A República dos Militares – Floriano e o florianismo

Artigo

A República dos Militares

– Floriano e o florianismo –

Lincoln de Abreu Penna

Considerações Iniciais

 Se a República nasceu de uma contradição (McCANN, 2007), posto que o golpe que interrompeu o regime monárquico partiu de forças responsáveis pela ordem institucional; a sustentação da República proclamada foi ao longo do tempo objeto de zelo absoluto por parte desses subversivos do 15 de novembro de 1889. E para manterem-se fieis ao novo regime não titubearam em interpretar os termos constitucionais sempre que possível para reafirmarem-se como seus guardiões, em diversas situações em que os rumos da política nacional ameaçavam a estabilidade da República. Não é o caso de tutela, mas de comunhão absoluta entre a corporação e o rebento que ela tem embalado, como algo que lhe pertence.

Os militares brasileiros abraçaram a República tão logo o movimento republicano passou a ganhar notoriedade e simpatia ainda que em ambientes restritos. No exército essa adesão ao regime rapidamente se espraiou e assumiu uma dimensão irresistível, especialmente junto à jovem oficialidade. De modo que quando se associa a corporação ao novo regime nada mais justo que tal relação orgânica seja feita. O que importa é saber de que maneira o republicanismo passou a ser cultivado na caserna e como ele prosperou ao longo do tempo. Registros nesse sentido não faltam, haja vista as várias efemérides vinculadas a datas simbólicas e aos militares que exerceram a presidência da República , reafirmando o caráter do regime

 Mais do que inventariar a trajetória da adesão aos princípios republicanos, me proponho a destacar três hipóteses explicativas dessa vinculação entre os militares e o ideário republicano. Creio que assim procedendo estaria implícito um apanhado histórico de modo a contemplar o liame que uniu a caserna à República. São essas as hipóteses sugeridas para o desenvolvimento dessa reflexão: o desprezo dos militares em relação às oligarquias por ocasião do golpe republicano de 1889; a simpatia em relação ao modelo republicano francês, unitário e não federalista, como o norte-americano; e, por consequência destas duas atitudes, o presidencialismo forte, expresso nos governos militares de Deodoro e Floriano.

 A notável empatia com a filosofia Positivista, a ponto de transformá-la em ponto de apoio para as incursões na vida política do País, despertaria o que poderíamos chamar de brasilidade, no sentido de “afinidade ou de amor pelo Brasil” (HOUAISS, 2009). Este vocábulo possui a faculdade de vocacionar o cidadão para o exercício do patriotismo, algo que se no mundo civil e intelectualizado não chega a expressar um valor significativo, porém, no que se refere à caserna possui um sentido muito forte. Este se faz ao traduzir a função militar dentro das Forças Armadas como elo fundamental entre seus componentes e o restante da população.

 É no intuito de dar alguma lógica explicativa ao papel desempenhado pelos militares, que me proponho a discorrer sobre o tema proposto. Mesmo tendo relação com o que existe na historiografia como resultante de reflexões e estudos sobre os militares, esse ensaio se propõe a sugerir que o envolvimento desses com a política não é algo extemporâneo. Ele decorre do empenho em tornar viável e consolidada a opção republicana. Daí, a importância que representou a figura do marechal Floriano Peixoto no contexto dessa afirmação da República e o legado por ele deixado junto à comunidade castrense. Assumir a paternidade do regime que foi fundado por eles e deles dependeu para se afirmar eis uma assertiva indiscutível, sobretudo quando “soberania e poder militar confundem-se, não podendo aquela existir sem este.”  Questionar quanto à maneira de encampar esse comprometimento é algo que depende da interpretação dos historiadores.

 Antes de desenvolver a argumentação em torno dessas hipóteses firmo aqui essa premissa: o regime republicano brasileiro obedece com maiores e menores intensidades a uma forte condução dos militares. Essa condução não necessita de sua presença ostensiva. Ela se faz à luz de uma intermitente vigilância ao agir interagindo os princípios republicanos  com os da corporação, desde os temposem que se proclamava a ideia do cidadão-soldado , tendência que mesmo aparentemente distante das lides do poder governamental buscou influir no âmbito das instituições políticas, tendo o seu contraponto na manifestação do soldado-cidadão, para tomar emprestados esses conceitos aplicados aos momentos de crises políticas que datam do período regencial até o fim do Segundo Reinado, de acordo com os seus primeiros protagonistas.

Com relação ao soldado-cidadão, este é um conceito de fundamental importância para a compreensão do comportamento da corporação militar. Assim como sua percepção na conjuntura que antecedeu à queda do regime monárquico permite que entendamos o ocorrido no que diz respeito ao comportamento dos militares na conjuntura que presidiu o golpe republicano. Muito embora seja enfatizada essa conduta por parte da chamada mocidade militar, o fato é que ela sempre encontrou com maior ou menor adesão as demais patentes da oficialidade, embora esta não tenha tido um protagonismo. Se considerarmos que a ideia de República não era popular às vésperas do golpe contra o regime monárquico e jamais ganhou grandes simpatias junto à população, o papel desempenhado pelos militares ganha ainda mais relevo, não obstante as várias percepções que se produziram ao avalia-lo.

Independente da pouca receptividade da República, cujo conhecimento de seu ideário era restrito, havia um sentimento de incerteza no ar. Os rumos do governo parlamentar não asseguravam muitas esperanças quanto ao futuro, e os militares compartilhavam dessa sensação. Era preciso traduzir essas esperanças em algo viável e duradouro.A premissa que ora se sustenta já tinha sido abordada em nossa historiografia (STEPAN, 1975), com base no argumento segundo o qual o recrutamento da oficialidade ocorreu nas camadas subalternas da sociedade e em parte significativa do meio rural. Logo, se passara a existir um projeto voltado para o progresso e a ordenação necessária para alcançar o desejo de prosperidade, esse projeto não demoraria muito a ser o instrumento para que se lograsse sua concretização. Ademais, dada essa origem, a devoção em relação ao País e às necessidades de melhoria das condições de vida da maioria da população elevou o compromisso desses militares ao ponto de assumirem as tarefas históricas com vistas à superação dessas dificuldades.

