AS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS DE 1824 E 1891 E A CONSOLIDAÇÃO DA RUPTURA DA ORDEM POLÍTICA

Resumo

O constitucionalismo pode ser definido a partir de três diferentes perspectivas: formal, material e histórica. Sob a perspectiva formal, o constitucionalismo designa o ideal de dotar os Estados de constituições escritas. Em sua dimensão material, o constitucionalismo é o reflexo da incidência da ideologia liberal sobre o fenômeno constitucional. Por fim, o constitucionalismo pode ser ainda empregado para denotar o processo histórico que conduziu à homogeneização das formas e dos conteúdos das constituições do mundo ocidental contemporâneo. O artigo propõe-se a comparar as Constituições brasileiras de 1824 e 1891 demonstrando, numa narrativa histórica, que a primeira Constituição da República consolidou a ruptura da ordem política (monárquica/parlamentarista/unitária) e instauração de uma nova ordem (republicana/presidencialista/federativa). A metodologia científica adotada durante à execução da pesquisa pautou-se numa abordagem interdisciplinar (História do Direito e Direito Constitucional) haja vista a natureza do objeto.

Abstract

Constitutionalism can be defined from three different perspectives: formal, material and historical. From a formal perspective, constitutionalism designates the ideal of endowing states with written constitutions. In its material dimension, constitutionalism is a reflection of the incidence of liberal ideology on the constitutional phenomenon. Finally, constitutionalism can still be used to denote the historical process that led to the homogenization of the forms and contents of the constitutions of the contemporary western world. The article proposes to compare the Brazilian Constitutions of 1824 and 1891 demonstrating, in a historical narrative, that the first Constitution of the Republic consolidated the rupture of the political order (monarchical/parliamentary/unitary) and the establishment of a new order (republican/ presidential/federative). The scientific methodology adopted during the execution of the research was based on an interdisciplinary approach (History of Law and Constitutional Law) in view of the nature of the object.

Keywords: Constitution of 1824; Constitution of 1891; consolidation; break; political order

Artigo

AS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS DE 1824 E 1891 E A CONSOLIDAÇÃO DA RUPTURA DA ORDEM POLÍTICA

Heron Abdon Souza[1]

 RESUMO

O constitucionalismo pode ser definido a partir de três diferentes perspectivas: formal,  material e histórica. Sob a perspectiva formal, o constitucionalismo designa o ideal de dotar os Estados de constituições escritas. Em sua dimensão material, o constitucionalismo é o reflexo da incidência da ideologia liberal sobre o fenômeno constitucional. Por fim, o constitucionalismo pode ser ainda empregado para denotar o processo histórico que conduziu à homogeneização das formas e dos conteúdos das constituições do mundo ocidental contemporâneo. O artigo propõe-se a comparar as Constituições brasileiras de 1824 e 1891 demonstrando, numa narrativa histórica, que a primeira Constituição da República consolidou a ruptura da ordem política (monárquica/parlamentarista/unitária) e instauração de uma nova ordem (republicana/presidencialista/federativa). A metodologia científica adotada durante à execução da pesquisa pautou-se numa abordagem interdisciplinar (História do Direito e Direito Constitucional) haja vista a natureza do objeto.

Palavras-chave: Constituição de 1824; Constituição de 1891; consolidação; ruptura; ordem política

 

 

ABSTRACT

 

Constitutionalism can be defined from three different perspectives: formal, material and historical. From a formal perspective, constitutionalism designates the ideal of endowing states with written constitutions. In its material dimension, constitutionalism is a reflection of the incidence of liberal ideology on the constitutional phenomenon. Finally, constitutionalism can still be used to denote the historical process that led to the homogenization of the forms and contents of the constitutions of the contemporary western world. The article proposes to compare the Brazilian Constitutions of 1824 and 1891 demonstrating, in a historical narrative, that the first Constitution of the Republic consolidated the rupture of the political order (monarchical/parliamentary/unitary) and the establishment of a new order (republican/ presidential/federative). The scientific methodology adopted during the execution of the research was based on an interdisciplinary approach (History of Law and Constitutional Law) in view of the nature of the object.

