Caso Panair do Brasil: Lawfare e mecanismos da Justiça de Transição

Artigo

Caso Panair do Brasil: Lawfare e mecanismos da Justiça de Transição

 

  1. Introdução

Através da Lei de Anistia (Lei nº 6.683/1979), foram perdoados tanto crimes políticos de militantes contrários ao regime ditatorial brasileiro, quanto crimes praticados por militares, sob o argumento de que estavam sob o regular cumprimento dos preceitos legais, pautados em normas jurídicas ad hoc criadas com o fim de deturpar o que se entende mundialmente como proteção aos mínimos direitos fundamentais. Nesta seara, apresentar o Caso Panair do Brasil e de seus respectivos controladores, como único exemplo existente de perseguição política sui generis por meio de lawfare praticado pelo Estado brasileiro durante o regime ditatorial militar e a insuficiência dos mecanismos da justiça de transição, é condição sine qua non, para a construção e manutenção do Estado Democrático de Direito e proteção ao direitos fundamentais, diante da  vulnerabilidade que atualmente encontram-se ambos os institutos.

O regime ditatorial militar no Brasil se estendeu de 1964 a 1985 e durante este período, uma série de políticas de Estado utilizadas com o fim de manter o estado de exceção no país, criando para tanto, mecanismos abusivos e violentos que extrapolaram em muito a concepção de proteção nacional e as normas de proteção do direito humanitário.

Em um Estado de exceção, onde predomina o autoritarismo, são permitidos toda a sorte de violações, de forma bárbara. O Estado arma-se para a guerra em defesa da ideologia predominante. E, tratando-se de guerra, seja ela física, ideológica (fria) ou jurídica, toda a sorte de estratégias e violações são concebidas.

No entanto, ao fim de um período de regime de exceção, a transição para um regime democrático, ainda que pacífico, carrega chagas irreparáveis e daí a necessidade da implantação do que se chama “justiça de transição”.

A justiça de transição foi conceituada pelo Secretário-Geral das Nações Unidas como “o conjunto de medidas e mecanismos associados à tentativa de uma sociedade de lidar com um legado de abusos em larga escala no passado, buscando assegurar legitimidade (accountability), justiça e reconciliação. Dentro de tais mecanismos, pode-se falar em julgamentos individuais, reparações, busca pela verdade, reformas institucionais e expurgos no serviço público.” (MEYER, 2015).

No que tange ao Brasil, a transição para o Estado democrático de direito se deu, inicialmente, através do advento da Lei nº 6.683/79, conhecida como Lei da Anistia, através da qual se impôs o esquecimento às violações atrozes que ambos os lados, contrários ou favor ao regime de exceção, cometeram naquele período. Em que pese as discussões a respeito da inconstitucionalidade da referida lei, o fato é que aqueles que não se colocaram entre as ideologias polarizadas, e sim, por manterem-se sempre em favor da democracia, foram barbaramente violados, de forma hoje comprovada, não obtiveram reparação adequada pela catástrofe que o regime de exceção impôs às suas vidas, à de seus familiares e círculo social.

O uso de mecanismos com o fim de destruir a vida daqueles que eram considerados contrários ao regime então vigente não se deu apenas através de torturas físicas, abusos, estupros, desaparecimentos, ocultação de cadáveres, assassinatos brutais, prisões ilegais, expulsões de empregos, do país e guerrilhas armadas. Deu-se também através de torturas psicológicas, de ordem moral, condenação ao esquecimento, autoexílio, invasões de residências de forma secreta, ameaças, coações, humilhações e destruição patrimonial. Estas formas de violações, ganharam maior destaque recentemente, a partir da criação da Comissão Nacional da Verdade, através da qual foi possível investigar e reconhecer as demais atrocidades cometidas pelo Estado à época, justificadas através de normas criadas para legalizar barbáries em nome da defesa nacional.

Na contramão de todos os entendimentos globais a respeito do tema, o Estado brasileiro, signatário que é de tratados internacionais de proteção aos direitos humanos, insiste em não reparar, de forma ampla e justa — ainda que “reparação ampla e justa” seria o mínimo, comparado à gravidade das violações inomináveis — em virtude da Lei da Anistia, que segundo a nossa corte maior, ultrapassar a referida lei seria o equivalente a desfazer o pacto social engendrado para viabilizar a transição do Estado de exceção para o Estado democrático, o que, respeitosamente, é sabido e notório através de renomados ensinamentos globais, não é um argumento sustentável sob qualquer ângulo que se analise a questão e não é objeto de estudo deste trabalho.

