A EQUIPARAÇÃO DA HOMOTRANSFOBIA AO RACISMO: CRIMINALIZAÇÃO DE CONDUTA POR RACIOCÍNIO JURÍDICO

Resumo

Este ensaio busca realizar breve análise sobre a argumentação levantada pelos autores do mandado de injunção n. 4733 e da ação direta de inconstitucionalidade por omissão n. 26, processos estes que acabaram por fazer com que o Supremo Tribunal Federal se manifestasse sobre a criminalização da homotransfobia, notadamente no sentido de equipará-la à prática de racismo. Sem se propor a esgotar as diversas variáveis da decisão judicial em questão, o texto intenciona demonstrar como o resultado do julgamento se deu em razão de um exercício de raciocínio jurídico a partir de precedente da própria Corte, não havendo ultrapassagem de suas atribuições constitucionais ou de suas funções típicas republicanas.

Artigo

A EQUIPARAÇÃO DA HOMOTRANSFOBIA AO RACISMO: CRIMINALIZAÇÃO DE CONDUTA POR RACIOCÍNIO JURÍDICO

 

 Bernardo Camargo Burlamaqui[1]

 

RESUMO

 Este ensaio busca realizar breve análise sobre a argumentação levantada pelos autores do mandado de injunção n. 4733 e da ação direta de inconstitucionalidade por omissão n. 26, processos estes que acabaram por fazer com que o Supremo Tribunal Federal se manifestasse sobre a criminalização da homotransfobia, notadamente no sentido de equipará-la à prática de racismo. Sem se propor a esgotar as diversas variáveis da decisão judicial em questão, o texto intenciona demonstrar como o resultado do julgamento se deu em razão de um exercício de raciocínio jurídico a partir de precedente da própria Corte, não havendo ultrapassagem de suas atribuições constitucionais ou de suas funções típicas republicanas.

PALAVRAS-CHAVE: Criminalização; Homotransfobia; Supremo Tribunal Federal.

  1. INTRODUÇÃO

 

A Constituição de 1988 consagra como direito fundamental a não discriminação, de modo que grupos historicamente minorizados passaram a dotar de maior liberdade, proporcionada por uma proteção constitucional, ao menos no que se refere ao cenário normativo prescritivo. Condutas discriminatórias, incompatíveis com o projeto de redemocratização da República, passaram, assim, a ser tuteladas, inclusive penalmente, pelo Estado, para que os grupos que tradicionalmente se constituíam como alvo de discriminação pudessem ter seus direitos assegurados.

Ocorre que o dever de proteção imposto ao Estado não se estendia à diversidade de orientação sexual e identidade de gênero. A população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, trangêneros e transexuais (LGBT), mesmo se caracterizando como grupo social discriminado, não teve, no Poder Público, um aliado. Ao menos não de início.

Nesse sentido, foram protocolados distintos processos no âmbito do Supremo Tribunal Federal, a saber, o mandado de injunção (MI) n. 4733 e a ação direta de inconstitucionalidade por omissão (ADO) n. 26. As duas ações se assemelhavam quanto a seu principal pedido: o de reconhecer, com base em próprio entendimento do Tribunal, que a discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero, denominada de homotransfobia, constitui-se como uma forma de racismo, devendo, portanto, ser coibida por norma penal.

O julgamento conjunto das ações suscitou severos debates na comunidade jurídica, uma vez que se trata de questão complexa que envolve diversos direitos fundamentais contemplados pelo texto constitucional. Assim, este texto busca, ainda que modestamente, contribuir para a compreensão da decisão exarada pelo STF, demonstrando que o resultado do julgamento se baseou, fundamentalmente, em exercício de raciocínio jurídico baseado em precedente da própria Corte.

Antes disso, porém, tratar-se-á, brevemente, de outras questões que envolveram questionamentos à atuação da jurisdição constitucional, como a omissão estatal frente ao dever constitucional de proteção à população LGBT, pressuposto ao ajuizamento das ações. O que se busca é investigar, por meio de panorama de atuação do Estado, se este se manteve constantemente omisso frente à discriminação existente.

Em seguida, serão traçados paralelos entre as ferramentas processuais do mandado de injunção e da ação direta de inconstitucionalidade por omissão, para que se comprove que tais vias foram adequadamente selecionadas para levar a questão ao Supremo Tribunal Federal.

Após, serão enfrentados questionamentos relativos à liberdade religiosa e ao papel do direito penal, que foram levantados à ocasião do julgamento das ações. O que se tem como principal diretriz, nesse sentido, é demonstrar que, decidindo favoravelmente à demanda autoral de criminalização da homotransfobia, o Supremo não extrapolou sua atribuição constitucional, não tendo sido violados, assim, o princípio da livre manifestação religiosa ou da legalidade penal.

Por fim, e para que se comprove que o STF atuou apenas nos limites a ele impostos pela Constituição, será constatada a razão de decidir do caso ora investigado, que teve seu deslinde amparado por julgamento anterior da própria Corte. O que se pretende atestar, com isso, é que a decisão judicial que teve como consequência a criminalização da homotransfobia foi apenas resultado de consistente raciocínio silogístico, uma vez que apenas fez equiparar a discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero ao racismo.

 

  1. A TUTELA ESTATAL REFERENTE À HOMOTRANSFOBIA

Apesar de a Constituição ter instituído, em 1988, uma nova ordem democrática baseada na garantia dos direitos de todos os cidadãos brasileiros, o processo de elaboração e implementação de políticas públicas ligadas ao combate à homofobia e à promoção dos direitos humanos da população LGBT passou a ter espaço apenas após os anos 2000[2].

