CRISE MACROECONÔMICA E REEQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO DA CONCESSÃO

Artigo

CRISE MACROECONÔMICA E REEQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO DA CONCESSÃO

 Fernando Vernalha Guimarães[1]

           

Introdução

O tema do reequilíbrio econômico-financeiro das concessões impactadas por crises macroeconômicas vem adquirindo grande importância na atualidade, particularmente em vista das dificuldades financeiras pela qual passam muitos contratos concessionários sob o atual quadro recessivo do país. Essas dificuldades não são triviais e têm colocado esses contratos em rota de extinção. Sufocados pela drástica redução dos níveis de demanda, o que tem desencadeado especialmente a inexecução de obrigações financeiras, muitos destes ativos rumam para a caducidade ou para outras vias de extinção, como a relicitação. Neste contexto, tem sido recorrente discutir-se o enquadramento da crise macroeconômica de 2014 como evento hábil a ensejar o reequilíbrio econômico-financeiro desses contratos, buscando assegurar-se a sobrevivência das concessões. Como não poderia deixar de ser, esses enfrentamentos passam primeiramente pela consideração da matriz de risco contratualmente estabelecida e, sucessivamente, pelo exame da tutela jurídica dos riscos extracontratuais.

Embora não seja o propósito deste texto analisar casos concretos, é importante para o exame abstrato do tema considerar algumas opções alocativas de riscos que têm sido feitas nos contratos concessionários celebrados nos últimos anos (particularmente relacionados a rodovias e aeroportos), o que tem influenciado a percepção das Administrações quanto ao seu (des)equilíbrio econômico-financeiro. Neste particular, boa parte deles optou por alocar o risco de demanda integralmente ao concessionário privado, atribuindo a responsabilidade por eventos gravosos qualificados como caso fortuito e força maior ao poder concedente. Esta opção alocativa tem embasado o entendimento, por parte das concedentes, de que os efeitos do impacto da crise nos custos desses contratos devem ser atribuídos à conta do risco de demanda. Essa compreensão afasta o direito ao reequilíbrio dos concessionários e tende a negar a caracterização de crises macroeconômicas agudas, como a de 2014, como evento de caso fortuito e de força maior.

Impasses desta natureza têm suscitado diversas questões relacionadas não apenas à dimensão do risco de demanda que recorrentemente é assumido pelos concessionários de serviços públicos, mas especialmente do chamado risco ordinário da economia. Neste particular, e quando os contratos são omissos em relação à alocação mais especifica do risco de crises macroeconômicas, uma questão fundamental é analisar se e em que contexto essas crises podem caracterizar-se como evento equiparável à chamada álea extraordinária referida na alínea “d” do inciso II do artigo 65 da Lei 8.666/93, discussão que aproveita também à alocação contratual do risco de caso fortuito e força maior ao poder concedente.

Além disso, a problemática dos contratos concessionários sufocados pelos efeitos da crise macroeconômica de 2014 e os custos derivados da desinteligência entre poder concedente e concessionários quanto ao seu reequilíbrio episódico têm ensejado discussões acerca do aperfeiçoamento da opção alocativa de riscos de contratos concessionários, com vistas a torna-los menos suscetíveis ao impacto das crises. Parece haver um consenso cada vez maior entre reguladores e operadores acerca da necessidade de os contratos concessionários previrem mecanismos de proteção contra a ocorrência de fatos externos e imprevisíveis, como as turbulências econômicas capazes de produzir variações acentuadas na demanda.

O tema da repercussão das crises econômicas nas concessões pode ser examinado, portanto, a partir de dois enfoques distintos. O primeiro, atinente aos mecanismos contratuais aptos a neutralizar os efeitos acentuados que essas crises podem gerar no fluxo de caixa das concessões. Trata-se de discutir de que modo esse risco pode ser melhor alocado no contrato de concessão. O segundo, voltado a problematizar a sua caracterização como um evento próprio da álea extraordinária (e extracontratual), para os fins de atrair a tutela jurídica do reequilíbrio contratual.

  1. A alocação contratual do risco de crises econômicas na concessão

Discutir-se a alocação contratual do risco de crises econômicas nas concessões pressupõe algum aprofundamento sobre as premissas jurídicas e econômicas que orientam a distribuição de riscos em contratos de longo prazo. A análise do tema extrapola em larga medida os limites deste texto e sua verticalização pode ser encontrada em outros textos do autor[2]. Mas não há como avançar nas abordagens propostas sem oferecer alguns rudimentos sobre a questão.

2.1. Premissas a orientar a alocação de riscos na concessão       

É sabido que a alocação de riscos não é um expediente completamente arbitrário, discricionário ou aleatório. Há regras jurídicas e premissas econômica a orientá-la, uma vez que se traduz numa verdadeira chave para a calibragem da eficiência nos contratos administrativos.

O expediente está regulado pelo direito, em dois níveis de regulação: o das regras, mais objetivo e limitativo, e o dos princípios, mais genérico e meramente orientativo.

2.1.1. As regras jurídicas aplicáveis à alocação dos riscos e à definição da equação econômico-financeira dos contratos de longo prazo

Há regras jurídicas específicas acolhidas pela legislação que impõem um certo arbitramento de riscos nos contratos de longo prazo.

Olhando-se para a Lei 8.987/95, nota-se que o § 3o do 9o arbitra a alocação ao poder concedente[3] do risco de impacto negativo e positivo no contrato derivado da criação, alteração ou extinção de quaisquer tributos ou encargos legais, excetuados os impostos sobre a renda (cujo risco de ampliação ou redução de sua respectiva alíquota não foi objeto de arbitramento legislativo ao poder concedente ou ao concessionário, abrindo-se a possibilidade para que o contrato de concessão o faça). Bem assim, a mesma legislação aloca ao poder concedente o risco de alterações no objeto que se façam necessárias para a melhor adequação das condições de prestação do serviço ao interesse coletivo (§ 4o do 9o), assim como o risco inflacionário (inciso VIII do art. 18). Já a lei 11.079/2004 aloca os mesmos riscos referidos acima à responsabilidade do poder concedente, além de estabelecer que os ganhos derivados da “redução do risco de crédito dos financiamentos utilizados pelo parceiro privado” devem ser partilhados entre as partes (em proporção a ser definida em contrato, o que decorrerá da liberdade de estipulação das partes), como determina o art. 5º, inc. IV da lei 11.079/2004.

