A DIALÉTICA SOCRÁTICA E SUA DIMENSÃO ÉTICA COMO TENTATIVA DE FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA DO TRABALHO DO MEDIADOR DE CONFLITOS

Resumo

O objetivo deste artigo é apresentar argumentos convincentes a favor da dialética socrática e sua dimensão ética como tentativa de fundamentação teórica do trabalho do mediador de conflitos. A hipótese aqui é a de que a função política do mediador de conflitos seja a mesma que aquela que Sócrates acreditava ser a do filósofo: ajudar a estabelecer um mundo comum, os pontos de interseção, construído não sobre a compreensão da amizade, mas sobre a compreensão de que somos seres racionais e que podemos negociar situações de conflito e chegar a um acordo sem a necessidade de um árbitro ou juiz. É na recomposição de uma relação de confiança mútua que os conflitos podem aumentar a chance de serem resolvidos, por meio de um processo de mediação operacionalizado por um mediador capacitado e que domine técnicas das mais diversas áreas do conhecimento.

Artigo

 A DIALÉTICA SOCRÁTICA E SUA DIMENSÃO ÉTICA COMO TENTATIVA DE FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA DO TRABALHO DO MEDIADOR DE CONFLITOS

 

Autor: Ricardo de Oliveira Razuk. Doutorando em Filosofia pela UFRJ, Mestre em Administração pelo COPPEAD UFRJ; Engenheiro de Produção pela UFRJ. É Coordenador-Geral na Escola de Contas e Gestão do TCE-RJ, Membro da Comissão de Mediação da OAB-RJ, Professor no FGV Management. Foi Professor e Coordenador Acadêmico na Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresa da FGV EBAPE.

 

Resumo: O objetivo deste artigo é apresentar argumentos convincentes a favor da dialética socrática e sua dimensão ética como tentativa de fundamentação teórica do trabalho do mediador de conflitos. A hipótese aqui é a de que a função política do mediador de conflitos seja a mesma que aquela que Sócrates acreditava ser a do filósofo: ajudar a estabelecer um mundo comum, os pontos de interseção, construído não sobre a compreensão da amizade, mas sobre a compreensão de que somos seres racionais e que podemos negociar situações de conflito e chegar a um acordo sem a necessidade de um árbitro ou juiz. É na recomposição de uma relação de confiança mútua que os conflitos podem aumentar a chance de serem resolvidos, por meio de um processo de mediação operacionalizado por um mediador capacitado e que domine técnicas das mais diversas áreas do conhecimento.

Palavras-Chave: Conflito; Mediação; Dialética Socrática; Hannah Arendt.

 

  1. INTRODUÇÃO

O conflito pertence à realidade das sociedades. Desde que dois seres humanos estejam em algum tipo de relação, há uma grande possibilidade de seus interesses pessoais colidirem. É possível assumir que, mesmo estando sozinha, uma pessoa possa estar em conflito. Dessa maneira, a pesquisa acadêmica de meios de resolução de conflitos é valorosa à medida que reduzem custos financeiros, sociais, psíquicos, dentre outros.

 O papel do mediador de conflitos vem ganhando em importância e notoriedade nos Estados Unidos da América, na Europa e também no Brasil. No entanto, o referencial teórico sobre o instituto da Mediação é ainda muito concentrado em saberes jurídicos e da área de psicologia, com pouca pesquisa e produção acadêmica sobre como o conhecimento filosófico poderia complementar e trazer novas perspectivas para o papel do mediador de conflitos. Daí surgiu o interesse por esse artigo.

A questão a ser trabalhada aqui é a dialética socrática e sua dimensão ética como tentativa de fundamentação teórica do trabalho do mediador de conflitos.

A Universidade de São Paulo – USP publicou um minucioso relatório no ano de 2019 com o título: “Mediação e conciliação avaliadas empiricamente”. Nessa recente pesquisa, podem-se observar em seu referencial teórico várias definições do que é conflito, do que é mediação, mas não há referências no que diz respeito à dimensão ética como tentativa de fundamentação teórica do trabalho do mediador de conflitos.

