A CAPTAÇÃO JURÍDICA RESTRITIVA DA GREVE E A BUSCA POR NOVAS ESTRATÉGIAS DE PROTEÇÃO DA LUTA COLETIVA NO ORDENAMENTO BRASILEIRO

Resumo

O presente artigo pretende buscar novas estratégias de proteção da luta coletiva dos trabalhadores no sistema jurídico brasileiro. Parte-se do pressuposto sociológico de que a classe trabalhadora não é mais concebida como era na modernidade. A atual classe-que-vive-do-trabalho expressa seu conteúdo crítico em novas formas de luta coletiva, que visam ser mais profícuas do que a greve tradicional . A conversão destas novas forças sociais-laborais em um amplo direito de luta é necessária para o estabelecimento do equilíbrio entre a ação econômica transnacional e a ação coletiva dos trabalhadores no capitalismo contemporâneo. Assim, esta pesquisa pretende investigar se há espaço no conceito jurídico do direito de greve no Brasil para proteger de forma eficaz estas novas modalidades de luta da classe-que-vive-do-trabalho ou se seria necessário buscar lugares jurídicos complementares no sistema jurídico brasileiro para efetivar tal proteção.

Artigo

A CAPTAÇÃO JURÍDICA RESTRITIVA DA GREVE E A BUSCA POR NOVAS ESTRATÉGIAS DE PROTEÇÃO DA LUTA COLETIVA NO ORDENAMENTO BRASILEIRO

Flávia Souza Máximo Pereira[1]

 RESUMO: O presente artigo pretende buscar novas estratégias de proteção da luta coletiva dos trabalhadores no sistema jurídico brasileiro. Parte-se do pressuposto sociológico de que a classe trabalhadora não é mais concebida como era na modenidade. A atual classe-que-vive-do-trabalho[2] expressa seu conteúdo crítico em novas formas de luta coletiva, que visam ser mais profícuas do que a greve tradicional[3]. A conversão destas novas forças sociais-laborais em um amplo direito[4] de luta é necessária para o estabelecimento do equilíbrio entre a ação econômica transnacional e a ação coletiva dos trabalhadores no capitalismo contemporâneo. Assim, esta pesquisa pretende investigar se há espaço no conceito jurídico do direito de greve no Brasil para proteger de forma eficaz estas novas modalidades de luta da classe-que-vive-do-trabalho ou se seria necessário buscar lugares jurídicos complementares no sistema jurídico brasileiro para efetivar tal proteção.

PALAVRAS-CHAVE: Direito de greve. Novas formas de luta coletiva. Classe-que-vive-do-trabalho. Pluralismo político.

  1. Introdução

A presente pesquisa jurídico-teórica pretende ser um debate aberto à realidade social, pois visa estabelecer um constante diálogo da Ciência do Direito com sujeitos que vivem do trabalho e protagonizam novas formas de lutas dinâmicas no capitalismo contemporâneo.

Parte-se do pressuposto sociológico de que a classe trabalhadora não é mais constituída pelo operário-massa, empregado, sindicalizado no âmbito industrial de uma empresa nacional taylorista-fordista como era na modenidade. No capitalismo contemporâneo, a lógica da autovalorização do valor veiculada pelo locus do trabalho humano transbordou-se para lugares que ultrapassam o espaço produtivo fabril, extravasando subalternidades interseccionais[5] que exigem a reconfiguração dos eixos de luta coletiva. Neste lugar de construção ontológica, a classe-que-vive-do-trabalho aparece como um poder constituinte, expressando seu conteúdo crítico em novas formas de luta coletiva, que visam ser mais profícuas na contemporaneidade do que a greve, que, em seu formato tradicional, ainda está presa ao contexto da modernidade.

Em razão dessa lacuna jurídica axiológica[6], o artigo propõe a construção de um direito de luta da classe-que-vive-do-trabalho, para que se possa converter essas novas forças sociais-laborais em uma legítima alavanca, imune às sanções, capaz de modificar o equilíbrio de forças entre capital e trabalho. Assim, este estudo pretendeu, de forma breve, compreender se no locus jurídico do direito de greve é possível transpor para o Direito os novos conflitos do mundo social do trabalho ou se é preciso buscar outros lugares jurídicos complementares no sistema brasileiro para a efetivar tal proteção.

 A ressignificação da categoria classe social: novos sujeitos, novas formas de luta coletiva

 A partir do processo de reestruturação do capitalismo em nível global, viabilizado pelo sistema toyotista, emerge a precariedade sistêmica que gera uma nova morfologia social do trabalho. Os modelos de produção flexíveis aprofundam a lógica de o capital subsumir o trabalho humano como mercadoria, visando à maleabilidade dos processos e mercados laborais, das leis trabalhistas e das resistências coletivas articuladas pelo labor.

