseguimento dos processos de demarcação; a segunda vai de 2010 a 2013, e aqui notamos uma prevalência absoluta de decisões no sentido de anular ou suspender os processos demarcatórios; e na terceira, que vai de 2014 a 2017, notamos novamente o aparecimento de decisões favoráveis ao prosseguimento da demarcação das terras Terena. A tabela abaixo apresenta o agregado das decisões proferidas em cada uma dessas fases conforme seu conteúdo.

Entre 2003 e 2009, nota-se uma leve prevalência de decisões suspendendo ou anulando os processos de demarcação das terras indígenas, mas o gráfico sugere que não havia um consenso dentro do judiciário sobre como proceder quanto à declaração de domínio nessas terras. Nesse período, o Poder Judiciário se manifestou diversas vezes sobre a demarcação da Terra Indígena Buriti, que foi suspensa e mais tarde anulada em sentença de primeira instância, para, em 2006, ser validada no julgamento de Apelação pela Quinta Turma do TRF3.[9] Do Acórdão que declarou o caráter tradicional da Terra Indígena Buriti conforme os estudos realizados no âmbito do processo de demarcação, destacamos os seguintes trechos:

EMENTA CONSTITUCIONAL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE RECONHECIMENTO DE DOMÍNIO DE PROPRIEDADES RURAIS E NULIDADE DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO DA FUNAI. PROTEÇÃO AOS ÍNDIOS. LAUDO ARQUEOLÓGICO E ANTROPOLÓGICO. TERRAS TRADICIONALMENTE INDÍGENAS. ALIENAÇÃO PELO ESTADO COMO DEVOLUTAS E CADEIA DOMINIAL DERIVADA. ILEGITIMIDADE. PROVIMENTO DOS RECURSOS DA UNIÃO E FUNAI E REMESSA OFICIAL. AÇÃO IMPROCEDENTE

(…)

– O deslinde da controvérsia exige o exame da questão fática, a cargo dos antropólogos e arqueólogos, e da jurídica, que se imiscui na primeira.

– Do “Relatório Antropológico para redefinição dos limites da terra indígena Buriti” elaborado por grupos técnicos da FUNAI coordenados pelo antropólogo Gilberto Azanha, em maio de 2001, com base na Portaria 1.155/Pres/FUNAI, aprovado pelo Sr. Presidente da FUNAI e que fundamenta o procedimento demarcatório ora questionado, consta descrição de todo o histórico de ocupação da tribo indígena na região e como seus membros acabaram por ser expulsos pelos fazendeiros e colonos.

– Laudo elaborado por dois peritos nomeados, dividido em estudo arqueológico e antropológico, corroborado pelos das assistentes da União/FUNAI e do Ministério Público Federal, também concluiu que a área em questão é tradicionalmente dos Terena. Dessa forma, quatro antropólogos e um arqueólogo, de reconhecida especialidade e competência nas respectivas áreas, atestam que as terras na região do Buriti são tradicionalmente ocupadas pelos índios terena.

(…)

– As provas coligidas evidenciam que, ao contrário do que alegam os autores, as terras não foram desocupadas espontaneamente, mas foram obtidas por meio de inegável expulsão dos indígenas. O contato dos Terena com as terras do Buriti, não obstante a expulsão e o confinamento, jamais se extinguiu e continua vivo até os dias atuais.

– A final, a conclusão dos estudiosos designados pelo Juízo foi peremptória no sentido de que a área periciada pode ser conceituada como de tradicional ocupação indígena.

– Parecer crítico dos assistentes técnicos dos autores não logrou infirmar os trabalhos anteriormente mencionados.

– Parecer encomendado pelos autores evidencia que a reserva foi estipulada como um mero ato de boa vontade pelo Estado de Mato Grosso, que é insuficiente para as necessidades dos Terena e que o processo de usurpação foi violento. Improsperável argumento de que caberia o reconhecimento de um “direito adquirido” dos autores para não penalizá-los pelos equívocos do Estado ou do SPI na condução da ocupação da região. Inconcebível legitimar, sob o prisma da Carta Magna vigente, a transferência viciada desde sua origem que se operou, em detrimento do direito primário dos índios. Ao Judiciário cabe a reparação das injustiças que ao longo do tempo se acumularam até desembocar nesta demanda. (…) Rejeitada a matéria preliminar. Apelações e remessa oficial providas. Ação julgada improcedente (Apelação Cível 0003866-05.2001.4.03.6000, julgamento de 12 de junho de 2006).

A Quinta Turma do TRF3, portanto, em 2006 reconheceu que o Terena haviam sido violentamente expulsos de suas terras no início do século XX. Ademais, o julgamento reconhece que as reservas indígenas demarcadas pelo SPI naquela mesma época de maneira alguma se confundem com as terras tradicionalmente ocupadas pelos Terena, isso é, aquelas discriminadas nos Relatórios produzidos por antropólogos e historiadores no âmbito do processo administrativo em conformidade com a Constituição Federal de 1988. Trata-se de um julgamento muito importante, que reconheceu a invalidade dos títulos de propriedade incidentes sobre terras tradicionais e reconheceu o direito Terena às terras tradicionalmente ocupadas.

Ainda nessa primeira fase, o Poder Judiciário também se manifestou sobre a demarcação da Terra Indígena Cachoeirinha no que tange às áreas da Agropecuária Caiman.[10] Novamente aqui, o juiz federal de primeira instância suspendeu o processo demarcatório em 2008, mas a decisão foi revertida em sede de agravo de instrumento. Neste primeiro período, portanto, as poucas decisões analisadas indicam que, se o primeiro grau de jurisdição tendia a suspender ou anular a demarcação de terras indígenas, o TRF3 se contrapunha a tal posicionamento, revertendo as decisões de primeira instância e validando ou permitindo o prosseguimento dos procedimentos administrativos em discussão.

Essa situação mudou drasticamente a partir de 2010. Entre 2010 e 2013, não houve nenhuma decisão validando e nem sequer permitindo o prosseguimento dos procedimentos demarcatórios instruído pela Funai. Das decisões proferidas neste período – uma pelo Ministro Gilmar Mendes[11], outra pela Primeira Seção do TRF3 e outras três por juízes de primeiro grau – foram todas no sentido de suspender ou anular a demarcação de terras indígenas. Houve ainda uma decisão, do Ministro Marco Aurélio, deferindo liminar em favor dos proprietários da terra disputada para que eles pudessem ficar na posse do imóvel até a decisão final do processo.[12] E não é por acaso que essa tendência surge logo depois do julgamento da Pet. 3.388 e do enunciado do marco temporal. Em cada uma dessas decisões, o marco temporal foi aplicado para impedir o prosseguimento da demarcação das três terras Terena, já que as comunidades Terena alegadamente não ocupavam aquele território na data da promulgação da Constituição Federal de 1988.