Para tal compreensão desse período de mudança institucional, o exercício concreto da existência prática do soldado-cidadão, era na verdade produto da educação integral positivista. É esta filosofia que prepararia a mocidade militar para o exercício da cidadania e para atuar com vistas à preparação de uma sociedade fundada nos preceitos caros ao positivismo. Era assim, por exemplo, que idealizava um de seus ideólogos, Benjamin Constant Botelho de Magalhães (LEMOS, 1997). Apesar de encontrar críticos que enxergavam problemas na associação entre o positivismo e o militarismo (ROMERO, 1895), a própria difusão do ideário de August Comte e Émile Littré sugere a força dessa filosofia no Brasil junto à academia militar e à intelectualidade.

 A suposição geradora da hipótese de uma certa originalidade dos militares brasileiros consiste na convicção de que ao contrário de grande parte das forças armadas dos países latino-americanos, no Brasil os militares não se constituíram em gendarmeria das classes dominantes. Antes, sempre tiveram uma forte desconfiança sobre o caráter patriótico daqueles que têm se constituído em elites dominantes. Oriundos do patronato escravocrata se caracterizaram pela defesa de seus privilégios e avessos a toda e qualquer mudança estrutural numa sociedade nacional que se constituiu marcada pela desigualdade social e, em conseqüência, pela exclusão de seu povo. No caso específico do exército nacional, seu recrutamento ocorreu fundamentalmente junto às camadas médias (SAES,1985), cuja ascensão social foi possível graças à crescente participação dos militares na vida política do País, consciente do que consideram ser seu o papel de guardião da nação.

 Não era apenas a visão divergente quanto à forma de organização política e institucional do regime republicano a razão dessa aversão aos grupos oligárquicos, mas o desprezo pelas práticas odientas e típicas dos escravocratas o que movia tal comportamento por parte dos militares. A ideia de nação não podia comportar a total rejeição da maioria absoluta do povo trabalhador e responsável pela edificação de um país com todas as possibilidades de progredir no concerto das nações. Muito contribuiu para essa visão de cidadão fardado a percepção da inércia, de desprezo pela sorte do povo e do País. O desprezo pelo trabalho por parte das classes dominantes de cultura política escravocrata, muito contribuiu para esse distanciamento entre os civis bem nascidos e a caserna repleta de contingentes egressos das camadas médias urbanas.

 O repúdio ao escravagismo ganhou força junto aos camaradas de farda e se multiplicou ainda mais durante a denominada Guerra do Paraguai, quando brancos e negros fardados se irmanaram nos combates de um confronto que expôs ainda mais a perversidade e o descompromisso das elites dominantes em relação ao seu povo. Essa sucessão de desencontros criou um contencioso que se somou ao soldo dos soldados que foram mantidos inalterados nos últimos anos do Império. Este, por seu turno, vivia a angústia de ter um imperador doente e com a perspectiva de deixar o trono para um eventual e nada simpático Terceiro Reinado.

 Assim, como assinalava um atento observador dos acontecimentos (OTTONI, 1890), entre as causas que levaram a derrocada do regime monárquico não há dúvida de que o contencioso militar versus o Segundo Reinado foi decisivo. Como fora, e ele aponta de forma original à época, a questão democrática, que teria passado ao largo dos grandes temas e aspirações dos que combatiam a morosa condução de um reinado sem a sua figura mais destacada, o imperador Pedro II. Assim, no conjunto dos espólios da guerra com o Paraguai, o lento evoluir do processo abolicionista, se somar a isso, muito embora de forma diferenciada, a presença dos militares. A implantação da República estava anunciada, o que acabou sendo oportunisticamente aproveitado pelos grandes fazendeiros do chamado “14 de Maio”, como assinalou Rui Barbosa, que aderiram ao novo regime e irão buscar ajustá-lo às suas conveniências.

 Foi assim formada e consolidada a visão antioligárquica dos militares, os primeiros a enxergarem o caráter antipatriótico das classes dominantes que os tinham como parte de seus propósitos patrimonialistas. Essa sensação de formalmente pertencerem ao estamento dominante e pôr-se ao serviço dessa gente os deixavam incomodados. Afinal, repudiavam pertencerem a mesma visão de mundo dos empolados colarinhos duros distanciados do povo e de seu futuro. Este incômodo que os afastavam dos grandes proprietários fortaleceu-se de tal maneira que a parceria com a cartolagem levaria a constantes enfrentamentos, mesmo tendo em comum, por razões tão diversas, a República, que surgia em meio a essa contradição de origem.

 Os princípios fundamentais do ideário republicano, tais como o da austeridade nos gastos públicos, a transparência das gestões de governos representativos da vontade popular e o estímulo ao exercício da cidadania, em condições, portanto de desenvolver uma sociedade participativa e por isso mesmo democrática; eram caros à mocidade militar. E assim ganhou amplitude corporativa a partir do momento em que a alta oficialidade abraça essas recomendações inerentes ao regime realmente fundado na ideia de República. Coesos em torno desses princípios valorativos a distinguir por comparação às monarquias, os militares levaram tais princípios às últimas conseqüências, tanto no proselitismo das casernas quanto nos debates que se travaram na Constituinte tão logo se proclamou a República. Conquanto na Constituinte a influência dos militares fosse diminuta, não há como deixar de registrar a tentativa de promoção do republicanismo junto ao povo.