A precarização sistêmica no capitalismo contemporâneo não atinge apenas a dimensão do trabalho como mercadoria, pois implica outros modos de (des)constituição do ser genérico humano (ALVES, 2010, p. 3). A nova precariedade, ao alterar a troca metabólica entre o tempo de produção e o de reprodução, em razão da “desmedida” da jornada laboral e de mecanismos manipulatórios, captura a subjetividade do trabalhador: não é apenas o “fazer” e o “saber” do obreiro que são apreendidos pela lógica do capital, mas também sua disposição intelectual-afetiva. Assim, conforme o trabalho se move para fora dos muros da fábrica, torna-se mais difícil manter a ficção da medida do dia de trabalho e, portanto, separar o tempo de produção do de reprodução. Desse modo, aqueles que vivem da venda da força laboral produzem em toda sua generalidade, em todo lugar, o tempo todo (NEGRI; HARDT, 2014, p.427).

Em consequência, a classe trabalhadora no capitalismo contemporâneo não é mais como era concebida na modernidade, composta pelo operário-massa, empregado, sindicalizado, no âmbito industrial de uma empresa taylorista-fordista nacional e verticalizada, que lutava por interesses econômicos. As estratégias de precarização, propiciadas pela horizontalização do processo produtivo, difundem o trabalho em domicílio; efetuam a inserção alienada de “independência” pelo trabalho “autônomo”; promovem as cadeias de terceirização, o trabalho informal, a uberização[7] do labor, gerando relações de trabalho vulneráveis[8], que continuam inseridas na lógica de autovalorização do valor em razão da mais-valia.

Ao mesmo tempo, ao se transbordar para lugares além do espaço produtivo fabril, a lógica da autovalorização do valor veiculada pelo locus do trabalho humano extravasou  subalternidades interseccionais que exigiram a reconfiguração dos eixos de luta coletiva, de seus interesses a serem defendidos e de suas formas de ação. Os sujeitos desses conflitos não são mais distinguidos somente pelo critério econômico, em um conceito homogêneo de classe social[9], cunhado na modernidade, que é reflexo do modelo de conhecimento racional-científico, de caráter economicista, baseado na metodologia das ciências exatas/naturais, que compõe um padrão histórico de poder[10], constituído também por estruturas industriais-nacionais.

Tais processos de constituição ontológica desdobram-se por meio de variáveis movimentos coletivos de luta, mediante novos tecidos articulados por diversas subjetividades de todos aqueles cujo trabalho é explorado pelo capital. Nesse lugar de construção ontológica, a classe-que-vive-do-trabalho aparece como poder constituinte. Assim, os heterogêneos protagonistas do mundo social do trabalho tentam sobreviver sobrecarregados por subalternidades sobrepostas, que vão além das estratificações econômicas – como gênero, raça, origem, que atuam reprodução das desigualdades sociais – expressando seu conteúdo crítico em novas formas de luta coletiva, que visam ser mais eficazes[11] do que mecanismos de ação provenientes da mordernidade, como a greve tradicional.

Exemplos recentes destas novas formas de luta são as greves feministas realizadas na Argentina[12] e na Polônia[13], que relacionam violência sexual e direito ao aborto com greves de abstenção do trabalho (produtivo e reprodutivo), ressaltando o protagonismo feminista que desaloja o linguajar homogêneo, sindical, branco, patriarcal da luta de classes herdado da modernidade. Ao relacionar interseccionalmente corpos violados com corpos que se recusam a produzir, mediante uma greve feminista que permeia espaços de produção e reprodução, a eficácia da luta coletiva é potencializada. Na mesma direção, o movimento internacional militante do dia 8 de março de 2017, que surgiu como um reflexo da marcha das mulheres norte-americanas em face de medidas misóginas, racistas, homofóbicas, transfóbicas e antimigratórias anunciadas por Donald Trump. O movimento propôs mobilizar mulheres, incluindo mulheres trans, em um dia internacional de greves, marchas e bloqueios de estradas; abstenção do trabalho doméstico, de cuidados e sexual; boicotes a empresas misóginas (DAVIS et al, 2017). Tais movimentos buscam uma interseccção entre classe, gênero e raça e um urgente acerto de contas com o feminismo empresarial hegemônico (DAVIS et al, 2017).

No Brasil, o  recente exemplo das mulheres esposas e mães dos policiais militares do Espírito Santo – que são proibidos de realizar greve nos termos do artigo 142, IV[14] da Constituição Federal de 1988 (CF/88) – que acamparam nas portas dos quartéis, impedindo a saída dos policiais para o trabalho, para reivindicar reajustes salariais, também ilustra a construção de um contramovimento em que os feminismos, capazes de conectar direitos reprodutivos,  trabalho e raça de forma interseccional, têm um papel crucial a cumprir.

