A RESPONSABILIDADE DO MÉDICO DO SUS NO CONTEXTO DA PANDEMIA

Resumo

A sobrecarga sobre os sistemas de saúde se deu imediatamente em todos os países que sofrem com o avanço da pandemia da Covid-19. Tal cenário, também consolidado no Brasil, tornou clara a posição de vulnerabilidade dos profissionais de saúde, e portanto, dos médicos, que se encontram na linha de frente da demanda grave da doença, especialmente com a escassez dos recursos. A exposição dos profissionais é plural e grave. Estes, além da sistemática exposição à doença, inclusive afetando a própria família, de precisarem conduzir a comunicação das más-notícias, também se encontram na difícil posição de administrar o uso dos recursos de saúde ainda disponíveis.

Artigo

A RESPONSABILIDADE DO MÉDICO DO SUS NO CONTEXTO DA PANDEMIA

Taíssa Cristina Alves Barreira[1]

 Resumo: A sobrecarga sobre os sistemas de saúde se deu imediatamente em todos os países que sofrem com o avanço da pandemia da Covid-19. Tal cenário, também consolidado no Brasil, tornou clara a posição de vulnerabilidade dos profissionais de saúde, e portanto, dos médicos, que se encontram na linha de frente da demanda grave da doença, especialmente com a escassez dos recursos. A exposição dos profissionais é plural e grave. Estes, além da sistemática exposição à doença, inclusive afetando a própria família, de precisarem conduzir a comunicação das más-notícias, também se encontram na difícil posição de administrar o uso dos recursos de saúde ainda disponíveis.

 

Palavras-chave: pandemia, mistanásia, médico, responsabilidade

  

 A pandemia da Covid-19

Em 2020 a população no Mundo passou a conviver com a latente ameaça da Covid-19 que se alastrou rapidamente, tendo o primeiro caso ocorrido na cidade de Wuhan, na China, em dezembro de 2019.

Trata-se de uma doença respiratória aguda causada pelo coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2). O rápido contágio da doença acabou forçando uma paralisação geral das atividades no Brasil e no mundo. É a mais grave crise sanitária dos últimos 100 anos. (ALBUQUERQUE et al, 2020)

Em 30 de janeiro de 2020 a Organização Mundial de Saúde (OMS) trouxe registro de que já se tratava de uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (OPAS, 2020) e em 11 de março de 2020 considerou o rápido alastramento do vírus uma pandemia, ou seja, o avanço da doença em todo o globo e não só em determinados locais.

A imprensa em vários países passou a acompanhar a evolução da contaminação do novo vírus, mostrando em tempo real a realidade triste da rotina em redes públicas e privadas de saúde, além das imagens das cidades desertas por conta do isolamento social imposto como medida sanitária preventiva.

 No Brasil

 Em 26 de fevereiro de 2020 foi confirmado no Brasil o primeiro caso de Covid-19, um homem de 61 anos de idade que deu entrada no Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, com histórico de viagem para Itália. Em 20 de março de 2020 o Ministério da Saúde já declarava comunitária a transmissão do vírus no Brasil.

O governo brasileiro, a partir do que já acontecia em outros países, tomou providências iniciais que passaram a fazer parte do enfrentamento da alta demanda que era apontada, em especial no Sistema Único de Saúde (SUS).  Em 20 de março de 2020 foi publicado o Decreto Legislativo nº 06/2020 que reconheceu o estado de calamidade pública (BRASIL, 2020a). Foi também promulgada a Lei nº 13.979/2020 que estabeleceu medidas de enfrentamento da emergência da saúde pública decorrente da Covid-19 (BRASIL, 2020b).

A rapidez da contaminação desencadeou um cenário de caos no SUS. Conforme o vírus circula em meio a uma população sem vacina ou qualquer tipo de defesa própria, as pessoas que desenvolvem a doença na forma mais grave, precisam ao mesmo tempo, de auxílio respiratório nos hospitais.

Com o avanço da Covid-19 no Brasil, as posições do governo brasileiro foram se tornando heterogêneas e, além da troca do líder do Ministério da Saúde duas vezes no meio da pandemia, com a saída do Ministro Luiz Henrique Mandetta em 16/04/2020 (BBC, 2020a) e a saída do Ministro Nelson Teich em 15/05/2020 (BBC, 2020b), o Presidente da República Jair Bolsonaro ainda indicou, em pronunciamentos confusos, o uso de medicamentos ainda sem evidência comprovada para o tratamento da doença. Além disso, o país não apresenta um plano de governo à Covid-19, mantendo a população brasileira órfã de orientações mínimas, mesmo a curto prazo.