E ainda depois de 2002, quando o Programa Nacional de Direitos Humanos 2 (PNDH2) foi divulgado, poucas eram as ações e os projetos que tinham como objetivo principal o de assegurar direitos à população LGBT[3]. Os direitos dos homosseuxuais passaram a ser, então, tutelados, mas de maneira precária e deficiente, por não se constatar uma mobilização nacional, institucional e estruturada com essa finalidade.

As políticas públicas, ainda incipientes, mostravam-se desarticuladas entre si, principalmente por não haver um programa federal que otimizasse as medidas já existentes em âmbito estadual. O cenário começou a mudar apenas nos anos que se seguiram, com iniciativas voltadas a diversos direitos[4].

E mesmo com a criação de diversas iniciativas voltados à população afetada pela homotransfobia,

ações e programas esboçados pelo Governo Federal – e também pelos governos estaduais e municipais – parecem marcados pela fragilidade institucional e por deficiências estruturais, tendo em vista: a) ausência de respaldo jurídico que assegure sua existência como políticas de Estado, livres das incertezas decorrentes das mudanças na conjuntura política, da homofobia institucional e das pressões homofóbicas de grupos religiosos fundamentalistas; b) dificuldades de implantação de modelo de gestão que viabilize a atuação conjunta, transversal e intersetorial, de órgãos dos governos federal, estaduais e municipais, contando com a parceria de grupos organizados da sociedade civil; c) carência de previsão orçamentária específica, materializada no Plano Plurianual (PPA), na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e na Lei Orçamentária Anual (LOA); e d) reduzido número de servidoras públicas especializadas, integrantes do quadro permanente de técnicas dos governos, responsáveis por sua formulação, implementação, monitoramento e avaliação.[5]

            Depara-se, assim, com um cenário de políticas completamente insuficientes e desamparadas pela estrutura institucional estatal, demonstrando-se, mais uma vez, a carência de legislação federal que garanta, explicitamente, direitos e liberdades civis para a população LGBT, fazendo com que lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transgêneros e transexuais tenham de pleitear medidas alternativas, mesmo que parciais e de limitado alcance, junto a gestores públicos sensíveis às suas demandas[6].

Como não há muitas políticas públicas em matéria de direitos humanos com foco na população LGBT, e as que são colocadas em prática se mostram bastante precárias, não há, naturalmente, dados governamentais sobre crimes de homotransfobia. Diante da ausência de uma estrutura especializada, o que se percebe, por consequência, é a deficiência na produção de informações relativas às necessidades instrinsecamente ligadas à cidadania apresentadas por lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transgêneros e transexuais.

            O que ocorre é que, apesar da ausência de dados, que se mantém atual, o Brasil é apontado, em diversas pesquisas, como um dos países com índice mais elevado de crimes resultantes da homotransfobia. A questão é que a análise é feita a partir de dados não oficiais, uma vez que o Estado permanece inerte até no que se refere à coleta de informações[7].

Desde o início da década de 1980, movimentos sociais LGBTs (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Travestis e Transgêneros) no Brasil, em iniciativa pioneira do Grupo Gay da Bahia, realizam o levantamento de notícias relacionadas a homicídios cometidos contra a população LGBTs, no sentido de embasar estatísticas não‐oficiais sobre homofobia no Brasil. Estabeleceu‐se, pois, uma série histórica de dados que permite comparar, se não o número real de assassinatos de caráter homofóbico no Brasil, pelo menos o volume de notícias relacionadas a este tipo de crime na mídia brasileira.[8]

            Diversos são os estudos realizados por organizações não governamentais que indicam que variados homicídios são praticados com requinte de crueldade[9] em virtude da orientação sexual ou da identidade de gênero da vítima. E mesmo com imensa quantidade de pesquisas não oficiais que alcançam um denominador comum, o Estado Brasileiro se exime da responsabilidade de coletar esse tipo de dado, deixando de mapear a verdadeira situação sobre tais crimes de ódio.

            Partindo-se, então, de um cenário em que o Estado não se esforça para formular e implementar políticas públicas direcionadas e nem sequer se preocupa em realizar um diagnóstico sobre o descumprimento de direitos da população LGBT, já poderia se dizer que é latente a omissão estatal quanto às manifestações de homotransfobia no Brasil.

Como se isso não bastasse, o Estado deixou, mais uma vez, de atuar em relação à discriminação homotransfóbica no âmbito legislativo. Em 2001, a Deputada Federal Iara Bernardi (PT/SP) apresentou o Projeto de Lei n. 5003 na Câmara dos Deputados, conhecido como PL da Homofobia, que tinha como objetivo estabelecer sanções a práticas discriminatórias em virtude da orientação sexual[10].

O Projeto, apresentado em regime de urgência, foi encaminhado ao Senado Federal, onde ganhou o número 277[11], após ter sido aprovado na Câmara. Entretanto, devido à alta resistência de alguns setores políticos, em especial à oposição de parlamentares comprometidos com os interesses de grupos religiosos[12], o projeto foi deixado de lado, sem ter sido devidamente discutido, o que acabou com que fosse arquivado, oito anos após sua propositura, ao fim da legislatura.

Não é exagero, portanto, afirmar que existe uma evidente omissão estatal em relação à discriminação em virtude de orientação sexual ou identidade de gênero, principalmente quanto aos crimes em sua esteira praticados. A homotransfobia não era tutelada pelo Estado na figura do Poder Executivo, que não se empenhava em promover políticas públicas dirigidas à população LGBT, e na figura do Poder Legislativo, que se furtou a discutir sobre projeto de criminalização que viu sua tramitação encerrada sem sequer ter sido votado.

Assim, a questão enxerga-se tutelada apenas pelo Poder Judiciário, único espaço em que os movimentos LGBT encontram algumas de suas vitórias.