No mesmo sentido, outras resistências plurais como o Occupy Wall Street[15], os protestos em Seattle[16] e as Jornadas de Junho[17], que mesclam forças sociais-laborais, com diferentes modos de atuação, como flashmobs[18] e boicotes transnacionais de consumo, são uma resposta às formas de exploração do capitalismo contemporâneo, aliando lutas coletivas em nível global e local, diferentemente da greve tradicional.

A conversão destas forças sociais do trabalho em amplo direito de luta é necessária para o estabelecimento do equilíbrio entre a ação econômica transnacional no capitalismo contemporâneo e a ação coletiva dos trabalhadores, que constitui o núcleo motor do Direito do Trabalho e o instrumento de canalização de contravozes de uma democracia plural. Afinal, em oposição aos sistemas autoritários, foi – e ainda é – a força da luta dos trabalhadores dos países democráticos, como o Brasil, que converteu a energia dos conflitos coletivos em fonte material de direitos laborais. Portanto, para que uma efetiva transformação exista, não é suficiente que tais formas de luta fiquem apenas circunscritas ao fenômeno social, desprovidas de juridicidade: é necessário que elas sejam reconhecidas em termos jurídicos, para que se possa converter essa demonstração em legítima alavanca – imune às repressões criminais, civis e trabalhistas –, capaz de modificar o equilíbrio de forças e reproduções de desigualdades.

No entanto, é preciso entender se há espaço no conceito jurídico do direito de greve no Brasil para superar tal lacuna axiológica, ou seja: se há abertura para a disputa do sentido da norma no interior do próprio direito de greve estabelecido no ordenamento jurídico brasileiro para efetuar a proteção eficaz destas novas modalidades de luta coletiva.

  1. Da lacuna axiológica do direito de greve no capitalismo contemporâneo: necessidade de compatibilização da norma brasileira com as novas formas de luta coletiva

 A greve, em seu formato tradicional, foi uma forma de resistência coletiva desenhada para o modelo taylorista-fordista, que, por concentrar todo o processo produtivo de forma hierárquica, usurpava do empregado qualquer iniciativa no ambiente laboral e, por isso, era vulnerável à interrupção do trabalho. Consequentemente, a greve foi incorporada como direito refletindo este contexto da modernidade, pois a atividade empresarial estava profundamente enraizada no mercado de emprego pleno, industrial, sindical e patriarcal, corroborado por barreiras dos Estados-nação e pelas incipientes redes de comunicação.

Desse modo, como reflexo do contexto modernidade, o direito de greve é ainda frequentemente reduzido como a abstenção coletiva concertada operária, com interesses limitados à dualidade econômica do empregado em face do empregador industrial[19]. Ao contrário das relações jurídicas empresariais, que se transformaram para promover o desmantelamento de direitos trabalhistas, o direito de greve ficou em segundo plano em termos de adaptação jurídica: foi impedido de se tornar um instrumento jurídico eficaz capaz de proteger plenamente as novas formas de luta coletiva no capitalismo contemporâneo.

A restrição jurídica do movimento paredista foi imposta aos trabalhadores mediante uma regulamentação do direito de greve submetida à lógica liberal econômico-individual da propriedade, que é manifestada, em diferentes níveis, na norma, na doutrina e na jurisprudência brasileiras. Isso ocorreu, porque ainda existe na cultura do Direito brasileiro uma veneração pelo controle social, restringindo o espaço jurídico do conflito coletivo, o que faz com que a maior parte das normas e dos intérpretes continuem deslegitimando algumas de suas modalidades e manifestações.

Assim, o tratamento jurídico do conflito é fruto de uma postura dogmática limitada, herdada do positivismo jurídico da modernidade, envolto em um paradoxo funcional: apesar de a existência do conflito coletivo ser uma demonstração do caráter pluralista e democrático da sociedade, a maior parte das legislações dos países no mundo, incluindo o Brasil, ainda não possui um direito de luta coletiva, reduzindo o conflito coletivo a um limitado direito de greve, pois a conflitualidade ainda é compreendida como uma anomalia jurídica.

Nesse sentido, apesar do amplo conceito[20] de direito de greve estabelecido no art. 9º[21] da Constituição brasileira, sua regulamentação infraconstitucional e jurisprudencial efetuada mediante a aplicação da Lei 7.783/89, é um mecanismo comprometedor de sua própria eficácia, justificando legalmente, em alguns aspectos, sua repressão econômica[22], policial e processual[23].

