A RESPONSABILIDADE DO EMPRESÁRIO E SUA EXCLUSÃO NO CRIME DE APROPRIAÇÃO INDÉBITA TRIBUTÁRIA POR AUSÊNCIA DE RECOLHIMENTO DE TRIBUTO: UM ESTUDO SOBRE AS DIFICULDADES FINANCEIRAS ACENTUADAS PELA PANDEMIA.

Resumo

O presente ensaio tem como objeto examinar minuciosamente o artigo 2°, inciso II, da Lei n. 8.137, de 27 de dezembro de 1990, quanto ao Direito Penal Tributário, disciplina que merece destaque, uma vez que na atual conjuntura da jurisprudência pátria, diversas foram as posições adotadas, principalmente no que tange à constituição definitiva do crime de apropriação indébita tributária e a justa causa para uma ação penal. Para tanto, mister é a adoção do método dedutivo, pelo qual parte-se da observação de uma situação geral para explicar as características de um objeto individual, técnica importante para compreender as hipóteses de regularização do débito no âmbito o Direito Tributário e seus desdobramentos no Direito Penal Tributário, objeto dos últimos julgados dos Tribunais Superiores e assunto que gera impasse na doutrina. Com isso, pretende-se demonstrar que a finalidade principal da norma penal tributária é o adimplemento da obrigação tributária, vertente em que caminha o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça e o princípio da fragmentariedade do Direito Penal.

Artigo

A RESPONSABILIDADE DO EMPRESÁRIO E SUA EXCLUSÃO NO CRIME DE APROPRIAÇÃO INDÉBITA TRIBUTÁRIA POR AUSÊNCIA DE RECOLHIMENTO DE TRIBUTO: UM ESTUDO SOBRE AS DIFICULDADES FINANCEIRAS ACENTUADAS PELA PANDEMIA.

 

Gabriel Alan Pinto de Oliveira[1]

Túlio Aguiar Marques[2]

 

 

 

 

Resumo: O presente ensaio tem como objeto examinar minuciosamente o artigo 2°, inciso II, da Lei n. 8.137, de 27 de dezembro de 1990, quanto ao Direito Penal Tributário, disciplina que merece destaque, uma vez que na atual conjuntura da jurisprudência pátria, diversas foram as posições adotadas, principalmente no que tange à constituição definitiva do crime de apropriação indébita tributária e a justa causa para uma ação penal. Para tanto, mister é a adoção do método dedutivo, pelo qual parte-se da observação de uma situação geral para explicar as características de um objeto individual, técnica importante para compreender as hipóteses de regularização do débito no âmbito o Direito Tributário e seus desdobramentos no Direito Penal Tributário, objeto dos últimos julgados dos Tribunais Superiores e assunto que gera impasse na doutrina. Com isso, pretende-se demonstrar que a finalidade principal da norma penal tributária é o adimplemento da obrigação tributária, vertente em que caminha o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça e o princípio da fragmentariedade do Direito Penal.

Palavras-chave: Direito Penal Tributário. Crimes Contra a Ordem Tributária. Apropriação Indébita Tributária. Responsabilidade do Empresário. Pandemia Covis-19

 

  1. Introdução

 

A luta constante pela sobrevivência na economia de mercado é causa precípua das inovações usufruídas pela humanidade, mas também de diversos comportamentos tidos por imorais e que demandam, de modo rápido, a criminalização prematura de determinadas condutas.

No atual cenário do Direito, insigne é o papel do Direito Tributário em seus aspectos penais, sobretudo quanto aos assuntos que abrangem as condutas de crimes contra a ordem tributária, previstas na Lei n. 8.137/1990. Gradualmente, a jurisprudência e a doutrina examinam em questionamentos quanto a exigência da norma penal, a qual, conforme será evidenciado ao longo deste artigo, terá de ser a última alternativa do julgador, ou quando da “simples” retribuição da Administração Pública Tributária em ter seus tributos adimplidos pelo contribuinte que, sim, praticou um ilícito penal, mas também, uma infração tributária.

Nessa esteira, tem-se a lei nº 8.137/90, que no seu art. 2º, II, tipifica a inadimplência fiscal como apropriação indébita tributária para dar uma resposta ao anseio social e também para amenizar a instabilidade ocasionada pela péssima política resultante da segunda guerra mundial.