As demais formas de destruição de pessoas físicas por exemplo, se deu também, através de várias outras formas que não se limitam às torturas físicas e demais crimes extremados. Empresários foram vítimas de guerras jurídicas, ou seja, vítimas da criação de normas com o fim de perseguição política com o endosso do Poder Judiciário, configurando-se o chamado lawfare. Estes dois institutos — lawfare e justiça de transição — podem conviver harmonicamente, se um deles é ineficaz ou insuficiente, posto que o primeiro, cria normas jurídicas para através de uma guerra jurídica sejam atacados inimigos e o segundo, não promove, ao menos em nosso país, através de seus mecanismos, a reparação adequada para as vítimas do primeiro. E o único exemplo que temos no país de ocorrência de prática de lawfare pelo Estado brasileiro no regime ditatorial, de que temos notícia atualmente, é o Caso Panair do Brasil e seus respectivos controladores, como se verá doravante. Para realizar este trabalho, foram analisadas leis, artigos, obras literárias, audiovisuais, autos de processos judiciais, relatórios de comissões da verdade, depoimentos, documentos, arquivos apenas acessíveis a partir da quebra de sigilo permitida pela lei brasileira nº 12.527/2011, através da pesquisa descritiva, investigativa, explicativa e bibliográfica.

  1. Sobre o lawfare

Tem-se como conceito de lawfare o uso estratégico do Direito para fins de deslegitimar, prejudicar ou aniquilar um inimigo” (ZANIN, 2019). O lawfare é uma guerra jurídica, na qual as armas utilizadas não são físicas e sim, leis, normas jurídicas. O território escolhido para a realização do embate são os tribunais. O inimigo é aquele se que se opõe ao Estado praticante do lawfare; e para que isto ocorra, “basta, para tanto, que haja um conflito — geopolítico, político e comercial — e pessoas do Sistema de Justiça e dos demais órgãos que aplicam o Direito estejam dispostas a manipular as leis e os procedimentos jurídicos para atingirem fins ilegítimos com o auxílio de alguns recursos de persuasão.”(ZANIN, 2019).

Cabe aqui ressaltar que o lawfare não abrange a discussão sobre polaridades ideológicas. Qualquer lado de um ambiente político pode motivar a sua prática. No entanto, por mais que a entidade considerada inimiga não seja adepta de ideologias, ela poderá servir de alvo, pois as motivações para o ataque podem não ser exclusivamente políticas, podem ser por exemplo, econômicas, comerciais.

Como a natureza do lawfare é de guerra, ele é previsto no manual TC 18-01 do exército norte-americano, qualificado como guerra híbrida, onde são utilizados o Direito e as operações psicológicas de guerra para o alcance de resultados ilegítimos, não restando assim, qualquer dúvida a respeito de como ele se adequa perfeitamente ao Caso Panair do Brasil e de seus respectivos controladores, como restará demonstrado.

  1. O Caso Panair do Brasil e seus respectivos controladores

A título de apresentação, a Panair do Brasil não era apenas a pioneira companhia aérea brasileira; ela era o pilar de inserção do nosso país no cenário do desenvolvimento internacional. Era reconhecida como a segunda maior empresa aérea do mundo. Construiu e equipou os aeroportos de Guararapes, Belém, Salvador, dentre outros. Criou a Rede de Rádio Comunicação que dava apoio a todas as aeronaves que sobrevoavam o território brasileiro.  Criou a Celma a primeira oficina de reparo de motores e turbinas de aviões. Sempre se utilizou de tecnologias de ponta. Seu padrão de qualidade era inigualável e conhecido mundo afora como “Padrão Panair”. Participou ativamente de grandes momentos históricos. Era também o pilar da integração nacional, com seus aviões Catalina que prestaram inestimáveis serviços aos habitantes das cercanias do Rio Amazonas e seus afluentes. Isso fez com que os brasileiros conhecessem um Brasil que eles próprios desconheciam.

A Panair era pioneira em tantas outras frentes que seria impossível esgotar neste espaço. Por isso, existem livros, filmes, artigos, matérias, estudos, processos, relatórios da Comissão Nacional e Estadual da Verdade do Rio de Janeiro para documentar a sua grandiosidade e a barbaridade sistemática que provocou a sua destruição física. E existiu até mesmo uma exposição, “Nas asas da Panair”, que esteve em cartaz no Museu Histórico Nacional no ano de 2019, onde está acautelada a sua memória, junto à de grandes outros grandes baluartes e fatos históricos.

São incontáveis os ataques sofridos pela Panair por parte do Governo Federal dentro do período de exceção. A história da Panair do Brasil é fonte de inúmeras matérias jurídicas. E neste trabalho, o que ora se extrai é a aplicação do lawfare ao Caso Panair e de seus controladores, Celso da Rocha Miranda e Mario Wallace Simonsen.

Os empresários Celso da Rocha Miranda e Mario Wallace Simonsen eram homens visionários cujo propósito não era meramente obter lucros em seus negócios, mas antes de tudo, trazer desenvolvimento para o Brasil, o elevando ao status de grande player no mercado internacional.

Celso da Rocha Miranda, é considerado um exemplo a ser seguido pelos empreendedores contemporâneos. Foi criador de uma das maiores e mais importantes empresas de vários segmentos, com destaque para o ramo segurador, como a Ajax Corretora de Seguros, que se tornou a maior corretora da América Latina, liderando a Companhia Internacional de Seguros, precursora em muitas frentes, que tornou-se a maior seguradora independente do setor, a Prospec S.A., primeira empresa no ramo de aerofotogrametria, aerogeofísica e cartografia aérea do país, entre muitas outras.