 No que se refere à simpatia pelo presidencialismo e a República unitária, ao estilo do modelo francês, os militares assim se identificaram em razão do próprio lema positivista da Ordem e do Progresso, já retirado o Amor, primeiro elemento da trilogia original, cujo sentido correspondia no da fraternidade. Na compreensão da caserna o progresso, como sugere o lema, depende de uma estrutura de ordem e esta só se alcança mediante a centralização de decisões. Logo, decorre como via de conseqüência da execução desse postulado a necessidade de uma organização que tenha condições de enfeixar o poder decisório num centro representado pelo executivo no qual o presidente da República seria de fato o primeiro dos cidadãos.

 Durante os tempos do movimento republicano, ainda decorrente do Abolicionismo, os cadetes da Escola Militar já se manifestavam a favor das concepções do presidencialismo forte, capaz de conduzir os destinos da República tão sonhada com os do País que acalentavam. E esse ideal alimentado pela mocidade militar, nunca é demais repetir, não encontrava amparo e espaço para os chamados de casacas, isto é, para os grupos oligárquicos. A estes restariam o desprezo, senão o afugento dos que os viam como seres antipatrióticos e, portanto, indesejáveis. O governo provisório convocou uma assembléia constituinte e a concepção de República aprovada foi a República federativa. Ela atendia aos interesses das oligarquias regionais, representativos do coronelismo e mandonismo locais e, com isso, foi abortado o projeto emanado pelos militares.

 Surgiam a partir daí os embates que marcariam toda a existência da Primeira República, na qual os militares tiveram protagonismo e conheceram vitórias e derrotas, mas jamais deixaram de estar presentes no processo político brasileiro. Aprenderam a lidar com forças com as quais tinham dificuldades de conviver, e foram forçados pelas circunstâncias a desenvolverem o que poderíamos chamar de consenso mínimo , o qual, ao longo do tempo não abandonaram, mesmo em momentos de maior necessidade de decisão ao atropelo das regras do jogo.

 A afirmação do regime passaria a ser uma primeira tarefa a ser enfrentada. Afinal, se houvera um aceno das forças conservadoras favoráveis à República, ela não fora de modo algum em razão de afinidades ideológicas. Prevaleceu o caráter pragmático, uma vez que a não indenização aos proprietários de plantéis de escravos levou tais forças a aderirem aos republicanos, como já foi assinalado. Agora cabia aos militares, fundamentalmente representados pela mocidade dos cadetes, fazer valer a força do ideário que nutriam, independentemente dos rumos traçados pelos constituintes. Era o embate entre legitimidade e legalidade constitucional.

 Assim, federalista a República a contragosto foi conduzida por militares no primeiro governo republicano. Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, eleitos pelos constituintes que promulgaram a primeira constituição do novo regime, enfrentaram dificuldades em face do duelo entre a vontade de impor o ideário da República e os interesses dos neo-rrepublicanos. Afinal, como membros de uma corporação que tinha afinidade com a ideia da ditadura positivista, cujo sentido era o de fazer do mandatário o primeiro dos cidadãos, agiram, ambos, convencidos de que a República era a própria encarnação da pátria e eles, os militares, seus defensores perpétuos.

 Logo, e independentemente das injunções de ordem política, comuns aos embates democráticos já existentes no antigo regime, era realmente presumível que os militares não teriam dias fáceis. A disposição do primeiro presidente da República deixara surpresos os representantes alinhados, quase todos, aos interesses de suas oligarquias de origem. A elas deviam muito mais continência do que a um regime a rigor apenas cercado das formalidades, mas sem o dom de pôr em prática os seus princípios doutrinários. Testaram os novos governantes e tiveram de experimentar a força dissuasiva que foi prontamente acionada pela caserna e seus aliados de ocasião. Senão vejamos.

O surgimento do Florianismo.

 Em paralelo ao jogo político no qual era preciso a afirmação dos militares como parceiros e responsáveis pelo bom desempenho da República, os primeiros anos do regime foram decisivos para a corporação militar. Não fosse o fato de terem tido os primeiros governos sob sua condução e tutela, os militares se enfrentariam entre si, porquanto havia a disputa de suas forças, a Armada (marinha) e o exército, ambas buscando protagonizar os caminhos do novo regime. A oportunidade desse confronto apareceu quando da renúncia de Deodoro, o que abriu brecha para que naquele ambiente ainda instável pudesse prosperar o interesse hegemônico do almirantado, que se considerava pouco representado na configuração política da jovem República.

 A renúncia forçada de Deodoro e a ascensão de Floriano, deu margem ao questionamento da posse do vice. Tinha início o debate sobre a questão da interpretação do texto constitucional e em conseqüência a continuidade de Floriano no governo, uma vez que pelo artigo 42 da recém promulgada Constituição republicana não decorrendo mais de metade do mandato presidencial tornar-se-ia necessária a convocação de novas eleições. Motivo suficiente para que parte da oficialidade da marinha se mostrasse interessada no desfecho previsto na carta magna. E um de seus mais destacados representantes, o contra-almirante Custódio José de Mello, inflado pelos seus camaradas logo se pôs à luta para que se fizesse honrar esse dispositivo constitucional e, com isso, aproveitasse a ocasião para fazer deslanchar um nervoso embate entre as duas forças armadas.

 A Revolta da Armada ocorreu entre fins de 1893 e o primeiro trimestre de 1894. Por trás do questionamento da ilegalidade constitucional da permanência de Floriano no governo se encontrava o tal contencioso entre exército e marinha decorrente da disputa pela hegemonia militar.Muito embora essa situação não tenha sido em momento algum explicitada entre as partes, ela se mostrava clara no empenho de Custódio de Mello, que não agia isoladamente.A par dessa questão o regime vivia um momento de instabilidade institucional, logo um momento de grave dificuldade para a consolidação do golpe republicano. E essa conjuntura adversa foi enfrentada pelo governo do vice-presidente em exercício, como gostava de dizer Floriano. Para superá-la, o novo governo precisava contar com a solidariedade de sua arma, o exército, e de forças que o ajudassem a garantir seu governo.