Bobbio, Matteuci e Pasquino (1986, p. 34) definem que “o conflito é uma forma de interação entre indi­víduos, grupos, organizações e coletividades que implica choques para o acesso e distribuição de recursos escassos”.

Também se encontra na literatura a qualificação dos conflitos em suas perspectivas positivas e negativas (MARTINELLI, 2002). Para ROJOT (1991), o conflito está relacionado a uma situação que pode ser frustrante, podendo assumir uma conotação construtiva ou destrutiva dependendo de como for encaminhado.

Ao longo do processo de mediação, o mediador ouve atentamente todos os lados para perceber as inquietações apresentadas por cada um, procura identificar interesses, prioridades, vontades, no intuito de buscar uma solução colaborativa (MARTINELLI; ALMEIDA, 1998). Isso quer dizer que, na mediação, as partes precisam por si só e voluntariamente almejar um acordo, sem a interferência direta do mediador. (SILVA; SPENGLER, 2013).

Para Martinelli (2002), numa mediação, o papel do mediador é ajudar na comunicação mais efetiva entre os mediados, porém ele não deve por si só decidir qual será a solução para o impasse. O mediador tem o papel de ajudar a “parir” o melhor acordo em consenso.

A contribuição a ser oferecida aqui é apresentar argumentos convincentes a favor da dialética socrática e sua dimensão ética como tentativa de fundamentação teórica do trabalho do mediador de conflitos. Muito do que fundamenta a mediação de conflitos em seu referencial teórico são as premissas de que o mediador deve ser neutro e buscar um acordo consensual. É como se o mediador fosse um “parteiro” da solução, do acordo, mas sem impor uma solução.

Este artigo é também uma defesa de uma relação ‘ganha-ganha’, na qual para que haja um vencedor não há a necessidade de haver um perdedor. O mediador como “profissão” ainda carece de uma formação mais consistente e abrangente, devido aos desafios que lhe são impostos a cada conflito trabalhado. Defende-se a relevância de uma pesquisa que ajude a municiar esse profissional com um embasamento mais filosófico, por meio do estudo da dialética socrática, em especial a visão e a análise arendtianas de Sócrates.

Por fim, pode-se defender a relevância dessa publicação quando se pensa na crescente opção por parte da Justiça Brasileira por processos de mediação. A situação fiscal do país e dos entes federativos está bastante delicada, e o acúmulo de processos judiciais, que tornam a justiça ineficiente, pode ser reduzido de maneira bastante relevante por meio do instituto da mediação judicial. No entanto, há a necessidade de que sejam formados bons mediadores a fim de que a mediação seja um caminho confiável e sustentável para a solução de conflitos. A pesquisa é relevante para a sociedade brasileira atual.

  1. DESENVOLVIMENTO

Uma das análises da dialética socrática mais importantes em termos de epistemologia, busca pelo conhecimento, é aquela encontrada no diálogo denominado Teeteto. Conforme PLATÃO (2017):

Sócrates: Se, depois dessa experiência, no futuro te dispuseres a tentar conceber outros pensamentos, Teeteto, e realmente os conceba, estarás grávido de melhores pensamentos do que esses por causa da presente investigação; e se permaneceres estéril, te mostrarás menos duro e mais afável com teus companheiros, pois estarás munido da sabedoria de não pensar que sabes aquilo que não sabes. Isso e nada mais do que isso minha arte é capaz de executar. Tampouco conheço quaisquer das coisas que outros homens conhecem, os grandes e inspirados homens do presente e do passado. Entretanto, essa arte tanto minha mãe quanto eu a recebemos do deus – ela a favor das mulheres, eu a favor dos homens jovens e de bom nascimento, e a favor de todos que exibem beleza física e moral. (PLATÃO, Teeteto, 210 c-d).

A leitura e análise da obra de Hannah Arendt, com foco na interpretação arendtiana do diálogo (dialegesthai) do pensamento para o qual Sócrates convida seus concidadãos pode nos ajudar nessa busca.