A primeira decisão neste sentido foi proferida ainda em 29 de janeiro de 2010 pelo Ministro Gilmar Mendes no âmbito da Ação Cautelar 2556. Esse processo tramitava no STF pois o Estado de Mato Grosso do Sul havia ingressado na ação ordinária 0009406-87.2008.4.03.6000, na qual os autores buscavam a anulação da demarcação da Terra Indígena Cachoeirinha no que diz respeito às suas propriedades, as Fazendas Petrópolis e São Pedro do Paratudal, ambas de Pedro Paulo Pedrossian. Com o ingresso do ente federado na lide, o Juiz Federal de primeira instância declinou a competência para julgar o feito com base no art. 102, I, f, da Constituição Federal, enviando o processo ao STF para julgamento. Ao chegar no STF, o processo virou a Ação Cível Originária 1513 e, com a retomada da Fazenda Petrópolis por comunidades Terena em 2010, o autor da ação impetrou a Ação Cautelar 2556, pedindo a reintegração de sua posse. Ao receber o processo, o ministro Gilmar Mendes proferiu a seguinte decisão monocrática:

Existem nos autos documentos (fls. 161/164, apensos) que fundamentam a plausibilidade do argumento de que a cadeia dominial dos imóveis Fazenda Petrópolis e Fazenda São Pedro remonta aos anos de 1871 e 1898, muito anterior, portanto, à data de 5 de outubro de 1988, fixada como marco temporal de ocupação pela jurisprudência desta Corte no conhecido caso Raposa Serra do Sol, tal como explicitado em trechos da ementa do acórdão na PET nº 3388, Rel. Min. Carlo Britto, DJ 25.9.2009: “11. O CONTEÚDO POSITIVO DO ATO DE DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS. 11.1. O marco temporal de ocupação. A Constituição Federal trabalhou com data certa — a data da promulgação dela própria (5 de outubro de 1988) — como insubstituível referencial para o dado da ocupação de um determinado espaço geográfico por essa ou aquela etnia aborígene; ou seja, para o reconhecimento, aos índios, dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. 11.2. O marco da tradicionalidade da ocupação. É preciso que esse estar coletivamente situado em certo espaço fundiário também ostente o caráter da perdurabilidade, no sentido anímico e psíquico de continuidade etnográfica”(…).

Ante o exposto, defiro o pedido de medida cautelar e determino a suspensão do procedimento administrativo FUNAI/BSB/0981/82 da FUNAI e dos efeitos da Portaria n° 791, de 19 de abril de 2007, editada pelo Ministro da Justiça, (…) até julgamento final da ação principal.

Note o desleixo com o qual o marco temporal é aplicado. Não se faz uma análise minimamente aprofundada dos estudos e relatórios que acompanham a ação, nem referência à possibilidade de configuração de esbulho renitente no caso em apreço. O marco temporal é aplicação simples e sumariamente, sem cerimônias e sem fazer jus ao enunciado do julgamento de Raposa Serra do Sol ou à complexidade do caso em questão.

Portanto, mesmo antes do julgamento dos Embargos Infringentes na Pet. 3.388, o Ministro Gilmar Mendes já usava o marco temporal para impedir o prosseguimento da demarcação de territórios Terena, suspendendo por meio de liminar o prosseguimento do procedimento administrativo FUNAI/BSB/0981/82 da Funai bem como dos efeitos da Portaria n. 791 de 2007 no que se refere às duas fazendas em questão. Em junho de 2014, o STF declinou a competência para julgar a AC 2556 em favor do Juízo de origem. No entanto, apesar de já terem se passado quase sete anos, a decisão proferida pelo Ministro Gilmar Mendes continua vigente, atrasando de maneira injustificável o prosseguimento da demarcação da Terra Indígena Cachoeirinha e impedindo a realização do direito das comunidades Terena ao território tradicional.

Ainda em 2010, outra decisão impede o prosseguimento da demarcação da Terra Indígena Cachoeirinha. Agora, trata-se de uma decisão de primeira instância. Recorrendo ao marco temporal, o Juiz Federal justifica sua decisão evocando o fato de que, ao que tudo indica, os indígenas não ocupavam a terra disputada em 1988, e isso prejudicaria sua tradicionalidade[13]. Ainda com relação a Cachoeirinha, em 2011 a Justiça Federal de Mato Grosso do Sul antecipou a tutela numa ação declaratória referente ao domínio da Fazenda Sangue Suga, permitindo que seus proprietários permanecessem na posse do imóvel até o trânsito em julgado da ação.[14] Em todos esses casos, a aplicação do marco temporal foi precedida de análises rasas e sumárias, longe do tipo de apreciação necessária para que se tenha um julgamento da tradicionalidade da terra ou da ocorrência de esbulho passado e presente contra o Povo Terena.

As comunidades da Terra Indígena Taunay-Ipegue também foram impactadas pelo marco temporal em 2010, quando a Justiça Federal de MS usou o poder geral de cautela para suspender o Processo Administrativo n. 08620-000289/1985, referente à demarcação de Taunay-Ipegue, enquanto eram produzias as provas necessárias para verificar se a teoria do fato indígena, consagrado no julgamento da Pet 3.388, se aplicava ou não à área. Assim, sob o pretexto de averiguar a pertinência da aplicação de um precedente que sequer havia transitado em julgado, a demarcação da Terra Indígena Taunay-Ipegue foi suspensa.

Mas foi possivelmente a comunidade da Terra Indígena de Buriti quem mais teve seus direitos impactados com o enunciado do marco temporal. Conforme apresentado acima em 2006, a Quinta Turma do TRF3 havia, por maioria, reconhecido o caráter tradicional daquela terra. A partir de então, e enquanto o processo de demarcação aguardava o decreto homologatório, comunidades Terena puderam habitar e usufruir das terras discriminadas no âmbito daquele processo. Mas logo após o julgamento de Raposa Serra do Sol, os autores da ação que pedia a anulação da demarcação de Buriti entraram com Embargos Infringentes pedindo um novo exame do caso à luz da tese do marco temporal. Em junho de 2012 a Primeira Seção do Tribunal, nos termos do voto condutor do Desembargador Federal Nelton dos Santos, deu provimento aos Embargos para anular a demarcação de Buriti. O fundamento usado para justificar a anulação foi o marco temporal. No Acórdão, ignora-se o esbulho possessório sofrido pelos Terena.[15]

Nos votos-vista, o Desembargador Antonio Cedenho apontou os riscos de aplicar de maneira inconsequente o marco temporal e defendeu a existência de renitente esbulho no caso de Buriti:

Portanto, as Constituições Brasileiras, a partir daquela promulgada em 1934 (que em seu art. 129 dispôs: “Será respeitada a posse de terra de silvícolas que nelas se achem permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las”), estabeleceram que qualquer título de propriedade sobre as terras em questão é de nenhum valor, por se tratar de propriedade da União, cuja posse é destinada aos indígenas. (…)

Prosseguindo, entendo que o marco temporal de 05/10/88 não é o único critério definidor das terras indígenas, válido apenas para impedir a ocupação de outras propriedades ou a migração das comunidades indígenas, a partir dessa data. Isso porque, limitar o direito às terras àqueles indígenas que já estavam na posse de determinada área importaria em excluir dessa proteção os que delas foram desapossados e, com isso, legitimar os atos nulos praticados pelo Estado do Mato Grosso, no caso, que transferiu aos particulares o que não lhe pertencia, já que de terras devolutas não se tratavam, situação que o Poder Judiciário não pode legitimar.