 Dentre as questões que concomitantemente conformaria os primeiros anos do regime republicano se encontrava a contradição expressa pelo fato real, a República tendo à frente o exército a dar-lhe suporte e a Constituição federativa a conferir aos entes que a compunham um papel relevante. E nesse mosaico federativo os grupos regionais oligárquicos procuravam interferir na política de Estado. Daí a ação enérgica de Deodoro de intervir fortemente no poder legislativo e assumir uma centralização de decisões ao arrepio dos termos constitucionais, que lhe valeram sua saída do governo. Caberia ao seu sucessor o enfrentamento político dessa e de outras questões.

 Na visão de Floriano, a expressar por sinal uma corrente despojada de poderes e bem enraizada na cultura ingênua das coisas da política, havia um problema a ser equacionado. De um lado, sem dúvida o acatamento aos termos da Constituição, de outro a legitimidade do regime. Nos termos da Lei maior não haveria contradição, mas na prática as circunstâncias do processo político acabariam por prevalecer. Era preciso dar prioridade à existência do regime que padecia de popularidade e sofria as pressões de grupos restauradores (JANOTTI, 1986) a acossá-lo aproveitando-se dos questionamentos sobre a permanência de Floriano no governo. Se a legalidade deveria ser exercida pela aplicação dos termos constitucionais; a legitimidade passava pelo argumento das armas em face de uma realidade adversa.

 Nesse panorama de incertezas a oligarquia paulista precisava garantir o regime ao qual aderira e assegurar a realização das eleições de 1894, fundamentais para que suas demandas fossem levadas a cabo por um governo senão totalmente vinculado aos seus interesses, pelo menos parceiro nesse sistema que facilitava as influências de agrupamentos dominantes. Para tanto, era necessário dar suporte a Floriano permitindo a conclusão de seu governo em condições aceitáveis para as forças que o apoiavam. Configurava-se nesse momento uma aliança heterogênea como deve acontecer com as alianças entre desiguais. Duas coisas, no entanto, deveriam ser atacadas: a argumentação político-jurídica da legalidade do governo de Floriano e a mais franca liberdade de ação dos agrupamentos tidos como jacobinos.

 A fundamentação fornecida pelos próceres de São Paulo para justificar a legalidade da continuidade de Floriano no governo teve como autor Campos Sales, que viria a suceder mais tarde a Prudente de Moraes Barros. Escorado na tradição familiar – seu irmão, Alberto Sales, era adepto da República e autor do Catecismo republicano -, o prócer paulista interpretou o artigo 42 como se ele se aplicasse exclusivamente aos presidentes eleitos em votação popular . Logo, não se aplicaria no caso de Floriano cuja eleição se deu juntamente com Deodoro por decisão dos constituintes de 1891. Surgia nesse momento o florianismo de governo, que lado a lado com os florianistas de rua, populares e adeptos do marechal Floriano, viriam a constituir a base de apoio tão necessária ao Consolidador da República (PENNA, 1997).

 O denominado jacobinismo carioca tem peculiaridades, como de resto todas as manifestações derivadas da matriz jacobina (VOVELLE, 2000) oriunda dos ecos da Revolução Francesa. No caso brasileiro, o que marca suas características tem a ver com a emergência de uma camada média urbana desprovida de inserção política, reativa quanto à desventura de sua existência e crédula de que o regime republicano viria projetá-la para horizontes seguros. Parte desse contingente social engrossou a Escola Militar. Buscava na caserna espaço e meio de garantir uma influência nos destinos do País. E com o advento da República, sua sorte parecia mudar em meio à disposição de não permitir que os velhos representantes daquela democracia coroada mantivessem seus eternos privilégios. Contestaram a ordem imperial para sustentar a nova ordem da qual passaram a ser defensores e promotores.

 Esse segmento social contou com a simpatia e eventual parceria de uma classe subalterna de trabalhadores autônomos cuja aparição no cenário político decorria de um processo de urbanização relativamente rápido. As demandas de moradia, emprego, saúde e segurança, fizeram do Rio do último quarto do século XIX uma candidata à metrópole. Acresce a isso a leva de libertos pela Abolição da escravatura a se acomodar nos morros da cidade, que desde então tem sido objeto de confinamento, jamais de integração social, de modo a intensificar o preconceito racial e social (MATTOS, 2000). Um quarto de século depois da Guerra do Paraguai, soldados e civis, brancos, pardos e negros se juntam de modo a formar a comunidade dos novos redutos de pobres e miseráveis entregues à sua própria sorte na capital do País.

 Em paralelo a tudo isso pairava a ausência completa de posturas (CHAGAS, 1897) na capital transformada em centro político dos tempos de afirmação da República. Situação típica de cidades que surgem de mudanças relativamente repentinas, tanto no âmbito político e institucional quanto no plano econômico e social, o Rio do final de século era uma vitrine a conjugar o moderno e o tradicional, a velha ordem com a nova ordem ainda que meramente formal e a disposição de conciliar extremos em nome de uma ordem, de modo a promover um progresso insano, difuso e desigualmente cruel para os emergentes convencidos de que chegara sua vez.

 Se as ideias circulavam com vagar no andar de cima da sociedade brasileira, o ímpeto voluntarista de forças sociais até então inexistentes no panorama político, pelo menos em termos de expressão para assustar os bens situados na estratificação, surgiria com certo vigor. Canalizá-la só se aparecesse uma conjuntura que favorecesse esse descontentamento contra a Ordem. E essa conjuntura acabou surgindo em razão de desavenças surgida com a República. A essas forças difusas, desorganizadas de início e dispostas ao enfrentamento faltava uma referência a quem pudessem mirar seus desalentados sonhos, alguém que com eles de alguma forma se identificasse. Esse alguém foi o marechal Floriano Peixoto. À sua revelia ele se tornou o elo que incrementaria combustível nas arruaças pelo espaço público do Rio. Nascia o florianismo de rua, popular e de atitude francamente antioligárquica.