 

Sistema Único de Saúde

 A saúde é um direito de todos e um dever do Estado no Brasil. A constituição em seu Artigo 197[2] aponta a natureza de relevância pública das ações e serviços de saúde. (BRASIL, 1990)

A Constituição Federal divide a atuação do Poder Público na saúde entre a atuação direta e pública, com a execução de ações e serviços de saúde e a atuação prestada diretamente pelo particular, com possibilidade de regulamentar, fiscalizar e controlar o sistema de saúde. (SANTANA, 2020)

As ações prestadas pelo Poder Público se dão por meio do SUS, conforme Lei nº 8.080/90 (BRASIL, 1990a) que define seus objetivos, atribuições, princípios e diretrizes e a Lei 8.142/90 (BRASIL, 1990b) que define a participação da comunidade em sua gestão.

O SUS simboliza uma nova era desde a sua criação, pois proporcionou finalmente à população, o acesso integral, universal e gratuito, sendo um dos maiores e mais complexos sistemas de saúde pública do mundo, mesmo diante da grande dimensão continental do Brasil e do seu desequilíbrio social. (BRASIL, 2000)

O Ministério da saúde e a Secretaria de Vigilância em Saúde que compõem o SUS, no Boletim Epidemiológico da Covid-19 (BRASIL, 2020c), ressaltaram as diferenças regionais que demandam providências moldadas ao risco de cada Município. Para tanto, o Ministério da Saúde conta com especialistas técnicos nacionais e internacionais, órgãos do governo e instituições públicas e privadas, todas unificando um esforço de reverter o crescente número de óbitos, conforme atualização sistemática que até a data deste artigo já contava com 14.817 casos confirmados no Brasil. (BRASIL, 2020d)

No enfrentamento de uma epidemia, como a de Dengue, Cikungunya, Zika e Sarampo e, principalmente, de uma pandemia como a Covid-19, o SUS reforça a sua essencialidade. A sua atuação ocorre por meio de um conjunto valioso de trabalhadores que o mantém por suas atividades, direta ou indiretamente. A ausência do SUS provocaria uma trágica violação de Direitos Humanos no Brasil.

 

Mistanásia

 Se o potencial do Sistema Único de Saúde Brasileiro previsto da Constituição Federal sempre se apresentou, da mesma forma, as notícias nunca esconderam as suas fragilidades, resultantes especialmente, da redução do financiamento da saúde, da má gestão sobre o dinheiro disponível no orçamento e o fechamento de leitos, serviços e unidades de saúde. (FERREIRA; PORTO, 2019)

Tais circunstâncias, mesmo antes da pandemia da Covid-19, levavam muitas pessoas, dependentes do sistema, à morte. A abreviatura involuntária da vida pela ausência da prestação mínima do serviço, como resultado dessas práticas ilícitas administrativas se chama mistanásia. (BARBOSA; PIRES, 2020)

O Centro Brasileiro de Estudos de Saúde – CEBES, identificou que no SUS em mais de 70% das regiões do país, os leitos de UTI são inferiores ao número necessário. Esse dado levou em consideração o fluxo normal, ainda sem considerar a demanda trazida pela pandemia de Covid-19. (CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DA SAÚDE, 2020)

É notório que o pico agudo da Covid-19 no Brasil já lota os serviços de saúde e restringe o número de leitos, com um descontrole dos casos que chegam aos hospitais em um curto espaço de tempo, desproporcional à capacidade dos sistemas de saúde do mundo. (O DIA.IG, 2020)

          Essa é a realidade no Brasil e com isso os profissionais de saúde são levados a extremos, conforme divulgado pela mídia brasileira diariamente. São colocados diante da difícil tarefa de administrar os recursos que passam a ficar muito mais restritos e podem chegar a faltar em definitivo, além de fazerem escolhas difíceis com muitas pessoas precisando de atendimento.

A responsabilidade do médico diante das “escolhas” na pandemia: quem vive e quem morre

 Diante do quadro fático delineado, importante analisar juridicamente a responsabilidade civil do médico no enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente da pandemia da covid-19.