Mario Wallace Simonsen, por sua vez, criou grandes empreendimentos como a TV Excelsior, pioneira em criação de inovadores programas de televisão onde foram aplicadas as grandes tecnologias da época em termos de telecomunicações; a Wasim, trading company, que era uma das maiores e mais importantes exportadoras de café, com escritórios em mais de 65 países; a Comal, maior empresa de processamento de café do Brasil; o Sirva-se, a primeira rede de supermercados do Brasil; o Banco Noroeste de São Paulo, entre outros.

A genialidade dos empresários Rocha Miranda e Simonsen, nos permitiu, em diversos segmentos, conhecer o Brasil como é hoje, desenvolvendo padrões de comportamento de consumo e de qualidade, como foi o caso da Panair do Brasil, da qual ambos eram controladores e que obtinha o chamado “Padrão Panair”, referência ao extremo padrão de qualidade da grande empresa aérea. Enquanto nos dias de hoje, as empresas apenas possuem certificados de padronização emitidos por instituições criadas para este fim, a Panair do Brasil já obtinha a sua própria padronização, reconhecida mundialmente.

Infelizmente, toda essa grandiosidade foi eliminada pela ditadura militar. Por se posicionarem contra o regime, Mario Wallace Simonsen e Celso da Rocha Miranda foram perseguidos, tendo seus empreendimentos destruídos através de mecanismos criados estrategicamente para extinguir não apenas a Panair do Brasil, como o patrimônio integral de ambos, através de leis que provocaram a falência da empresa — até hoje considerado o único caso de falência provocada politicamente no Brasil — e da utilização dos procedimentos judiciais e autoridades.

No ano de 2013, através da audiência pública realizada pela Comissão Nacional da Verdade, a Panair do Brasil, Celso da Rocha Miranda e Mario Wallace Simonsen foram reconhecidos como perseguidos políticos pelo regime ditatorial militar brasileiro. Existem ainda processos judiciais já ganhos em favor da Panair do Brasil e outros ainda em trâmite, também de ordem administrativa, perante a Comissão de Anistia, tendo também como parte Celso da Rocha Miranda. Este caso é tão vasto e tão rico do ponto de vista histórico, jurídico, político e empresarial, que seria impossível esgota-lo neste trabalho, sendo necessário um maior aprofundamento, sem qualquer sombra de dúvidas, uma vez que é alvo de diversos estudos acadêmicos, não limitando-se apenas ao ramo jurídico e histórico; é matéria de reportagens, livros, filmes, séries e exposições, como anteriormente mencionado, configurando-se o riquíssimo legado da empresa, uma fonte inesgotável de aprendizados, modelos, inspirações, pesquisas e análises de toda sorte.

  1. O lawfare tipificado no Caso Panair do Brasil e seus respectivos controladores

De acordo com as descrições supracitadas a respeito do lawfare, é indubitável que o uso de normas jurídicas, de procedimentos judiciais e/ou burlas a eles, do Poder Judiciário em si e de autoridades, foram estritamente utilizados e direcionados à empresa aérea Panair do Brasil e seus controladores, como veremos a seguir. É óbvio que esta afirmação demandaria um maior aprofundamento do ponto de vista científico, porém tratando-se este espaço de uma apertada síntese, por tratar-se de uma introdução e devido às limitações de praxe, podemos desde já pontuá-la.

  1. Histórico dos atos praticados com o propósito específico levar a Panair do Brasil à falência

O histórico de atos praticados contra a Panair do Brasil para atingir seus controladores e assim mantê-la artificialmente por mais 30 anos, com a dilapidação de seu patrimônio e de suas condições operacionais

  • Despacho do Presidente da República, Diário Oficial de 11/02/1965: sem prévio e regular inquérito e sem observar o devido processo legal e o direito de defesa, a Presidência da República, “suspendeu” o direito de exploração das linhas aéreas outorgadas a Panair, sob o regime da concessão. Foi adotada a expressão “autorização” em lugar de “concessão”, que era o verdadeiro regime jurídico que presidia os serviços aéreos explorados pela Panair do Brasil, buscando se esquivar da obrigação de indenizar os prejuízos decorrentes do ato.

Vendo-se, de uma hora para outra, sem condições de operar e aferir receita, a Panair do Brasil ajuizou um pedido de concordata preventiva. A sentença negativa foi proferida em apenas três dias úteis após o ajuizamento do pedido, e ato contínuo decretou a falência da Panair do Brasil. É assustadora a rapidez inédita com que a decisão foi proferida e o fato de que a sentença não menciona uma consulta feita ao Ministério da Aeronáutica que teria embasado a decisão. Fato que se ajustaria dentro do escopo da tese. Como se verá sequência, a partir da decretação da falência da Panair do Brasil, foram encetados por parte do Governo Federal uma série concatenada de atos continuados, cujo objetivo único era manter o estado de falência da Panair do Brasil por mais de 30 anos.