Keywords: Constitution of 1824; Constitution of 1891; consolidation; break; political order

 

 

 

  1. INTRODUÇÃO

 O constitucionalismo pode ser definido a partir de três diferentes perspectivas:  formal, material e histórica. Sob a perspectiva formal, o constitucionalismo designa o ideal de dotar os Estados de constituições escritas. Em sua dimensão material, o constitucionalismo é o reflexo da incidência da ideologia liberal sobre o fenômeno constitucional. Por fim, o constitucionalismo pode ser ainda empregado para denotar o processo histórico que conduziu à homogeneização das formas e dos conteúdos das constituições do mundo ocidental contemporâneo.

O artigo propõe-se a comparar as Constituições brasileiras de 1824 e 1891 demonstrando, numa narrativa histórica, que a primeira Constituição da República consolidou a ruptura da ordem política (monárquica/parlamentarista/unitária) e instauração de uma nova ordem (republicana/presidencialista/federativa). A metodologia científica adotada durante à execução da pesquisa pautou-se numa abordagem interdisciplinar (História do Direito e Direito Constitucional) haja vista a natureza do objeto.

 

  1. CONSTITUIÇÃO DE 1824

O processo de formação do constitucionalismo brasileiro iniciou-se nas primeiras décadas do século XIX em um ambiente marcado pela forte influência das ideias que nortearam as Revoluções francesa e norte-americana, sem prejuízo das lutas pela independência do domínio europeu que eclodiram por todo o continente americano.

            Essa complexa conjuntura possibilitou o surgimento de um movimento de forte orientação liberal e profundamente influenciado pela necessidade de formação de uma identidade nacional.

            No ano de 1823 foi reunida a primeira Assembleia Constituinte formada por representantes de uma parcela da aristocracia brasileira que ansiava pela introdução de institutos que há muito faziam parte da tradição política europeia. No entanto, desde sua formação, os interesses do Imperador e os da Assembleia já se mostravam inconciliáveis. O “(…) problema principal estava na não concordância de D. Pedro I do veto apenas suspensivo; embora moderado, o projeto constitucional feria os brios absolutistas do monarca e de seus aliados”.[2]

Diante da possibilidade de ter seu poder limitado, D. Pedro I dissolveu a Assembleia Constituinte,[3] em 12 de novembro de 1823,[4] sob a alegação de perjúrio.[5] No dia seguinte o Imperador convocou o Conselho de Estado dotado da incumbência de redigir a Carta Constitucional.[6] A primeira Constituição brasileira foi outorgada em 25 de março de 1824.

            A estrutura básica do poder político era composta pelos seguintes órgãos: Poder Moderador, Poder Judiciário, Poder Executivo e Poder Legislativo. O ponto central do sistema político inaugurado com a Constituição imperial foi a concepção de um “quarto poder”: o Poder Moderador.[7] Instituto político-jurídico concebido pelo pensador francês Benjamin Constant em cujo núcleo sintetizava a ideia de que o monarca personificaria um poder independente e neutro, responsável pela manutenção do equilíbrio institucional.

            Segundo Benjamin Constant:

Até agora, têm se distinguido três poderes em tais organizações políticas. De minha parte, distingo cinco, de naturezas diferentes, numa monarquia constitucional: primeiro, o poder real; segundo, o poder executivo; terceiro, o poder representativo da continuidade; quarto, o poder representativo da opinião; quinto, o poder de julgar. O poder representativo da continuidade reside numa assembléia hereditária; o poder representativo da opinião, em uma assembléia eleita; o poder executivo está confiado aos ministros; o poder julgar, aos tribunais. Os dois primeiros poderes fazem as leis; o terceiro cuida de sua execução geral e o quarto julga os casos particulares. O poder real está acima destes quatro poderes; autoridade ao mesmo tempo superior e intermediária, interessado em manter o equilíbrio, e com máxima preocupação de conservá-lo.[8]

            Contudo, a concentração de poderes nas mãos do Imperador permitiu a manutenção de um intenso desequilíbrio entre os poderes constituídos, porquanto o monarca era, de fato, dotado de potestade quase absoluta.[9]

            A função executiva era exercida pelo Imperador, Chefe do Poder Executivo, por intermédio de seus Ministros de Estado. A partir da abdicação do trono por D. Pedro I, em 7 de abril de 1831, durante a fase da Regência (que durou 9 anos durante a menoridade de Pedro de Alcântara) e, em seguida, já no reinado de D. Pedro II, foi-se instituindo, paulatinamente, o parlamentarismo monárquico no Brasil.