Assim, permitir a data de 05/10/88 como o único sinal de ocupação que se põe para o estabelecimento de limites territoriais indígenas, é aceitar o pressuposto utilitarista do Direito, consistente em pesar custos e benefícios de determinado fato e apenas esperar uma avaliação mais ampla das consequências sociais, tendentes a acomodação. Mas o que se exige da Justiça é muito mais, dela se requer diretrizes que corrijam as desvantagens sociais e econômicas, pois na moldura do caso em questão o afastamento dos índios, embora paulatino, não foi voluntário.

Nesse quadro, reitero a manifestação do Ministro Eros Grau, já transcrita acima: “Repito: essas terras são protegidas contra os esbulhos posteriores à Constituição de 1988, mas também contra elas são inválidos e de nenhum efeito os títulos de propriedade anteriores.” (destaquei) (…) (Voto-Vista em Embargos Infringentes n. 0003866-05.2001.4.03.6000, julgamento em 21 de junho de 2012).

Junto com o Antonio Cedenho, os Desembargadores Federais Cotrim Guimarães e Ramza Tartuce negaram provimento aos Embargos. O processo hoje encontra-se no STF, onde será julgado Recurso Extraordinário contra o julgamento que anulou a demarcação de Buriti.

A paralização da demarcação das terras não fez nada senão agravar os conflitos na região – apenas os intensificou e prolongou, aprofundando ainda mais o sentimento de injustiça das comunidades indígenas. Os Terena – organizados por meio do Conselho Terena –  demonstravam claramente, por meio da organização de assembleias, protestos e retomadas, que estavam dispostos a lutar, dentro e fora das arenas institucionais, pela demarcação de suas terras. Em junho de 2013, o durante o cumprimento de uma reintegração de posse na Fazenda Buriti, o indígena Oziel Gabriel foi assassinado, gerando comoção e mobilização no Povo Terena. Inúmeras propriedades, todas situadas em áreas identificadas pela Funai como territórios tradicionais dos Terena, foram retomadas nas semanas seguintes. O conflito escalou de modo a atrair a atenção do governo federal, que mandou diversos ministros para a região para mediar as tensões. Além disso, em 2013 o Conselho Nacional de Justiça instituiu a Comissão sobre a Questão Indígena em Mato Grosso do Sul, uma comissão intersetorial que buscava propor novas soluções para a questão fundiária na região. Dentre as soluções propostas estavam a desapropriação indireta das terras reivindicadas pelos povos indígenas e a compra dessas terras pelo governo federal (CNJ, 2013).

Tudo isso mudou drasticamente o contexto de tomada de decisão do Poder Judiciário, que passou a se preocupar mais com as consequências e relevância social de suas intervenções. O contexto de escalada de conflitos e de busca por novas soluções institucionais começa a permear as decisões legais, bem como a conduta do judiciário. Em 2014, o Juiz Federal Pedro Pereira visita uma série de áreas contenciosas e passa a reconsiderar as liminares que haviam suspendido processos de demarcação ou garantido a posse particular sobre esses imóveis durante até o trânsito em julgado das ações. Ao visitar as áreas, o Juiz Federal notou quanto as comunidades indígenas precisavam daquele território para plantar e viver tradicionalmente, e o dano que estava sendo feito pela paralização de sua demarcação. Acima de tudo, o magistrado reconheceu a urgência com a qual era necessário resolver a questão do domínio sobre a terra, para que se possa decidir com clareza e segurança como proceder. Cumpre citar trechos da decisão da Justiça Federal na qual dá-se prosseguimento à demarcação da Terra Indígena Taunay-Ipegue[16]:

A carência da comunidade sob o aspecto de falta de terras para o trabalho, com os problemas daí decorrentes – constatada in loco quando da inspeção que realizei – é tão grave que do Relatório dos Trabalhos da Comissão sobre a Questão Indígena em Mato Grosso do Sul, de que tratam as Portarias CNJ nº 53/2013 e 71/2013, enquadrou-a no grau 1 nas prioridades elencadas, culminando por sugerir indenização da terra nua em razão da responsabilidade objetiva por violação da segurança jurídica, em relação aos fazendeiros e o reassentamento dos pequenos proprietários.

Assim, diante da gravidade do quadro, o processo administrativo não deve ficar parado no Ministério da Justiça no aguardo da solução deste processo. Se deveras as glebas dos autores não se enquadram nas condicionantes fixados pelo STF no caso Raposa Serra do Sol, como alegam os autores, cabe-lhes alinhar suas razões no referido processo demarcatório. Ressalte-se, no passo, que as referidas condicionantes fixadas não têm efeito vinculante, como depois deixou claro o próprio Supremo. Mas, isso não quer dizer que S.Exª. o Ministro da Justiça não observará esses parâmetros. É preciso ver quais serão os fundamentos daquela autoridade, tornando-se necessário o prosseguimento do processo. Recorde-se que em data recente – 13 de março de 2014 – o Executivo fez publicar decreto presidencial declarando de interesse social, para fins de desapropriação, de imóvel destinado à Comunidade Indígena Tuxá de Rodelas, no município de Rodelas, Estado da Bahia, o que demonstra o propósito do governo federal em proceder à regularização das terras indígenas de um modo geral. Com isso quero dizer que a tramitação do processo aqui discutido em nada prejudicará o direito dos autores. Se ao final vier a ser demonstrado que a área não é de ocupação tradicional indígena, certamente que o Executivo adotará outras medidas tendentes a resolver os interesses em conflito. Assim, revogo aquela decisão, por entender que a suspensão do processo – que já perdura por quase quatro anos – é deveras prejudicial à comunidade indígena (…) (Ação Declaratória n. 0003009-41.2010.403.6000, decisão de 24 de abril de 2014).

Os autores da ação recorreram dessa decisão. No dia 23 de fevereiro de 2015, a Quinta Turma do TRF3 decidiu por unanimidade negar provimento ao agravo. O Acórdão revela a disposição do Tribunal em levar a sério a ressalva do esbulho possessório contida no enunciado do julgamento da Pet. 3.388. A Quinta Turma reconhece o marco temporal, mas conclui que ele não pode ser automaticamente aplicado no caso, afirmando o seguinte:

Por ocasião do julgamento da Pet 3.388/RR – RORAIMA, não há como deixar de reconhecer que foi fixado limite de tempo de ocupação para fins de demarcação de terras tradicionalmente indígenas, no entanto, com ressalvas, devendo-se verificar que a reocupação não ocorreu por atos de expropriação territorial praticados por não-índios. Por outro lado, a Constituição incumbe o Poder Executivo da realização dos referidos estudos, não podendo o Poder Judiciário avocar para si tal responsabilidade, em ações movidas por particulares, antecipando-se ao pronunciamento dos órgãos legalmente investidos de tais funções. Realizados os estudos, como dito, poderão os particulares questionar os seus resultados, tanto na esfera administrativa quanto na judicial. Portanto, não há como impedir o prosseguimento do processo administrativo. (Agravo de Instrumento n. 0014619-22.2014.4.03.0000/MS, Acórdão de 23 de fevereiro de 2015).

Apesar dessas decisões, a demarcação de Taunay-Ipegue foi suspensa novamente no final de 2016, dessa vez no âmbito de MS impetrado diretamente no STF com vistas a determinar que a Presidência se abstenha de editar decreto homologatório de Taunay- Ipegue.