  • Decreto nº 57.682 de 28/01/1966: declarando “de utilidade pública, para fins e desapropriação, em favor da União Federal, as ações da Companhia Eletromecânica CELMA”: esta empresa era e continua sendo uma empresa estratégica dentro do setor aeronáutico. Ela dotou o Brasil de tecnologia própria no reparo de motores e turbinas de aviões e o tornou independente dentro desse seguimento. Sua existência é de primordial importância em razão dos serviços que presta para empresas aéreas nacionais e estrangeiras. Não havia justificativas jurídicas ou operacionais que impedissem o seu funcionamento sob o controle da Panair do Brasil. No entanto o Governo Federal aproveitou a falência da Panair do Brasil para se apropriar de seus bens, mediante desapropriação com o pagamento de preço vil. Com isso, suprimiu mais um braço da atividade operacional da Panair do Brasil.
  • Na sequência, o Governo Federal compareceu ao processo de falência. Declarou que não estava sujeita ao concurso de credores e pediu a separação de bens suficientes para o pagamento dos valores que poderia vir a despender em razão das garantias por ela conferidas para a compra pela Panair do Brasil de aeronaves e peças de reposição. Logicamente que isso determinou a paralisação do processo de falência.
  • Decreto-lei Nº 107 de 16/01/1967: desapropria definitivamente a infraestrutura de apoio ao voo que pertencia à Panair: foi a Panair do Brasil que instalou no Brasil um sistema de Rádio Comunicação que dava apoio a todas as aeronaves, nacionais e estrangeiras, que sobre voavam o território nacional. Esse serviço é hoje prestado pelo Cindacta. Isso já é suficiente para demonstrar a sua importância para as operações aéreas. Sem erro, pode-se dizer que sem ele seria impossível o sobre voo do território Nacional. Não foi por outro motivo que, no dia seguinte a decretação da falência, o Governo Federal se apropriou do sistema e continuou a opera-lo com os próprios empregados da Panair. Era mais um dos serviços prestados pela Panair do Brasil. Até que em 16.01.1967 o Governo Federal desapropriou todo o sistema. Com ele criou uma empresa denominada TASA que, mais tarde se transformou no Cindacta.
  • Ato Complementar Nº 42 de 27/01/1969: Autoriza o confisco de bens de pessoas que em relações de qualquer natureza, com a administração, da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios, autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações instituídas pelos poderes públicos, associações ou entidades beneficiadas com auxílios ou contribuições estabelecidos em lei, permissionárias ou concessionárias de serviços públicos, se haja enriquecido, ilicitamente, com bens, dinheiros ou valores, sem prejuízo das sanções penais cabíveis.
  • Decreto-lei n° 496 de 11/03/1969: Dispõe sobre as aeronaves de empresas de transporte aéreo em liquidação, falência ou concordata e dá outras providências. Amplia o conceito de dívida ativa da União para abranger “os créditos da União ou de suas agências financeiras, decorrentes de contratos ou operações de financiamento, ou de sub-rogação de garantia, hipoteca, fiança ou aval”. Através desse Decreto Lei, o Governo Federal expropria todas as aeronaves e materiais de reposição detidos pela Panair do Brasil, que teriam sido adquiridas com o seu auxílio financeiro. Essas aeronaves foram, na sequência, transferidas pela a Varig e a Cruzeiro do Sul que passaram a opera-las. As publicidades veiculadas pelas mídias em geral, enfocavam o avanço tecnológico que representavam. Ao mesmo tempo, também com base no referido Decreto-Lei, o Governo Federal inscreveu na Dívida Ativa o valor dos pagamentos que afirmou ter realizado ou que poderia vir a realizar em razão das garantias conferidas para a aquisição das referidas aeronaves e instaurou contra a Panair do Brasil um Executivo Fiscal para cobrar o referido suposto crédito.
  • Decreto-lei n° 669 de 03/07/1969: Não podem impetrar concordata as empresas, aéreas que, pelos seus atos constitutivos, tenham por objeto, exclusivamente ou não, a exploração de serviços aéreos de qualquer natureza ou de infraestrutura aeronáutica. À esta altura dos acontecimentos, a Panair do Brasil já havia conseguido liquidar todo o seu passivo trabalhista. A expropriação das aeronaves significava, por sua vez, o pagamento de todo o suposto crédito que o Governo Federal afirma deter perante a Massa Falida da Panair do Brasil. Dentro desse quadro, a Panair do Brasil, ajuizou um pedido de Concordata Suspensiva se propondo a pagar todas as dívidas integralmente e a vista. Exatamente por isso, o Governo Federal editou o Decreto-Lei 669/69, proibindo que empresas aéreas usufruíssem do benefício da concordata, o que determinou que o pedido por ela formulado fosse julgado improcedente. Foi a primeira e única vez que esse Decreto-lei foi aplicado.  Nítido o seu caráter casuístico e afronta que ele representa ao princípio de igualdade de tratamento, constitucionalmente garantidos. Sem possível dúvida, uma norma dessa natureza só pode existir dentro de um período de exceção.  Fizeram que o Brasil fosse o único país, do mundo, onde uma atividade, a de transporte aéreo, não teria o direito de pedir concordata.