De resto, a legislação aplicável às concessões e PPPs remete a alocação de riscos ao plano do contrato. A própria Lei Geral de PPPs é tautológica em determinar que o contrato preveja a partilha de riscos entre as partes, inclusive daqueles atinentes às categorias de caso fortuito e força maior. E faz todo o sentido que os riscos em geral sejam alocados no plano do contrato e não arbitrados legislativamente. Afinal, e como se verá, a racionalidade da alocação de riscos, captada pelo direito, é precipuamente econômica, devendo-se investigar a repercussão de cada alocação de risco na estrutura de custos do contrato, visando a gerar economias ao funcionamento da concessão. Logo, seria inadequado que o legislador antecipasse essas escolhas, substituindo a alocação customizada e referenciada pelas circunstâncias contratuais por uma alocação genérica e abstratamente concebida.

2.1.2. A alocação dos riscos e o princípio da eficiência

É certo que a estipulação contratual pelo gestor público não está pautada apenas por regras que lhe são objetivamente aplicáveis, mas também por normas de cunho principiológico. Naquilo que suas atribuições não estiverem limitadas pela incidência injuntiva das regras, nascerá um espaço de discricionariedade. Neste particular, as escolhas realizadas com vistas a definir o conteúdo dos contratos administrativos e sua equação econômico-financeira são escolhas discricionárias, ainda que guiadas por princípios e diretrizes.

Esses princípios e diretrizes, se é verdade que geram limites à atuação do administrador, não possuem o mesmo alcance e o mesmo potencial de restrição do que as regras. Guiarão o administrador a observar certos padrões, mas sem que se lhe imponha enquadramentos definitivos. O quadro das diretrizes e dos princípios não impõe soluções exatas, mas, antes, sugere a observância de certos standards.

O princípio fundamental a orientar a partilha de riscos é o principio da eficiência, que vem acolhido no capítulo de diretrizes da Lei Geral de PPPs (inciso I do art. 4o). O conteúdo jurídico dessa diretriz tem uma forte interface com a teoria econômica que orienta a distribuição de riscos contratuais, determinado ao gestor a observância de certas regras e premissas econômicas para esse fim.

2.1.2.1. A alocação eficiente de riscos

Ao impor uma alocação eficiente de riscos em contratos concessionários, a Lei 11.079/2004 impôs ao gestor público o dever de observância a certas premissas econômicas.

A primeira dela relaciona-se ao grau de detalhamento e exatidão da matriz de riscos. Quanto maior a especificidade de cada risco, melhor será o conhecimento das partes acerca dos eventos hábeis a interferir na execução do contrato. Esse mapeamento detalhado dos riscos concorre para reduzir a insegurança dos ofertantes, minorando custos de transação e ampliando, por esse ângulo, a eficiência da contratação. É claro que existem limites de cognoscibilidade, de racionalidade e mesmo de conveniência econômica a calibrar o nível de detalhamento dos riscos (uma vez que, para além de certo nível de detalhamento, e a considerar a natureza e a dimensão do contrato, os estudos de riscos passam a incrementar sobremaneira os custos de transação). De todo o modo, é importante que se persiga um catálogo minucioso e detalhado dos riscos, classificando-os e alocando-os à responsabilidade parcial ou plena de cada parte.

Além do nível de especificação da matriz de riscos, a distribuição dos riscos em si deve realizar-se a partir de uma racionalidade econômica, uma vez que a estrutura de custos do contrato é diretamente influenciada pela capacidade de cada parte em administrar os riscos. Há, neste particular, uma espécie de regra de ouro a orientar a distribuição e riscos nos contratos, que impõe a alocação e cada risco à responsabilidade daquela parte apta a gerenciá-lo a custos mais baixos do que a outra, o que favorece a redução do somatório de custos envolvidos na contratação. Trata-se imputar a responsabilidade de cada risco àquela parte que tem mais aptidão para se prevenir dos riscos ou para minorar os prejuízos na hipótese de sua materialização.

É claro que para assumir riscos concessionário terá provisionado em sua proposta (apresentada no âmbito da licitação) os custos correspondentes. Como regra, essa precificação considera a probabilidade de ocorrência do risco e as despesas necessárias para fazer frente à sua materialização. Neste sentido, a melhor aptidão para a prevenção tende a reduzir a probabilidade de ocorrência do risco, com impactos na sua precificação. Além disso, quanto maior for a expertise e a qualificação da parte para lidar com as consequências de materialização do risco, menores tenderão a ser os custos provisionados para tanto.

Daí que um aspecto relevante a guiar a alocação dos riscos está em verificar a parte que detém maior controle sobre o risco. A parte que possui maior controle sobre o risco é naturalmente a parte que conseguirá gerenciá-lo a um custo mais baixo do que a outra. Além disso, a alocação do risco à parte com menores condições para fazê-lo acabará por expô-la ao risco de condutas oportunistas da outra parte. Faz sentido, por exemplo, que os riscos de construção (atinentes, por exemplo, à variação dos custos de materiais, ao seu desgaste precoce, assim como às falhas das metodologias construtivas) sejam atribuídos ao concessionário, pois assim se lhe gera incentivo a que persiga qualidade mais exigente para a execução da obra. Já, se esses riscos estiverem alocados ao poder concedente, o concessionário não terá incentivo para sua prevenção, pois será aquele quem arcará com os prejuízos derivados do risco de problemas construtivos, abrindo-se a porta para comportamento oportunista de sua parte.

Logo, e como já afirmei em outro local, “A alocação de riscos permite, portanto, alcançar um alinhamento de interesses entre as partes, criando incentivo a que a parte com capacidade para influir no risco gerencie adequadamente a sua prevenção, e, ao mesmo tempo, evitando condutas oportunistas que poderiam ser adotadas caso a parte responsável por essas escolhas não ficasse exposta aos riscos que lhe são derivados”[4].