Aqui, cabe uma análise inicial do texto que foi um dos principais motivadores deste artigo, qual seja, “A dignidade da política” (2002). Nesta obra, segundo Hannah Arendt:

Embora seja mais do que provável que Sócrates tenha sido o primeiro a usar de forma sistemática a dialegesthai (discutir algo até o fim com alguém), ele provavelmente não a considerou o oposto ou mesmo a contrapartida da persuasão, e certamente não opôs os resultados de sua dialética à doxa, à opinião. Para Sócrates, como para seus concidadãos, a doxa era a formulação em fala daquilo que dokei moi, daquilo que me parece. (ARENDT, Hannah, A dignidade da política, 96).

Esse trecho da obra foi um disparador para a ideia aqui contida. Pessoas em disputa, em conflito, enxergam os fatos de uma maneira muito própria, muito pessoal. A grande dificuldade de se chegar a um consenso, a um acordo, dá-se justamente pela constatação de que os mediandos enxergam o mundo de uma maneira muito particular, ou seja, podemos assumir que “o mundo se abre de modo diferente para cada homem” (ARENDT, 2002).

Há sim casos de fantasia subjetiva e arbitrariedade, assim como a crença em algo de absoluto e válido para todos, mas na grande maioria das vezes pode-se considerar que a doxa de cada mediando na prática compreende o mundo na forma específica que ele se abre para cada pessoa conforme a posição que ocupa nele.

No entanto, conforme ARENDT (2002):

…a propriedade do mundo de ser ‘o mesmo’, o seu caráter comum (koinon, como diziam os gregos, qualidade de ser comum a todos), ou ‘objetividade’ (como diríamos do ponto de vista subjetivo da filosofia moderna), reside no fato de que o mesmo mundo se abre para todos e que a despeito de todas as diferenças entre os homens e suas posições no mundo – e consequentemente de suas doxai (opiniões) -, ‘tanto você quanto eu somos humanos’ (ARENDT, Hannah, A dignidade da política, 97).

Aqui surge a possibilidade do acordo, da negociação, do consenso. Nessa linha de raciocínio, o artigo toma relevância sob o prisma filosófico da dialética socrática, que o próprio Sócrates chamava de maiêutica – a arte da obstetrícia.

Como ARENDT (2002) nos lembra, essa dialética não gera a verdade a partir da destruição da doxa (opinião), mas sim revela a doxa em sua própria verdade. Para ela, Sócrates tentou tornar amigos os cidadãos de Atenas, ou seja:

O elemento político, na amizade, reside no fato de que, no verdadeiro diálogo, cada um dos amigos pode compreender a verdade inerente à opinião do outro. Mais do que o seu amigo como pessoa, um amigo compreende como e em que articulação específica o mundo comum aparece para o outro que, como pessoa, será sempre desigual ou diferente. Esse tipo de compreensão – em que se vê o mundo (como se diz hoje um tanto trivialmente) do ponto de vista do outro – é o tipo de insight político por excelência. (ARENDT, Hannah, A dignidade da política, 99).

Naturalmente, não se espera que pessoas em conflito se enxerguem como amigos, no entanto, a ideia relevante aqui é a consciência do “ver o mundo do ponto de vista do outro”. A dialética socrática pode ajudar no desenvolvimento dessa consciência, haja vista que os processos de mediação envolvem pessoas que muitas vezes estão abaladas emocionalmente e se acham os ‘donos da razão’. Em um processo de mediação, existem encontros particulares entre o mediador e uma das partes para conversas mais íntimas, confidenciais, e esse seria um momento oportuno para que o mediador, utilizando-se de uma maiêutica socrática, procurasse parir o doxa do mediando e, aos poucos, gerar nele a compreensão de como e em que articulação específica o mundo comum aparece para o outro mediando que, como pessoa, será sempre desigual ou diferente.

A partir da compreensão desse mundo comum pode surgir a possibilidade de um acordo, consensual, gerando uma relação ‘ganha-ganha’ naquela situação de conflito. Para ARENDT (2002):

Se tal compreensão – e a ação por ela inspirada – tivesse que acontecer sem a ajuda do estadista, então o pré-requisito seria o de que cada cidadão teria que ser suficientemente articulado para mostrar sua opinião em sua veracidade, e, por conseguinte, compreender seus concidadãos. Sócrates parece ter acreditado que a função política do filósofo era ajudar a estabelecer esse tipo de mundo comum, construído sobre a compreensão da amizade, em que nenhum governo é necessário. (ARENDT, Hannah, A dignidade da política, 100).