  1. Atos de Estado configurados como perseguição política contra Celso da Rocha Miranda e Mário Wallace Simonsen

Ações voltadas para o estrangulamento econômico dos empresários:

  • Fechamento e confisco dos armazéns de Café (entrepostos aduaneiros) em Trieste, Itália, das empresas, Wasim e Comal. Estas empresas figuravam entre as maiores exportadoras de café à época de seu confisco, trazendo inclusive um abalo nos conceitos do Brasil como exportador.
  • Suspensão, sem prazo determinado, das concessões outorgada a Panair do Brasil para explorar linhas aéreas de voo das linhas aéreas da Panair do Brasil S.A., o que levou à decretação de sua falência.
  • Alienação irregular das agências da Panair do Brasil no exterior. Como realizado pelo Banco do Brasil, que à época exercia a sindicatura da Massa Falida da Panair do Brasil. Basta ver que nunca as suas contas foram aprovadas. Desmantelamento do patrimônio da Panair, coordenada por Síndicos Militares da falência com a ativa participação do S.N.I. e de procuradores especialmente nomeados com esse objetivo.
  • Fechamento da TV Excelsior: na época de seu fechamento, esta rede, pioneira no país, estava implantando a TV em cores e contava com técnicos e elenco de primeira grandeza. Seu fechamento foi decorrente de pressões políticas por parte do governador do Estado da Guanabara, então aliado da Revolução, que intentava o apoio da rede à sua futura candidatura.
  • Cancelamento de todos seguros de órgãos do governo realizados pela Ajax Corretora de Seguros – Criação da lei dos sorteios dos seguros de bens públicos e transferência das Comissões para um fundo de seguro agrícola. Também há de se enfatizar o fato de a Ajax ser, na época, a maior corretora de seguros da América latina, contando em seus quadros com mais de 600 funcionários, todos muito bem qualificados para suas tarefas. As mudanças abruptas das regras vigentes emanadas por decretos dirigidos ao propósito da perseguição a Celso da Rocha Miranda, como a criação de comissões de inquérito na Companhia Siderúrgica Nacional e outros clientes da Ajax, com intuito de buscar ligações políticas, eliminaram qualquer possibilidade de readequação da empresa às novas regras do jogo, levando-a ao seu fechamento, dois anos depois. Segundo Paulo Egydio Martins, Ministro da Indústria e Comércio, de 1966 a 1967, “diga-se de passagem, que era o grupo mais bem aparelhado em matéria de executivos e profissionais técnicos. A competência deles era notória no mercado…”. (MIRANDA, 2019).
  • Devassa fiscal em todas as companhias dos acusados coordenada pelos fiscais da Receita Federal e agentes do Serviço Nacional de Informações.
  • Comissão de Investigação Sumária da Aeronáutica – CISA – Centro de Informação de Segurança da Aeronáutica – PIS n°194/CISAR, cujo parecer secreto define aprioristicamente, o que segue: “Celso da Rocha Miranda pode ser considerado o principal responsável pela maquinação criminosa e irresponsável que conduziu a Panair do Brasil S/A, à situação de falência financeira e administrativa, em 1965. Assim, Senhor Ministro, Vossa Excelência atendendo sugestão do CISAR, expediu Aviso ao Exmo. Sr. Ministro da Fazenda para que fossem postos à disposição desta Comissão, vários Fiscais do Imposto de Renda, indicados pelo Serviço Nacional de Informações – (SNI), a fim de examinarem os Livros de Contabilidade das diversas empresas pertencentes ao Sr. Celso da Rocha Miranda, sob orientação dessa Comissão. Outrossim, uma cópia dessa Parte Conclusiva deve ser remetida ao CENIMAR, CIE, SNI, DPS, CONTEL, e aos Setores de Segurança da Aeronáutica, tudo por intermédio do Centro de Informação da Aeronáutica (CISA), que por sua vez deverá tomar as necessárias providências, junto ao Gabinete de Vossa Excelência para que o Sr. Celso da Rocha Miranda, seja processado por Crime de Sonegação Fiscal…..segue…Presidente do CISAR e Membros… (Doe n” )” (MIRANDA, 2019)
  • Instauração da Comissão Geral de Investigações – Estado da Guanabara: Tentativa de enquadramento no Ato Complementar n° 42, que autorizava o confisco de bens de pessoas naturais, ou jurídicas, sob alegação de enriquecimento ilícito dos sócios e diretores. Proc. 218/69, encerrado em 1978 com base no seguinte parecer conclusivo de sua assessoria jurídica:

 “Em síntese, de toda documentação carreada ao bojo dos autos, não emerge nenhum fato relevante, caracterizador da prática do locupletamento sem causa, de conformidade com a tipificarão estabelecida pela Legislação institucional que norteia a ação desta CGl”. “De fato a prova acusatória se resumia em cópias de informações do mandado de segurança impetrado pela Panair, veiculando graves acusações, mas só palavras,’ um laudo pericial, que a Justiça comprovou ser falso do Síndico da falência, o Banco do Brasil, o qual também é autor da duvidosa exposição de fís 62 e segs., l” Vol, segue,.. A Comissão, acolhendo o parecer do Relator, concorda com o Parecer da Consultoria Jurídica e por unanimidade de votos, resolve arquivar o processo sob referência”. (MIRANDA, 2019).