Verifica-se em recentes decisões judiciais[24] sobre o direito de greve no Brasil que este só atinge a legalidade em certas condições, que são exatamente aquelas que permitem a reprodução do capital e a manutenção de marginalizações sociais. Observamos que há reforço da individualização da greve mediante o reconhecimento da licitude dos “fura-greves”[25], assim como do corte de salários, para enfatizar a perda singular salarial em detrimento da ideia de luta por um interesse comum. Ocorre também a despolitização e burocratização do direito de greve: a tentativa de reduzi-la aos sindicatos e aos interesses profissionais, em um esforço das instituições jurídicas brasileiras em provar que a luta dos trabalhadores é ainda meramente econômica, industrial, sindical e homogênea, relegada ao espaço de produção, nos termos dos restritos moldes de conhecimento herdados da modernidade. Talvez aqui resida o motivo para a declaração sistemática da abusividade da greve[26], efetuada, principalmente, pela jurisprudência brasileira: a declaração do “abuso” aparece diante da verificação do funcionamento político real da greve, isto é, um dano de classes, feito por classes, dentro das obrigações contratuais (EDELMAN, 2016, p. 47).

Em razão da forma pela qual a greve foi captada juridicamente no Brasil, os trabalhadores não podem vincular sua luta a transformações verdadeiramente emancipatórias.

Por isso, talvez seja necessário buscar diversas redes de proteção jurídica da luta coletiva em outros lugares do Direito, complementares ao direito de greve, porque existem novos sujeitos, novas ações e interesses sociais que não serão articulados pelo conceito inconstitucional de direito de greve da Lei 7.783/89, que é ainda legitimado por uma leitura formalista efetuada pelos tribunais pátrios. Devemos destacar que isso não significa que nos contentamos com a aplicação formalista do restrito conceito de direito de greve da Lei nº 7.783/89. Entretanto, devemos também buscar estratégias jurídicas complementares que promovam uma proteção mais eficaz das formas de luta coletiva contemporâneas.

Portanto, a proteção jurídica da luta coletiva que não esteja alocada exclusivamente dentro do direito de greve no Brasil se justifica não pela impossibilidade de ressignificar semanticamente seu conceito jurídico, o que já é feito pela doutrina minoritária laboral. A proteção complementar se fundamenta em duas principais razões: a busca pela eficácia da proteção jurídica da luta coletiva necessita driblar o estatuto jurídico limitativo criado para o direito de greve no Brasil, herdado da modernidade; e, além disso, o conflito coletivo contemporâneo, em muitas de suas expressões, se destaca do conteúdo do direito de greve, pois envolve outros sujeitos e espaços, que são uma resposta mais adequada às formas de organização reticular e transnacional do capitalismo cognitivo-cultural[27].

Nesse sentido, a busca complementar por outros lugares de proteção jurídica mais eficazes do que o direito de greve é uma estratégia de resistência ao esvaziamento jurídico do conflito coletivo no Brasil. Esses outros loci de proteção devem ser capazes de proporcionar a juridificação[28] dos conflitos coletivos do mundo social do trabalho sem bloquear as disputas pelos sentidos da norma no interior do próprio código do Direito[29].

Assim, o direito à ocupação – baseado no princípio do direito ao trabalho (art. 6º da CF/88), no princípio do valor social do trabalho (artigo 1º, IV e 170, caput da CF/88) e na função social da propriedade (artigo 170, III, da CF/88) –; o direito à cidade e de sua gestão e ocupação democrática (artigos 182 e 183 da CF/88, regulamentados pela Lei nº 10.257/2001); o direito de manifestação – desdobrado na liberdade de manifestação do pensamento e de expressão (art. 5º IV, IX da CF/88), na liberdade de reunião (art. 5º, XVI, da CF/88) e de associação (art. 5º, XVII da CF/88), nos termos da teoria de direitos fundamentais de Luigi Ferrajoli[30] –; o direito ao boicote de consumo transnacional[31], efetuado por redes de alianças internacionais entre consumidores e trabalhadores, que também pode ser abarcado pelo direito à propaganda como forma de expressão, são alguns dos possíveis lugares jurídicos no Brasil para a proteção das formas de luta da classe-que-vive-do-trabalho.

Além disso, verifica-se que essas modalidades de luta coletiva não visam somente à proteção jurídica da mobilização por si só; pelo contrário: demonstram que tais sujeitos estão buscando métodos que possam ser eficazes na defesa de instituições verdadeiramente democráticas, para que eles possam participar de forma direta em termos políticos, em uma ideia de cidadania dinâmica, que supera a linguagem tradicional de “direito a ter direitos”. Portanto, é visível que há uma demanda comum de revitalização da conexão entre democracia e a pluralização de sujeitos que vivem do trabalho, que alimenta os novos meios de luta.