Disso decorre que uma regra a prestigiar a eficiência do contrato é encorajar a alocação dos riscos não gerenciáveis ou não controláveis pelo concessionário à responsabilidade do poder concedente. Como o privado não tem como se proteger em relação a esses riscos, essa alocação acabará por inibir a sua participação na licitação ou induzir à oferta de propostas mais onerosas.

Vala lembrar que o seguro tem sido reconhecido como instrumento eficaz para a proteção de riscos, prevalecendo em relação à sua alocação à responsabilidade do poder concedente[5]. Se assim for, os riscos que puderem ser cobertos pela contratação de seguro, desde que a preços razoáveis, poderão ser deslocados à responsabilidade do concessionário[6].

Portanto, riscos não controláveis pelo concessionário e não cobertos por seguro disponível em mercado a preços razoáveis devem ser invariavelmente retidos pelo poder concedente.

2.2. O risco de crises econômicas (extraordinárias) não é controlável pelo concessionário

Dito isso, é importante perceber que crises econômicas de certa intensidade não são eventos plenamente previsíveis pelo concessionário, o que permitira um exercício de precificação estimativo em suas propostas, muito menos contam com seguros disponíveis no mercado para a sua prevenção. Assim consideradas, equivalem àquilo que se convencionou chamar de caso fortuito ou força maior, como será melhor abordado adiante.

O fato é que sua imprevisibilidade aliada à ausência de seguro para esse tipo de risco no mercado desencoraja sua alocação à responsabilidade do concessionário privado. Sendo um risco não controlável ou não gerenciável adequadamente pelo privado, a responsabilidade por sua materialização deve ser atribuída ao poder concedente.

Assim como se passa com os riscos não controláveis em geral, a atribuição da responsabilidade sobre crises econômicas extraordinárias ao concessionário acabaria por gerar, além das ineficiências contratuais acima referidas, distorções ao processo de licitação. A alocação de um risco desta dimensão enseja interpretações discrepantes pelos interessados, dando origem a propostas orientadas por premissas divergentes. Abre-se a possibilidade a que as propostas estejam referenciadas por cenários distintos, o que subtrai a identidade de premissas necessárias para que se tenha um ambiente adequado para a disputa licitatória. Mais do que isso, tende-se a favorecer os licitantes com menor aversão a riscos e mais hábeis às renegociações. Situações assim geram licitações que favorecem não necessariamente os mais eficientes à execução do empreendimento, mas aqueles com as melhores perspectivas para a renegociação do contrato[7].

Trata-se de afirmar que a insegurança de lidar com eventos excessivamente gravosos acaba por se retratar numa variável relevante de custos no contrato, capaz de atribuir uma vantagem competitiva aos licitantes menos avessos a riscos. Neste contexto, as propostas não necessariamente espelharão a maior ou menor eficiência do ofertante, mas a sua maior ou menor percepção de custo para riscos não mensuráveis – o que pressupõe também a sua maior ou menor capacidade de renegociar contratos, explorando a indeterminação típica da alocação de riscos desta magnitude e dimensão.

2.3. A alocação contratual do risco de crise econômica e os custos de sua indeterminação

Por outro lado, mesmo que esse risco seja alocado ao poder concedente, a dificuldade de tipificação das crises econômicas para esse fim ainda será um fator de grande indeterminação na delimitação da responsabilidade das partes nos casos concretos. Isto é: embora seja teoricamente indicado que o risco de crises econômicas seja alocado contratualmente à responsabilidade do poder concedente, não é trivial a estipulação de critérios objetivos para a sua caracterização. Será sempre difícil eleger parâmetros hábeis a tipificar adequadamente as crises econômicas com vistas a ensejar o reequilíbrio do contrato. Sua caracterização dependerá, em última analise, das peculiaridades da situação concreta[8].

Não se pode ignorar que a dificuldade de tipificar contratualmente com alguma objetividade as crises econômicas para esses fins abre a porta para intermináveis discussões sobre essa caracterização nos casos concretos. Dizer-se simplesmente que o poder concedente é responsável pelo risco de crises macroeconômicas extraordinárias – ou, o que seria mais genérico ainda, pela ocorrência de caso fortuito e força maior – não é uma fórmula contratual que acautele adequadamente o concessionário da perspectiva de demanda por maior especificidade no tocante à matriz de riscos da concessão.

Logo, e para fugir dos efeitos negativos de fórmulas genéricas e indeterminadas, e dadas as dificuldades em tipificar abstratamente as crises econômicas, afigura-se mais eficiente a adoção de mecanismos contratuais objetivos a proteger a concessão do efeito de crises mais acentuadas na economia. O compartilhamento de certos riscos, a partir da delimitação objetiva de bandas de risco positivo e negativo atribuídas à responsabilidade das partes é uma alternativa viável e que vem sendo prestigiada em diversos contratos de concessão, muito especialmente em relação ao risco de demanda.

2.4. O compartilhamento do risco de demanda como técnica a preservar o equilíbrio econômico-financeiro da concessão relativamente a crises econômicas recessivas

É perceptível que crises de cunho recessivo tendem a impactar direta e intensamente a demanda por serviços públicos. E quando isso ocorre, sem que os contratos prevejam parâmetros mais objetivos para identificar quedas de demanda que se originam de crises extraordinárias, as partes se veem diante de uma difícil discussão. O poder concedente resiste em admitir o reequilíbrio econômico-financeiro, não apenas em vista da dificuldade em identificar o fato como tipicamente extraordinário, mas também em vista da presunção de que a alocação do risco de demanda ao concessionário impede o ressarcimento. Num contexto de retração dos gestores públicos ante a exposição aos riscos do controle, a tendência será sempre a tomada da decisão mais ortodoxa e pretensamente favorável à Administração, negando-se o reequilíbrio. Já o concessionário se vê diante das dificuldades naturais em demonstrar a subsunção do fato ao conceito indeterminado de álea extraordinária (contratual ou extracontratual). Como resultado, reequilíbrios são evitados e os contratos acabam sofrendo desvios intensos em seus fluxos de caixa, desencadeando uma série de consequências negativas para a operação da concessão.

Esta insegurança típica das discussões sobre reequilíbrios desta natureza pode ser mitigada pela previsão ex ante de mecanismos contratuais aptos a mitigar essas perdas. Um destes mecanismos é o compartilhamento do risco de demanda entre concessionário e poder concedente.