  • a perseguição através de atos discricionários continuados para conservar a empresa num estado de falência, sendo administrada por terceiros (à época, síndico da massa falida), expropriando todos os bens da empresa (e isso inclui todas as benfeitorias que hoje encontramos nos aeroportos do país — pode-se dizer que a Panair foi uma espécie de primeiro modelo de parceria público-privada, sem que tivesse qualquer contraprestação financeira por isso, pois os aeroportos nacionais sequer eram capazes de operar como hoje se conhece, já que o Brasil ainda pertencia a um universo provinciano e a Panair era uma fonte que lhe trazia evolução); e entregando-os para uma nova concorrente criada para este fim, sem qualquer indenização até os dias atuais;
  • houve uma tentativa de acordo para se levantar a falência da Panair (aqui dizemos “levantar”, pois ela ainda possuía patrimônio, apesar de quase vinte anos de estado falimentar, até então), foi exigido em troca o silêncio eterno dos acionistas, seus herdeiros e sucessores, o que demonstra que tudo levava à extinção da verdade dos fatos. A prova consta nos autos do processo que tramitou na 1ª Vara Federal de Belém, onde a sentença proferida e acórdãos subsequentes confirmaram que a tentativa do referido acordo, que seria realizado também através de decreto presidencial, constituiu prova cabal da via crucisprovocada pelo regime ditatorial à Panair do Brasil. Tudo fazia parte do plano de perseguição continuada como forma de manter o silêncio sobre a verdade.
  • a perseguição à Panair do Brasil e outros se deu através de várias normas jurídicas criadas, comprovadamente, com o fim de retirar receitas da empresa para que fosse mantido o seu estado de falência. Mesmo assim, ela, que era dona de um imenso patrimônio, manteve-se pagando compromissos com a sua própria renda e mais ainda, quitando, inclusive, compromissos “criados” através de artifícios inescrupulosos para explorar suas reservas financeiras. Como se já não bastasse, foram criados decretos não só para que se declarasse a falência da Panair sem qualquer análise financeira e econômica por parte do Judiciário, em apenas cinco dias, e assim se mantivesse, ainda que a empresa obtivesse um patrimônio capaz de retirá-la desse estado e mantê-la operacional, apesar de todas as tramas criadas para leva-la à quebra. Não é comum que uma empresa do porte dela, fosse mantida em falência, tendo total capacidade econômica e financeira para continuar operacional.
  • No Brasil, apenas através de uma lei recente, de nº 12.527/2011 (Lei de Acesso à Informação) foi possível para muitos terem conhecimento e acesso aos documentos e autos dos processos que motivavam as respectivas perseguições políticas, materializando-se por anos a fio, uma legítima jornada kafkiana. Não havia sequer como se defender, se não se tinha acesso ao que estava sendo acusado. Cumpriam-se penas, sem conhecer o fato pela qual se era incriminado, situações teratológicas que perduraram mesmo em uma democracia. Foi somente após o advento desta lei, é que foi possível conhecer, por exemplo, processos contra os perseguidos políticos, até então mantidos em segredo de Estado, como os que tratavam a respeito do empresário Celso da Rocha Miranda, ou seja, somente após cerca de cinquenta anos, foi possível conhecer um pouco mais sobre os processos, endossando assim a imprescritibilidade sobre a reclamação pelos atos de perseguição praticados abusivamente e de forma contumaz pelo Estado.

  1. Mecanismos da Justiça de Transição

           Considerado o conceito descrito na introdução deste trabalho, segundo o qual a justiça de transição, reitere-se, seria “o conjunto de medidas e mecanismos associados à tentativa de uma sociedade de lidar com um legado de abusos em larga escala no passado, buscando assegurar legitimidade (accountability), justiça e reconciliação. Dentro de tais mecanismos, pode-se falar em julgamentos individuais, reparações, busca pela verdade, reformas institucionais e expurgos no serviço público. (MEYER, 2015), foram instituídas algumas formas de busca por reparo.

Estes mecanismos como a Comissão de Anistia, Comissão de Verdade e o próprio Poder Judiciário, por si só não têm se demonstrado suficientes do ponto de vista do pleno reparo, diante da magnitude das violações perpetradas pelo Estado durante o regime de exceção. São mecanismos que apesar dos esforços, proferem reparações simbólicas. Exemplo seriam as indenizações concedidas pela Comissão de Anistia: cada indivíduo que instrui um processo administrativo perante àquela instituição, devidamente acompanhado de comprovações de violações advindas de perseguições políticas, recebem a quantia de R$100.000,00, a título de indenização. Então, ilustrativamente, um cidadão que foi perseguido, torturado, na maioria das vezes por denúncias sem comprovações e sem acesso às informações de acusação para exercer dignamente sua defesa, que obteve  sua vida destruída, a de seus familiares, sua integridade física, psicológica e moral brutalmente violadas, sua recomposição patrimonial  de toda uma existência dizimada se vê resumida a uma indenização no valor de R$100.000,00, valor este extremamente ínfimo diante da infinitude de danos bárbaros causados e que se perpetuam ao longo do tempo. Existem pessoas que sofrem por deficiências físicas, psicológicas, morais e financeiras, sem condições dignas de sobrevivência, para sempre.