Assim, entre 2014 e 2017 foi dado prosseguimento a alguns processos de demarcação, e novas formas institucionais de resolução dos conflitos começam a ser aventadas dentro e fora do Poder Judiciário. No entanto, a decisão do STF citada acima mostra a inconstância do Poder Judiciário e a incerteza gerada pela quantidade de ações e estratégias empregadas por proprietários rurais para impedir a demarcação de terras indígenas. As três terras Terena podem não mais estar sob o signo implacável do marco temporal, mas a sua situação está longe de ser resolvida.

Olhando para os processos e decisões como um todo, resta claro que enorme o impacto do marco temporal sobre a demarcação das três terras terena analisadas. Com base no marco temporal, a demarcação de uma dessas terras foi anulada e a das outras duas foi liminarmente suspensa e paralisada por anos. A demarcação de Taunay-Ipegue foi suspensa por quatro anos, e a de Cachoeirinha por sete anos em algumas áreas. Assim, o marco temporal serviu de justificativa para a paralização das demarcações, contribuindo para o aprofundamento das tensões e injustiças e escalada dos conflitos territoriais em MS.

A grande parte das decisões examinadas acima não procedeu a uma análise mínima das condições para a aplicação do marco temporal. Na grande parte dos casos, o enunciado é aplicado de maneira liminar, que pouco considera o real conteúdo do marco temporal – como o conceito de posse tradicional que ali está contido e a noção de esbulho, que deveria afastar a sua aplicação – e as características dos casos concretos. Em vez de resolver qualquer conflito, a onda de aplicação inconsequente do marco temporal entre 2010 e 2013 fez escalar os conflitos territoriais no estado de Mato Grosso do Sul, forçando as autoridades locais e nacionais a buscarem alternativas para a resolução das tensões. Assim, ao que tudo indica, o Poder Judiciário apenas reconsiderou a aplicação do marco temporal em casos onde ele reconheceu, ao conhecer e visitar as áreas disputadas, que a demarcação de terras é urgente e que, se elas não forem reconhecidas como tradicionais pelo judiciário ou pelo executivo, é necessário encontrar outros arranjos institucionais para garantir o usufruto indígena sobre tais territórios.

2.2 O impacto do marco temporal sobre a posse das Terras Terena

Seguimos para a análise da aplicação e impactos do marco temporal sobre a posse dos territórios Terena. Todas as decisões aqui analisadas foram proferidas no âmbito de ações de reintegração de posse impetradas por proprietários ou posseiros de terras depois de retomadas promovidas pelo Povo Terena. No total, foram analisados 24 processos, dos quais classificamos e sistematizamos 102 decisões. Novamente, cumpre ressaltar que excluímos do nosso banco de dados decisões meramente processuais – como aquelas que dispõem sobre a integração de partes nos pólos do processo ou sobre a competência – e mantivemos apenas as decisões que dizem respeito ao conteúdo material da ação. Dentro desse banco, 52 decisões foram proferidas por Juízes Federais de Primeira Instância, das quais 39 são decisões liminares e 13 sentenças, 46 foram proferidas pelo TRF3, das quais 26 em sede de Agravo de Instrumento, 4 em Suspensão de Liminar e 16 em Apelação Cível, e finalmente 4 foram proferidas no STF, sendo 3 dessas em Ação Cível Originária e 1 em Suspensão de Liminar.

As decisões foram classificadas em dois grupos conforme o seu conteúdo: decisões que reconhecem a legalidade ou provável legalidade da posse indígena e decisões que reconhecem a posse particular sobre a terra disputada. No caso de ser reconhecida a posse particular, a decisão coincide com uma ordem de reintegração de posse ordenando que a comunidade indígena saia da propriedade. Uma análise preliminar das decisões revela um Judiciário dividido: 56 decisões proferidas permitiram que a comunidade Terena ficasse na posse do imóvel, enquanto 48 ordenavam a reintegração de posse contra a comunidade e em favor do particular.

Para averiguar os impactos do marco temporal sobre o direito à posse dos imóveis em questão, organizamos o banco de decisões conforme a data em que as decisões foram proferidas. Novamente, os dados sugerem a existência de três fases distintas de tomada de decisão. A primeira fase vai de 2003 a 2009 e é caracterizada por uma heterogeneidade no conteúdo das decisões, com uma pequena predominância de decisões favorecendo a posse indígena. Neste período, a maioria das ações se referia à Terra Indígena Buriti, já que nela se realizava grande parte das retomadas. Em Cachoeirinha, ocorreram quatro retomadas no período e em Taunay-Ipegue nenhuma. A segunda fase vai de 2010 a 2014, e nela as decisões ordenando a reintegração de posse em favor de proprietários de terras predominam sobre as decisões permitindo a posse indígena. Nesse período, as retomadas se difundem por diversas terras Terena. Finalmente, a partir de 2015 vemos uma nova inversão no conteúdo agregado das decisões, sendo que a partir desse momento a Justiça Federal passa a favorecer mais uma vez a manutenção da posse indígena sobre a reintegração da posse particular. A tabela abaixo apresenta o agregado das decisões proferidas em cada uma dessas fases conforme seu conteúdo.

Novamente, é preciso investigar o conteúdo dessas decisões para verificar até que ponto quanto os padrões retratados no gráfico acima foram impactados pelo marco temporal. Entre 2003 e 2009, há uma série de decisões divergentes proferidas pelo Judiciário. Das 29 decisões proferidas nesse período, 13 ordenam a reintegração do particular no imóvel retomado, enquanto 16 reconhecem que as comunidades indígenas devem permanecer na posse da terra. Para entender a lógica por trás dessa distribuição, é preciso adicionar uma camada à análise e diferenciar entre as instâncias que proferiram as decisões. Vemos então que todas as reintegrações de posse nesse período foram ordenadas pela Primeira Instância, e que todas as decisões proferidas pelo TRF3 foram no sentido de manter os indígenas na posse do território sob litígio.

O julgamento em 2006 da Apelação 0003866-05.2001.4.03.6000, ao validar o processo de demarcação da Terra Indígena Buriti e declarar a tradicionalidade desse território, influenciou diretamente decisões tomadas no âmbito de uma série de possessórias. No ano de 2006, a Quinta Turma do TRF3 julgou inúmeros acórdãos reconhecendo a posse dos Terena de Buriti sobre as fazendas retomadas nos anos precedentes. Nesses acórdãos, a Quinta Turma reconheceu a ilegalidade dos títulos de propriedade que sustentavam a posse de particulares e declarou a tradicionalidade daquelas terras. O julgamento da Apelação 2000.60.00.001770-9, referente às Fazendas São Sebastião, Lindóia, Limoeiro, Ponte Lavrada, Quitandinha, Água Clara, Buriti 3R e Querência de São José, ilustra o posicionamento do Tribunal:

– Quanto ao cabimento da conceituação jurídica das terras da região do Buriti como tradicionalmente ocupadas pelos Terena, o conhecido Alvará Régio de 1o de abril de 1680, estendido posteriormente, em 1758, a todo Brasil, reconheceu como originário o direito dos índios às próprias terras, fonte primária e congênita da posse. Posteriormente, a Lei n° 601, de 18 de setembro de 1850, conceituou as chamadas terras devolutas e deixou claro que entre elas não se incluíam aquelas “concessões do Governo”. A transferência destas últimas aos Estados pela Constituição de 1891 (artigo 64) manteve sob domínio da União aquelas pertencentes aos indígenas. Conseqüentemente, as alienações feitas a particulares pelo Estado de Mato Grosso Sul das terras dos Terena como se fossem devolutas não têm legitimidade, bem assim os títulos acostados aos autos e a cadeia dominial derivada, independentemente da boa fé dos adquirentes.