O compartilhamento do risco de demanda é uma opção alocativa de riscos apta não apenas a reduzir a insegurança quanto às oscilações mais acentuadas na demanda ante a ocorrência de fatos imprevisíveis, como a mitigar erros e imprecisões relacionados às estimativas de demanda. Afinal, os estudos demanda envolvem variáveis difíceis de sindicar em muitos casos, o que lhes garante margens de erro não desprezíveis.

Mesmo que mais recentemente o compartilhamento do risco de demanda venha sendo adotado em alguns casos, o fato é que prevalece na experiência brasileira ainda a alocação integral deste risco ao concessionário privado. Essa alocação muitas vezes é estipulada acriticamente, sem a investigação da real capacidade do concessionário em gerenciar esse risco[9]. Há pelo menos três razões que justificam essa opção.

Em primeiro lugar, a tradição. Classicamente, os contratos de concessão têm acolhido a transferência do risco de exploração do negócio ao concessionário – não apenas aqui, mas também em outros países da América Latina e da Europa[10]. Assim se passou com diversos setores, quando o concessionário era o único responsável pelas oscilações de demanda, considerada como um “risco ordinário” da concessão. Aliás, historicamente, os contratos de concessão não contavam com matrizes de riscos mais específicas e detalhadas, sendo a concessão entendida como um negócio que era integralmente transferido à gestão de um privado, com todas as vicissitudes que lhe são inerentes.

Em segundo lugar, em virtude de uma interpretação estrita da norma do inc. II do art. 2o da Lei 8.987/95[11], na acepção de que estaria a impor o deslocamento de todo o risco de demanda para o concessionário privado, ante o uso da expressão “por sua conta e risco”. Como já defendi em outro estudo, “parece nitidamente excessivo o raciocínio que pretende extrair desta norma vedação a que o risco de demanda (ou parcela deste) possa ser alocado à responsabilidade do poder concedente em contratos de concessão ou de PPP. A locução “por sua conta e risco” relaciona-se muito mais à autonomia de gestão do concessionário, a qual pressupõe a reserva dos riscos atinentes às escolhas dos meios adequados para a produção dos resultados e metas esperadas para a concessão, do que propriamente à absorção de riscos específicos pelo concessionário”.

Aliás, “nem seria adequado que o legislador tivesse deslocado, de forma abstrata e generalizada, o risco de demanda ao concessionário. Não é possível afirmar que o concessionário seja, em todos os casos, o único detentor do controle sobre o risco de demanda – o que, de um ponto de vista da racionalidade econômica, justificaria o deslocamento do risco à sua responsabilidade. Os níveis de demanda, a depender da natureza do serviço, podem ser influenciados por outros fatores que não o desempenho do concessionário na prestação do serviço.

Ademais disso, o concessionário muitas vezes não detém capacidade de melhor gerenciar esses riscos (adquirir instrumentos de prevenção ou capacidade de mitigação dos prejuízos de modo mais eficiente do que o parceiro público). As concessões rodoviárias são um exemplo. As variações na demanda são influenciadas por fatores diversos, como a ausência de vias alternativas, o crescimento da frota de veículos, o advento de restrições de acesso à rodovia etc. O concessionário não será o único a influir na variação do fluxo de veículos inerente ao funcionamento de uma concessão rodoviária. Assim também se passa com outros serviços públicos”[12]. Logo, não vejo qualquer restrição jurídica, derivada do mencionado dispositivo da Lei Geral de Concessões, a que o risco de demanda seja retido pelo poder concedente ou compartilhado entre as partes.

Em terceiro lugar, em virtude de uma razão que se prende com um componente essencial do modelo concessionário, que é a transferência ao concessionário da uma razoável autonomia para gerir o serviço público. Na medida em que o concessionário se responsabiliza pela gestão da concessão, encarregando-se da gestão dos meios para entregar os resultados esperados pelo Poder Concedente -, é logicamente racional que sofra as consequências de suas escolhas. É essa razão que pretende oferecer racionalidade econômica para a opção de transferir-se integralmente o risco de demanda ao concessionário, seguindo-se a premissa de que o risco deve ser alocado à parte com melhores condições para o seu gerenciamento. No entanto, nem o concessionário é o único responsável pelo controle do risco de demanda (isso varia também em função das características do regime de concessão), nem o deslocamento integral desse risco ao concessionário pode ser visto como a opção economicamente mais racional em muitos casos.

O domínio do concessionário sobre os fatores que interferem no risco de demanda é mais visível em setores onde o serviço público é operado em regime de concorrência, a depender do nível de competição no mercado, e onde se admite a liberdade tarifária. Nestes setores, a performance do concessionário tem uma relação mais direta com as oscilações na demanda. Mas esse não é o caso de setores que operam em regime de monopólio e sob forte regulação tarifária, onde a utilização da infraestrutura está mais impactada por outros fatores do que propriamente pela performance do concessionário – embora, não se pode negar, esteja também orientada pelo nível de qualidade e de disponibilidade da infraestrutura, que são de responsabilidade do concessionário.

Como já adverti: “A alta longevidade dos contratos de PPP faz com que os níveis de demanda estejam expostos à influência de causas diversas, que muitas escapam do controle do concessionário: O ambiente macroeconômico (crises agudas na economia), por exemplo, pode propiciar quedas significativas de demanda, sem que isso possa ser adequadamente prevenido pelo parceiro privado. Diversos outros fatores poderão influenciar na variação da demanda de um serviço público, como o aumento de usuários estimulado por políticas governamentais ou como decorrência do próprio crescimento do PIB etc. Como essas projeções são difíceis e envolvem margens de erro não desprezíveis, o compartilhamento do risco de demanda surge como um mecanismo eficaz para impedir variações desproporcionais nos resultados financeiros da concessão, minimizando-se também problemas de instabilidade da taxa de retorno do projeto (o que acautela o financiador, desonerando custos financeiros do projeto)”[13].