O parlamentarismo consolidou-se com a criação do cargo de Presidente do Conselho de Ministros pelo Decreto nº 523, de 20 de julho de 1847, segundo o qual D. Pedro II escolhia o Presidente do Conselho e este, por sua vez, escolhia os demais Ministros que deveriam ter a confiança dos Deputados e do Imperador, sob pena de ser dissolvido.

Todo o processo de instituição do parlamentarismo monárquico no Brasil ocorreu a revelia dos valores preceituados na Constituição. Nesse sentido anota Celso Barros que, em determinado momento da monarquia, “(…) floresceu uma prática parlamentarista que acabou por implantar no país um regime que o texto frio da Constituição não autorizava, mas ao contrário vedada.”[10] Nesse diapasão, assevera Octaviano Nogueira que o parlamentarismo era “Na verdade, mais uma imposição política e uma concessão do imperador do que um preceito da Constituição. Esta, ao contrário, não só não o autorizava como, na doutrina e na prática o vedava.”[11]

            O Poder Legislativo era exercido pela Câmara dos Deputados e pelo Senado. Os Deputados eram eleitos pelo voto censitário, enquanto os Senadores eram pessoalmente nomeados pelo Imperador a partir de uma lista tríplice de candidatos eleitos nas províncias,[12]  para o exercício de um mandato vitalício. Cabia ao aludido Poder as “(…) prerrogativas de interpretar as leis e de velar na guarda da Constituição, e a definição do que seria matéria constitucional, para fins de alteração de seu texto”.[13]

            O poder do Imperador era igualmente exercido em nível local pois as antigas capitanias, então transformadas em províncias, eram administradas por Presidentes livremente nomeados e exonerados pelo Monarca.

            A estrutura do Estado brasileiro foi responsável pela manutenção de um sistema de patronato,[14] no qual os critérios de preenchimento de cargos públicos tinham por base a lealdade para com o Imperador.

            Tal configuração do poder institucionalizado conduziria a um absolutismo monárquico de cunho eminentemente patrimonialista, mas que era, paradoxalmente, legitimado por uma Constituição que havia sido forjada nos moldes da ideologia liberal.

            O modelo importado serviu bem aos interesses da oligarquia que, comodamente, havia voltado sua atenção para a defesa dos valores e das instituições liberais europeias, mas que havia fechado os olhos para os inúmeros problemas que afetavam a sociedade brasileira. Fenômeno observado por Emília Viotti da Costa, citada pelo professor José Afonso da Silva, nos seguintes termos:

Para estes homens, educados à européia, representantes das categorias dominantes, a propriedade, a liberdade, a segurança garantidas pela Constituição eram reais. Não lhes importava se a maioria da Nação se constituía de uma massa humana para a qual os preceitos constitucionais não tinham a menor eficácia. Afirmava-se a liberdade e a igualdade de todos perante a lei, mas a maioria da população permanecia escrava. Garantia-se o direito de propriedade, mas 19/20 da população, segundo calculava Tollenare, quando não era escrava, compunha-se de ‘moradores’ vivendo nas fazendas em terras alheias, podendo ser mandados embora a qualquer hora. Garantia-se a segurança individual, mas podia-se matar impunemente um homem. Afirmava-se a liberdade de pensamento e de expressão, mas não foram raros os que como Davi Pamplona ou Líbero Badaró pagaram caro por ela. Enquanto o texto da lei garantia a independência da Justiça, ela se transformava num instrumento dos grandes proprietários. Aboliam-se as torturas, mas, nas senzalas, os troncos, os anjinhos, os açoites, as gargalheiras, continuavam a ser usados, e o senhor era o supremo juiz decidindo da vida e da morte de seus homens.[15]

  1. CONSTITUIÇÃO DE 1891

 Com o passar dos anos a centralização do poder nas mãos do Imperador transformou-se em uma verdadeira maldição pois a apatia do fim do segundo império, ao se fundir com os vícios do patronato institucionalizado, teve como resultado uma grande desarticulação do governo imperial.[16]

            Desencadeou-se, dessa forma, uma profunda crise de legitimidade que catalisou o início do fim do império e o quase imperceptível surgimento da república em terras brasileiras.