– Relativamente aos precedentes invocados e à Súmula 650 do Supremo Tribunal Federal, inaplicáveis à situação em comento, pois referem-se a antigos aldeamentos indígenas há séculos desaparecidos e substituídos por grandes concentrações urbanas tais como em Guarulhos, Santo André e São Miguel, situação radicalmente distinta do caso dos Terena. Em primeiro lugar, porque ainda habitam a região do Buriti. Ademais, após a Guerra do Paraguai a ocupação indígena da região não se identifica com o conceito de aldeia, utilizado nos aludidos precedentes e na súmula, mas à noção de tronco. Somente a partir de 1930, com a criação da reserva de 2.090 ha em que foram confinados, é que a idéia de aldeamento volta a fazer algum sentido, mas é certo que não está extinto.

– Demonstrado o caráter originário da presença dos índios nas terras, prevalece os direitos deles constitucionalmente assegurados, de forma que o título de propriedade dos apelados não lhes socorre. (Apelação 2000.60.00.001770-9, Acórdão de 11.12.2006, relatora Susana Camargo, Voto Condutor de André Nabarrete)

Esse julgamento, repetido em diversas outras apelações julgadas em 2006, representa o posicionamento do Poder Judiciário frente aos conflitos fundiários em MS entre 2006 e 2009. Mas tal posicionamento muda a partir do julgamento da Pet 3.388 e do marco temporal. Em 2011, a Justiça Federal de Primeira Instância passa a aplicar de maneira corriqueira e irrefletida tal doutrina para determinar a reintegração da posse de imóveis retomados, mesmo quando a tradicionalidade da posse já tivesse sido reconhecida em procedimentos de demarcação. Ignorando senão anistiando o esbulho possessório sofrido pelos Terena ao longo do século XX, essas decisões se limitam a declarar que a terra parece estar sob a posse de particulares desde antes de 1988, e que por isso esses últimos tinham a melhor posse[17]. Ademais, depois do julgamento da Apelação 0003866-05.2001.4.03.6000, Juízes Federais de MS passaram a aplicar corriqueiramente o marco temporal para ordenar reintegrações de posse contra indígenas da comunidade de Buriti. Ao que tudo indica, a Justiça Federal via no marco temporal uma solução fácil e rápida para o imbróglio das terras indígenas. Alguns acolheram cegamente a panaceia, fato que teve consequências gravíssimas tanto para povos indígenas quanto para proprietários rurais em MS.

Mesmo nesse período de irrefletida aplicação do marco temporal, alguns Desembargadores Federais se mantiveram críticos quanto à aplicação daquela doutrina, inclusive no caso de Buriti. Esses Desembargadores argumentaram que, além de não ter transitado em julgado a ação declaratória de domínio referente àquela terra, são muitas as questões jurídicas e sociais envolvidas no litígio, como a própria vida e dignidade das comunidades de Buriti. Em decisão proferida no dia 12 de junho de 2012 no âmbito do Agravo de Instrumento n. 0023468-51.2012.4.03.0000/MS a Desembargadora Ramza Tartuce declarou o seguinte:

Na hipótese dos autos, entendo que, não obstante, no julgamento do processo de nº 2001.60.00.003866-3, tenha sido dado provimento aos embargos infringentes, reconhecendo o domínio da área objeto do litígio pela agravada, devem ser suspensos os efeitos da decisão agravada que determinou a desocupação da área pelos índios que ali se encontram.

E isto porque a ocupação foi motivada pelo fato de que a fazenda se encontrava, em sua maior parte, em abandono, e foi realizada sem a prática de violência física, tanto que as benfeitorias existentes na área ocupada não sofreram quaisquer danos, presumindo-se, assim, que a agravada não exercia a posse sobre a área reivindicada.

Além disso, a retirada das famílias indígenas, neste momento, poderia gerar um conflito social, com conseqüências imprevisíveis, tendo em vista que, no local, foram encontradas cerca de 200 famílias, com a presença considerável de crianças, mulheres e anciões, havendo cultivo de lavouras de feijão, abóbora, mandioca, maxixe, moranga, batata-doce e milho, estabelecidas conforme os costumes tradicionais dos Terena.

Na verdade, o que ocorre nestes autos é que a controvérsia não se limita apenas a um debate jurídico, mas também envolve questão de relevância social indiscutível, vez que se trata da dignidade da vida humana, princípio constitucional que prevalece sobre o direito individual de propriedade.

Por outro lado, observo que ainda não houve o trânsito em julgado da decisão proferida no processo de nº 2001.60.00.003866-3, não sendo lógico determinar a retirada dos indígenas da área ocupada, para, somente após o pronunciamento judicial definitivo, fazê-los retornar, ao final da discussão trazida sub judice, caso prevaleça a tese de que se trata de Terra Indígena.

Tal posicionamento foi repetido em uma série de liminares proferidas em agravos de instrumento em 2012 e 2013. No entanto, apesar dessas decisões, nesse período o Poder Judiciário tendeu a emitir ordens de reintegração de posse contra retomadas Terena, sendo essas quase sempre explicitamente justificadas com base no marco temporal. Foi assim que foi ordenada e realizada, no fim de maio de 2013, a trágica reintegração de posse na Fazenda Buriti. Esse evento levou a um confronto entre a comunidade indígena, que resistia à reintegração e insistia no seu direito de ocupar aquela terra, e forças policiais. No meio do conflito, o indígena Oziel Gabriel foi morto por um tiro, gerando revolta de comunidades Terena. Os Terena reivindicaram com ainda mais veemência seu direito às terras já identificadas pela Funai e promoveram uma onda de retomadas na região. Terras Indígenas foram retomadas nos municípios de Aquidauana, Dois Irmãos do Buriti, Miranda e Sidrolândia. Foi nesse contexto que ocorreram as primeiras retomadas em diversas áreas, como Taunay-Ipegue e Pílad-Rebuá.

Essa situação de resistência e luta indígena, aliada à escalada e difusão de conflitos fundiários, contribuiu para um segundo processo mudança de posicionamento do Poder Judiciário no âmbito das ações possessórias. Tal mudança não ocorreu imediatamente depois dos eventos de 2013, mas em 2014 e, principalmente em 2015, notamos uma modificação sistemática da tomada de decisão no âmbito do judiciário, principalmente na Primeira Instância. A partir desse ano a Justiça Federal se torna mais cautelosa ao aplicar o marco temporal e ordenar a reintegração de posse contra os indígenas. Ela se torna também mais sensível quanto às causas do conflito sobre o qual se está decidindo e sobre as necessidades dos atores nele envolvidos.

 A partir de 2014, representantes da Justiça Federal de Primeiro Grau passaram a fazer uma série de visitas oficiais às terras em litígio, a fim de entender melhor o contexto das disputas. Tais visitas ocorreram em Cachoeirinha, Pílad-Rebuá e Taunay-Ipegue. Ao ler as decisões proferidas no âmbito dos processos judiciais pelos magistrados que se dispuseram a conhecer os territórios reivindicados pelas comunidades Terena, notamos que essas visitas foram extremamente relevantes na formação da opinião dos magistrados acerca da resolução dos conflitos. De acordo com uma decisão proferida pelo Juiz Federal Pedro Pereira acerca do pedido de uma reintegração de posse contra as comunidades Terena que haviam retomado uma fazenda em Taunay-Ipegue.