O advento das crises macroeconômicas aptas a impactar sensivelmente a demanda por serviços públicos é um exemplo emblemático disso. Em casos assim, em que o comprometimento da receita da concessão atinja níveis críticos, sem que o contrato preveja mecanismos para a compensação desses prejuízos (o que poderia ocorrer por meio, por exemplo, do compartilhamento do risco de demanda), os desvios no fluxo de caixa podem conduzir à morte da concessão, com prejuízos não apenas à concessionária, mas ao poder concedente e aos usuários.

Logo, especialmente em setores onde o nível de concorrência do serviço público é baixo ou inexistente, como é o caso de muitas concessões, a demanda afigura-se bastante sensível a fatores exógenos à esfera de controle do concessionário. Se assim é, o deslocamento para si do risco integral de demanda pode caracteriza uma distribuição de riscos apta não só a gerar ineficiências no contrato, como o risco de especulação comercial pelos interessados sobre as projeções de receita da concessão.

Ademais disso, um efeito da exposição excessiva do concessionário a certos riscos da concessão é o incremento dos custos de transação. Em situações em que o concessionário vislumbrar riscos não-gerenciáveis ou não-seguráveis sob sua responsabilidade, a tendência é que o provisionamento para o gerenciamento desses riscos seja bastante custoso. Isso porque, relativamente a esses riscos, os interessados tendem a precificar seus custos sob cenários pessimistas, buscando se proteger de perdas mais expressivas. Como resultado, há a elevação do preço da concessão, que passa incorporar ineficiências derivadas dos custos desses riscos.

Um outro possível efeito deletério da alocação integral do risco de demanda para o concessionário está na possibilidade de especulação comercial sobre as projeções de demanda, ou até mesmo o risco de fraude à licitação. Trata-se do risco de manipulação dos dados da demanda projetada com vistas a possibilitar não apenas descontos mais expressivos na licitação, mas a transformação da receita da concessão ao longo do projeto. Deprimindo artificialmente as estimativas de demanda, planta-se a possibilidade futura de ampliação significativa da receita da concessão.

Em vista disso, o compartilhamento do risco de demanda surge como técnica voltada a mitigar esses riscos e garantir maior estabilidade econômico-financeira à concessão, mitigando efeitos de oscilações intensas oriundas de crises recessivas na economia. Esse compartilhamento pressupõe a identificação de bandas de riscos, separando-se riscos de responsabilidade exclusiva do concessionário, do poder concedente e partilhados pelas partes. Essa delimitação assenta-se na ideia de que há um risco ordinário de variação de demanda a ser administrado exclusivamente pelo concessionário e que se contrapõe a risco extraordinário, que deve ser deslocado ao poder concedente partilhado entre as partes.

As variações menos expressivas, e que se justificam nas vicissitudes naturais de qualquer empreendimento desta natureza, podem muito bem ser absorvidas no fluxo de caixa do projeto, considerando-se “riscos ordinários” da concessão. Já as variações muito acentuadas na demanda, que impactam de modo mais intenso o fluxo de caixa da concessão, retratam movimentos econômicos que fogem à previsibilidade da concessão, merecendo por isso um mecanismo automático de compensação. É o chamado risco de extraordinário de demanda.

A filosofia subjacente a esse sistema de compartilhamento de riscos é justamente evitar prejuízos acentuados à concessão, o que provoca o risco de sua descontinuidade, com uma série de desdobramentos ao poder concedente e aos usuários, assim como permitir o compartilhamento de ganhos mais expressivos do concessionário com os usuários do sistema. Trata-se, por isso, de sistemática a gerar maior eficiência ao contrato de concessão, por imprimir maior segurança em relação à performance econômico-financeira do projeto – concorrendo para a redução de custos financeiros do projeto -, como maior justeza na distribuição dos eventuais excedentes, carreando aos usuários os resultados dos riscos positivos da concessão.

A metódica para a compensação da materialização desses riscos pode variar bastante, sendo uma questão a ser customizada pelos contratos.  É relevante advertir apenas que para os casos em que a compensação se dê mediante contraprestação pública (de natureza pecuniária), deverão ser consideradas as cautelas próprias do regime da responsabilidade fiscal.

  1. Crises econômicas como objeto da tutela dos riscos extracontratuais

            Uma abordagem relevante relaciona-se ao tratamento jurídico a ser dispensado para os casos de omissão contratual acerca da alocação do risco de crises econômicas. Evidentemente que o enfrentamento jurídico do problema dependerá de uma análise bastante criteriosa dos termos do contrato, fazendo-se uso de uma interpretação sistemática e teleológica do conteúdo do contrato para concluir-se pela inexistência de regência contratual sobre a questão. Trata-se da prevalência da força do contrato relativamente a critérios sucessivos que possam orientar a elucidação do problema, em prestígio ao princípio constitucional da intangibilidade da equação econômico-financeira do contrato administrativo.

       Na hipótese, contudo, de ausência de solução contratualmente estabelecida, caberá ao intérprete e ao juiz encontrar critérios secundários a oferecer uma solução à questão que possa estar harmonizada com o regime jurídico dos contratos de longo prazo.

       Neste particular, nem a Lei 8.987/95 nem a Lei 11.079/2004 trazem qualquer indicação acerca da tutela de riscos extracontratuais. Já a Lei 8.666/93, que tem aplicação subsidiária aos contratos concessionários, contém uma disciplina expressa sobre a questão, inscrita na alínea “d” do inc. II do art. 65, deslocando-se à Administração Pública os riscos atinentes à álea extraordinária e extracontratual.

       Esta disciplina não parece inconciliável com o modelo concessionário: “Observe-se que essa regra visa a tutelar uma situação própria de risco extracontratual, desconsiderado pelo contratado ao tempo da contratação. O objetivo do legislador parece ter sido precisamente o de desestimular, nas propostas oferecidas na licitação, a precificação de situações de risco cujo controle pelos interessados é impossível ou bastante limitado. A finalidade é desonerar as propostas desses custos, transferindo-se a responsabilidade de gerenciamento desses riscos à Administração. Essa orientação está alinhada com a premissa fundamental costumeiramente utilizada para nortear a alocação de riscos em contratos complexos e de longo prazo, como as concessões e as PPPs, a qual recomenda alocar o risco à parte que detém melhores condições para o seu gerenciamento, donde se extrai a exegese de que riscos que não possam ser adequadamente gerenciados pelo parceiro privado devem ser retidos pelo parceiro público. Como esses riscos serão aqueles considerados imprevisíveis (e extracontratuais), o parceiro privado não terá meios para gerenciá-los adequadamente, fazendo sentido, portanto, que sejam eles alocados à responsabilidade do parceiro público”[14].