            A vitória das forças republicanas representou a consagração do ideal de descentralização política e a rejeição das instituições monárquicas. O próprio Rui Barbosa, normalmente saudado como exemplo de republicano, era um convicto defensor da implantação do Estado federal. Em discurso sobre a Organização das Finanças Republicanas, proferido no Congresso Nacional em 16 de novembro de 1890, Rui Barbosa, então Ministro da Fazenda, declarou: “Eu era, senhores, federalista, antes de ser republicano. Não me fiz republicano, senão quando a evidência irrefragável dos acontecimentos me convenceu de que a monarquia se incrustara irredutivelmente na resistência da Federação.”[17]

            Apesar de sua importância, a Proclamação da República ocorreu sem muito estardalhaço. De certa forma, o processo de transmissão do poder político não passou de uma mera “quartelada” já que não conseguiu contar com a participação popular. Segundo José Murilo de Carvalho: “a proclamação, afinal, resultou de um motim de soldados com o apoio de grupos políticos da capital”.[18]

            No entanto, é incontestável que a estrutura de sustentação do império há muito já apresentava sinais de deterioração. A abolição do trabalho escravo e o nascimento da indústria contribuíram para acelerar a desmontagem dos alicerces do Estado imperial brasileiro.

            Com a Proclamação da República, assumiu a chefia do Governo Provisório o Marechal Deodoro da Fonseca cujo primeiro ato foi a edição do Decreto nº 1 de 15 de novembro de 1889. Logo em seguida, relata Olavo Leonel Ferreira, o chefe do Governo Provisório dirigiu-se aos seus concidadãos para declarar:

O povo, o exército e a armada nacional, em perfeita comunhão de sentimentos com nossos concidadãos residentes nas províncias, acaba de decretar a deposição da dinastia imperial e conseqüentemente a extinção do sistema monárquico representativo.[19]

             O ato mais forte do Governo Provisório foi a criação da Comissão Militar de Sindicâncias e Julgamentos:

Os indivíduos que conspirarem contra a República e o seu governo; que aconselharem ou promoverem por palavras escritas ou atos, a revolta civil e a indisciplina militar; que tentarem o suborno ou a aliciação de qualquer gênero sobre soldados e oficiais, contra seus deveres para com os superiores e a forma republicana; que divulgarem nas fileiras do Exército e da Armada noções falsas e subversivas, tendentes a indispô-los com a República; que usarem de embriaguez para insubordinar os ânimos dos soldados; serão julgados militarmente por uma comissão militar nomeada pelo ministro da Guerra e punidos com as penas de sedição.[20]

            O Decreto nº 1, de 15 de novembro de 1889, foi o instrumento normativo de transição que, inspirado na Carta Constitucional norte-americana, simbolizou o advento da República dos Estados Unidos do Brasil.

            Em 15 de novembro de 1890 instalou-se a Assembleia Constituinte e em 3 de dezembro do mesmo ano foi formada uma comissão de notáveis, à qual se atribuiu a incumbência de elaborar um projeto de Constituição. Três propostas foram submetidas à apreciação do Governo e revistas pelos Ministros na casa de Rui Barbosa que explicou como foram os trabalhos:

Diariamente me davam S.Exas. A satisfação de reunir-se em minha casa, às 2 horas da tarde, ali colaboravam todos comigo até às 5 e meia e, depois de jantarmos juntos ali mesmo, dirigíamo-nos, reunidos, a Itamarati, onde eu, por delegação de todos os meus colegas presentes, funcionava no caráter de seu vogal perante o Chefe do Estado, justificando, como interprete do pensamento deles, o nosso projeto constitucional. Isso durante 12 ou 15 dias. Assim se fez a Constituição.[21]

            De forte inspiração na Constituição dos Estados Unidos da América, a Constituição brasileira promulgada em 24 de fevereiro de 1891 foi responsável pela introdução de profundas transformações na estrutura do poder institucionalizado. A Carta denotou uma especial preocupação com a adoção da federação (abandonando o unitarismo imperial) de modo que cada uma das antigas províncias foi transformada em Estado federado.