 Esse fenômeno do chamado florianismo surge durante a Revolta da Armada (QUEIROZ, 1986), mas desde a eleição promovida pelos constituintes já era visível uma forte empatia do vice-presidente eleito com os extratos sociais mais despojados de direitos e oportunidades. Saudado com entusiasmo na ocasião em que era empossado ganhou rapidamente a simpatia quando assumiu o governo e em meio à Revolta atuou sempre na defesa dos mais humildes. E isso aconteceu, por exemplo, quandoda brusca elevação dos preços dos gêneros de primeira necessidade no mercado de varejo. Diante da carestia provocada por comerciantes, Floriano saiu em defesa da população mais carente e agiu com energia contra os especuladores, geralmente portugueses, o que desencadeou e radicalizou a lusofonia. (PEIXOTO, 1940; RIBEIRO, 1990)

 A truculência no trato com a oposição ao longo do governo de Floriano tem sido destacada por inúmeros autores desses primeiros tempos da República. Há, no entanto, que observar duas circunstâncias geralmente esquecidas pelos analistas. A primeira consiste na transição dos regimes mediada por um golpe, que como sói acontecer não consulta a sociedade civil, entendida àquela época como os grupos sociais mais influentes e minimamente organizados. Sendo assim, a legitimidade das ações suplantava o zelo pelos procedimentos legais. E, em segundo lugar, Floriano enfrentava duas forças que se voltaram contra a continuidade de seu mandato de presidente em exercício: os que pretendiam manter velhas prerrogativas e com isso eliminar qualquer possibilidade de se implantar um regime verdadeiramente da coisa pública, e a parcela considerável da marinha empenhada em restabelecer a posição que ostentava no antigo regime, contra as quais Floriano teve de fazer valer sua força e seu prestígio.

 Essa leitura do quadro no qual se encontrava o governo naqueles tensos anos do início da última década do século XIX se não explica o surgimento do fenômeno florianista pelo menos o situa como algo mais ou menos previsível. Disso tira-se a conclusão de que os segmentos populares quando premidos por situações de terrível adversidade sabem identificar quem está ao seu lado, não através de gestos ou atitudes meramente formais.

 Ao encarnar a República naquele momento com todas as suas contradições, a começar pela capacidade de harmonizar os dois lados do florianismo, Floriano demonstrou que mais do que um soldado era um político. Trouxera para o cargo que ocupava duas experiências no campo da política. A primeira, muito longinquamente ocorreu quando ainda menino, na luta ensandecida entre lisos e cabeludos, confronto de oligarquias do qual seu tio e tutor, o coronel Vieira Peixoto participara nas Alagoas de meados do século XIX. O outro, sua breve passagem pelo governo de Mato Grosso como interventor designado para pôr ordem naquele Estado.

 A própria Guerra do Paraguai deu-lhe régua e compasso para se imiscuir na política. Mesmo enfrentando as tropas de Solano Lopez enaltecia a bravura e o apego do caudilho paraguaio em defesa de interesses de sua gente. Chegou a dizer num desabafo incontido, que era de uma figura dessas que o Brasil precisava. Quem sabe se esmerou em assumir com outras roupagens e objetivos o homem que tomara como referência? Não se sabe se essa admiração incomum, em se tratando de um adversário, teve influência ou não sobre Floriano a partir de então. O fato é que Floriano expressou sempre uma admiração por ato de coragem tendo ele mesmo protagonizado um, que marcou sua trajetória de cadete, quando acabou com a valentia de um capoeirista que aterrorizava os seus colegas de Escola Militar.  Foi assim que perdoou o sargento Silvino Honório de Macedo, que liderara um motim na Fortaleza de Santa Cruz contra o seu governo porque cumpria ordens superiores, mesmo sabendo que as forças rebeldes estavam com seus dias contados.

 A relação entre os florianismos e o jacobinismo carioca só pode ser concebida se entendermos que todas essas correntes de orientações ideológicas distintas tinham em comum o interesse em preservar o governo Floriano contra os que desejavam seu afastamento da presidência da República. Esse desejo acabou por produzir uma química política, uma vez que operando contra os seus opositores veio a fortalecer o mandato presidencial de maneira a fundar o presidencialismo forte de tipo bonapartista, aparentando estar, como o bonapartismo original, acima das instituições e das classes que o sustentavam. Ao marechal de ferro, expressão cunhada por Euclides da Cunha ,seguiram-se outros epítetos, tais como o consolidador da República, o marechal vermelho e o Robespierre brasileiro, além da figura da Esfinge também sugerida pelo mesmo autor de Os Sertões.

 Contudo, a imagem de Floriano Peixoto é a de ditador no conjunto majoritário da historiografia brasileira. Não é o caso de contestar ou reafirmar essa definição, até porque são fatos passíveis de interpretação, mas de revisitar as matrizes definidoras da avaliação histórica construída pelos seus contemporâneos. Elas se encontram em dois personagens muito próximos daqueles fatos ocorridos no governo do marechal, ou que com ele privaram mais de perto. Refiro-me a Eduardo Prado e Inocêncio Serzedello Correa. Foram, ambos, fundadores das duas matrizes interpretativas tanto do governo quanto do personagem tão controvertido que foi Floriano Peixoto.

 Em Fastos da Ditadura Militar no Brasil, Eduardo Prado discorre sobre a presença ostensiva dos militares nos assuntos políticos do país. Escrito em Paris, onde vivia, sob o pseudônimo de Frederico de S. e sem jamais assumir simpatias com amonarquia, a despeito de seu parentesco com o Barão de Iguape, Eduardo Prado inaugurou a vertente de uma historiografia republicana, através desse livro que foi um libelo contra a República, como salientou Octaciano Nogueira, em sua Apresentação da edição do livro em 2003. De suas páginas nascia a inevitável dualidade entre civis e militares situados frequentemente em posições opostas ao longo da República, de modo a ensejar uma esquemática interpretação de nossa história contemporânea.