Faço essa digressão para observar que a presente decisão está respaldada em informações novas acerca da reivindicação da comunidade indígena e também – e principalmente – sobre o novo olhar lançado nos litígios agrários pelo Poder Executivo e pelo Poder Judiciário, ai incluído o CNJ, especialmente depois do incidente ocorrido na Aldeia Buriti, em Sidrolândia, MS. Com efeito, depois de ter visitado – duas vezes – as glebas litigiosas e a Aldeia; escutado in loco os reclamos dos membros da comunidade e dos proprietários; constatado a exiguidade da terra demarcada em comparação com a população indígena; avaliado os precedentes do Egrégio Tribunal Regional Federal acerca das questões agrárias envolvendo indígenas; e refletido sobre as alternativas alvitradas na audiência de conciliação; ponderado sobre possíveis incidentes na execução de eventual reintegração compulsória, cheguei à conclusão que a decisão liminar deve ser revista (…)

A carência da comunidade sob o aspecto de falta de terras para o trabalho (e os outros problemas daí decorrentes) é grave, fato reconhecido pela FUNAI, órgão federal encarregado de dar proteção e assistência aos índios e constatado in loco quando da inspeção que realizei. Em síntese, os Terenas de Taunay-Ipegue – com inteira razão (vide fundamentos abaixo) – reivindicam a ampliação de sua reserva, pois, em decorrência do crescimento demográfico, presentemente estão encurralados e sem perspectivas de vida (Ação possessória n. 00013699-90.2014.4.03.6000, decisão de 5/8/2015).

As visitas às Aldeias, a presença dos Terena no processo e o contexto de mobilização indígena fazem com que o magistrado compreenda que a única solução correta e justa para a controvérsia é a manutenção da posse indígena sobre o território. Ele passa, então, a analisar as alternativas institucionais que poderiam viabilizar tal decisão, para isso lançando mão do relatório do CNJ sobre conflitos fundiários em Mato Grosso do Sul, bem como da legislação infraconstitucional vigente:

Conclui-se que, comprovada a indigência da comunidade em face da limitação do seu território, têm os indígenas direito à ampliação das terras, com base no art. 231 da CF, ou, se impossível sua aplicação, com fundamento nas outras normas referidas, inclusive aquelas alinhadas em tratado internacional, o que implica em desapropriação. E se a solução recair na desapropriação, a preferência quanto ao objeto deve ser as glebas contíguas àquelas da atual reserva (…)

Duas alternativas podem ser alvitradas para atendê-los: 1) a ampliação administrativa da reserva; 2) a desapropriação. Deveras, nos termos do art. 231 da CF cabem aos índios os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, as quais deveriam ter sido demarcadas até 5 de outubro de 1993 ex vi do art. 67 do ADCT. Porém, independentemente desse direito, por força do caput do art. 5ª da Constituição Federal c/c do art. 2º, I, do Estatuto do Índio (Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973), as autoridades têm o dever de estender aos índios os benefícios da legislação comum.

Sucede que o procedimento administrativo [de demarcação] é sobremaneira demorado e certamente passará por sérias vicissitudes, a começar pela condicionante fixada pelo Supremo Tribunal Federal no caso Raposa Serra do Sol, porquanto se trata de área já demarcada nos idos de 1912 (f. 69).  Sem contar que a posse das terras agora reivindicadas foram perdidas antes do marco temporal reconhecido pelo STF (Ação possessória n. 00013699-90.2014.4.03.6000, decisão de 5/8/2015).

Nessa decisão, que é reiterada em outros processos referentes às terras de Pílad-Rebuá e Cachoeirinha, o magistrado toma dois fatos como dados: primeiro, ele declara que a posse dos Terena sobre os territórios é irreversível e justa, devendo ser de qualquer maneira validada pela justiça; e segundo, ele declara que a demarcação do território como área tradicionalmente ocupada é improvável senão impossível à luz do marco temporal. Por isso, o magistrado passa a buscar uma nova solução para a lide, referindo-se como fundamento a outros casos semelhantes no Brasil e ao parecer do CNJ (2013):

Restaria ao Executivo proceder à desapropriação, com o prévio depósito da indenização justa, o que, aliás, não seria medida inédita, porquanto em data recente – 13 de março de 2014 – o Executivo fez publicar decreto presidencial declarando de interesse social, para fins de desapropriação, de imóvel destinado à Comunidade Indígena Tuxá de Rodelas, no município de Rodelas, Estado da Bahia. Abro um parêntese para lembrar que no Relatório dos Trabalhos da Comissão sobre a Questão Indígena em Mato Grosso do Sul (Portarias CNJ nº 53/2013 e 71/2013) a desapropriação foi um dos instrumentos sugeridos às autoridades para solução dos litígios. (…)

Com efeito, ainda que futuramente venha ser reconhecida a ilegalidade do ato que levou à posse indígena, esta é irreversível. Presentemente em razão da situação fática e jurídica fartamente explicitada naquela decisão, outra notícia não se pode dar aos antigos ocupantes de que as áreas outrora denominadas fazendas estão afetadas a uma destinação pública. (…) Assim, caberia aos autores apenas requerer a resolução do caso em perdas e danos, no caso, por meio da alteração do pedido para desapropriação indireta. No entanto, conforme já relatado, esta não foi a opção dos interessados, que requereram a permanência da ação como possessória, impossível de ser deferida. Assim, a ação deverá ser extinta por impossibilidade jurídica do pedido.

Assim, mesmo que a demarcação da Terra Indígena Taunay-Ipegue não tenha sido anulada em sede de ação declaratória, a Justiça Federal, antecipando os efeitos do marco temporal, vem procurando novas soluções para a solução do conflito. A solução proposta na decisão acima é bastante ambígua do ponto de vista dos direitos territoriais indígenas. Por um lado, ela parte do pressuposto de que as comunidades indígenas têm um direito fundamental à terra, direito básico para sua existência e dignidade, e que independe da forma institucional escolhida para garanti-lo. Por outro, a solução toma a aplicação do marco temporal como um dado e um pressuposto, afastando assim sumariamente a tradicionalidade da terra em disputa e optando, pragmaticamente, por uma solução alternativa.

Não queremos dizer que essa solução é superior ou mesmo que ela vai perdurar no âmbito do Poder Judiciário. Ainda é preciso ver como outras instâncias da Justiça e como outros atores envolvidos no conflito, como as comunidades indígenas, vão se posicionar com relação a essa possibilidade. Apenas queremos demonstrar que a mobilização e insistência do Povo Terena pelo reconhecimento de seus direitos territoriais bem como a consolidação de novas formas de interação e comunicação entre o as comunidades indígenas e o Poder Judiciário contribuíram para a inauguração de uma nova etapa na jurisprudência sobre direitos territoriais indígenas. A partir de 2015, depois da onda de retomadas em Taunay-Ipegue, da demonstração das comunidades de sua intenção de resistir às reintegrações de posse e da possibilidade de interagir diretamente com magistrados, de mostrar a eles o que é e o que significa uma retomada, a Justiça de Primeiro Grau deixou de simplesmente aplicar o marco temporal para resolver disputas territoriais. No lugar de uma aplicação automática de tal enunciado, tem-se buscado novas alternativas institucionais para a solução de controvérsias as quais, claro, ainda precisam ser amplamente discutidas e validadas tanto pelo Judiciário quanto com o próprio movimento indígena e os proprietários rurais.