       Parece-me, portanto, que essa regra será perfeitamente aplicável aos contratos concessionários para hipóteses de riscos imprevisíveis e extracontratuais.

       Cabe aprofundar a análise do conteúdo dessa norma, com vistas a examinar a tutela do equilíbrio contratual ante a ocorrência de crises econômicas.

3.1. O conteúdo jurídico da “álea extraordinária e extracontratual”: exegese do dispositivo da alínea “d” do inciso II do artigo 65

A norma da alínea “d” do inc. II do artigo 65 da Lei 8.666/93 impõe o dever jurídico de as partes alterarem o contrato administrativo para a recomposição da equação econômico-financeira em face da ocorrência de “alea extraordinária e extracontratual”. A expressão é indeterminada e abrangente, autorizando o reequilíbrio contratual em função da ocorrência de fato superveniente à celebração do contrato, ou de conhecimento superveniente, imprevisível ou de consequências incalculáveis, que não decorra de culpa ou de responsabilidade do contrato e impacte onerosamente os custos de produção do contrato.

Uma adequada exegese do dispositivo importa reconhecer, portanto, a existência de quatro atributos cumulativos para a qualificação do evento a ensejar a tutela à equação financeira do contrato: (i) superveniência (à apresentação da proposta na licitação que gerou o contrato); (ii) imprevisibilidade; (iii) onerosidade; e (iv) extracontratualidade.

A maior dificuldade no enquadramento de eventos ao conceito de álea extraordinária reside precisamente na imprevisibilidade do evento, com vistas a distinguir riscos que, embora extracontratuais, afiguram-se previsíveis em função da atividade empresarial do concessionário, daqueles em relação aos quais não se pode exigir do concessionário sua previsibilidade.

É bastante difícil para não dizer impossível encontrar critérios objetivos e abstratos para diferenciar o previsível do imprevisível, o ordinário do extraordinário, em se tratando de riscos nas concessões. Talvez se pudesse aludir a uma espécie de escala de previsibilidade a medir os eventos que interferem na execução da concessão, cuja variável fundamental é a probabilidade. Tanto em relação à natureza do evento – qualitativamente (im)previsível -, como em relação à sua intensidade – quantitativamente (im)previsível -, sua previsibilidade será medida em função da probabilidade de sua ocorrência[15]. Assim, um furacão é um evento improvável de ocorrer no Brasil, retratando uma improbabilidade sob o ângulo qualitativo. Já a ocorrência de chuvas frequentes, não. Mas quando estas atingem índices pluviométricos altíssimos e de modo duradouro, adquirem um status de evento improvável – e aqui se está tratando de uma improbabilidade quantitativa. Em ambos os casos se está diante de um evento em relação ao qual não se poderia exigir das partes contratantes a sua previsibilidade, seja porque a espécie de evento é rara ou de ocorrência muito pouco provável, seja porque, embora ordinário o evento, sua intensidade o torna inesperado.

         Esses dois ângulos de análise encontram fundamento na abrangência da locução da norma da alínea “d” do inciso II do artigo 65, que pressupõe como situações hábeis a ensejar o reequilíbrio não apenas aquelas imprevisíveis, mas também as que, embora previsíveis, são de consequências incalculáveis.

A advertência não é supérflua, uma vez que não raramente se minimiza a relevância do aspecto quantitativo no exercício de subsunção da situação concreta ao conceito de imprevisibilidade. Aliás, as abordagens mais comuns sobre as crises econômicas como causa de reequilíbrio da concessão têm padecido desse defeito de compreensão. A recorrência cíclica de crises macroeconômicas no país não raro é referida como justificativa para afastar a imprevisibilidade destes eventos e negar o reequilíbrio contratual, descurando-se de um exame concreto acerca de sua intensidade.

Além disso, a previsibilidade de um evento relaciona-se não apenas à sua anormalidade ou probabilidade, examinada sob os ângulos qualitativo e quantitativo, mas à disponibilidade de mecanismos aptos a monitorar a previsibilidade de sua ocorrência. Neste particular, os movimentos da economia são objeto de monitoramento e previsões diversas, mas que não contam com um grau aceitável de acurácia. As crises econômicas são fenômenos complexos, cuja ocorrência e intensidade não são plenamente capturadas pelas avaliações preditivas disponíveis na atualidade.

Mas é evidente, por outro lado, que os movimentos econômicos, dentro de uma certa margem de oscilação, são inerentes à dinâmica ordinária da economia. O funcionamento da economia não goza de estabilidade, sendo que há distúrbios mais ou menos acentuados, a desencadear uma série de consequências com maior ou menor impacto em certos segmentos do mercado. E há por certo uma margem de oscilação dos indicadores econômicos que constitui o que se poderia chamar do risco ordinário da economia, ou do risco ordinário empresarial.

Este risco ordinário não é tutelado pela teoria da imprevisão, que dá fundamento à norma da alínea “d” do inciso II do artigo 65 da Lei 8.666/93. Mas é necessário perceber que o risco econômico ordinário como excludente da tutela da teoria da imprevisão nas relações entre privados é bastante diverso daquele a ser considerado na relação contratual administrativa. Isso porque, tal como adiante abordado, os contratos administrativos, como as concessões, estão como regra subjugados a uma tutela estatal muito mais intensa do que os contratos privados, privando o concessionário da gestão de mecanismos próprios de mercado para compensar perdas e agravos decorrentes das vicissitudes da economia. Por isso, a tutela do princípio do equilíbrio contratual é diversa e bastante mais generosa nos contratos públicos.

Logo, a noção de crise econômica a caracterizar o risco econômico extraordinário ou a álea extraordinária empresarial prende-se com uma avaliação quantitativa, só possível em face dos casos concretos. Essa análise, para os fins do seu enquadramento no conceito de álea extraordinária inscrito na alínea “d” do inciso II do artigo 65 da Lei 8.66/93, pressupõe a consideração não apenas da intensidade da crise em si, mas da intensidade dos efeitos gerados no segmento econômico específico e associado à operação da concessão.