Fica claro que existe uma contestação crescente em torno da falta de representatividade de organizações tradicionais herdadas da modernidade, como sindicatos e partidos, em relação à vontade daqueles que são interseccionalmente explorados no capitalismo contemporâneo. Isso porque, atualmente, a pluralidade política manifestada na experiência democrático-liberal capitalista é limitada, visto que a maioria dos espaços legislativos, judiciais ou sindicais são conduzidos como um negócio privado[32]. Assim, a naturalização da articulação entre a democracia e o liberalismo econômico nos faz acreditar que o pluralismo político se reduz a uma democracia representativa conjugada com a ideia da especialização tecnocrata ditada pela “lei dos mercados”, de modo que muitas ações diretas antagônicas que almejam o exercício de uma cidadania mais dinâmica são taxadas de vandalismo.

Entretanto, a democracia deve ser entendida como princípio e não como regime consolidado, sendo constituída pela luta que se destina à inclusão de diferenças excluídas em regimes (RANCIÈRE, 2014, p. 68). A democracia consiste em formas jurídico-políticas das Constituições e das leis que jamais repousam sobre a mesma lógica (RANCIÈRE, 2014, p. 71). Embora a democracia liberal capitalista deseje se travestir de amplo consenso, para qualificar estas novas formas de luta como ilegítimas “convulsões sociais”, são essas ações diretas, realizadas pela heterogênea classe-que-vive-do-trabalho, em nível local e global, que correspondem à ideia fundamental de um direito ao pluralismo político (art. 1º, V, CF/88), pois representam uma manifestação de política que é de todos e de qualquer um.

  1. Breves – e sempre provisórias – conclusões

O conceito de direito de greve estebelecido pela doutrina e jurisprudência majoritárias, assim como pela legislação no sistema brasileiro, ainda corresponde ao contexto da modernidade, o que dificulta a criação de espaços viáveis em seu interior para fluxos de proteção eficaz das novas formas de luta coletiva. Por isso, talvez seja necessário buscar diversas redes de proteção jurídica da luta coletiva em outros lugares do Direito, complementares ao direito de greve, porque existem novos sujeitos, novas ações e interesses sociais que não serão articulados pelo conceito inconstitucional de direito de greve da Lei 7.783/89, que é ainda legitimado por uma leitura formalista efetuada pelos tribunais pátrios. Isso não significa que nos contentamos com a aplicação formalista da Lei nº 7.783/89. Entretanto, devemos buscar outras estratégias jurídicas complementares que evitem o esvaziamento jurídico do conflito coletivo.

 Apesar de existirem vários obstáculos, a proposta do reconhecimento de um direito de luta, baseado no pluralismo político, representa a possibilidade de qualquer um tomar parte ativa no processo de definição de gramáticas institucionais[33], sem temer repressões. Nesse sentido, é necessário conceder espaço para a disputas dos sentidos da norma que proporcionem maior democracia àqueles que trabalham e que demonstrem que há um vínculo visível entre as condições materiais de vida e ação política efetiva.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVES, Giovanni. Trabalho, subjetividade e capitalismo manipulatório: o novo metabolismo social do trabalho e a precarização do homem que trabalha. 2010. Disponível em: <http://www.giovannialves.org>. Acesso em: 17 jul. 2017.

ALVES, Giovanni; ANTUNES, Ricardo. As mutações no mundo do trabalho na era da mundialização do capital. Educ. Soc., Campinas, v. 25, n. 87, p. 335-351, maio/ago. 2004.

BELTRAN, Ari Possidonio. A autotutela nas relações de trabalho. São Paulo: LTr, 2001.

BILGE, Sirma. Théorisations féministes de l’intersectionnalité. Diogène, Paris, v. 1 n. 225, p. 70-88, 2009.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, 5 out. 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao>. Acesso em: 17 jul. 2017.

CALAMANDREI, Piero. Importanza costituzionale del diritto di sciopero. Rivista giuridica del lavoro, Roma, p. 221-244, 1952.

DAVIS, Angela; ARRUZZA, Cinzia; TAYLOR; Keeanga-Yamahtta; ALCOFF, Linda Martín; FRASER, Nancy; BHATTACHARYA,  Tithi. ODEH, Rasmea YousefPor uma greve internacional militante no 8 de março. 2017. Disponível em: <https://blogdaboitempo.com.br/2017/02/07/por-uma-greve-internacional-militante-no-8-de-marco/>. Acesso em 17 fev. 2017.

EDELMAN, Bernard. A legalização da classe operária. São Paulo: Boitempo, 2016.