Em 2011, ao julgarem, em conjunto, a ADI 4227 e a ADPF n. 132, os Ministros do STF decidiram, por unanimidade, reconhecer a união estável homoafetiva. Em 2018, foi decidido, pelo Plenário da mesma Corte, no âmbito da ADI n. 4275, que os transexuais e transgêneros podem mudar seu gênero e seu nome do registro civil, independentemente de realização de procedimento cirúrgico de redesignação.

Verificando que os únicos direitos assegurados à população LGBT são efeitos de decisões judiciais, percebe-se como é precária a proteção estatal face à discriminação em virtude da orientação sexual ou da identidade de gênero. Entretanto, diante da omissão estatal anteriormente observada, só restou o recurso ao Poder Judiciário para que a homotransfobia pudesse ser criminalizada.

 

  1. AS VIAS ADEQUADAS DO MANDADO DE INJUNÇÃO E DA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE POR OMISSÃO

Acionando o Poder Judiciário, a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros (ABGLT) impetrou, em 2012, o mandado de injunção n. 4733, haja vista a inexistência de lei que coibisse a prática de atos homotransfóbicos. Seguindo o mesmo caminho, o Partido Popular Socialista ajuizou ação direta de inconstitucionalidade por omissão n. 26, diante da omissão do Estado em fazer cumprir seu dever de garantia dos direitos à população LGBT.

Os processos, em amarrada síntese, buscavam que fosse reconhecido que a homofobia e a transfobia se encaixam no conceito constitucional de racismo, devendo ser compreendidas como discriminações a se combater. Nesse sentido, e como consequência, também sustentavam que deveria ser declarada mora inconstitucional do Congresso Nacional no dever de editar lei incriminadora da conduta homotransfóbica, em especial no que se refere à violência física, à prática de homicídios e ao discurso de ódio[13][14].

Ainda que os dois processos pareçam idênticos, guarda-se pequenas distinções entre eles, sobretudo abstratamente. O mandado de injunção é remédio destinado a defender direitos, especialmente os sociais, que não possuem proteção normativa específica[15]. Sua principal finalidade é tornar eficaz um direito constitucionalmente previsto que não se observa na realidade fática pela ausência legislativa.

O MI é, desta maneira, o típico instrumento que permite o uso analógico de outra lei à situação em concreto, para que se possibilite a adequada fruição do direito questionado. Em sua análise, cabe ao Poder Judiciário (i) constatar se há direito constitucionalmente consagrado; (ii) se esse direito tem eficácia inobservada pela inexistência de lei que a torne possível; e, sendo este o caso, (iii) declarar que se passe a aplicar, para a situação demandada, diploma legal já existente, comumente por exercício de analogia, para que o direito desprotegido passe a poder ser cumprido.

Ocorre que, com o aprofundamento das bases constitucionais de 1988, compreende-se que a lei não se faz necessária apenas para criar direito subjetivo, como a antiga doutrina do mandado de injunção sugeria. Assim, o remédio também cabe para que sejam efetivadas prerrogativas ao exercício da cidadania e das liberdades civis.

A partir da ampliação do seu âmbito de atuação, voltou-se, esse Instituto, para a proteção da Carta Magna como um todo, sendo o instrumento por meio do qual se exigirá a observância por parte do Governo, das normas programáticas, dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania.[16]

A ação direta de inconstitucionalidade por omissão, a seu turno, possui maior alcance. Como requisito fundamental a seu ajuizamento, não é necessário que haja uma omissão legislativa absoluta. A omissão legislativa parcial, quando caracterizadora de situação normativa insuficiente ou deficiente, também justifica a propositura desta classe de ação[17].

Não se mostra como condição necessária, neste caso, o interesse de agir de indivíduos específicos, bastando-se a verificação de uma necessidade social a que a matéria sobre a qual recai a omissão seja regulada.

No caso de julgamento ADO, cabe ao Supremo Tribunal Federal, após atestada a omissão estatal, determinar que seja cientificado o Poder da República competente à edição de ato normativo que assegure o direito ora desprotegido. Em vez de tomar a frente, decidindo que norma será aplicada à questão, o STF deve fazer com que o respectivo órgão competente atue como imposto pela Constituição, podendo, por certo, inovar quanto a técnicas de decisão ou estabelecimento de prazo de cumprimento das medidas indicadas[18].

            O fato é que se faz facilmente verificável que, no caso da criminalização da homotransfobia como proteção à discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero, tanto o MI como a ADO se mostram vias adequadas de impulso à esfera judicial. Diante da omissão legislativa (neste caso, absoluta), seria necessário se observar, quanto à ADO, até que ponto existe uma demora inconstitucional por parte do Congresso Nacional e, no tocante ao MI, se há possibilidade de aplicação de norma já existente, por analogia.

Nesse aspecto, as duas condições se mostram devidamente satisfeitas. Relativamente à mora do Congresso, tem-se que ela se faz evidente pelo já relatado fato de que projeto de lei referente à questão esteve parado durante oito anos no Senado Federal, tendo sua discussão adiada, devendo ser arquivado sequer sendo possível sua votação. Assim, ainda que constitucionalmente previsto, o direito à não discriminação de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, trangêneros e transexuais não se mostrava efetivamente viável na realidade prática.

            Quanto à possível aplicação de lei já existente, o próprio pedido das ações se fazia claro nesse sentido, já que se demandava que fosse declarado que a homotransfobia se enquadra no conceito ontológico, atribuído pelo próprio STF, ao entendimento constitucional de racismo.

Portanto, o Supremo poderia, diante do caso avaliado, e atendendo a um dos pedidos subsidiariamente formulados, reconhecer que a homotransfobia se constitui como uma espécie de racismo, devendo ser regulada pelas normas já editadas nesse sentido, ou, alternativamente, considera-la como forma de discriminação independente, ligada à orientação sexual ou à identidade de gênero, devendo ter sua criminalização positivada por atuação do poder competente (Poder Legislativo).