No Caso Panair do Brasil e de seus respectivos controladores, não foi diferente. Para que uma empresa da grandeza da Panair do Brasil e das demais que compunham o patrimônio de Celso da Rocha Miranda e Mario Wallace Simonsen, recompor toda a perda, do ponto de vista financeiro, demandaria uma estudo de natureza econômica para que o montante seja alcançado, restando patente que as indenizações ofertadas pelos mecanismos de justiça transicional não são  capazes de ofertar, daí a se dizer que seria uma reparação de natureza minimamente simbólica.

No que tange à Comissão Nacional da Verdade, mais um mecanismo de transição, apesar das declarações de que a Panair do Brasil e seus respectivos sócios foram alvo de perseguição política durante a ditadura militar brasileira, sem que estes defendessem polaridades ideológicas, conforme restou comprovado e sim, por motivações também  econômicas, tem-se que este meio, ao menos como busca pela verdade dos fatos, mostrou-se eficiente, no entanto, em termos de reparação não se mostrou eficaz, justamente por não ter sido este o propósito da constituição de um comissão da verdade, e sim, o de investigar para reconhecer a verdade que era impossível ser obtida diante da impossibilidade de acesso à documentos e processos confidenciais, como na inquisição medieval: acusava-se, processava-se e punia-se à bel prazer do executor, não sendo possível exercer qualquer direito de defesa.

Não era possível conhecer a verdade, à esta só foi permitido o acesso por cerca de cinquenta anos após o período das violações, através da Lei nº. 12.527/2011, a Lei de Acesso à Informação, a qual retirou o sigilo de processos e documentos onde, por exemplo, Celso da Rocha Miranda foi investigado durante o período ditatorial e sequer fora ofertado a ele o conhecimento aos autos do processo administrativo e consequente direito à defesa, configurando-se aqui a natureza kafkiana do caso.

No que diz respeito ao lawfare, ainda não se teve notícia quanto à sua ocorrência em casos de reparação referente ao período ditatorial, exceto ao Caso Panair. Portanto, seria mais um enfoque a ser considerado pelos mecanismos implantados a partir da justiça transicional, devido à natureza de guerra — jurídica — e, como é de conhecimento geral, toda guerra, seja de que natureza for, acarreta consequências desastrosas a uma população civil ou parte dela.

Aplicando-se o lawfare no Caso Panair do Brasil e de seus respectivos controladores e sendo o primeiro, um mecanismo de guerra; ele atua como tal, nas seguintes dimensões: geografia, armamento e externalidades. Estas dimensões, em seu respectivo âmbito, traduzem-se em: (a) geografia: assim como na guerra convencional escolhe-se o território, no lawfare, escolhe-se o tribunal, e no caso em tela, foi escolhido o Juízo da 6ª Vara de Falências do Rio de Janeiro; (b) armamento: na guerra convencional, são escolhidas ou criadas as melhores armas para o ataque; no lawfare, são escolhidas ou criadas as melhores leis e procedimentos judiciais para o ataque — aqui, foram criadas as leis e procedimentos judiciais para perseguição política e consequente destruição patrimonial das pessoas físicas envolvidas, conforme descritos anteriormente e; (c) externalidades: o tratamento estratégico de dados com o objetivo de obter uma vantagem competitiva sobre o adversário, onde podemos enquadrar o fato de ter o Estado se apropriado de toda a estrutura da Panair do Brasil para entrega-la à empresa concorrente; a criação de denúncias sobre os controladores  de fatos nunca comprovados, inclusive em ambiente internacional (Obama`s papers) e finalmente, a criação de um “tratado de paz”, caracterizando assim, todo o ciclo de um ambiente de guerra.

Este “tratado de paz” consiste em um parecer da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, assinado em abril de 1980, o qual era resultado de uma análise sobre a viabilidade de um projeto de decreto-lei que autorizava a União a transigir com a massa falida da Panair. O projeto se destinava a extinguir todos os litígios relacionados com os créditos da Fazenda e os direitos e créditos alegados pela Panair, sob pena de silêncio perpétuo, inclusive de seus herdeiros e sucessores, conforme se extrai do referido projeto e minuta do termo de transação, a seguir:

“O Presidente da República, no uso das atribuições que lhe confere o artigo ss. item II. da Constituição,

D E C R E T A:

Art. 1º Fica o Poder Executivo autorizado, por intermédio dos Ministérios da Fazenda e da Aeronáutica, a celebrar transação que, mediante mútuas concessões, importe no encerramento de todos os litígios e pretensões relacionados com a União e a Massa Falida Panair do Brasil S.A.”

CLÁUSULA SEXTA: As partes aqui presentes ou representadas dão quitação recíproca, plena, rasa, geral e irrevogável, para o encerramento e perpétuo silêncio de todas as pretensões, direitos e ações, ajuizadas ou não, entre si, com base em atos ou fatos anteriores ou posteriores à falência, para nada exigir uma da outra, seja a que título for, com a expressa e irretratável renúncia a toda e qualquer ação por si , seus herdeiros ou sucessores.” (grifos nossos).