A hipótese aqui é a de que a função política do mediador de conflitos seja a mesma que aquela que Sócrates acreditava ser a do filósofo: ajudar a estabelecer um mundo comum, os pontos de interseção, construído não sobre a compreensão da amizade, mas sobre a compreensão de que somos seres racionais e que podemos negociar situações de conflito e chegar a um acordo sem a necessidade de um árbitro ou juiz (que seria o equivalente ao governo mencionado no final da passagem acima).

Por fim, importante destacar a questão da verdade absoluta nessa interpretação arendtiana. Para ela:

A verdade absoluta, que seria a mesma para todos os homens, e portanto, não se relacionaria com a existência de cada homem, dela sendo independente, não pode existir para os mortais. O importante para os mortais é tornar a doxa verdadeira, é ver em cada doxa a verdade, e falar de tal maneira que a verdade da opinião de um homem revele-se para si e para os outros. (ARENDT, Hannah, A dignidade da política, 100).

  1. CONCLUSÃO

O entendimento de que a verdade absoluta não pode existir para os mortais é uma hipótese crucial para o sucesso de uma mediação de conflito. Normalmente, os as pessoas envolvidas em algum tipo de conflito acreditam estar do lado da verdade, que ela é a única que está com a razão, dificultando o estabelecimento de uma aproximação de interesses comuns e a construção de um acordo.

Compreender que o mundo se abre de maneira única para cada ser humano torna essa relação entre mediandos mais flexível. No entanto, para que um mínimo de confiança seja reestabelecido entre as partes, é indispensável que cada um fale de tal maneira que a verdade da sua opinião seja revelada para si e para a outra parte.

É na recomposição de uma relação de confiança mútua que os conflitos podem aumentar a chance de serem resolvidos, por meio de um processo de mediação operacionalizado por um mediador capacitado e que domine técnicas das mais diversas áreas do conhecimento. Grandes desafios exigem grandes esforços e grandes conhecimentos.

Por isso, acredita-se aqui que a dialética socrática e sua dimensão ética como tentativa de fundamentação teórica do trabalho do mediador de conflitos é um tema de grande relevância para a sociedade brasileira e, por que não dizer, para a humanidade.

  1. REFERÊNCIAS

ARENDT, Hannah. A dignidade da política. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

BARRETT, J. T; BARRETT, J. P. A history of alternative dispute resolution: the story of a political, social, and cultural movement. San Francisco: Jossey-Bass, 2004.

BOBBIO, N.; MATTEUCI, N.; PASQUINO, G. Dicionário de política. 2. ed. Brasília: UNB, 1986.

CLEARY, P. J. The negotiation handbook. New York: M. E. Sharpe, 2001.

HODGSON, J. Thinking on your feet in negotiations. Londres: Pitman, 1996.

MARTINELLI, D. P.; ALMEIDA, A. P. Negociação e solução de conflitos: do impasse ao ganha-ganha através do melhor estilo. São Paulo: Atlas, 1998.

MARTINELLI, D. P. Negociação empresarial: enfoque sistêmico e visão estratégica. Barueri: Manole, 2002.

MARTINELLI, D. P.; VENTURA, C. A. A., MACHADO, J. R. Negociação Internacional. São Paulo: Atlas, 2004.

PLATÃO. Teeteto. Trad. Adriana Manuela Nogueira e Marcelo Boeri. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.

ROJOT, J. Negotiation: from theory to practice. Hong Kong: Macmillan Academic and Professional, 1991.

SILVA, C. P. H.; SPENGLER, F. M. Mediação, conciliação e arbitragem como métodos alternativos na solução de conflitos para uma justiça célere e eficaz. Revista Jovens Pesquisadores, Santa Cruz do Sul, v. 3, nº 1, p. 128-143, 2013.

USP. Mediação e Conciliação avaliadas empiricamente. Relatório Analítico Propositivo, Brasília, 2019.

Palavras Chaves

Conflito; Mediação; Dialética Socrática; Hannah Arendt.