            Dessa maneira, e estando corretas as vias eleitas para levar à demanda ao Tribunal, o que seus Ministros fizeram foi assentar que a homotransfobia deve ser enfrentada como racismo a título conceitual, seguindo o próprio entendimento da Corte. Isto não ocorreu, entretanto, sem resistência argumentativa.

 

4.O PAPEL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, A LEGALIDADE PENAL E A LIBERDADE DE MANIFESTAÇÃO RELIGIOSA

A impetração do MI e o ajuizamento da ADO junto ao STF reacenderam antigas discussões e fizeram nascer novos debates, notadamente quanto à legalidade penal e à liberdade de manifestação religiosa. Os argumentos, em resumo, voltavam-se à impossibilidade de o Supremo Tribunal Federal tipificar uma conduta como criminosa, e à restrição à liberdade de expressão a líderes e representantes religiosos.

4.1 OS DEBATES SOBRE A RESERVA LEGAL E A ATUAÇÃO JUDICIAL

Relativamente à primeira questão, levantada por muitos criminalistas, há que se observar que se vive em um cenário em que o direito penal pauta as relações sociais. Este contexto pode até não ser o ideal, mas é o contexto que se vê na realidade. Por isso, considerando-se a recorrente crueldade dos crimes de ódio com que a homotransfobia se faz notar, defini-la como conduta criminosa seria especialmente simbólico ao grupo de potenciais vítimas, por denotar forma de reconhecimento social de comportamento que não é aceito por parte do Estado.

Não se tem a ingênua crença de que o direito penal é a solução de todos os problemas. Sabe-se que não necessariamente a tipificação de conduta faz com que ela seja extinta da sociedade. Nesse sentido, o próprio ex-Deputado Federal Jean Wyllis propõe medidas alternativas às penas tradicionalmente impostas pelo sistema criminal[19].

Entretanto, ainda que o direito penal não encerre as práticas das quais se ocupa, contribui para que elas diminuam, dá a oportunidade de a vítima buscar as instituições oficiais para registrar o fato e possibilita que os acontecimentos sejam catalogados com mais facilidade. A criminalização, portanto, pode não ser a solução, mas não deixa de ser instrumento protetivo.

Para alguns criminalistas, o fato de o Poder Judiciário estar legislando, ao criar tipificação de crime, estaria legitimando o Supremo Tribunal Federal, em especial, a atuar fora de sua esfera de atuação atribuída pela Constituição, o que poderia gerar problemas futuros, por se abrir uma perspectiva de autoritarismo democrático, já que, para estes, o STF estaria extrapolando suas funções típicas republicanas.

Os de concepção minimalista objetavam, ainda, que o direito penal só deve ser utilizado como ultima ratio do sistema, devendo-se obedecer os princípios da reserva legal e da legalidade penal, como se não houvesse, no sistema jurídico brasileiro, imposição à criminalização de conduta discriminatória (neste caso, por orientação sexual e identidade de gênero).

Ocorre que, quanto à proteção das liberdades individuais da população LGBT, “além do comando constitucional no sentido do dever do legislador em proteger os direitos fundamentais, ainda que com o uso de normas penais, há também o dever que o Brasil adquiriu ao se submeter a organismos internacionais como a ONU e a OEA”[20]. Assim, havendo “omissão objetiva, clara e que impõe solução urgente por parte do Estado brasileiro”[21] diante de obrigação constitucional e por comprometimento perante a comunidade internacional, não há que se falar em reserva legal, caindo por terra, assim, a sustentação de que a criminalização da homotransfobia deve ser, exclusivamente, realizada em sede legislativa, já que o dever normativo de proteção (hoje, ineficiente) existe, estipulado por documentos internos e internacionais.

Deve-se atentar, também, ao fato de que as atitudes discriminatórias contra indivíduos são tuteladas pelo texto constitucional, que, em seu respectivo dispositivo (art. 5º, XLI[22]) determina a repressão por parte do Estado, por meio da utilização do direito penal, inclusive, demonstrando-se evidente que “qualquer conduta discriminatória que seja motivada pela orientação sexual merece a reprimenda por parte do Estado”[23].

Dessa maneira, levando-se em consideração a existência de normas constitucionais impositivas ao Poder Legislativo, o que se verifica é que, diante de sua atestada omissão, “a obrigação de utilizar-se do arcabouço jurídico-penal para criminalizar condutas discriminatórias contra a minoria, cuja orientação sexual é diversa, e contra a identidade de gênero”[24] deve ser impulsionada pelo Poder Judiciário, de modo que não se faz violado o princípio da legalidade penal, sobretudo porque o Supremo não estaria, como se alega, legislando.

Em um mundo ideal, entende-se que a saída mais adequada seja a votação de um Projeto de Lei precedido por audiências públicas e que represente os anseios da sociedade. Isto, com relação a todas as matérias, não apenas as penais. Mas em um mundo marcado pela omissão do Legislativo, cabe ao Judiciário indicar a saída a ser seguida. E, por mais que o entendimento jurisprudencial assentado no MI n. 4733 e na ADO n. 26 seja inadequado na visão de alguns, ele não é inconstitucional.

4.2 A LIBERDADE RELIGIOSA E O DISCURSO DE ÓDIO

            O artigo 20 da Lei nº 7.716, de 1989 prevê que “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”[25] deve ser considerado crime. Segundo a decisão do Supremo, deve ser entendido que, nesse rol, também se abriga a proteção por discriminação em virtude de orientação sexual ou identidade de gênero. Do contrário, estaríamos diante de uma hierarquização de violações da mesma natureza, e de uma não superação de sensos comuns equivocados[26].