O presente trabalho não tem o objetivo de esgotar as discussões jurídicas sobre a responsabilidade civil que possam se fazer presentes em razão de todas as condutas médicas em tempos de pandemias. Isso porque as condutas médicas, que se fazem necessárias em situação de calamidade pública, merecerem percepção jurídica distinta quanto comparadas às da situação de normalidade, sobretudo quando não há uma medicação própria para combater a doença, considerando que conforme estudos científicos ainda não há medicamento específico para a grave síndrome respiratória.

No campo da responsabilidade civil, é cediço que o médico assume, em regra, obrigação de meio, obrigando-se a empenhar todos os esforços possíveis para a prestação de um serviço, sem um compromisso vinculado à obtenção de resultado determinado.

O Código Civil dispõe, em seu Art. 186, que “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”, sendo, pois, responsabilidade subjetiva.  (BRASIL, 2002)

          No mesmo sentido, o Código de Ética Médica, em seu artigo 1º, parágrafo único dispõe o seguinte:

É vedado ao médico: Art. 1º Causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência.

Parágrafo único. A responsabilidade médica é sempre pessoal e não pode ser presumida. (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2009)

No cenário vivenciado durante a pandemia, a oferta de leitos e de respiradores nos hospitais revela-se desproporcional ao número de pessoas que precisam de atendimento médico-hospitalar de emergência, recaindo indevidamente sobre o médico a responsabilidades dramática de decidir acerca de quem irá ter a chance de tratamento de saúde adequado e aquele que não terá tal oportunidade em face da escassez de recursos.

A situação vivenciada nos hospitais do país retrata o dilema do médico na pandemia, “escolher” quem vive e quem morre.

O profissional médico vive o estresse causado pelo número desenfreado de pessoas em busca de “ar”, potencializado pelo medo de também contrair a doença e pela angústia de ser responsabilizado em razão da “escolha” acerca daqueles que terão a chance de sobrevida e aqueles que infelizmente não terão o tratamento médico-hospitalar adequado.

Inicialmente, deve-se afastar o verbo escolher da questão posta. O médico não escolhe. Escolher seria o mesmo que ter opções ou preferências e não dar um tratamento médico hospitalar adequado àquele que necessita. Isso pode ser o mesmo que não ter opção.

No caos instalado pelo colapso do sistema de saúde, o médico não tem opções, tendo apenas a injusta missão de administrar o desequilíbrio gerado por anos de negligência dos administradores públicos no setor da saúde, o que foi agravado pela pandemia.

Há recomendações, das sociedades médicas internacionais, pela criação de um protocolo de alocação de recursos em esgotamento para situações de pandemia como a atualmente vivenciada no Brasil com a Covid-19. O Protocolo foi construído guiado pelos princípios bioéticos que regulam também situações de desastres em massa e pandemias, conforme ressaltado no próprio documento. (KRETZER et al, 2020)

Alguns parâmetros objetivos de triagem foram publicados pelo Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (CREMERJ) em 15/05/2020. O documento indicou critérios objetivos e transparentes para o estabelecimento de prioridades na alocação dos pacientes em leitos de terapia intensiva, as intervenções diante do esgotamento dos recursos e a assistência integral que deve incluir o alívio do sofrimento dos pacientes não eleitos, registrando a importância da abordagem dos Cuidados Paliativos. (CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, 2020)

Contudo, feitas essas considerações paralelas, deve ficar claro que no âmbito da responsabilidade civil antes de se analisar os elementos subjetivos da responsabilidade, quais sejam, o dolo e a culpa (imprudência, imperícia e negligência) deve-se perquirir se existe no mundo fático conduta juridicamente relevante.

Da mesma forma, foi publicada recomendação do CREMERJ, indicando uma triagem que considere a gravidade clínica, a gravidade das doenças de base incuráveis e progressivas, se houver, e desconsiderando a faixa etária como critério. (CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, 2020)

Assim, diante da ausência de opções, a tomada de decisão pelo médico conforme os critérios acima descritos é o enquadramento legal de ausência de conduta voluntária.

A conduta humana é o primeiro elemento da responsabilidade civil.

O Professor Pablo Stolze Gagliano preleciona que:

O núcleo fundamental, portanto, da noção de conduta humana é a voluntariedade, que resulta exatamente da liberdade de escolha do agente imputável, com discernimento necessário para ter consciência daquilo que faz. (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2017)

O médico não poderá, então, ser responsabilizado pela decisão tomada de destinar um respirador para um paciente e não o outro, atendidos os critérios já expostos, vez que não há liberdade de escolha na tomada de decisão diante do colapso do sistema de saúde, de modo que não tem voluntariedade ao deixar de proporcionar todos os recursos a todos os pacientes, justamente porque estes não estão disponíveis para todos no enfrentamento de emergência de saúde pública decorrente da pandemia da Covid-19.