À vista disso, atos normativos como o mencionado têm o condão de usar o direito penal de maneira temerária e sem respeitar os axiomas da ciência. Por esse motivo, e diante da inexistência de uniformidade entre os julgados que abordam o tema, o problema norteador deste exame tem o seu cerne nas implicações que a utilização excessiva do poder de punir, sem a devida observância de aspectos importantes dos autos, possuem no procedimento acusatório.

O contexto adotado nesta análise é o acórdão do Supremo Tribunal Federal proferido no Recurso Ordinário nº 163.334/SC, cujo desfecho fixou a seguinte tese “O contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do art. 2°, II, da Lei n° 8.137/1990”.

Nesse viés, o estudo aponta a hipótese de que a aplicação descuidada de legislações como a avaliada, que possuem fragilidade em sua concepção, tendem a gerar sanções antecipadas e indevidas, sendo certo que para o crime observado há necessidade de se impor uma interpretação restritiva do tipo.

Assim, o objetivo geral da pesquisa é debater a responsabilidade penal do empresário e sua exclusão no crime de apropriação indébita tributária por ausência de recolhimento de tributo e, sobretudo, qual o impacto disso nos processos criminais oriundos de condutas verificadas durante a pandemia da Covid-19.

Desse modo, a pesquisa não busca o encerrar o assunto, mas apenas viabilizar o raciocínio em busca de um processo penal mais leal aos seus princípios.

 

  1. A “criminalidade de papel”. Breve análise da lei nº 8.137/90.

Os delitos tributários, evidenciados na lei nº 8.137/90, que define os crimes contra a ordem tributária, econômica e relações de consumo, se apresentam ao mundo jurídico como um legado de grandes crises e desabastecimentos ocorridos nas mais diversas civilizações.

Explica-se. A globalização, que é um processo de expansão econômica, política e cultural nutrido há bastante tempo, gerou inúmeros efeitos na sociedade mundial, não apenas criando similaridade no modo que o povo se expressa, se veste e se alimenta, mas também nas leis que regulam a vida em comunidade.

Com a integração do corpo social internacional, começaram a circular tanto ideias boas e úteis ao avanço comunitário, quanto as negativas e destrutivas ao futuro da coletividade. Assim, as relações se transformaram eliminando vários filtros sobre o que se consome.

Nesse viés, tem-se a ocorrência de eventos globais que impactaram diretamente na vida dos povos, em exemplo, as grandes guerras mundiais, sobretudo a segunda, em que a influência danosa de um líder reverberou em diversos lugares sem observar fronteiras.

Dessarte, ao falar de acontecimentos como o mencionado, infere-se que a globalização trouxe extensa consequência sobre a economia e a política, não à toa, após a segunda guerra mundial, muitos países passaram a acumular dívidas, ocasionando intensa queda sobre a produção nacional em razão dos desvios de rota no que tange os investimentos, que antes eram feitos para fomentar a circulação de recursos entre os nacionais, mas passaram a sustentar a batalha em campo alheio. Desse modo, leciona Coracini:

Mostra-se, portanto, correto afirmar que, a partir da segunda metade do século XIX, a indústria tornou-se o eixo sobre o qual se articulou a sociedade capitalista, sendo substituída mais recentemente em seu papel pelos irrefreáveis e desabalados avanços tecnológicos, especialmente no campo da informática, com reflexos em todos os planos da vida social, desde o plano cultural, até os planos jurídico e econômico. Isto corresponde a afirmar que o cenário no qual se insere a criminalidade econômica, tal como é concebida e estudada modernamente, é o do desenvolvimento do capitalismo, que compreende importantes fenômenos econômicos e sociais desencadeados após a Segunda Grande Guerra, e com vigor mais extremado nas últimas décadas. (CORACINI, 1995, p.414)

Nesse cenário, houve a eclosão dos crimes econômicos, já que as circunstâncias negativas estavam pavimentando não apenas a instabilidade nos Estados, mas também nos mercados, fazendo com que os comerciantes precisassem criar meios de manter os seus negócios ativos. Sobre isso, ensina Daniela Bonaccorsi:

Ocorre que, nos anos 60, as condutas e as atividades que poderiam oferecer perigo aos bens jurídicos alastraram-se no sistema penal. Contemporaneamente, vivemos numa sociedade complexa e em contínua expansão, a violência toma proporções cada vez maiores, onde se tem como pretexto um “direito penal de riscos”, caracterizado por uma excessiva intervenção estatal, uma “legislação de emergência”, sem o estabelecimento de princípios axiológicos ou um modelo garantista, mas o desenvolvimento “hipertrófico” do direito penal, com tendências intervencionistas e preventivas. Hoje, há uma proliferação de tipos penais classificados como crimes de perigo abstrato, que passaram a ser característica do moderno direito penal. Recorre-se ao direito penal como forma de prevenção para os riscos de uma sociedade moderna. (BONACCORSI, 2017)

Nesse sentido, veja que os ilícitos econômicos discutidos aqui, em sua maioria, só podem ser identificados por quem entende do assunto, já que o bem jurídico afetado é, de certo modo, abstrato, a ordem econômica. Ou seja, só pode ser reconhecido por aqueles passam horas analisando e avaliando diversos documentos e declarações, números sem fim, até encontrar delitos no papel.

Em um crime como esse não há sangue, não há ferimento ou machucado de qualquer porte, em verdade, nem as folhas restam amaçadas. Os agentes do delito usam gravatas, sentam em cadeiras confortáveis e protegem o seu nome a todo custo.

Por vezes encontram guarida na assistência dos leigos que ainda não compreenderam o impacto do crime à ordem econômica e como isso os atinge, o que não justifica um comportamento inquisitorial por parte do Estado, que busca de modo desenfreado achar culpados e puni-los por erros que são provenientes de políticas públicas.

Isso porque, a necessidade estatal de responder com eficiência à sofisticação dos criminosos de colarinho branco, gera, em muitos casos, um desrespeito aos princípios básicos do direito penal, como o da presunção da inocência. Sobre o princípio aludido, cita Cezar Roberto Bitencourt:

A presunção da inocência é um dos princípios basilares do Direito brasileiro, responsável por tutelar a liberdade dos indivíduos, sendo previsto, repetindo, pelo art. 5, LVII, da Constituição de 1988: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de uma sentença penal condenatória”. Tendo em vista que a Constituição Federal é nossa lei suprema, toda a legislação infraconstitucional deverá absorver e obedecer a tal princípio. (BITENCOURT, 2019, p. 77)

Assim, perceba que a pressa na punição ocasiona a criação precoce de leis (como a nº 8.137/90) e que a aplicação descuidada destas legislações, que possuem fragilidade em sua concepção, tendem a gerar sanções antecipadas e indevidas dos sujeitos acusados em determinados processos.

2.1.  A apropriação indébita tributária na jurisprudência dos tribunais superiores.

 

            O Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Habeas Corpus (399.109/SC)[3] da Relatoria do Ministro Rogério Schietti Cruz, interposto contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, que deu provimento ao recurso de apelação interposto pelo Ministério Público, a fim de afastar a sentença de absolvição sumária e determinar o regular prosseguimento do processo pela suposta prática do delito previsto no art. 2°, II, da Lei 8.137/90, colocou em pauta a problemática acerca da apropriação indébita tributária. Observe a ementa:

HABEAS CORPUS. NÃO RECOLHIMENTO DE ICMS POR MESES SEGUIDOS. APROPRIAÇÃO INDÉBITA TRIBUTÁRIA. ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA. IMPOSSIBILIDADE. DECLARAÇÃO PELO RÉU DO IMPOSTO DEVIDO EM GUIAS PRÓPRIAS. IRRELEVÂNCIA PARA A CONFIGURAÇÃO DO DELITO. TERMOS “DESCONTADO E COBRADO”. ABRANGÊNCIA. TRIBUTOS DIRETOS EM QUE HÁ RESPONSABILIDADE POR SUBSTITUIÇÃO E TRIBUTOS INDIRETOS. ORDEM DENEGADA.1. Para a configuração do delito de apropriação indébita tributária – tal qual se dá com a apropriação indébita em geral – o fato de o agente registrar, apurar e declarar em guia própria ou em livros fiscais o imposto devido não tem o condão de elidir ou exercer nenhuma influência na prática do delito, visto que este não pressupõe a clandestinidade.2. O sujeito ativo do crime de apropriação indébita tributária é aquele que ostenta a qualidade de sujeito passivo da obrigação tributária, conforme claramente descrito pelo art. 2º, II, da Lei n. 8.137/1990, que exige, para sua configuração, seja a conduta dolosa (elemento subjetivo do tipo), consistente na consciência (ainda que potencial) de não recolher o valor do tributo devido. A motivação, no entanto, não possui importância no campo da tipicidade, ou seja, é prescindível a existência de elemento subjetivo especial.3. A descrição típica do crime de apropriação indébita tributária contém a expressão “descontado ou cobrado”, o que, indiscutivelmente, restringe a abrangência do sujeito ativo do delito, porquanto nem todo sujeito passivo de obrigação tributária que deixa de recolher tributo ou contribuição social responde pelo crime do art. 2º, II, da Lei n. 8.137/1990, mas somente aqueles que “descontam” ou “cobram” o tributo ou contribuição.4. A interpretação consentânea com a dogmática penal do termo “descontado” é a de que ele se refere aos tributos diretos quando há responsabilidade tributária por substituição, enquanto o termo “cobrado” deve ser compreendido nas relações tributárias havidas com tributos indiretos (incidentes sobre o consumo), de maneira que não possui relevância o fato de o ICMS ser próprio ou por substituição, porquanto, em qualquer hipótese, não haverá ônus financeiro para o contribuinte de direito.5. É inviável a absolvição sumária pelo crime de apropriação indébita tributária, sob o fundamento de que o não recolhimento do ICMS em operações próprias é atípico, notadamente quando a denúncia descreve fato que contém a necessária adequação típica e não há excludentes de ilicitude, como ocorreu no caso. Eventual dúvida quanto ao dolo de se apropriar há que ser esclarecida com a instrução criminal.6. Habeas corpus denegado.

            Ao ganhar os holofotes, tais questões passaram a ter um importante protagonismo quando atreladas à utilização do Direito penal como fonte indireta de cobrança do crédito tributário. Dessa forma, o tipo penal de apropriação indébita passou a ser aplicado também nos casos de não pagamento de tributos devidos.

            O tipo penal retratado no artigo 2°, II, Lei 8.137/90, constitui crime contra a ordem tributária denominado como o delito de apropriação indébita tributária, que prenuncia o seguinte: “deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos”.

            Toda celeuma girou em torno do questionamento se o pretenso tipo penal retratado alhures teria abrangência quando houvesse a ocorrência do mero inadimplemento do tributo. A época, restou consolidado o entendimento de forma desfavorável ao contribuinte após a decisão paradigma do julgamento do HC 399.109.

            O ministro Rogério Schietti Cruz, expos à época, que o que distingue o inadimplemento do tributo (fato atípico) da apropriação indébita tributária é o dolo que o contribuinte tem de ter consigo a parcela do preço devido ao Estado oriundo do fato gerador do tributo.

            Recentemente o Supremo Tribunal Federal submeteu o pretenso tema a julgamento, ocasião em que examinou os autos do RHC 163.334 – nosso leading case -que será trabalhado no decorrer do ensaio.

           

2.2. Diagnóstico da jurisprudência e a necessária contumácia para a configuração do delito de apropriação indébita tributária.

De início, destaca-se que o caso utilizado como paradigma desta produção trata-se de Recurso Ordinário em Habeas Corpus (RHC 163.334/SC) interposto contra acórdão da Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, da Relatoria do Ministro Rogério Schietti Cruz.

O objeto do recurso ataca a decisão do STJ que afastou a absolvição sumária dos pacientes concedida pelo Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. No caso, o Ministério Público buscou a condenação dos réus em face do cometimento de suposta apropriação indébita tributária.

Enquanto isso, a defesa alegou que os réus foram processados criminalmente por mera inadimplência fiscal, já que não houve fraude, omissão ou falsidade de informações ao Estado e que o não recolhimento de ICMS próprio, por si só, não caracteriza crime, em razão de não preencher a elementar do tributo ‘descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo da obrigação’ exigida pelo tipo penal do art. 2.º, II, da Lei 8.137/90.