FERRAJOLI, Luigi. Los fundamentos de los derechos fundamentales. Madri: Trotta, 2009.

FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 1994.

GOHN, Maria da Glória. Manifestações de junho de 2013 no Brasil e Praças dos Indignados no mundo. São Paulo: Editora Vozes, 2014.

GOMES, Orlando; GOTTSCHALK, Elson. Curso de Direito do Trabalho. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990.

JORDAN, Christopher; MORITZ; Pauline. German Federal Constitutional Court: trade unions may use flash mobs as means of industrial action. Disponível em: <http://www.lexology.com/library/ >. Acesso em: 7 jul. 2017.

NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. Império. Rio de Janeiro: Record, 2014.

ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO (ILO). World of Work Report 2014: Developing with jobs. Genebra, ILO, 2014. Disponível em: <http://www.ilo.org/global/research/global-reports/world-ofwork/>. Acesso em: 15 fev. 2017.

PINO, Giorgio. Interpretazione cognitiva, interpretazione decisoria, interpretazione creativa. Rivista di Filosofia del diritto, Bolonha: Mulino, 2013.

POCHMANN, Márcio. A uberização leva à intensificação do trabalho e da competição entre os trabalhadores. 2016. Disponível em: <http://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/entrevista/>. Acesso em 17 fev. 2017.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, globalización y democracia. Revista de Ciencias Sociales de la Universidad Autónoma de Nuevo León, Monterrey, año 4, n. 7,set/abr., 2002.

RANCIÈRE, Jacques. O ódio à democracia. São Paulo: Boitempo, 2014.

RODRIGUEZ, José Rodrigo; NOBRE, Marcos. Judicialização da política: déficits explicativos e bloqueios normativistas. Novos estudos, CEBRAP, São Paulo, n. 91, nov. 2011.

ROLNIK, Suely. Geopolítica da cafetinagem. Cadernos do núcleo de Estudos da Subjetividade Pós-graduação em psicologia clínica da PUC-SP. São Paulo, PUC-SP, 2006.

SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: LTr, 1997.

SILVA, Sayonara Grillo Coutinho Leonardo. Relações coletivas de trabalho: Configurações Institucionais no Brasil Contemporâneo. São Paulo: LTr, 2008.

SINAY, Hélène. La grève In: CAMERLYINCK. Droit du Travail. Dalloz: Paris, 1966.

WATERMAN, Peter. O internacionalismo sindical na era de Seattle. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 62, Coimbra, 2002.

Notas de Rodapé:

[1] Doutora em Direito do Trabalho pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em cotutela com a Università degli Studi di Roma Tor Vergata. Professora substituta da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Membro do grupo de pesquisa “Trabalho e resistências” na UFMG. Advogada.

[2]Em oposição à modernidade, na contemporaneidade a classe trabalhadora não se restringe aos trabalhadores produtivos, mas incorpora a totalidade do trabalho coletivo que vende sua força laboral como mercadoria em troca de salário para valorizar o capital, o que inclui os terceirizados, os informais, os falsos autônomos, os desempregados, os improdutivos e reprodutivos. (ANTUNES, ALVES, 2004, p. 343).

[3]O conceito de greve tradicional ou típica herdado da modernidade, adotado pela doutrina e jurisprudência majoritárias brasileiras, consiste na abstenção coletiva concertada dos empregados, com interesses predominantemente econômicos, em face do empregador. Nesse sentido: Orlando Gomes e Elson Gottschalk, (1990, p. 759); Beltran (2001, p. 210).

[4] Estamos nos referindo à classificação doutrinária estabelecida por Calamandrei, que se relaciona com a evolução dos modelos estatais: greve-delito, greve-liberdade e greve-direito. A greve-delito, na qual prevalece a ilicitude da greve no plano estatal, bem como no das relações privadas, implica crime e inadimplemento contratual, ensejando as respectivas sanções penais, trabalhistas e civis, se relacionando com o modelo autoritário de Estado. A greve-liberdade, extingue a ilicitude no plano penal, mas mantém o ilícito contratual, relacionando-se com o Estado Liberal. Por fim, a greve-direito, na qual é eliminado também o ilícito contratual, relacionando-se como o Estado social-democrático (CALAMANDREI, 1952, p. 10).

[5] A interseccionalidade, conceito fruto dos estudos feministas, refuta o enclausuramento dos grandes eixos de diferenciação social, como as categorias gênero, classe, raça. O enfoque interseccional vai além do simples reconhecimento das particularidades das opressões que se operam a partir dessas categorias e postula sua interação na produção e na reprodução das desigualdades sociais. (BILGE, 2009, p. 70)

[6] A lacuna axiológica refere-se à ausência de norma justa, isto é, pode existir um preceito normativo, ao contrário da lacuna normativa, mas, se este for aplicado, sua solução será insatisfatória ou injusta (PINO, 2013, p. 11).