Finalmente, cumpre ressaltar que o STF e o TRF3 também têm, nos últimos anos, demonstrado, em algumas decisões, a necessidade de tomar medidas de contracautela para evitar as graves consequências de reintegrações de posse em terras Terena bem como em terras indígenas em todo o Brasil. Em 2015, o então Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Ricardo Lewandowski, suspendeu a sentença que deferiu a reintegração de posse da Fazenda Timiquim, com a saída imediata dos indígenas que compõe a Comunidade Indígena Tupinambá de Belmonte/BA (Suspensão de Segurança nº 5049), afirmando que:

Examinando os autos, verifico a existência de risco de lesão à ordem e à segurança pública.

O temor do agravamento do conflito é, evidentemente, justificativa ponderável para o indeferimento da suspensão, tendo em vista a necessidade de preservar o estado de fato anterior ao esbulho alegado na ação de reintegração. Ocorre, contudo, que, a retomada da posse também pode ser vista como fator de exacerbação da disputa, em especial quando o cumprimento da ordem judicial é acompanhado por força policial, eventualmente desnecessária, especialmente quando a decisão em apreço ainda for passível de modificação.

Neste sentido, a precocidade da decisão no processo relativos à área em litígio, a viabilidade da reintegração, bem como seus efeitos diretos e indiretos sobre a população envolvida, não parecem ter sido aspectos considerados pela autoridade judiciária.

Vista sob esse ângulo, a questão do cumprimento provisório da sentença que determinou a reintegração possui ainda outra dimensão importante, uma vez que, na maioria das vezes, a expulsão dos ocupantes não vem acompanhada de perspectivas de moradia digna. Parece-me que evitar a constante movimentação involuntária da população é providência tão importante quanto assegurar o devido cumprimento das decisões judiciais de reintegração de posse.

Não há falar que a suspensão deva ser interpretada como aceitação da invasão praticada pelos indígenas pelo Poder Judiciário, pois as medidas de contracautela objetivam mitigar os danos decorrentes do conflito instalado, evitando-se, desta forma, o risco de grave lesão ou o seu agravamento até que seja certificado o trânsito em julgado da decisão cujos efeitos foram suspensos (Suspensão de Segurança n. 5049).

Essa decisão foi usada em uma série de Agravos de Instrumento referentes a reintegrações de posse em terras terena para confirmar que as comunidades indígenas não deveriam ser retiradas das retomadas[18]. Mais tarde, em 2016, a Ministra Carmen Lúcia se manifestou de forma semelhante sobre a comunidade indígena de Taunay-Ipegue. Em sede da Suspensão de Liminar 1076, que avaliava uma ordem de reintegração de posse incidente sobre a Fazenda Esperança, retomada em 2013 pelos Terena de Taunay-Ipegue, a Ministra apresentou a seguinte argumentação:

Ao analisar caso análogo ao presente, no qual se apontava que a execução de ordem de reintegração de posse de imóvel ocupado por indígenas, mediante o uso de força policial, colocaria em risco à ordem e à segurança pública, em razão do acirramento do conflito fundiário envolvendo índios e não-índios no Mato Grosso do Sul, destaquei: “12. Se, de um lado, parece haver precipitação na promoção de ocupação de imóveis particulares a partir da conclusão de estudos antropológicos levados a efeito pela Funai, sem se aguardar a homologação do resultado desse estudo com a consequente declaração formal da tradicionalidade da ocupação indígena na região pela autoridade competente e, principalmente, sem que se apresse a conclusão do processo administrativo de demarcação, de outra parte não há como se subestimar que a demora na conclusão do processo administrativo competente, muitas vezes interceptado com excessiva judicialização de demandas sobre cada caso, incentiva a autotutela de interesses, o que resulta no aprofundamento do conflito fundiário na região e no emprego crescente da violência. (…)

Nessa linha é que se revela a plausibilidade da argumentação traçada pela Funai ao afirmar haver “grande número de indígenas estão envolvidos na operação de retomada, dentre crianças, adultos e idosos, cuja retirada compulsória, e com o uso da força policial, poderá ensejar enfrentamentos entre os indígenas e fazendeiros, ou entre indígenas e os próprios policiais, colocando em risco a vida, a saúde e a incolumidade física de todos os envolvidos.” (fl. 13)

Essa mesma compreensão há de ser empregada no presente caso, pois a reintegração dos autores da ação possessória na posse do imóvel em questão, do qual estão afastados há mais de três anos, aliada à recente expedição da Portaria n. 497, de 29.4.2016, na qual o Ministro da Justiça declara a área do imóvel em foco (Terra Indígena Taunay-Ipéque) como de posse permanente do grupo indígena do Terena, pode se traduzir em elemento encorajador da resistência pelos indígenas, potencializando o clima de hostilidade e tornando inevitável o uso da força para o cumprimento da ordem judicial, do que poderiam redundar consequências nefastas socialmente. O contexto parece demonstrar risco de acirramento dos ânimos das partes em conflito e consequente agravamento do quadro de violência, o que me conduz a reconhecer a plausibilidade do alegado risco à ordem e à segurança pública (SL 1076, decisão de 21 de setembro de 2016).

 Conclusões

Os dados analisados no presente artigo demonstram empiricamente que o marco temporal teve um impacto gravíssimo na realização dos direitos territoriais Terena em Buriti, Cachoeirinha e Taunay-Ipegue. A restrição de direitos territoriais não se deu apenas em decorrência de julgamentos proferidos por altas instâncias do Poder Judiciário, essas que são mais visíveis e, por uma série de motivos, mais poderosas. Os direitos territoriais dos Terena vêm sendo afetados por dezenas de decisões proferidas em diversas instâncias, nas quais o marco temporal tem sido aplicado de maneira rotineira, sem atenção para os requisitos formais ou pressupostos concretos para a sua aplicação. É no âmbito de dezenas de processos que a luta pelo território Terena tem se travado, e é nas dezenas de decisões que ele tem ganho novos e perigosos contornos.

Vimos que logo após a edição do marco temporal, houve uma mudança clara nas decisões proferidas pelo Judiciário. O enunciado foi rapidamente validado por Ministros do STF e passou a integrar o repertório rotineiro de justificativas para decisões dos Juízes Federais de Primeira Instância. Decisões legais passaram, a partir de 2010, a ser proferidas com base em análises sumárias da situação de fato em 1988. O marco temporal foi aplicado de maneira corriqueira, de modo a suspender, em sede de liminar, demarcações de territórios, e a ordenar reintegrações de posse contra comunidades em áreas já identificadas como tradicionais.