Assim, após o regular andamento do feito, o Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal negou provimento ao Recurso Ordinário e, por maioria, fixou a seguinte tese “O contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do art. 2°, II, da Lei n° 8.137/1990”[4].

Desse modo, a proposição central do ato decisório inova ao introduzir o entendimento de que o crime aqui discutido impõe uma interpretação restritiva do tipo, ou seja, que considera criminosa a ação quando realizada de forma sistêmica, contumaz e que visa o enriquecimento ilícito para ferir a concorrência ou adquirir vantagens próprias. Observe a ementa:

Direito penal. Recurso em Habeas Corpus. Não recolhimento do valor de ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço. Tipicidade. 1. O contribuinte que deixa de recolher o valor do ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço apropria-se de valor de tributo, realizando o tipo penal do art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990. 2. Em primeiro lugar, uma interpretação semântica e sistemática da regra penal indica a adequação típica da conduta, pois a lei não faz diferenciação entre as espécies de sujeitos passivos tributários, exigindo apenas a cobrança do valor do tributo seguida da falta de seu recolhimento aos cofres públicos. 3. Em segundo lugar, uma interpretação histórica, a partir dos trabalhos legislativos, demonstra a intenção do Congresso Nacional de tipificar a conduta. De igual modo, do ponto de vista do direito comparado, constata-se não se tratar de excentricidade brasileira, pois se encontram tipos penais assemelhados em países como Itália, Portugal e EUA. 4. Em terceiro lugar, uma interpretação teleológica voltada à proteção da ordem tributária e uma interpretação atenta às consequências da decisão conduzem ao reconhecimento da tipicidade da conduta. Por um lado, a apropriação indébita do ICMS, o tributo mais sonegado do País, gera graves danos ao erário e à livre concorrência. Por outro lado, é virtualmente impossível que alguém seja preso por esse delito. 5. Impõe-se, porém, uma interpretação restritiva do tipo, de modo que somente se considera criminosa a inadimplência sistemática, contumaz, verdadeiro modus operandi do empresário, seja para enriquecimento ilícito, para lesar a concorrência ou para financiar as próprias atividades. 6. A caracterização do crime depende da demonstração do dolo de apropriação, a ser apurado a partir de circunstâncias objetivas factuais, tais como o inadimplemento prolongado sem tentativa de regularização dos débitos, a venda de produtos abaixo do preço de custo, a criação de obstáculos à fiscalização, a utilização de “laranjas” no quadro societário, a falta de tentativa de regularização dos débitos, o encerramento irregular das suas atividades, a existência de débitos inscritos em dívida ativa em valor superior ao capital social integralizado etc. 7. Recurso desprovido. 8. Fixação da seguinte tese: O contribuinte que deixa de recolher, de forma contumaz e com dolo de apropriação, o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990.

Nessa seara, é importante diferenciar inadimplência fiscal de apropriação indébita tributária. Enquanto a primeira tem natureza administrativa e representa atraso no pagamento de determinado tributo, a segunda está contida na esfera penal e objetiva lesar o bem jurídico (ordem econômica).

Ressalta-se que a inteligência do julgado do Supremo Tribunal Federal estabeleceu novos parâmetros para orientar os operadores do direito na diferenciação entre o mero inadimplemento e o delito econômico, justamente para evitar a punição imoderada e inespecífica dos acusados. Em exemplo, a já comentada necessidade de repetição dos atos e o dolo em se apropriar indevidamente do tributo.

Outrossim, ainda que tenham sido introduzidas novas caraterísticas para a configuração do crime, como a contumácia e a vontade, a jurisprudência pátria não descarta a possibilidade de uso do princípio da insignificância em casos como o presente.  Sobre o assunto ensinam Fábio Tofic e Luís Martinelli que “A orientação, contudo, não afasta a já consolidada aplicação (também no âmbito da tipicidade) do princípio da insignificância aos crimes contra a ordem tributária, sempre que o débito tributário não atingir o montante mínimo sujeito à execução fiscal”.