Resta comprovado, de forma inequívoca, o lawfare empregado pelo Estado brasileiro no Caso Panair do Brasil e seus controladores, com o encerramento cíclico de um período de guerra, se o referido acordo de paz tivesse sido selado pelas partes vitimadas, o que não ocorreu, pois segundo Confúcio, um dos maiores filósofos chineses (551 a.C – 479 a.C), “o homem honrado busca justiça. O homem pequeno busca vantagens”. Logo, era o que se havia de esperar após tantas lutas pelo reconhecimento das violações sofridas, uma vez que até os dias atuais, não houve reparo contundente que responda à altura pelas gravíssimas violações ocorridas.

  1. Considerações Finais

Após a breve exposição sobre o caso em tela, é possível constatar que, apesar de todos os esforços empregados desde então, os mecanismos da justiça transicional não foram suficientes para reparar as vítimas no Caso Panair do Brasil.

Mesmo o Poder Judiciário encontra-se limitado, seja diante dos auspícios da lei de anistia brasileira, ou do módico valor indenizatório que vêm sentenciando timidamente nos casos que lhe são apresentados, sem que haja uma uniformização jurisprudencial adequada.

A tipificação de um determinado caso como lawfare, não gera efeitos jurídicos de forma automática, necessitando de apreciação pelo Poder Judiciário. Portanto, no que se refere ao lapso temporal para que um caso desta monta seja ajuizado, é imprescindível que, uma vez considerada a danosidade extrema como corolária da guerra jurídica perpetrada pelo Estado durante o regime ditatorial, os crimes dela decorrentes, sejam todos considerados imprescritíveis, uma vez que são crimes classificados como lesa-humanidade, conforme atestado pela Comissão Nacional da Verdade em seu relatório final.

Sendo assim, concluímos que a reparação adequada à recomposição mínima — e não simbólica — para crimes desta natureza ainda não foram devidamente concedidas pelo Estado brasileiro. Mesmo para alguns reconhecimentos não pecuniários, como a busca pela verdade, estes só foram possíveis há cerca de cinquenta anos depois, com o advento da Lei de Acesso à Informação e a instauração da Comissão Nacional da Verdade.

Quanto ao Poder Judiciário, em casos emblemáticos como o Caso Herzog, fora necessário recorrer à Corte Interamericana de Direitos Humanos, uma vez que, mesmo o Estado brasileiro sendo signatário de tratados de direitos humanos e julgado condenado pela referida Corte, exime-se de cumprir o comando sentencial, com o  endosso do Supremo Tribunal Federal, sob a alegação de obstrução da lei de anistia.

E ainda, quanto à Lei de Anistia, temos que a transição de um governo ditatorial para um democrático, pautada na impunidade dos desmandos e excessos atrozes, sem uma justiça transicional garantidora de pleno reparo, é uma fórmula para que se tenha uma democracia vulnerável, com boa parte da população praticamente leiga e, portanto, incrédula sobre os horrores de um regime ditatorial e condescendente com o autoritarismo, sem que se perceba que o próprio indivíduo será, ele próprio, o maior penalizado. Em suma, é o que atesta o historiador Cláudio Beserra de Vasconcellos, doutor em história pela UFRJ e ex-integrante do Laboratório de Estudos sobre Militares na Política, da mesma universidade:

“Os casos de corrupção dos governos militares não são conhecidos porque não se podia investigar, pois a Anistia é uma lei do esquecimento.”

“(…) Enquanto outros países fizeram uma mudança de governo com julgamentos e punições, no Brasil houve uma transição pelo alto. Não houve uma ruptura, foi um processo lento e negociado, que começou com o Ernesto Geisel, ainda na década de 1970. Uma elite militar e política fez a mudança, não a sociedade. O lobby feito para que os privilégios das Forças Armadas continuassem na Constituição de 88 é exemplo disso.”

Como podemos observar, nos parece que a condição para uma transição para um regime democrático, seria o esquecimento. E esquecimento, tratando-se de violações bárbaras, implica em eventual e próxima aceitação de que se repitam as atrocidades. Não sejamos ingênuos em crer que são suficientes as limitações constitucionais para coibi-las, pois elas próprias estão impregnadas do que se chama “lixo autoritário”, ou seja, o conjunto de normas jurídicas fabricadas pela ditadura com o fim de sublimar as barbáries e torná-las “legais” e “aceitas”. E é neste ambiente que é situado o Caso Panair do Brasil e seus respectivos controladores, de acordo com as normas que acima foram descritas.

Uma vez tipificado o lawfare no Caso Panair como o meio empreendido para perseguir pessoas jurídicas e físicas durante o período ditatorial militar brasileiro, constatamos que absolutamente todas as questões inerentes ao referido caso devem ser compulsoriamente reabertas, não esbarrando sequer no quesito da imprescritibilidade. Não apenas reabertas, como devem ser inseridas novas questões e como devem ser consideradas nulas as decisões de cunho político e ideológico, pois todas podem ser consideradas artefatos da guerra jurídica perpetrada pelo Estado brasileiro, condenando as vítimas à uma pena perpétua em busca do reparo pelos gravíssimos danos à elas causados e ao povo brasileiro como um todo, por deixar como legado uma tenebrosa mácula que nunca poderá ser apagada, mas que este tem o dever de zelar por  fragilidades democráticas que ainda perduram, para que nunca mais ocorram em nossa História os horrores de onde derivam-se casos como o Caso Panair.

  1. Referências bibliográficas

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