            O ponto levantado pelos críticos religiosos reside exatamente neste dispositivo. Por não estar expressamente prevista a homotransfobia, a decisão do STF estaria restringindo a liberdade de expressão em sua manifestação ligada à liberdade religiosa, direito este constitucionalmente garantido, uma vez que discursos e interpretações de fé poderiam ser compreendidos como crime.

A criminalização da homostransfobia, no entanto, não se refere às concepções religiosas sobre o que se entende como homossexualidade[27]. Os representantes de diversos matizes

poderão continuar defendendo que a homossexualidade é ‘pecado’ e que, eventualmente, é conduta que se desvia das suas crenças. Entrementes, a liberdade religiosa não abrange a atribuição à homossexualidade de questões que não estão ligadas à religião, tal como dizer que os homossexuais são pedófilos. É preciso situarmos o que é e quais são os limites da liberdade de expressão e da liberdade religiosa.[28]

A discussão que ligava o pensamento moral religioso à discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero teve força quando da possibilidade de aprovação de um Estatuto da Diversidade Sexual, capitaneado pela Senadora Marta Suplicy (PT/SP), no âmbito do Projeto de Lei 134/2018, tendo ganhado novo corpo com o julgamento no Supremo.

O fato é que, antes de a criminalização da homotransfobia se dar, efetivamente, grupos religiosos já eram protegidos pela Constituição e por normas infraconstitucionais. O que o STF constatou, apenas, foi que o respeito à liberdade religiosa não tem como consequência a ausência de proteção de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, trangêneros e transexuais.

Nesse aspecto, o cenário internacional lança luz sobre o fato de que diplomas trasnacionais “sobre direitos humanos e civis preocupam-se, igualmente, tanto com o respeito à liberdade religiosa quanto à orientação sexual dos indivíduos”[29]. Tanto é assim que inúmeros são os países em que a criminalização da homotransfobia é positivada, sem qualquer prejuízo à tutela da liberdade religiosa[30].

A República reformulada em 1988, após o período da redemocratização, consagrou de uma vez por todas o Estado Laico, em vigor desde 1890[31], mantendo, desta vez como cláusula pétrea, a vedação a diferenças no tratamento dos cidadãos por motivações ligadas a crenças ou opiniões filosóficas ou religiosas, e conferindo à população o pleno direito fundamental à manifestação religiosa, o que se sustentava desde 1891[32].

Ainda que a proteção contra a perseguição e a intolerância religiosa seja antiga em nosso sistema, não é com base neste princípio que se pode cogitar uma não proteção contra a perseguição e a intolerância provocadas por motivações conexas à orientação sexual ou à identidade de gênero.

Pelo contrário, a trajetória constitucional brasileira, sobretudo a partir da própria interpretação da Constituição Cidadã, faz demonstrada a finalidade de se proteger todas as liberdades, de modo que tanto a liberdade religiosa como a liberdade sexual

devem ser protegidas – e são – pela Constituição da República, não havendo, nesse sentido, direito maior ou menor de qualquer dos grupos. Em outras palavras, tanto permite e protege a lei brasileira qualquer expressão homossexual como permite e protege o direito à liberdade de consciência, da qual irradia a liberdade religiosa.[33]

O direito à liberdade de expressão, que ampara o direito à liberdade religiosa, apesar de ser basilar ao Estado Democrático de Direito, não é absoluto, devendo, assim, serem coibidos os seus abusos. A ofensa a direitos alheios, quando categorizada como discurso de ódio[34], não deve ser permitida. Nesse sentido, “a liberdade religiosa não deve representar salvo conduto para violações de direitos constitucionais igualmente conferidos aos demais indivíduos.”[35].

A argumentação que sustenta que a liberdade religiosa, e, portanto, a liberdade de expressão, são restringidas pela decisão do Supremo que criminaliza a homostranfobia não tem amparo, em especial porque a proteção contra discriminação não combate a diferença de opiniões, apenas o ódio e a incitação à violência.[36]

A liberdade religiosa não serve como autorização a manifestações de ataque contra a honra pessoal de qualquer pessoa, principalmente se esta pessoa for integrante de grupo minorizado ou historicamente oprimido, o que caracterizaria situação de discurso de ódio. Este é o entendimento pacificado em quase todas as Cortes Constitucionais do planeta, atualmente. E até aquelas que não adotam este posicionamento ponderam, eventualmente, ao se debruçarem sobre casos mais difíceis[37].

Em síntese, são dois os pontos essenciais a se compreender. O primeiro é o de que tanto a liberdade religiosa como a não discriminação não só merecem proteção como realmente são protegidas, inclusive constitucionalmente. O segundo é o de que nenhum direito deve se colocar sobre outro, demonstrando-se que a liberdade de expressão, que tem como efeitos democráticos a liberdade de manifestação de crença e de culto, não deve ser preponderante diante de discurso de ódio ou incitação à violência.

Assim, é fundamental que uma nação verdadeiramente igualitária e que preze pelo direito à liberdade garanta, normativamente, que os cidadãos sejam livres, independentemente dos grupos sociais a que integrem. Seja religioso, seja homossexual, todos devem enxergar cumpridos seus direitos, dos padres e pastores às lésbicas e travestis.

 

  1. HOMOTRANSFOBIA, RACISMO, E O RACIONÍNIO JURÍDICO

 

O pedido principal do MI n. 4733 e da ADO n. 26 tinha como objetivo o de que o Supremo Tribunal Federal equiparasse a conduta de homotransfobia ao crime de racismo. Não se demandava que a prática de atos homotransfóbicos fosse individual e independentemente criminalizada. O que se requeria, em verdade, era que fosse reconhecido que o conceito ontológico-constitucional de racismo inclui a homotransfobia. Para isso, foi fundamental a análise precedente do próprio STF, o julgamento do Habeas Corpus n. 82.424[38].