 É curioso que Prado não menciona Floriano, apesar de na ocasião da derrubada do regime monárquico Floriano exercer o cargo de Ajudante-General, de grande relevância e importância estratégica, tal como a de ministro da guerra. Há, no entanto, razões para essa ausência. É que seu texto foi concluído em 1890, no instante em que transcorriam os trabalhos da Constituinte. O militarismo que enxerga se prende ao golpe de 15 de novembro de 1889, no que ele teve de mais impactante. Para os que simpatizam com as ideias por ele expressadas suas palavras tem um quê de premonição quanto à trajetória do regime que acompanhava de longe. Tece considerações sobre o “militarismo ditatorial”, menciona a ausência de duas condições “indispensáveis à vida normal dos governos”, a saber: “a liberdade para os cidadãos e a sanção popular para os atos do governo”.

 Ao contrário dessa visão segundo a qual o militarismo empolgou a República a ponto de conduzi-la ditatorialmente, de autoria de quem viveu apenas 41 anos, todavia, para acompanhar e assistir aos primeiros governos comandados por civis; surgiria uma tese a contrariar a de Prado, Serzedello Correa, talvez o principal ministro de Floriano não fosse o fato de ter assumido quatro ministérios em seu governo, e que rompe politicamente com o presidente a quem admirava, escreveria anos mais tarde o seu depoimento intitulado Páginas do Passado. Nele Serzedello Correa manifesta a convicção de que não há essa preeminência dos militares, tampouco um militarismo ditatorial. O que houve foi uma comunhão a integrar civis e militares. Jamais supremacia destes. Rigoroso quanto ao uso dos recursos públicos em sua sugestão foi criado o Tribunal de Contas da União. Era um apaixonado em administração e produziu um livro que revela o domínio dessa matéria (CORRÊA, 1909). Não obstante ter sido mantido preso no governo que serviu por razões de ordem política, já que discordou de quem tinha apreço pessoal, em momento algum se tornou um opositor ferrenho ao governo e em especial ao marechal Floriano.

 Nas memórias, Serzedello procurou desfazer a polaridade entre civis e militares, como se a República fosse um eterno embate entre essas duas entidades, a corporação fardada e os políticos a representarem supostamente as aspirações do mundo civil. Próximo da abordagem de Ottoni, Serzedello investe em sua análise por esse caminho a ressaltar a ausência de uma questão vital para o bom desempenho da República. Trata-se da democracia, pois sem ela a República não se tornaria algo novo e verdadeiramente inovador no panorama político nacional. Talvez essa questão tão enfaticamente sustentada por Serzedello o tenha afastado de Floriano, que embora comungando com elafoi instado a desprezá-la no exercício da presidência.

 Ao unificar na prática as duas vertentes do florianismo, a de governo e a de rua, Floriano demonstrou uma habilidade política pouco comum para quem se originava das fileiras militares. Ao contrário de seu conterrâneo Deodoro, mais duro e inflexível no trato das questões da faina política, Floriano demonstrou habilidade ao conceber uma ação efetiva no curso de seu governo. Agiu com a mesma determinação que seu antecessor na presidência, mas o fez com uma capacidade de negociação invulgar. Sabia das enormes discrepâncias entre os seus apoiadores, oriundos de mundos tão distintos e de interesses igualmente diversos. Por essa razão logrou concluir o seu mandato e mesmo após sua morte manteve o prestígio granjeado junto à opinião pública dando margem ao surgimento do primeiro movimento personalista centrado na figura de políticos de grande expressão no Brasil.

 Se os grupos oligárquicos paulistas juntamente com a mocidade militar e os radicais cariocas (FAUSTO, 1977) se integraram ao culto do marechal, numa expressão típica de aliança mais autêntica, a que reúne desiguais num mesmo barco de itinerário duvidoso àquela altura, para Floriano não pairavam dúvidas quanto à necessidade dessa coesão inédita. Era isso ou seu governo teria um fim antecipado a criar mais tensões e incertezas quanto ao futuro da República. Daí resultou a primazia da legitimidade sobre a legalidade. Buscou, assim, na legitimidade seu porto seguro, mas se não fosse possível não hesitaria, como não hesitou, em tomar as rédeas autoritárias em nome da sobrevivência do regime, ao qual não aderiu por acaso ou por conveniências corporativas. O fez por absoluta convicção.

 E seu compromisso com as vertentes que o sustentaram nos momentos mais difíceis de seu governo receberam em troca o reconhecimento de Floriano tão logo deixava o exercício da presidência. A vertente jacobina tentou golpear o rito de transmissão do cargo quando da cerimônia de posse de seu sucessor, Prudente de Moraes. A ideia desse grupamento, que contou com a simpatia dos mais radicais da caserna, era a de no momento adequado da transmissão de cargo exigir a permanência de Floriano num golpe arquitetado sem o seu consentimento. Ao tomar ciência desse movimento, Floriano imediatamente decidiu não comparecer ao ato de posse de Prudente, o que fez ruir por terra a ação golpista de um dos segmentos do florianismo. Honrou, com essa atitude, os compromissos com a ala da oligarquia paulista já que esta lhe tinha sido decisiva por ocasião do enfrentamento na Revolta da Armada.