Por outro prisma, pensando o dilema médico sob o aspecto da imputação objetiva, não deve-se juridicamente imputar ao profissional o resultado de eventual ausência de recurso disponível necessário para o atendimento e o tratamento, vez que a ação ou a omissão do médico não cria ou incrementa uma situação de risco não permitido, posto que o médico não tem opções menos onerosas, tendo apenas, em algumas situações, a injusta missão de administrar os recursos dos quais ainda dispõe. (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2017)

Desta forma, a tomada de decisão do médico, salvo prova de que foi tomada com nítidas violações éticas, não é fato gerador de responsabilidade civil, seja pela ausência de conduta voluntária, seja pela ausência de nexo causal diante das circunstâncias nas quais não é possível evitar o inevitável resultado danoso.

O Instituto de Estudos para Políticas de Saúde em nota técnica sobre a infraestrutura necessária para a pandemia, aponta resultado que evidencia que são poucos os recursos na maioria das regiões no Brasil com a rápida sobrecarga que se dá com a evolução da epidemia no Brasil. (RACHE, 2020)

O referido Instituto ainda acrescenta que se faz necessária a adoção de medidas que fortaleçam os serviços essenciais de saúde, com o aumento da capacidade instalada.

A Sociedade Brasileira de Bioética indica ser necessária a alocação dos profissionais de saúde em número adequado, além do aumento efetivo de segurança sanitária, assegurando medidas de mitigação de exaustão e disponibilização e preparo para o uso de Equipamentos de Proteção Individual (EPI) e o acesso tempestivo a testes diagnósticos para a doença. Consta ainda na recomendação XVI “Seja assegurado que, ao final da pandemia, haja necessário investimento no SUS, na pesquisa aplicada e na formação e ampliação do quadro de profissionais e pesquisadores em todas as áreas de atividades no Brasil”. (SOCIEDADE BRASILEIRA DE BIOÉTICA, 2020)

O Estado deve garantir o direito à saúde do cidadão como um direito social constitucionalmente assegurado, disponibilizando todos os recursos necessários como leitos, testes para o diagnóstico da doença e todos os demais recursos para o combate do avanço da pandemia, assim como deve garantir as condições de trabalho dos médicos e demais profissionais de saúde, como equipamentos de proteção individual e proporção dos profissionais à demanda. (BRASIL, 1988)

          Pela manifesta distinção da realidade das condições de trabalho do médico no cenário da Covid-19, o Professor Nelson Rosenvald indica proposta legislativa de isenção de responsabilidade dos profissionais de saúde por simples negligência. No texto sugerido é possível verificar que a proposta não objetiva isentar o profissional em caso de grave negligência. (ROSENVALD, 2020)

O texto:

Art. X Dadas as circunstâncias urgentes e dramáticas em que médicos, profissionais de saúde e outros provedores do setor médico precisam prestar serviços, o Estado deve garantir que a partir de 20 de março de 2020 até o final da declaração de emergência esses profissionais não sejam responsabilizados por eventos adversos relacionados a covid-19, exceto em casos de grave negligência.

  • 1º O mesmo se aplica a outros profissionais e titulares de cargos públicos que tiveram que tomar decisões rápidas e difíceis diretamente relacionadas à crise da covid-19.
  • 2º Essas isenções não se aplicam ao Estado, que permanece responsável de acordo com o regime específico de responsabilidade existente. (ROSENVALD, 2020)

Para o professor Nelson Rosenvald a lógica se fundamenta no princípio da reciprocidade. Para ele, na medida em que a sociedade pede a alguns de seus membros que estes, para servir a interesse público tão essencial, corram riscos, é razoável que a sociedade, por outro lado, corra alguns riscos, pois profissionais de saúde prestam serviços em circunstâncias perigosas, em ambiente difícil e desprovidos de recursos. (ROSENVALD, 2020).

Se o médico tem como direito suspender suas atividades em caso de ausência de condições adequadas ao exercício profissional, conforme consta do Código de Ética Médica (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2009), e é o que se observa em muitos hospitais, o que se espera, minimamente, é uma adequação do “cuidado razoavelmente exigível”, de acordo com o cenário colocado pela pandemia (ROSENVALD, 2020).