            Apesar da Constituição de 1891 abolir o voto censitário, o que certamente foi um a avanço democrático, deve-se considerar às distorções práticas impostas pelo “coronelismo” e pelo próprio Estado.[22]

            No tocante as garantias constitucionais, na Constituição de 1891 houve expressa previsão[23], pela primeira vez no constitucionalismo pátrio, do remédio constitucional do habeas corpus.[24]

            Um aspecto interessante dado pela Constituição de 1891 às eleições nos municípios foi a autonomia que cada Estado tinha em deliberar sobre a matéria. Desta forma houve grande variação quanto ao processo eleitoral dos municípios.[25] Nesse diapasão, leciona Jairo Nicolau:

Em alguns estados havia eleição para chefe do Executivo (o nome variava de acordo com o estado: prefeito, intendente, superintendente, agente do executivo) em todos os municípios. Em Minas Gerais (entre 1903-30) e no Rio de Janeiro (até 1920), o presidente da Câmara era responsável pela função executiva. Em alguns Estados (Ceará e Paraíba) todos os prefeitos eram indicados pelo governador. Em outros, havia a indicação para os prefeitos de capitais, estâncias hidrominerais e cidades com obras e serviços de responsabilidade do estado.[26]

            O Estado deixou de ter uma única religião oficial (católica) haja vista que a Constituição de 1891 assegurou ampla liberdade religiosa. Cada pessoa podia exercer seu culto em público e livremente. Como consequência da separação entre Estado e Igreja, reconheceu-se válido apenas o casamento civil[27] e proibiu-se subvenção oficial a culto ou igreja, bem como qualquer tipo de dependência ou de aliança entre religião e poder político.

            O Poder Moderador foi extinto, adotando-se a teoria clássica da tripartição de “Poderes”.[28] O sistema de governo parlamentarista foi substituído pelo presidencialismo.[29]

            A Constituição Republicana foi a primeira a outorgar ao Poder Judiciário o exercício do controle de constitucionalidade das leis e demais atos do Poder Público.  O Poder Judiciário foi estruturado no sistema dual, composto pelo Poder Judiciário Federal e pelos Poderes Judiciários Estaduais.[30]

            Ressalte-se que as forças políticas atuantes no Brasil Imperial eram artificialmente contidas pela centralização política imposta pela Constituição de 1824. Com a adoção do federalismo iniciou-se um processo que resultou no fortalecimento dos poderes locais que causou, em contrapartida, uma sensível debilitação do poder central.

            Diante da inversão do jogo de forças políticas, logo se constatou que o poder central não seria capaz de manter-se, salvo se escorasse nos poderes estaduais.

            Ocorre que a força política dos governadores provinha dos coronéis que, apesar de não representarem um poder de direito, detinham o poder de fato pois eram capazes de decidir o futuro daqueles que aspiravam a um cargo eletivo. Sua força provinha da possibilidade do efetivo exercício do controle do voto dos eleitores.

            Esse complexo jogo de forças políticas era absolutamente desarmônico com a distribuição do poder institucionalizado estabelecida pela Constituição, o que demonstra a existência de um abismo instransponível entre a Constituição real e a formal. Uma tentativa de solução foi a Reforma Constitucional de 03 de setembro de 1926 que centralizou o poder e restringiu a autonomia dos Estados. Segundo Celso Bastos, a Reforma de 1926 foi:

(…) marcada por uma conotação nitidamente racionalista, autoritária, introduzindo alterações no instituto da intervenção da União nos Estados, no Poder Legislativo, no processo legislativo, no fortalecimento do Executivo, nos direitos e garantias individuais e na Justiça Federal.[31]

                       

  1. CONSIDERAÇÕES FINAIS

 O estudo comparativo das Constituições brasileiras de 1824 e 1891 proporciona um entendimento de que a evolução histórico-constitucional do Brasil não se deu de forma linear. Nesse sentido, o advento da Constituição de 1891 significou, essencialmente, a consolidação da ruptura da ordem política em vigor (monárquica/parlamentarista/unitária) e, consequentemente, a instauração dos fundamentos de uma nova ordem (republicana/presidencialista/federativa).

  1. REFERÊNCIAS

 BARBOSA, Rui. Pensamento e Ação de Rui Barbosa. Organização e seleção de textos pela Fundação Casa de Rui Barbosa. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 1999, p.84. Disponível em https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/1033/218071.pdf?sequence=4. Acesso em 25/04/2021.

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 21ª Ed. São Paulo: Saraiva, 1999.

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História constitucional do Brasil. Brasília; Paz e Terra, 1989.

BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de 1891. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao91.htm. Acesso em 25 abr. 2021

BRASIL. Constituição Política do Império do Brasil de 1824. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao24.htm>. Acesso em 23 abr. 2021

CALDEIRA, Jorge; CARVALHO, Flávio de; MARCONDES, Claudio; PAULA, Sérgio Goes de. Viagem pela história do Brasil. 2ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

CARDOSO, Fernando Henrique. A construção da democracia: ensaios sobre política. 2ª Ed. São Paulo: Siciliano, 1993.

CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

CONSTANT, Benjamim. Princípios políticos constitucionais. Rio de Janeiro: Liber Juris, 1989.

DEIRÓ, Pedro Eunápio da Silva. Fragmentos de estudos da história da Assembléia Constituinte do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2006. Disponível em https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/1117/752967.pdf?sequence=4. Acesso em 23/04/2021.

FERREIRA, Olavo Leonel. 500 anos de História do Brasil. Brasília: Senado Federal, v.57, 2005.

FUNDAÇÃO CASA DE RUI BARBOSA. Rui Barbosa e a Constituição de 1891. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1985.

GRINBERG, Keila. Código Civil e cidadania. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

LAMOUNIER, Bolívar. Da Independência à Lula: dois séculos de política brasileira. São Paulo: Augurium, 2005.

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007.

MENDES JÚNIOR, Antonio; RONCARI, Luiz; MARANHÃO,Ricardo (Orgs.). Brasil história: texto e consulta – Império. São Paulo: Hucitec, V. 02, 1991.

MONTEIRO, Hamilton M. Brasil República. 3.ed. São Paulo: Ática, 1994.

NICOLAU, Jairo. História do voto no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

NOGUEIRA, Octaviano. Constituições Brasileiras:1824. Brasília: Senado Federal, 1999.

SILVA, José Afonso da. Poder constituinte e poder popular: estudos sobre a Constituição. São Paulo: Malheiros, 2000.

Notas:

[1] Advogado (OAB/RJ 92610). Professor Adjunto de Introdução Histórica do Direito e Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense. Pós-Doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

[2] MENDES JÚNIOR, Antonio; RONCARI, Luiz; MARANHÃO, Ricardo (Orgs.). Brasil história: texto e consulta – Império. São Paulo: Hucitec, V.02, 1991, p.179.

[3] “O confronto entre o poder coletivo e desarmado que era a Assembléia e o poder pessoal dispondo das armas de toda a nação, representado pelo monarca, não poderia ser resolvido senão a favor da força.” (NOGUEIRA, Octaviano. Constituições Brasileiras:1824. Brasília: Senado Federal, 1999, p.45).

[4] “O príncipe já exercia o governo antes da constituição do Estado e considerava-se a si mesmo soberano; dispunha de todos os meios de ação. No decreto de 12 de novembro, invoca a sua superioridade dizendo – havendo eu convocado, como tinha o direito de convocar” (DEIRÓ, Pedro Eunápio da Silva. Fragmentos de estudos da história da Assembléia Constituinte do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2006, p. 59. Disponível em https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/1117/752967.pdf?sequence=4. Acesso em 23/04/2021).

[5] BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História constitucional do Brasil. Brasília: Paz e Terra, 1989, p.561.

[6] “(…) no discurso que pronunciou na sessão de 3 de maio, manifestou a supremacia de sua vontade declarando que – só aceitaria a Constituição, se fosse digna dele Imperador. (Deiró, Pedro Eunápio da Silva. Fragmentos de estudos da história da Assembléia Constituinte do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2006, p. 59. Disponível em https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/1117/752967.pdf?sequence=4. Acesso em 23/04/2021).

[7] Art. 98 da Constituição de 1824 – O Poder Moderador é a chave de toda a organisação Politica, e é delegado privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da Independência , equilibrio, e harmonia dos mais Poderes Políticos. (BRASIL. Constituição Política do Império do Brasil de 1824. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao24.htm>. Acesso em 23 abr. 2021).

[8] CONSTANT, Benjamim. Princípios políticos constitucionais. Rio de Janeiro: Liber Juris, 1989, p.74.

[9] Art. 101 da Constituição de 1824 – O Imperador exerce o Poder Moderador I. Nomeando os Senadores, na fórma do Art. 43. II. Convocando a Assembléa Geral extraordinariamente nos intervallos das Sessões, quando assim o pede o bem do Imperio. III. Sanccionando os Decretos, e Resoluções da Assembléa Geral, para que tenham força de Lei: Art. 62. IV. Approvando, e suspendendo interinamente as Resoluções dos Conselhos Provinciaes: Arts. 86, e 87. V. Prorogando, ou adiando a Assembléa Geral, e dissolvendo a Camara dos Deputados, nos casos, em que o exigir a salvação do Estado; convocando immediatamente outra, que a substitua. VI. Nomeando, e demittindo livremente os Ministros de Estado. VII. Suspendendo os Magistrados nos casos do Art. 154. VIII. Perdoando, e moderando as penas impostas e os Réos condemnados por Sentença. IX. Concedendo Amnistia em caso urgente, e que assim aconselhem a humanidade, e bem do Estado. (BRASIL. Constituição Política do Império do Brasil de 1824. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao24.htm>. Acesso em 23 abr. 2021).