Isso porque, o juízo constitucional não pode se dar ao luxo de correr o risco de penalizar objetivamente determinado réu sem ponderar aspectos importantes do tipo, haja vista a obrigação de todos os sujeitos processuais em obedecer aos ditames penais garantidos pela Constituição Federal.

Desse modo, lembra-se que aqui está se tratando de vidas humanas; de pessoas que não podem ser enviadas ao terrível ambiente carcerário apenas pela aparência de ilegalidade ou pela necessidade se entregar alguém à vingança do povo, sendo certo que para o caso concreto, a mera ausência de recolhimento de um tributo não pode ensejar em condenação criminal.

  1. Princípio da fragmentariedade e a aplicação do princípio da insignificância aos crimes tributários

            O direito penal, em razão do princípio da intervenção mínima, somente deverá ser aplicado quando realmente necessário, decorrendo deles os princípios da subsidiariedade e da fragmentariedade. Sobre isso, ensina Guilherme de Souza Nucci:

Princípio da intervenção mínima (ou da subsidiariedade): quer dizer que o direito penal não deve interferir em demasia na vida do indivíduo, retirando-lhe autonomia e liberdade. Afinal, a lei penal não deve ser vista como a primeira opção (prima ratio) do legislador para compor os conflitos existentes em sociedade e que, pelo atual estágio de desenvolvimento moral e ético da humanidade, sempre estarão presentes. Há outros ramos do direito preparados a solucionar as desavenças e lides surgidas na comunidade, compondo-as sem maiores consequências. O direito penal é considerado ultima ratio, isto é a última cartada do sistema legislativo, quando se entende que outra solução não pode haver senão a criação de lei penal incriminadora, impondo sanção penal ao infrator. Caso o bem jurídico possa ser protegido de outro modo, deve-se abrir mão da opção legislativa penal, justamente para não banalizar a punição, tornando-a, por vezes, ineficaz. (NUCCI, 2020, p 12)

            Como bem assinala mercedes garcia arán, “o direito penal deve conseguir a tutela da paz social obtendo o respeito à lei e aos direitos dos demais, mas sem prejudicar a dignidade, o livre desenvolvimento da personalidade ou a igualdade e restringindo ao mínimo a liberdade[5] (ARÁN, 1997).

            Sem embargo, isso é o que se espera de um Estado Democrático de direito acerca de um direito penal mínimo. Nesse viés, leciona Guilherme de Souza Nucci acerca do princípio da fragmentariedade (como corolário da intervenção mínima):

Significa que nem todas as lesões a bens jurídicos protegidos devem ser tuteladas e punidas pelo direito penal, pois este constitui apenas uma parte do ordenamento jurídico. Fragmento é apenas a parte de um todo, razão pela qual o direito penal deve ser visto, no campo dos atos ilícitos, como fragmentário, ou seja, deve ocupar-se das condutas mais graves, verdadeiramente lesivas à vida em sociedade, passíveis de causar distúrbios de monta à segurança pública e à liberdade individual. O mais deve ser resolvido pelos outros ramos do direito, através de indenizações civis ou punições administrativas. (NUCCI, 2020, p.13).

            Nessa perspectiva, a 3° Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao julgar o Habeas Corpus (535.063)[6], da Relatoria do Min. Sebastião Reis Júnior, aplicou o princípio da insignificância a crime tributário de competência estadual, consubstanciado no trancamento de ação penal baseada em sonegação de ICMS. Este entendimento já era aplicado a tributos federais, destacando que é possível o reconhecimento do princípio da insignificância quando o valor suprimido for menor que R$ 20 mil reais, conforme preconiza o tema 157 dos recursos repetitivos revisados em 2018. Observe a ementa:

HABEAS CORPUS – CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA – ATIPICIDADE – PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. ICMS. TRIBUTO ESTADUAL. LEIS ESTADUAIS REGULANDO A MATÉRIA. ADOÇÃO DO MESMO PARÂMETRO DEFINIDO PELO STJ NO RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA N. 1.112.748. POSSIBILIDADE. JULGAMENTO AFETADO EM RAZÃO DA MATÉRIA À TERCEIRA SEÇÃO. 1. Ainda que a incidência do princípio da insignificância aos crimes tributários federais e de descaminho, quando o débito tributário verificado não ultrapassar o limite de R$ 20.000,00, tenha aplicação somente aos tributos de competência da União, à luz das Portarias n. 75/2012 e n. 130/2012 do Ministério da Fazenda, parece-me encontrar amparo legal a tese da defesa quanto à possibilidade de aplicação do mesmo raciocínio ao tributo estadual, especialmente porque no Estado de São Paulo vige a Lei Estadual n. 14.272/2010, que prevê hipótese de inexigibilidade de execução fiscal para débitos que não ultrapassem 600 (seiscentas) Unidades Fiscais do Estado de São Paulo – UFESPs, podendo-se admitir a utilização de tal parâmetro para fins de insignificância. 2. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida de ofício, para reconhecer a aplicação do princípio da insignificância e determinar o trancamento da Ação Penal n. 00010623620178260372 – 2ª Vara Criminal da comarca de Monte Mor/SP.

                Devemos destacar a divergência no voto do Min. Rogério Schietti e Ribeiro Dantas que ao aderirem ao voto do relator, declararam ressalvas ao entendimento. Para o ministro Rogério Schietti, a aplicação do princípio da insignificância é mais ligada à categoria da punibilidade, em vez da tipicidade. “Soa irrazoável imaginar como insignificante uma lesão dessa envergadura, sendo que para crimes patrimoniais afastamos a insignificância por R$ 100 ou R$ 200”, acrescentou. Com essa ressalva, seguiu o posicionamento da seção.

 

  1. A exclusão da responsabilidade penal do empresário ante às dificuldades financeiras dentro de um cenário de pandemia mundial.

 

            É de conhecimento geral que no Brasil existem altas cargas tributárias, o que de pronto já é um fator desestimulante para o desenvolvimento no campo do comércio empresarial. Se já não bastasse o número excessivo de tributos, no primeiro semestre de 2020, a economia mundial foi severamente impactada pela pandemia Covid-19.

            O impacto na economia mundial trouxe um enorme reflexo na economia brasileira, gerando diversas dificuldades financeiras além de inúmeras complicações para a mantença dos empreendimentos desde o pequeno empresário até o grande empresário. Foram tempos difíceis para todos os que empreendem, atravessar uma crise sanitária e humanitária em escala global.

            Neste cenário, a existência de alíquotas tributárias extremamente pesadas no Brasil, somado a instabilidade do mercado interno, uma moeda relativamente fraca comparado ao contexto internacional, bem como um sistema extremamente engessado e burocrático, são elementos que fomentam o empresário na procura por mecanismos para sua manutenção no mercado.

            Nessa linha, o gestor brasileiro, buscando diversas alternativas, comumente tenta esquivar-se do pagamento dos elevados dos tributos. Por vezes isso ocorre de modo legal, através de decisões administrativas, mas em outras ocasiões isso ocorre por meio da sonegação de valores que antes seriam entregues ao fisco e que agora são aplicados na atividade empresarial.

            Em que pese o empresário escolha a possibilidade ilícita, é importante destacar o posicionamento existente em nosso ordenamento jurídico pátrio sob o tema da exclusão da responsabilidade penal do administrador de uma empresa ante a penúria pelas quais determinado empreendimento possa eventualmente passar.

            As multas pelo inadimplemento do tributo são altíssimas, entretanto, existem algumas observações necessárias instituídas no nosso ordenamento jurídico pátrio sobre a existência de exclusão da responsabilidade do empresário administrador de uma empresa que faz a ocultação de tributos movido pela necessidade ante uma situação financeira tão ruim que coloca em jogo a própria existência de seu negócio.

            Neste sentido, foram esculpidas orientações acerca de casos apreciados em cortes federais com viés de absolvição do denunciado pelo crime de sonegação fiscal quando preenchidas as condições estabelecidas pela corte, afastando a ilicitude da conduta quando comprovada concretamente a gravidade financeira que o acometeu, demonstrando, por exemplo, inadimplência de empréstimos, títulos protestados, ausência de distribuição de lucros – quando há – e dívidas trabalhistas.

            Apesar de haverem pensamentos divergentes, destaco, não unânimes, sobre a excludente de ilicitude acima comentada, é possível conjecturar sua utilização quando existir evidências de “vida ou morte” da pessoa jurídica. Pode-se entender como uma boia salva vidas em favor da continuidade da atividade empresarial.