Considerações finais

São importantes as publicações da Sociedade de Bioética Brasileira (SOCIEDADE BRASILEIRA DE BIOÉTICA, 2020) e do CREMERJ nº 05/2020 (CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA, 2020) que instrumentalizam as difíceis escolhas dos médicos e demais profissionais.

Em outra publicação com recomendações sobre a alocação de recursos em esgotamento, de vários órgãos – Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB), Associação Brasileira de Medicina de Emergência (ABRAMEDE), Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG) e Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP), se destacou o seguinte:

(…) é de responsabilidade de gestores e autoridades competentes assumir o compromisso com a ampliação da oferta de recursos em esgotamento de maneira a tornar a necessidade da deflagração um protocolo de triagem uma possibilidade apenas remota. Entendemos que os médicos não devem arcar sozinhos com o peso de decisões emocionalmente tão difíceis e que a população deva ter que arcar com o trauma de testemunhar mortes que poderiam ser evitadas com a ampliação de serviços. (KRETZER et al, 2020)

Porém, mais do que os referidos movimentos, é essencial que o Estado apresente todos os instrumentos necessários e possíveis à contenção no número de óbitos, por meio de um plano de governo sólido e unificado. O que não ocorreu no Brasil até a elaboração deste artigo.

Independente do cenário de desequilíbrio político e sanitário do Brasil com a Covid-19, é importante registrar que o SUS sempre enfrentou a insuficiência de recursos para a manutenção da rede de seus serviços e a remuneração de seus trabalhadores, diante da limitação de investimentos para a ampliação de sua infraestrutura (PAIM, 2018). Vários fatores contribuíram, ao longo dos anos, à referida vulnerabilidade, como a crise econômica e a própria Emenda Constitucional nº 95/2016 (BRASIL, 2016) que congelou o orçamento público durante vinte anos (PAIM, 2018).

Wellington Wesley Paiva e Thiago Rocha da Cunha expõem criticamente que:

Um Tsunami de desgovernabilidade, imprudência política e desrespeito mundial para com as pessoas em vulnerabilidade social são as respostas que encontramos em meio ao cenário da pandemia COVID-19. A responsabilidade é um conceito ético não assumido por governantes quando o assunto econômico urge frente aos cuidados para com o próximo “a morte é uma realidade inevitável, o ser humano é temporal, a vida é finita. Contudo, o viver sofrido quase sempre leva a morrer fora do tempo ou antes da hora”. É sem dúvida uma injustiça social o desrespeito com a dignidade da vida, no entanto, “a morte mistanásica pode ser removida” (idem), quando assumida dentro de um plano onde se governa para a vida e dela deriva suas prerrogativas. (PAIVA; CUNHA, 2020)

Após o término deste enfrentamento dramático aos efeitos da Covid-19, os médicos e demais profissionais não devem responder por todos os eventos danosos relacionados à covid-19, exceto em casos de grave negligência. Já há um prejuízo intenso experimentado pelos médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, dentre outros profissionais ligados direta e indiretamente aos serviços de saúde, pois estes lidam diariamente com rápido avanço no número de casos com pacientes graves adentrando os hospitais.

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SOCIEDADE BRASILEIRA DE BIOÉTICA. Recomendação SBB nº 01/2020: aspectos éticos no enfrentamento da COVID-19. Brasília. Disponível em: <http://www.sbbioetica.org.br/Noticia/754/RECOMENDACAO-SBB-N-012020-aspectos-eticos-no-enfrentamento-da-COVID-19>. Acesso em: 16/05/2020

Notas de Rodapé:

[1] Advogada, mestranda pela Universidade Federal do Rio de Janeiro no Mestrado Profissional de Atenção Primária à Saúde (APS) em parceria com a Faculdade de Medicina e o Instituto de Atenção à Saúde São Francisco de Assis, tem como foco de pesquisa a conscientização do poder de autonomia do cidadão na terminalidade com o uso do testamento vital pelos Médicos de Família e Comunidade na APS no Sistema Único de Saúde – SUS. Sócia do Escritório Nicodemos Nederstigt Advogados Associados, com atuação há mais de 15 anos, com foco nos Direitos Humanos e no Direito Internacional.

[2]Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.

 

Palavras Chaves

pandemia, mistanásia, médico, responsabilidade