Na ocasião de análise do HC, conhecido como Caso Ellwanger, o Supremo teve de se debruçar sobre condenação por crime de racismo em virtude de publicação e distribuição de material antissemita. O impetrante do remédio sustentava que, levando-se em conta o critério biológico, os judeus não deveriam ser considerados como uma raça, não devendo, portanto, a conduta praticada ser categorizada como crime de racismo, tendo que ser descartada sua imprescritibilidade típica[39].

Assim, o Tribunal, em sua maioria, acabou por se afastar da ideia de que existiriam, biologicamente, subdivisões raciais entre os seres humanos, fazendo com que as manifestas atitudes de antissemitismo não prescrevessem. Lançaram mão os Ministros, então, de um conceito constitucional de racismo como o resultado de um processo histórico político-social.

O que ocorre é que a Corte negou a existência de raças definidas pela genética ou pela biologia. Seria incompatível com os padrões impostos pela Constituição da República a ideia de que existem grupos biologicamente diferentes de indivíduos, já que este entendimento não se harmoniza com os princípios basilares do Estado Democrático de Direito, uma vez que poderia legitimar estigmas de apartação entre os cidadãos[40].

Deste modo, o STF não teve outro caminho a não ser o de construir uma definição jurídico-filosófica do que seria, constitucionalmente, o racismo. O Tribunal compreendeu se tratar de elemento complexo muito mais ligado à formação da sociedade do que a fatores biológicos, necessitando-se da análise de circunstâncias históricas, políticas e sociais.

Se o racismo não pode ser justificado por fundamentos biológicos, ele, no entanto, persiste como fenômeno social. É esse fenômeno social, e não a “raça”, o destinatário jurídico da repressão prevista pelo art. 5º, LXII, da Constituição de 1988, e sua correspondente legislação infraconstitucional. (…) o conteúdo jurídico do crime da prática do racismo tem o seu núcleo nas teorias e ideologias e na sua divulgação, que discriminam grupos e pessoas, a elas atribuindo as características de uma “raça” inferior.[41].

Restou consignado, desta maneira, que o crime de racismo é constatado exatamente quando se utiliza marcadores sociais que sigam em sentido contrário aos princípios nos quais se erige e se organiza o Estado Brasileiro, baseado na dignidade da pessoa humana, de modo que o Habeas Corpus teve sua ordem denegada ao paciente.

Tendo se assentado a jurisprudência no sentido de que o racismo “é um fenômeno social, que independe de um inexistente e impreciso conceito de ‘raças’”[42], para que a homotransfobia pudesse ser considerada como prática criminosa, bastaria que o Supremo reconhecesse que a população LGBT também é alvo de fenômeno social discriminatório.

Foi nesse sentido que, em sustentação oral perante o Plenário do STF, o advogado Paulo Iotti Vecchiati[43] argumentou que lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transgêneros e transexuais fazem parte de um grupo social minorizado, marcadamente marginalizado pelo grupo social dominante, o de cisgêneros e heterossexuais.

O fato é que, sendo o antissemitismo uma espécie de racismo, de acordo com uma acepção sociológica, não se baseia apenas no critério fenotípico para defini-lo. A ratio decidendi do HC n. 82.424 robustece a ideia de que o racismo se constitui como um dispositivo de poder com a finalidade de garantir privilégios sociais e estigmatizar o grupo dominado diante do dominante, sendo, portanto, “ideologia segregacionista que reproduz relações hierárquicas de poder”[44].

Nesse sentido, estar-se-ia seguindo um raciocínio jurídico básico, quase que puramente silogístico. Ora, se o racismo, em seu conceito ontológico-constitucional, constitui-se como fenômeno observado socialmente em que um grupo social faz-se acreditar superior em relação a outro, de acordo com precedente firmado pelo próprio Supremo, por que não considerar que a homotransfobia se enquadra neste conceito?

Importante ressaltar que, apesar de o termo homotransfobia se dissociar, morfologicamente, de outros utilizados para caracterizar opressões estruturais na sociedade, seu significado é semelhante à ideia de inferiorização de cidadãos específicos, notadamente os integrantes da população LGBT.

O termo homofobia, inobstante estar sedimentado e ser largamente utilizado tanto pelos leigos quanto por aqueles que estudam o tema (tendo por isso sido também adotado no presente estudo), sofre críticas (…) o termo corrente pode transmitir a falsa ideia de que o preconceito contra homossexuais pode ser mais bem compreendido como uma forma de psicopatologia, um tipo de fobia individualizada, como um medo ou aversão irracional. Em sentido oposto, o termo heterossexismo, mais aparentado com o machismo e o racismo, descreveria um sistema ideológico, sociocultural e institucional no qual a homossexualidade é apresentada como inferior à heterossexualidade, dando prevalência ao aspecto coletivo do preconceito em detrimento das ações individuais.[45]

É a partir desta compreensão que a decisão do Supremo quanto à criminalização da homotransfobia se faz melhor entender. Se o racismo é a inferiorização de um grupo político-social historicamente oprimido por outro grupo, que se julga superior e que, portanto, apresenta-se como dominante nos espaços de convivência da sociedade, a discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero se encontra no mesmo patamar da discriminação por raça.

Por consequência, já que as práticas discriminatórias em virtude de raça são coibidas por lei penal -o que decorre, inclusive, de mandamento constitucional-, também, e da mesma forma, as práticas discriminatórias em virtude de orientação sexual ou identidade de gênero devem ser coibidas. Caso contrário, como dito, estaríamos diante de uma hierarquização de violações a direitos fundamentais, o que evidentemente não é permitido pelo texto constitucional.