Mas aquele enunciado que os magistrados aparentemente abraçaram como solução rápida para a incerteza fundiária da região apenas serviu para aumentar o sentimento de injustiça entre os Terena e escalar a mobilização de diversas comunidades. E nossa análise sugere que foi justamente a mobilização do Povo Terena, através do Conselho Terena, que criou um novo contexto e uma nova sensibilidade do Poder Judiciário, alterando significativamente o conteúdo das decisões. Por um lado, tal mobilização, e principalmente as retomadas e a insistência Terena em manter a posse sobre seus territórios, criou um ambiente social e político no qual se mostrou temerário proferir ordens de reintegração de posse. O risco à vida, à segurança e à ordem pública colocados por tais ordens se tornaram grandes demais para o judiciário, que passou a permitir a posse dos Terena nos territórios reivindicados. Ao mesmo tempo, a presença indígena nos processos legais, inclusive com advogado próprio, e a experiência direta dos magistrados nas retomadas se mostrou um mecanismo fundamental de sensibilização dos Juízes de Primeira Instância para com as reivindicações territoriais dos Terena. Ao visitar as retomadas e perceber a necessidade que as comunidades indígenas têm daquelas terras, bem como sua forte relação cultural e social com os territórios tradicionais, a Justiça Federal passou a tomar como fato consumado a posse indígena e a buscar novas maneiras de solucionar a questão territorial.

Essas soluções não são desprovidas de problemas e são também controversas. Transformar ações de reintegração de posse em ações de desapropriação indireta passa pela consolidação do entendimento que aquelas terras serão declaradas não-tradicionais pelo Poder Judiciário e que, ao final, o marco temporal vai predominar enquanto doutrina limitadora de direitos indígenas. Isso terá que ser amplamente debatido, tanto dentro do Judiciário quanto com as próprias comunidades indígenas.

No entanto, o que nos parece central nessa análise não é a solução em si, mas antes o poder da mobilização e da presença Terena de influenciar o contexto e o sentido da tomada de decisão do Poder Judiciário. Ao que nos parece, a capacidade da sociedade brasileira de afirmar seu caráter pluriétnico e superar a aplicação rasa do marco temporal depende fundamentalmente da mobilização social em torno do Poder Judiciário, da capacidade das comunidades e do movimento indígena de sensibilizar a Justiça, desde a primeira instância, com relação à natureza e extensão de seus direitos territoriais.

Referências Bibliográficas

CNJ, Relatório dos Trabalhos da Comissão sobre a Questão Indígena em Mato Grosso do Sul. Campo Grande e Brasília: CNJ, 2013.

CNV. Relatório da Comissão Nacional da Verdade, Vol. II, Texto V: Violações de direitos humanos dos povos indígenas, Brasília, 2014.

FERREIRA, Andrey Cordeiro. Políticas para Fronteira, História e Identidade: A Luta Simbólica e os Processos de Demarcação de Terras Terena.  Mana 15 (2):377-410, 2009.

FERREIRA, Andrey Cordeiro. Tutela e Resistência IndígenaSão Paulo: EDUSP, 2014.

LACERDA, Roseane. Os Povos indígenas e a Constituínte. Brasília: Conselho Indigenista Missionário (CIMI), 2008.

SILVA, José Afonso da, Parecer sobre a Constitucionalidade do Marco Temporal, 2016.

VARGAS, Vera Lúcia Ferreira. A Construção do Território Terena (1870-1966): Uma Sociedade entre a Imposição e a Opção. Tese de Mestrado, Universidade Federal de Dourados, 2003.

Notas de Rodapé:

[1] Ana Carolina Alfinito Vieira: Advogada formada em direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (2008), mestra em políticas públicas pela Hertie School of Governance e doutoranda em sociologia política pelo Instituto Max Planck e pela Universidade de Colônia, na Alemanha. Sua pesquisa aborda a relação entre o movimento indígena e mudanças institucionais na sociedade brasileira ao longo das últimas quatro décadas.

[2] Indígena do povo Terena, Mato Grosso do Sul. Advogado, possui mestrado em desenvolvimento local em contexto de territorialidades, doutorando em antropologia social no Museu Nacional – UFRJ. Assessor Jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB)

[3] No âmbito do poder executivo, a Fundação Nacional do Índio (Funai), responsável por instituir e instruir o procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas, vem sofrendo progressivos cortes orçamentários que minam sua capacidade de atender às carências e demandas das comunidades indígenas em todo o país. Ainda mais recentemente, os esforços da administração federal no sentido de emplacar políticos e figuras explicitamente contrários às reivindicações indígenas em altos cargos da Funai vem levando a uma tensão crescente entre Povos Indígenas e a administração federal. No legislativo, são diversos os projetos de lei e emendas constitucionais que, atendendo ao interesse de proprietários de terras e da bancada ruralista, restringem o direito territorial indígena. A mais conhecida dessas propostas é a Proposta de Emenda Constitucional n. 215, que transfere para o Poder Legislativo a atribuição para a demarcação de terras indígenas.

[4] O processo administrativo de demarcação de terras indígenas é instituído e instruído, nos termos do Decreto 1775 de 1996, pela Funai. Após a aprovação do Relatório Circunstanciado de Delimitação de Demarcação pela presidência da Funai, a demarcação precisa ainda ser reconhecida e a terra declarada pelo Ministério da Justiça, para posterior homologação pela Presidência da República.

[5] Hoje, graças à recuperação do Relatório Figueiredo e ao trabalho da Comissão Nacional da Verdade (CNV), existem amplas provas da política de expulsão dos índios de suas terras pelo Estado brasileiro entre 1946 e 1988 (Comissão Nacional da Verdade (CNV) 2014). Usar a data da promulgação da Constituição vigente como marco para o reconhecimento de direitos significa sumariamente legitimar essa violência.

[6] STF, Pet. 3388, Relator Ministro Roberto Barroso, j. em 23/10/2013

[7] A lista dos processos consultados e das terras indígenas às quais cada processo corresponde está no Anexo 1.

[8] Esses sítios estão nos seguintes endereços: http://www.jfsp.jus.br/foruns-federais/; http://web.trf3.jus.br/consultas/Internet/ConsultaProcessual; http://www.stf.jus.br/portal/principal/principal.asp.

[9] Apelação Civel 0003866-05.2001.4.03.6000.

[10] Ação ordinária 0006083-11.2007.4.03.6000.

[11] Decisão proferida no âmbito da Ação Cautelar 2556 no dia 29 de janeiro de 2010.

[12] Decisão proferida no âmbito da Ação Cível Originária no dia 7 de dezembro de 2011.

[13] Ação 0002962-04.2009.4.03.6000, decisão de 26 de fevereiro de 2010.

[14] Ação 0012204-21.2008.4.03.6000, decisão de 23 de agosto de 2011.

[15] Embargos infringentes n. 0003866-05.2001.4.03.6000, julgamento em 21 de junho de 2012, relator Des. Federal Nelton dos Santos.

[16] Ressalte-se que decisões de semelhante teor foram proferidas pela Justiça Federal também em 2014 dentro de ações declaratórias referentes a Cachoeirinha e Pílad-Rebuá.

[17] Ver, por exemplo, decisão do dia 13 de maio de 2011 no âmbito da ação de reintegração de posse 0004818-32.2011.4.03.6000.

[18] Ver, por exemplo, decisão monocrática no agravo de instrumento n, 0018810-76.2015.4.03.0000/MS, proferida pelo Desembargador Federal Paulo Fontes no dia 7 de outubro de 2015.

Palavras Chaves

direitos indígenas, direitos territoriais, decisões judiciais.