3.2. Crises econômicas como evento imprevisível ou de consequências incalculáveis

Talvez se possa dizer que crises econômicas não são exatamente eventos incomuns a ocorrer num ciclo de vida longo com é o das concessões. Mas a depender de sua intensidade, uma crise econômica pode afigurar-se distúrbio incomum e extraordinário. Quando uma crise intensa adquire potencial de alterar de modo significativo a receita de uma concessão, não se há de falar em um evento ordinário e de consequências previsíveis, do qual se esperaria a consideração pelo concessionário em sua proposta. Equiparar uma crise capaz de gerar desvios relevantes no fluxo de caixa de uma concessão a um risco ordinário do negócio é dota-lo de uma álea excessiva e incompatível com a sua estabilidade econômico-financeira.

Tome-se como exemplo a crise macroeconômica desencadeada a partir do ano de 2014. Os dados disponíveis indicam que sua intensidade foi avassaladora, sem precedentes na histórica recente do Brasil, impactando diversos contratos de concessão gestados em anos anteriores[16]. Esses contratos foram licitados sob um contexto macroeconômico bastante diverso daquele que se instalaria poucos anos depois. Mais do que isso, esses programas foram orientados por previsões de crescimento da economia (com reflexos nas estimativas de demanda) muito discrepantes do que se verificou na realidade subsequente. Note-se que em janeiro de 2013 as expectativas de crescimento para 2015 e 2016 eram, respectivamente, 3,60 e 3,55%, de acordo com a pesquisa Focus, coletada pelo Banco Central junto a aproximadamente 100 instituições do mercado financeiro e consultorias[17]. No entanto, os resultados para o biênio 2015/2016 foram quedas no PIB de 3,8 em 2015 e de 3,6 em 2016.

A causa para essas discrepâncias não esteve em meros erros nas estimativas de demanda, mas na alteração superveniente da realidade econômica do país. A partir de 2014 o Brasil experimentou aquilo que viria ser uma das piores crises recessiva em toda a sua história. O crescimento acumulado para o período 2014/2016 resultou numa queda no PIB de 6,9%, caracterizando-se como o pior triênio da historia. A intensidade da crise levou o economista Raul Velloso a indagar: “qual a probabilidade de alguém, em 2013, imaginar que, nos três anos seguintes, teríamos o pior desempenho da história dos últimos 116 anos?[18]

É evidente que, dada a dimensão da crise, ela não era previsível à época da gestação dos contratos de concessão nos anos anteriores. Se não era previsível, não foi considerada no plano de negócios dessas concessões. Se não foi considerada para esse fim, sua ocorrência, desde que geradora de desvios relevantes nos respectivos fluxos de caixa, há de ser considerada um fato extraordinário a ensejar o direito ao reequilíbrio contratual.

Portanto, uma característica a ser levada em consideração no exercício de subsunção da crise econômica ao conceito de evento imprevisível e extraordinário é a sua intensidade. Bem demonstrada a relação e causalidade entre a crise e o desvio gerado no fluxo de caixa do contrato, e a depender da dimensão deste, resta configurado o evento próprio da álea extraordinária capaz de ensejar o direito ao reequilíbrio.

Dada a sua imprevisibilidade e a impossibilidade de mensuração de suas consequências, admitir que risco desta natureza haveria de ser considerada no plano de negócio da concessionária importaria não apenas prestigiar uma alocação ineficiente de riscos como gerar uma série de distorções no processo de licitação, tal como abordado atrás.

Não se contraponha que a longevidade da concessão impediria o reconhecimento do desequilíbrio, aludindo-se que futuros períodos de euforia econômica poderiam compensar as crises agudas do passado. O argumento prova demais, pois seria oponível a todo e qualquer evento de desequilíbrio. Sua aceitação conduziria a fulminar a hipótese do reequilíbrio episódico. Afinal, sempre existirá a possibilidade de ocorrência do reequilíbrio inverso, ou da reversão do desequilíbrio, no prazo residual da concessão. Admitir essa possibilidade como óbice ao reequilíbrio conduziria ao aniquilamento dessa espécie de garantia constitucional ao concessionário, transformando-a num expediente de liquidação e haveres ao final da concessão (como sempre há o risco de ocorrência do reequilíbrio inverso, os ajustes para a manutenção pretérita da equação econômico-financeira da concessão seriam implementados apenas concluído o ciclo de vida da concessão, à guisa de liquidação dos haveres). É evidente, portanto, que a recomposição da equação econômico-financeiro deverá ser implementada no momento da verificação do desequilíbrio.

3.3. O impacto das crises econômicas e o regime de remuneração do concessionário

Um outro aspecto que não deve ser desprezado nesta análise é a capacidade do concessionário de externalizar as perdas de decorrentes do desequilíbrio. A tutela do equilíbrio contratual é tanto mais relevante em negócios sob forte controle e planejamento estatal, mitigando-se a capacidade do contratado em gerenciar as perdas a partir do aumento de preços, da subtração ou postergação de investimentos etc. É evidente que o empresário que atua sob a livre iniciativa dispõe de uma série de mecanismos para neutralizar perdas sofridas pelo impacto de crises e de fatos gravosos ao seu negócio, que não são acessíveis pelo concessionário público. Os contratos de concessão estão, em maior ou menor grau, sujeitos a uma tutela estatal, que os limita pela imposição de cadernos de encargos, de planos de investimentos e do controle tarifário. Essa regulação impede que o concessionário compense os desvios gerados em seu fluxo de caixa pelo efeito de crises econômicas a partir dos mecanismos típicos de mercado.

A advertência relaciona-se à distinção entre concessões que operam sob maior ou menor regulação tarifária. Os negócios sujeitos à concorrência, submetidos em alguma medida à liberdade tarifária, viabilizam a transferência das oscilações de custos aos preços do serviço. Para essas concessões, que estão em boa medida sujeitas aos mecanismos próprios de mercado, os prejuízos não necessariamente são suportados dentro do fluxo de caixa da concessão. Precisamente em função disso, não estão subjugadas à tutela rígida do equilíbrio contratual, que se justifica precipuamente na impossibilidade de externalização das perdas sofridas pelo concessionário.