Não se trata, logo, de analogia in malam partem, como alguns podem argumentar. Em verdade, o que se verifica é a interpretação literal do artigo 20 da Lei nº 7.716, de 1989. Sendo a homotransfobia espécie de racismo –como é o antissemitismo-, ela deve ser entendida como criminalizada porque a própria lei assim o dispõe.

Fazendo extenso exercício de raciocínio jurídico, então, os Ministros do Supremo Tribunal Federal se colocaram, em maioria, favoravelmente à criminalização da homotransfobia, sobretudo por reconhecerem se tratar de espécie de racismo existente na sociedade brasileira.

 

  1. CONCLUSÕES

Historicamente, grupos sociais são postos à margem da sociedade por outros, dominantes. Isto ocorre com negros, índios, mulheres, e outras parcelas minorizadas que, com frequência, não só sofriam opressão social, como se encontravam desamparadas pelo sistema jurídico nacional.

A Constituição da República de 1988, escrita e aprovada no bojo de discussões de direitos humanos motivadas por um sentimento democrático, modificou, em boa parte, a situação de tantas pessoas que, anteriormente, se enxergavam esquecidas pelas instituições oficiais do Estado Brasileiro.

Ocorre que a população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, trangêneros e transexuais, mesmo após os anos 2000, não possuía seus direitos devidamente assegurados por documento legal. Deste modo, e diante de uma evidente ausência de políticas públicas voltadas a esta parcela de cidadãos, a discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero não encontrava barreira jurídica, ao menos não expressamente.

A denominada população LGBT, assim, viu-se obrigada a recorrer ao Poder Judiciário para que seus direitos, sobretudo à proteção contra discriminação, fossem efetivamente reconhecidos. Nessa esteira, por meio do Mandado de Injunção n. 4733 e da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão n. 26, pleiteou-se o que se convencionou a chamar de criminalização da homotransfobia.

Ambos os processos foram admitidos pelo Supremo Tribunal Federal, haja vista a inexistência de norma específica sobre a discriminação em questão, apesar de ser latente o dever constitucional de proteção e, por consequência, de regulação das condutas violadoras de tal direito. O julgamento, portanto, teve início junto ao STF, sem contudo, enfrentar resistência de determinados grupos político-sociais.

Entre os argumentos contrários a eventual decisão que se mostrasse favorável à criminalização de conduta homotransfóbica, verificavam-se o do princípio da reserva legal e o do direito à liberdade religiosa, ambos amplamente enfrentados pelos Ministros da Corte, que decidiu por atender aos pedidos autorais.

No que se refere à reserva legal e à legalidade penal, observa-se a atribuição constitucional concedida ao Supremo como Guardião da Constituição. Não há que se falar em ultrapassagem de suas típicas funções republicanas ao se considerar, em conjunto, o comando constitucional que prevê edição de norma voltada à proteção contra discriminação e a persistente omissão do Poder Legislativo em realizá-la.

Quanto à liberdade religiosa, por sua vez, deve-se atentar ao fato, já superado na doutrina e na jurisprudência brasileira, de que a liberdade de expressão e a liberdade de manifestação religiosa não são absolutas, uma vez que não alcançam o discurso de ódio, que muitas vezes atinge à população LGBT, que tem seu direito à liberdade da mesma forma amplamente reconhecido.

Em 2019, portanto, seguindo este mesmo raciocínio, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela criminalização da homotransfobia, apoiando-se, para tal, em raciocínio jurídico baseado em precedente da própria Corte. O conceito ontológico-constitucional de racismo estabelecido no famoso Caso Ellwanger foi, nesse sentido, fundamental à compreensão de que a homotransfobia, como o racismo, deve ser combatida, devendo aqueles que a praticam ser responsabilizados criminalmente.

A Corte recorreu, nesse sentido, a silogismo jurídico amparado por sua jurisprudência. Enquadrando-se a homotransfobia como prática racista, deve-se coibi-la, como tal, por norma penal, buscando que seja assegurado, por proteção normativa, o direito à não discriminação em virtude de orientação sexual ou identidade de gênero.

  1. REFERÊNCIAS

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[1]Bacharel em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ). Pesquisador do Observatório da Justiça Brasileira (OJB/UFRJ). Advogado inscrito nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil, seccional do Rio de Janeiro (OAB/RJ).

[2]MELLO, Luiz; BRITO, Walderes; MAROJA, Daniela. Políticas públicas para a população LGBT no Brasil: notas sobre alcances e possibilidades. Cadernos pagu, n. 39, 2012, p. 405.

[3] Ibidem, p. 407.

[4] Após a primeira eleição de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República, o Governo Federal passou a adotar diretrizes mais concretas quanto à promoção de políticas públicas voltadas à população LGBT. Nesse sentido, confira-se MELLO; BRITO; MAROJA. Op. Cit., p. 408-409.

[5] MELLO; BRITO; MAROJA. Op. Cit., p. 418.

[6] MELLO; BRITO; MAROJA. Op. Cit., p. 411.

[7] WENDT, Valquiria P. Cirolini. Os movimentos sociais dos homossexuais e a busca pela criminalização da homofobia: análise desde os dados estatísticos apontados pela mídia. In: Anais do 3º Congresso Internacional de Direito e Contemporaneidade: mídias e direitos da sociedade em rede. Santa Maria, RS, 2015, p. 1-2.

[8] Ibidem, p. 9.

[9] Crimes resultantes da homotransfobia costumam ser identificados, dentre outros elementos, pela violência sofrida pelas vítimas. Não é incomum, por exemplo, que cadáveres sejam encontrados com objetos fálicos inseridos em seu ânus.