            Logo, é indispensável que se demonstre de forma concreta que a atividade empresarial não teria, de qualquer forma, saúde financeira para adimplir os débitos tributários. E caso viesse a adimplir os débitos, esta entraria em completa ruína, fechando as portas de sua atividade empresarial.

            Em arremate, é notório que o empresário brasileiro encontra diuturnamente incontáveis embaraços, muitos deles, oriundos deste sistema engessado e extremamente burocrático em que ele é inserido. Com supedâneo no princípio da presunção de inocência, deve-se ponderar que nem sempre o empresário que suprime indevidamente tributos comete ato ilícito, por vezes este apenas tenta dar continuidade na atividade empresarial frente a um cenário extremamente desfavorável, que foi a pandemia do covid-19.

 

  1. Conclusão

 

Ao admitir o princípio da intervenção mínima do Direito Penal, sustentado ao longo dos estudos apresentados, o presente ensaio procurou defender a relevância do Direito Tributário e a situação da norma penal tributária de expressar um propósito coercitivo de assegurar o pagamento do crédito tributário, considerando a obrigação tributária principal, seja, na origem, por intermédio do adimplemento integral do débito tributário, pelo do contribuinte, seja pelo mecanismo do adimplemento de todas as parcelas referentes ao parcelamento que aderiu.

Não subsistem motivos para argumentar diversamente, uma vez que tanto a doutrina majoritária quanto a jurisprudência são parciais neste entender, como foi exposto ao decorrer do presente ensaio. Realmente, existe a justa causa quando decorrido o término do procedimento administrativo tributário que justifica a propositura de uma ação penal pública incondicionada, no entanto, o intuito da obrigação tributária é sua extinção.

Garantido o interesse principal da obrigação tributária, não subsiste justo motivo para a manutenção da tramitação de uma ação na esfera penal. O inverso estaria contrariando o respectivo preceito que embasa a ciência criminal.

Assim sendo, o despacho proferido no contexto do RHC 163.334/SC é capaz de culminar resolver muitas arbitrariedades da atual sistemática dos delitos tributários — que mistura a imagem de sonegadores e devedores contumazes com meros inadimplentes — e facilitar a restrição de uma criminalização demasiada.

Em razão disso, concluímos que a coerência jurídica que elucidou a escolha do Supremo Tribunal Federal interpreta a imposição dos novos componentes típicos objetivos e subjetivos a todos os crimes de apropriação indébita tributária no Direito brasileiro.

 

 

 REFERÊNCIAS

BONNACORSI, Daniela Villani. Compliance Criminal e Prevenção Penal. Compliance e integridade: aspectos práticos e teóricos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2017.

CORACINI, Celso Eduardo. Contexto e Conceito para o Direito Penal Econômico. Revista dos Tribunais. São Paulo, p.411-437, abril, 1995.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. São Paulo: Saraiva Educação, v. 1, ed. 24, 2019.

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Notas:

[1] Advogado especialista em direito penal econômico (PUC/MG), Secretário-Geral Adjunto da comissão da jovem advocacia da OAB/AP e procurador do TJD/AP.

[2] Advogado. Pós-graduando em Direito Público e Privado pela Escola de Magistratura do Rio de Janeiro

(EMERJ), pós-graduando em Direito Penal Econômico pela Pontíficia Universidade Católica de Minas

Gerais (PUC MINAS), especialista em Ciências Penais pelo Curso Fórum/UCAM, especialista em Direito

Constitucional Aplicado pela Faculdade Legale, especialista em Direito Público pela Faculdade Legale.

[3]https://processo.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201701067980&dt_publicacao=31/08/2018

[4] https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur436472/false

[5] Fundamentos y aplicación de penas y medidas de seguridade em el Código Penal de 1995, p. 36.

[6] https://www.stj.jus.br/sites/portalp/SiteAssets/documentos/noticias/HC-535.063.PDF

Palavras Chaves

Direito Penal Tributário. Crimes Contra a Ordem Tributária. Apropriação Indébita Tributária. Responsabilidade do Empresário. Pandemia Covis-19