[7] Uberização é um termo que se remete à multinacional norte-americana Uber e é utilizado por alguns autores (POCHMANN, 2016) para se referir a um novo padrão de organização laboral, que envolve a autonomização dos contratos de trabalho.

[8] Os trabalhadores vulneráveis, de acordo com a Organização Internacional do Trabalho, são aqueles para quem é menos provável terem acordos formais de trabalho e serem cobertos por proteção social. (ILO, 2014, p. 20).

[9]Existe uma tendência nas teorias sobre classe social na modernidade, influenciadas pelo paradigma racional-científico de conhecimento, em englobar em um único sujeito – economicamente identificado – toda a multiplicidade de agentes históricos, a começar pela invisibilidade do trabalho feminino e doméstico. Existe a ideia de subjetividade histórica separada da mulher, já que o conceito de movimento operário – inclusive em Marx – não consegue estabelecer uma ligação equilibrada entre a luta das mulheres para se liberarem da opressão de gênero e a luta de classes. Mesmo se aceitarmos que o conceito de classe social em Marx ultrapassa a epistemologia economicista moderna, ele não deixa de ser terreno uniforme e essencializado da modernidade, porque a cosnciência de classe somente pode ser alcançada pelo proletariado: um sujeito coletivo que é universal, embora essencialmente industrial, branco, patriarcal e europeu, suprimindo individualidades.

[10] O padrão de poder na modernidade impõe, como modo de controle do trabalho, o capitalismo industrial no formato taylorista-fordista; o Estado-nação nasce como modelo central de controle da autoridade coletiva e, por fim, o paradigma racional-científico como forma hegemônica de produção de conhecimento, baseando-se no método das ciências exatas e naturais (QUIJANO, 2002, p. 01).

[11] Abordamos o termo eficácia no seu sentido social e não no técnico. Conforme Ferraz Júnior, uma norma se diz socialmente eficaz quando encontra na realidade condições adequadas para produzir seus efeitos. (1994, p. 197).

[12] A greve foi movida pela morte de Lucía Perez. O movimento interseccional foi denominado “Ni una menos”.

[13] Em 2016, as mulheres da Polônia se vestiram de preto e decretaram greve do trabalho produtivo e reprodutivo para protestar contra um projeto de lei que reduziria as hipóteses de aborto legal no país.

[14] Art. 142, IV : Ao militar são proibidas a sindicalização e a greve (BRASIL, 1988)

[15] O movimento Occupy Wall Street, iniciado em 2011, agregou centenas de pessoas em Manhattan, com o slogan “injustiças perpetradas por 1% da população – elites políticas e econômicas afetam os outros 99%, nós – Ocupem Wall Street”. (GOHN, 2014, p. 125).

[16] Em resistência a uma reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC), sindicalistas, movimentos sociais, trabalhadores precarizados, estudantes, enfrentaram a polícia no episódio que ficou conhecido como “Batalha de Seattle”. (WATERMAN, 2002, p. 47).

[17] No Brasil, as denominadas Jornadas de Junho de 2013, fenômeno híbrido horizontal que reuniu movimentos laborais, sociais e estudantis, mobilizaram mediante redes sociais mais de dois milhões de pessoas.

[18] Flashmob é a abreviação de “flash mobilization”, que significa mobilização rápida e sincronizada, geralmente planejada mediante redes sociais. Uma ação de flashmob na Alemanha envolveu quarenta trabalhadores e consumidores, que perturbaram o ritmo de trabalho em um supermercado, para que melhores salários fossem estabelecidos. Esta ação foi considerada legítima pelo Tribunal Federal Alemão, pois é abrangida pela liberdade sindical, garantida pelo art. 9º da Constituição Alemã (JORDAN; MORITZ, 2014, p. 3).

[19] Discordamos deste conceito restritivo do direito de greve herdado da modernidade, embora ele ainda seja adotado pela doutrina e jurisprudências dominantes no Brasil. Coadunamos com um conceito amplo do direito paredista, que permite a proteção jurídica de várias formas de luta coletiva, como aquele elaborado por Hèlène Sinay: “greve é a ruptura com o cotidiano de uma forma coletiva e concertada” (1966, p. 173)

[20] Entendemos que o art. 9º da CF/88 é de eficácia plena, sob a classificação de José Afonso da Silva (1997, p.294).

[21] Art. 9º É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender.§ 1º A lei definirá os serviços ou atividades essenciais e disporá sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade. § 2º Os abusos cometidos sujeitam os responsáveis às penas da lei. (BRASIL, 1988).