[10] BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 21ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p.22.

[11] NOGUEIRA, Octaviano. Constituições Brasileiras: 1824, Brasília: Senado Federal, 1999, p.19.

[12] LAMOUNIER, Bolívar. Da Independência à Lula: dois séculos de política brasileira. São Paulo: Augurium, 2005, p.28.

[13] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p.154.

[14] CARDOSO, Fernando Henrique. A construção da democracia: ensaios sobre política. 2ª Ed. São Paulo: Siciliano, 1993, p.24.

[15] SILVA, José Afonso da. Poder constituinte e poder popular: estudos sobre a Constituição. São Paulo: Malheiros, 2000, p.93.

[16] CALDEIRA, Jorge; CARVALHO, Flávio de; MARCONDES, Claudio; PAULA, Sérgio Goes de. Viagem pela história do Brasil. 2ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p.223.

[17] BARBOSA, Rui. Pensamento e Ação de Rui Barbosa. Organização e seleção de textos pela Fundação Casa de Rui Barbosa. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 1999, p.84. Disponível em https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/1033/218071.pdf?sequence=4. Acesso em 25 abr. 2021.

[18] CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Cia das Letras, 1987, p.13.

[19] FERREIRA, Olavo Leonel. 500 anos de História do Brasil. Brasília: Senado Federal, v.57, 2005, p.441.

[20] MONTEIRO, Hamilton M. Brasil República. 3.ed. São Paulo: Ática, 1994, p.27.

[21] FUNDAÇÃO CASA DE RUI BARBOSA. Rui Barbosa e a Constituição de 1891. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1985, p.2

[22] Pela lei eleitoral de 1892 as eleições, de qualquer nível, eram feitas de maneira a facilitar à fraude. O candidato não precisava estar cadastrado e pertencer a nenhum partido. As células eleitorais não eram oficiais e, principalmente, o voto não era secreto. As mulheres e os analfabetos foram excluídos como eleitores.

[23] Art. 72, §22 (Redação original, anterior à EC de 03 de setembro de 1926) da Constituição de 1891 – Dar-se-á o habeas corpus, sempre que o indivíduo sofrer ou se achar em iminente perigo de sofrer violência ou coação por ilegalidade ou abuso de poder. (BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de 1891. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao91.htm. Acesso em 25 abr. 2021).

[24] A Constituição de 1824 tutelou a liberdade de locomoção (arts. 179, VI, VIII e IX) e vedou a prisão arbitrária.

[25] Art. 68 da Constituição de 1891 – Os Estados organizar-se-ão de forma que fique assegurada a autonomia dos Municípios em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse. (BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de 1891. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao91.htm. Acesso em 25 abr. 2021).

[26] NICOLAU, Jairo. História do voto no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002, p.28.

[27] “(…) o Estado brasileiro (durante o império), seguindo tradição portuguesa, delegava à Igreja Católica a tarefa de organizar todas as etapas da vida dos habitantes do país, cabendo a ele legislar sobre as propriedades e heranças delas advindas. (…) Para além dos problemas causados por essa ligação perigosa, havia também o fato de ela trazer implícita a consideração de que a população brasileira era composta única e exclusivamente de católicos.” (GRINBERG, Keila. Código Civil e cidadania. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p.38.)

[28] Art. 15 da Constituição de 1891 – São órgãos da soberania nacional o Poder Legislativo, o Executivo e o Judiciário, harmônicos e independentes entre si. (BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de 1891. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao91.htm. Acesso em 25 abr. 2021).

[29] Art. 41 da Constituição de 1891 – Exerce o Poder Executivo o Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil, como chefe eletivo da Nação.  (BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de 1891. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao91.htm. Acesso em 25 abr. 2021).

[30] No império o sistema era baseado na unidade e na centralização.

[31] BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 21ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 110.

Palavras Chaves

Constituição de 1824; Constituição de 1891; consolidação; ruptura; ordem política