 O legado de Floriano para os seus camaradas do exército não deve ser negligenciado e não tem sido. Afinal, quando assumiu os postos de comando da arma e, principalmente no cargo presidencial, Floriano fortaleceu o destacamento do exército em número de unidades, pessoal e armamentos de modo a suplantar a marinha até então possuidora de uma liderança nesses campos mencionados. Claro está que o enfrentamento entre ambas durante os episódios da Revolta da Armada acabou por ditar essa tendência que se tornou irreversível. O exército passaria a ser não apenas a maior força militar e agia como se guardião fosse da República a quem devia proteção, zelo e defesa de toda sorte, gerando com isso o advento de um cesarismo corporativo.

 Ademais, é preciso registrar que a gestão do marechal Floriano à frente do governo foi direcionada com vistas ao fortalecimento não só do exército, mas também do chefe de Estado e comandante das Forças Armadas, isto é, o presidente da República. E ele o fez consciente desse papel que assumira ao, por exemplo, dissolver o Conselho Supremo Militar de Justiça (CSMJ) e em seu lugar criar o Superior Tribunal Militar (STM). Na prática trocou um instrumento composto por apenas três juízes por outro que reunia quinze ministros e todos nomeados por ele. E em sua composição, a maioria de seus membros, oito, eram oriundos do exército cabendo à marinha somente quatro representantes e os outros três constituídos por juízes civis.

 No que se refere aos dois lados do florianismo, eles tomaram como era de se esperar rumos diferentes após o término do governo de seu mentor e em seguida à sua morte cerca de um ano após sua saída do governo. O florianismo de governo se desfez, pois era apenas e tão somente um agrupamento organizado para exercer um papel de mediador da transição ao governo, para um representante da oligarquia paulista na sucessão de Floriano. Uma vez realizada essa tarefa não havia razões para manter-se fiel a quem tão somente serviu de meio para a ascensão do grupo mais organizado da federação oligárquica que compunha a República. Muitos de seus membros passariam inclusive a censurar os atos e manifestações pró-Floriano, movidos pela convicção de que eram eles traidores do marechal de ferro.

 Quanto aos florianistas de rua, não só se mantiveram ativos politicamente como procuraram manter acesa a chama daquela liderança que eles consideravam a própria encarnação do regime republicano. Tentaram transferir ao seu sucessor o bastão de maneira a não dar margem a retrocessos. O lema prudentismo, como uma forma de atrair o novo titular da chefia do governo, não prosperou até porque as pressões de rua nas cercanias do Palácio do Catete provocaram verdadeiro pânico em Prudente e em todo os membros do seu governo, grande parte deles vindos de São Paulo. Morria a inglória busca de uma nova liderança que assumisse com vigor a lacuna deixada pelo marechal.

 A tática desse agrupamento dos radicais da República constituídos por membros das camadas médias urbanas e pela mocidade militar a buscarem o endosso de setores das classes subalternas era a de partir para uma oposição a um governo que desde cedo procurou se afastar da política de estilo mais acirrado para com os seus opositores. Prudente tinha chegado à conclusão de que a consolidação do regime estava terminada. Era preciso doravante dar início à pacificação, e esta consistia em reagrupar as classes dominantes em torno de um projeto cuja essência seria dar curso aos seus interesses, afastando os temores de tempos turbulentos derivados das pressões populares.

 Nessa nova conjuntura, além da desintegração do florianismo surgiam com mais nitidez as forças sociais que defendiam visões diferenciadas para um regime que se supõe ser de todos os cidadãos, e como tal deveria fazer valer o conjunto das demandas acumuladas, posto que já não era mais um regime de súditos. E essa percepção foi sendo pouco a pouco vislumbrada pelos florianistas de rua no instante em que partiram para a oposição mais acirrada, na qual a sensatez e a lógica do consenso mínimo adotada por Floriano não era mais possível, pois não existe bonapartismo sem Bonaparte, menos ainda cesarismo sem um César. A resultante dessa alternativa materializou-se no atentado a Prudente no Cais Pharoux, situado na Praça XV, quando da recepção das tropas vindas dos combates no interior da Bahia, por ocasião das campanhas de Canudos, o episódio mais trágico e perturbador da história do exército.

 A partir do atentado a Prudente, que vitimou mortalmente o seu ministro da guerra, general Carlos Bittencourt, o exército só reapareceria na cena política nas eleições de 1910, a primeira eleição competitiva da República, e mesmo assim em razão de um dos candidatos, Hermes da Fonseca assumir a sua identidade militar a conclamar uma suposta revolução contra as oligarquias através de um movimento denominado de Salvacionismo. E mais de dez anos depois quando eclodiu o ciclo das revoltas tenentistas da década de 1920. Ausentes, mas não distantes da arena política, os militares foram mais e mais se embrenhando na política. E nesse sentido se tornando, por vezes, cúmplices dos arranjos promovidos pela tão proclamada “classe política”. Todavia, nunca deixaram de monitorar os rumos da República, mesmo à distância, quando seus governos foram exercidos pelos civis.

 A questão que cabe colocar é se o florianismo provocou alguma mudança a ponto de eternizá-lo como uma espécie de consciência cívica de cunho social e político com alguma densidade histórica. Creio que sim, se considerarmos que a sua vertente popular estabeleceu pela vez primeira um vínculo entre os andares de cima com os de baixo de nossa estratificação social, isto é, fez aparecer os universos da grande política e o da pequena política  como contrapontos de uma ordem historicamente marcada pela exclusão dos representantes desse último universo, os sem assentos, nos postos de mando da política brasileira. Eles continuaram sem representação significativas na administração pública, mas não deixaram de se fazerem presentes desde então.

Se mérito houve no florianismo, endossado por Floriano, esteve no reconhecimento desses dois universos, cada qual com seus impulsos de origem. Os da elite dominante tendo que reconhecer a presença tolerante das classes subalternas, antes simplesmente ignorada como estorvo. E o dos oriundos do povo, cuja consciência ingênua de pleitear um lugar ao sol, capaz de externar seus legítimos desejos de participarem de um universo comum, o da cidadania, com seus direitos e deveres ganhou impulso e expressividade.