[22] Multas elevadas são aplicadas pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST) aos sindicatos profissionais, tornando-se mecanismos “pedagógicos” de repressão social. Tais multas são justificadas por meio da deturpação de princípios como o da proporcionalidade, o que pode traduzir uma conduta antissindical do juiz.

[23] Exemplo disso é a possibilidade de ajuizamento unilateral do dissídio coletivo de greve, bem como os interditos proibitórios ajuizados sob o errôneo fundamento jurídico de garantia do direito de propriedade e de locomoção.

[24] Afirmação corroborada por pesquisa de julgados do TST desde 2006 sobre o direito de greve no setor privado analisados na tese de doutorado da autora. Decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o direito de greve do servidor público refletem a mesma postura. O RE 693.456-RJ estabeleceu que o administrador público tem o dever de cortar o ponto de servidores grevistas. Na Reclamação nº 24.597/SP, que envolvia greve dos empregados públicos de um hospital, o STF estendeu a todos os empregados a determinação de continuidade dos serviços.

[25] A licitude dos “fura-greves” é apoiada na teoria jurídica da titularidade individual do direito greve.

[26] Existe um padrão judicial de declaração de abusividade do movimento paredista, em razão de um raciocínio formalista referente ao cumprimento dos requisitos da Lei nº 7.783/89, como ocorreu em 76% dos casos entre 2001 e 2005 em que o TST julgou originariamente dissídios coletivos de greve (SILVA, 2008, p. 487).

[27] O termo capitalismo cognitivo-cultural foi proposto por pensadores ligados ao italiano Antonio Negri e à revista Multitude, a partir dos anos 90, e é herdeira da ideia que permeia toda a obra de Gilles Deleuze e Félix Guattari acerca do estatuto da cultura e da subjetividade no regime capitalista contemporâneo (ROLNIK, 2006, p. 12).

[28] Utilizamos o termo conforme Rodriguez e Nobre (2011, p. 18), que corresponde à “tradução para o código do Direito”. Os autores indicam que quando mencionam “código do Direito” estão se referindo ao Direito racional e formal weberiano, concepção que domina a visão mais corrente sobre o Direito até os dias de hoje. Rodriguez e Nobre (2011, p. 6) ressaltam que quando mencionam “gramáticas do Direito”, referem-se aos desenhos institucionais em que tal código se encontra configurado a cada vez. Segundo os autores (2011, p. 6) tais desenhos podem ser modificados por dentro em função da dinâmica dos conflitos sociais, a ponto de alterar o código do Direito, como ocorreu na passagem do Estado liberal para o Estado social por ação da classe operária.

[29] Sobre o significado de código do Direito, ver nota de rodapé antecedente.

[30] Para Ferrajoli (2009, p. 39), todos os direitos fundamentais possuem ambas as modalidades de obrigações, existindo apenas uma diferença de grau, o que relativiza a dicotomia das ações positivas/negativas necessárias para a sua efetividade. Nesse sentido, Ferrajoli (2009, p. 307) realiza uma diferenciação específica entre os os direitos de liberdade (quando gozam de status constitucional) e direitos de autonomia privada. Para o autor, direitos de autonomia privada, referentes à teoria dos contratos, seriam de natureza secundária,e,portanto,devem necessariamente se submeter positivamente a limites e obrigações impostas por lei, sob pena de entrar em conflito com os direitos de liberdade, que são primários. Assim, os direitos de liberdade, assim como os direitos sociais, limitam os direitos de autonomia privada, formando a base de uma democracia substancial. Conforme esta diferenciação, verifica-se que existem limites e vínculos impostos pelos direitos de liberdade e pelos direitos sociais à representação política, ao mercado e à autodeterminação privada (FERRAJOLI, 2009, p. 304).

[31] Não há impeditivo no sistema jurídico brasileiro quanto à prática do boicote. O artigo 198  do Código Penal trata apenas dos casos de boicotagem violenta, o que não condiz com a própria essência da figura jurídico-trabalhista do boicote, principalmente o de consumo, que tem como elemento central o convencimento da comunidade por meios pacíficos, que atualmente pode se manifestar por meio das redes de comunicação.

[32] Nesse sentido, a recente aprovação da austera Reforma Trabalhista, em regime de urgência, que legitima a precarização do direitos laborais no Brasil, em nome de um falacioso crescimento econômico, sem diálogo social.

[33] Para o conceito de gramáticas institucionais, ver nota de rodapé no 28.

Palavras Chaves

Direito de greve. Novas formas de luta coletiva. Classe-que-vive-do-trabalho. Pluralismo político.