[10]BRASIL. Projeto de Lei 5003, de 2001. Determina sanções às práticas discriminatórias em razão da orientação sexual das pessoas. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=31842>. Acesso em 12 ago. 2020.

[11] BRASIL. Projeto de Lei da Câmara n° 122, de 2006. Altera a Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, dá nova redação ao § 3º do art. 140 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, e ao art. 5º da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, e dá outras providências. Disponível em: < https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/79604>. Acesso em 12 ago. 2020.

[13] BRASIL. Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão n. 26. Relator: Ministro Celso de Mello. Brasília, 13 de junho de 2019. Disponível em: < http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4515053>. Acesso em: 13 ago. 2020.

[14] BRASIL. Mandado de Injunção n. 4733. Relator: Ministro Edson Fachin. Brasília, 13 de junho de 2019. Disponível em: < http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4239576>. Acesso em: 13 ago. 2020.

[15] OLIVEIRA, Herzeleide Maria Fernandes de. O mandado de injunção. Revista de Informação Legislativa, a. 25, n. 100, 1988, p. 52-53.

[16] Idem.

[17] VALE, André Rufino do. A ação direta de inconstitucionalidade por omissão na nova Lei nº 12.063/2009. Observatório da Jurisdição Constitucional: IDP, ano 2, 2008/200, p. 3.

[18] Neste caso, está-se falando precipuamente sobre eventual interpretação conforme a Constituição e sobre modulação de efeitos pela não nulidade normativa. Cf. VALE. Op. Cit. p. 5.

[19] Sobre debate acerca da eficácia do controle social formal para diminuição da homotransfobia como resultado da criminalização de suas manifestações, veja-se análise em que são apresentadas alternativas à lógica punitiva dominante, realizada a partir do projeto de no âmbito do Poder Legislativo: PATRIARCHA, Sara Daniela da Silva. A criminalização da homofobia à luz da criminologia crítica. Seara Jurídica, v. 2, n. 12, 2014, p. 181-229.

[20] SILVA, Diogo Bacha e; BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Necessidade de criminalizar a homofobia no Brasil: porvir democrático e inclusão das minorias. Revista da Faculdade de Direito – UFPR, v. 60, n. 2, 2015, p. 201.

[21] Idem.

[22] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.  Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 14 ago. 2020.

[23] SILVA; BAHIA. Op. Cit., p. 202.

[24] SILVA; BAHIA. Op. Cit., p. 202.

[25] BRASIL. ______. Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989. Define os crimes resultantes de raça ou de cor. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7716.htm>. Acesso em 14 ago. 2020.

[26] Os termos em destaque neste parágrafo são utilizados pelo Ministro Luís Roberto Barroso em seu voto na ADO n. 26. Cf. BRASIL. Op. Cit.

[27] A influência da Igreja no Estado se faz desde os tempos imperiais. A articulação entre os saberes religiosos e a prática e jurídica constantemente se fez com o esforço de produzir uma categoria estigmatizada de cidadãos, que seriam moralmente inferiores àqueles dotados da fé cristã. Cf. FREIRE, Lucas; CARDINALI, Daniel. O ódio atrás das grades: da construção social da discriminação por orientação sexual à criminalização da homofobia. Sexualidad, Salud y Sociedad – Revista Latinoamericana, n. 12, 2012, p. 40.

[28] SILVA; BAHIA. Op. Cit., p. 190.

[29] BOMFIM, Silvano Andrade do. Homossexualidade, direito e religião: da pena de morte à união estável. A criminalização da homofobia e seus reflexos na liberdade religiosa. Revista Brasileira de Direito Constitucional, n. 18, 2011, p. 92.

[30] BOMFIM. Op. Cit., p. 92.

[31] O Decreto n. 119-A, de 7 de janeiro de 1890, já falava na proibição de intervenção estatal nas questões de caráter religioso e no reconhecimento personalidade jurídicas às entidades religiosas.

[32] A Constituição da República de 1891 trazia, em seu texto, a possibilidade de os cidadãos exercerem pública e livremente seus cultos.

[33] BOMFIM. Op Cit, p. 93.

[34] Convém destacar que o discurso de ódio, no cenário brasileiro, é comumente configurado pelo que se chama de animus injuriandi, isto é, a intenção de ofender.

[35] BOMFIM. Op. Cit., p. 94.

[36] BOMFIM. Op. Cit., p. 94.

[37] A Suprema Corte dos Estados Unidos é, conhecidamente, a que mais decide favoravelmente à liberdade de expressão. Até seus Magistrados, entretanto, discutem, em algumas circunstâncias, sobre como o debate livre e aberto não pode ser sinônimo de licença para violento ataque verbal. A título de exemplo, vale leitura do voto do Justice Samuel A. Alito Jr no caso Snyder vs. Phelps.

[38] BRASIL. Habeas Corpus n. 82.424. Relator p. acórdão: Maurício Corrêa. Brasília, 17 de setembro de 2003. Disponível em: < http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2052452>. Acesso em: 13 ago. 2020.

[39] O art. 5º, XLII, da Constituição preceitua que o crime de racismo é imprescritível e inafiançável. BRASIL. Op. Cit.

[40] LAFER, Celso. Parecer. O Caso Ellwanger: anti-semitismo como crime da prática do racismo. Revista de Informaçao Legisativa, a. 41, n. 162, 2004, p. 53-90.

[41] Ibidem, p. 70.

[42] LAFER. Op. Cit., p. 79.

[43] Confira-se a sustentação disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ueFb3Egb3a8>.

[44] Idem.

[45] FREIRE; CARDINALI. Op. Cit., p. 50.

Palavras Chaves

Criminalização; Homotransfobia; Supremo Tribunal Federal.