 Assim, a figura emblemática do sertanejo que presidia esse regime dos cidadãos deu força a essa comunidade afetiva (HALBWACHS, 2006) que se autodenominou de florianistas, e fez crescer essa empatia em relação a quem abriu com mão forte a porta de entrada da nova ordem. Dela resultaria cerca de um ano após a morte do marechal o Centro Cívico Floriano Peixoto, que funcionou ininterruptamente até mais recentemente, quando teve o seu alvará suspenso e suas atividades encerradas por não cumprimento de dispositivos legais junto à prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Durante um século, a memória do presidente foi sistematicamente evocada no coração da então capital da República, nesse Centro que se reunia à Rua Senhor dos Passos, cidade que hospedou como nenhuma outra a glorificação de Floriano. Basta registrar a Praça Floriano na Cinelândia, a Rua Marechal Floriano, antigaRua Larga, além de escolas e as inúmeras efemérides militares nas quais a figura do presidente está presente.

Como porta voz a sustentar a defesa da legitimidade da República florianista se encontrava o jornal panfletário O Jacobino, de Diocleciano Martyr. Puxando de uma perna esse intrépido agitador difundia as máximas do movimento em prol da continuidade do governo do marechal. Sua obstinação foi ao ponto de participar do atentado contra Prudente, mesmo tendo antes engrossado o movimento para trazer para as hostes florianistas o  sucessor do marechal, Prudente de Moraes. O ardor pela causa que defendia empolgou alguns de seus leitores, e juntou-se a quem desejava dar continuidade à política florianista, incluindo o vice de Prudente, Manuel Vitorino, também arrolado no inquérito do atentado contra o presidente. Condenado no processo aberto contra os autores intelectuais do crime do atentado seguido pela morte do general Bitencourt, Diocleciano encerraria suas atividades de um radical contumaz do ideário republicano, não o que vingou, mas o que pretendia se impor tendo Floriano como símbolo.

 Dos militares sobraria a onda crescente para reduzir senão acabar com a influência da mocidade militar. Era preciso, porém, dar um passo mais ousado. E o presidente Prudente o fez, quando fechou a Escola Militar, que só seria reaberta após o término de seu governo. E ela ressurgiu com ímpeto ainda maior por ocasião da revolta em 1904, já em pleno domínio das oligarquias hegemônicas de São Paulo e Minas Gerais, que costuraram um pacto de governabilidade, a política Café com Leite, para formalizar o domínio dessas oligarquias  O longo interregno das agitações dessa mocidade constituída de cadetes e oficiais de baixa patente é interrompido somente com os tenentes da década de 1920.

 Contudo, o florianismo passou a ser lembrado sempre que necessário fosse para unir companheiros em torno de um objetivo comum, já que o florianismo foi com certeza o único movimento em torno de uma liderança militar que não foi utilizado para fins meramente personalistas, senão o da defesa e o fortalecimento do exército nacional. Não por acaso está presente tanto nas conclamações de uma liderança militar revolucionária, como Luiz Carlos Prestes, ao invocá-lo por ocasião das atividades da Aliança Nacional Libertadora junto aos seus camaradas de armas, quanto figura nas ordens do dia de ministros da guerra durante o período da ditadura militar, como a de autoria do general Arthur da Costa e Silva.

Considerações Finais

 Assim, a República acalentada pelo estamento militar desde o seu nascedouro é a da incontinência patriótica, isto é, a de render permanente devoção ao funcionamento desse regime de preferência através da força da vontade de seus cidadãos.  Idolatrando os símbolos de uma nacionalidade calcada na imagem do cidadão fardado, disciplinado e disponível para defender a pátria republicana contra os seus inimigos reais ou imaginários têm mantido esse fervor. Essa visão de República austera e incorruptível; coesa e centrada no culto à legitimidade e acatando seus fundamentos legais tem sido, de forma mais ou menos autoritária, a mais genuína expressão do regime que os militares ajudaram a produzir, com as seguidas interrupções visando um suposto aperfeiçoamento do regime, do qual se sentem parte integrante e responsável pelo seu destino.

  A República que temos ainda é a República dos Militares, o que significa que os militares buscaram encarná-la incorporando todas as suas contradições. A mantém como um legado organizacional instituindo normas que embora possam ser compartilhadas com os fundamentos doutrinários de um regime republicano são, contudo, muito próprios dos ritos e procedimentos caros à vida militar. Destes sublinhem-se a ordem, a disciplina e o acatamento aos princípios hierárquicos, salvo quando estes perdem a legitimidade, conceito que na história dessa República têm um valor mais relevante do que a legalidade, pois esta nem sempre traduz o espírito de preservação desta República, dependendo, é claro, das conjunturas que podem mais ou menos tornar real esse princípio no qual a legalidade é refém da legitimidade assim considerada pela caserna.

 Assim sendo, cabe ressaltar que o sentido emprestado pelos militares brasileiros a esta República independe da avaliação externa. Não importa se bem ou mal intencionada, se fruto de investigação fundamentada ou não. Tradicionalmente o que é notável é exatamente o peso quase absoluto da avaliação interna, orgânica,e portanto, institucional, que produziu uma cultura política específica do seu ser. O ator político que despontou ao longo da República é tão identificado com os seus rumos a ponto de manter intacta a prática intervencionista na vida política do País. Examiná-la sem considerar a presença e participação dos militares é como deixar de lado o princípio ativo do regime e se importar apenas com o nome fantasia. A República é dos militares no sentido de terem tido uma atitude de permanente vigilância sobre o mundo da cidadania política, a despeito da resistência em tê-los como monitores do processo político democrático. Esta ordem tutelada, vigiada e freqüentemente sujeita a novas intervenções militares não obstante se encontrar presentes nas abordagens historiográficas tem sido naturalizada em razão da tradição autoritária cultivada historicamente na sociedade brasileira.

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