Ou seja: as concessões que operam sob um forte controle tarifário, como são as rodovias, aeroportos ferrovias etc, são negócios muito mais dependentes da tutela externa do equilíbrio econômico-financeiro do que aquelas que contam com mecanismos para a transferência das perdas (que acabam por transferi-las aos usuários). É imprescindível, nestes casos, que a tutela do reequilíbrio contratual se faça presente, sob pena de impor-se ao concessionário um ônus imprevisível e impossível de ser compensado pela dinâmica própria do negócio.

3.3. A alocação do risco de demanda ao concessionário não impede o reequilíbrio contratual fundado na caracterização da crise econômica como um evento atinente à álea extraordinária

Também não seria correto impedir o reequilíbrio da concessão fundado na ocorrência de crises macroeconômicas de grande intensidade sob a alegação de que o risco de demanda teria sido alocado ao concessionário. Desde que a causa raiz do desequilíbrio se origine de um risco alocado pela lei ou pelo contrato à responsabilidade do poder concedente, ainda que repercuta em oscilação de demanda, o concessionário terá direito à recomposição da equação econômico-financeira da concessão.

Isso significa reconhecer que nem toda oscilação de demanda deve ser suportada pelo concessionário à conta da assunção deste risco. É que a demanda do serviço público é uma variável sensível a causas diversas, que muitas vezes retratam a materialização de outros riscos arbitrados às partes pela lei ou pelo contrato. Assim, e por exemplo, o advento de uma guerra civil pode produzir queda acentuada nos níveis de demanda de certos serviços públicos, assim como também o podem catástrofes naturais, como enchentes e furacões. E ninguém duvida que eventos desta natureza se caracterizam como caso fortuito e força maior, típicos da álea extraordinária tratada pela norma da alínea “d” do inciso II do artigo 65 da Lei 8.666/93, ainda que seu impacto na concessão se expresse pela forte redução de demanda. Esses exemplos extremos ajudam a evidenciar a relatividade da demanda à materialização de outros riscos, que fogem ao domínio do chamado risco de demanda.

É o que explica Pedro Gonçalves, aludindo que “a circunstância de o contratante assumir um determinado risco (v.g., de procura ou de construção) não significa que tenha de suportar as consequências de todo e qualquer facto que produza efeitos no domínio desse risco. Assim, suponha-se a diminuição da procura resultante de um facto anormal e imprevisível: por exemplo, terremoto que destrói a autoestrada gerida em sistema de concessão. Neste cenário, mesmo que concessionário tenha assumido o risco da procura, a diminuição desta não corresponde a um risco próprio do contrato, antes resulta de uma ocorrência anormal e imprevisível, que deve dar lugar a uma compensação, nos termos do artigo 314, º 2.”[19]

Logo, parece evidente que a assunção do risco de demanda pelo concessionário não lhe impõe o dever de suportar todas as consequências de fatos que repercutam efeitos negativos no domínio deste risco. Não é possível exigir do concessionário que assume o risco de demanda a responsabilidade pela ocorrência de todo e qualquer fator que possa impactar a demanda do serviço público. Inclusive porque a demanda pode ser impactada – e geralmente o é – pela ocorrência de eventos típicos da álea extraordinária.

Aliás, tem tradição na jurisprudência brasileira o reconhecimento do direito ao reequilíbrio contratual fundado na verificação de eventos extraordinários que repercutem no domínio de riscos assumidos pelo contratado. Tome-se como exemplo o desequilíbrio econômico-financeiro dos contratos verificado em função da variação cambial derivada da maxidesvalorização do real ocorrido no início de 1999. A hipótese teve acolhida no Poder Judiciário[20], sendo que a acentuada e abrupta alta do dólar norte-americano, refletida na elevação aguda no custo de certos insumos, constituiu-se em motivo suficiente para que esses custos merecessem a revisão contratual, apesar de o risco de sua variação ter sido alocado contratualmente à responsabilidade do contratado privado. A premissa jurídica reconhecida nestes julgados é a de que a alocação ao contratado privado do risco de variação no custo de insumos não impede que sua elevação acentuada e imprevisível a derivada de eventos da economia próprios da álea extraordinária enseje o reequilíbrio contratual.

A racionalidade jurídica destes precedentes autoriza a conclusão de que crises macroeconômicas recessivas, que se retratem em queda acentuada na demanda de serviços públicos, podem caracterizar-se como evento próprio da álea extraordinária a desencadear o reequilíbrio contratual, ainda que o risco de demanda tenha sido contratualmente alocado ao concessionário[21].

É necessário observar, contudo, que o aludido desequilíbrio contratual não se caracteriza pela mera discrepância (mesmo que relevante) entre a demanda estimada e a demanda verificada. Não se trata de afirmar que a discrepância acentuada da demanda real à demanda estimada caracterizaria o referido risco extraordinário de demanda. A via do reequilíbrio não deve ser utilizada para corrigir defeitos na previsão de demanda pelo concessionário (ou pelo poder concedente). A eventual demonstração do desequilíbrio deverá estar fundada na verificação de um distúrbio econômico relevante, exógeno ao contrato, e que possa caracterizar-se causa raiz para a queda acentuada de demanda. A partir disso, surgem uma série de discussões relacionadas aos parâmetros e metodologias para a quantificação do dano, que fogem aos limites deste artigo.

  1. Conclusões

O presente texto propôs-se a analisar o tema do impacto das crises econômicas nas concessões de serviços público, sob duas perspectivas distintas: a de seu tratamento ex ante, no plano do contrato, a partir da identificação de alternativas alocativas de riscos; e a da tutela de riscos extracontratuais para fins do reequilíbrio econômico-financeiro da concessão (alocação ex post do risco).

Das abordagens propostas, permite-se concluir que, em função da dificuldade de tipificação de eventos desta natureza em contrato, o compartilhamento do risco de demanda pode ser uma via adequada para minorar o impacto de crises econômicas agudas que repercutam em oscilações expressivas nos níveis de demanda.

No que se refere ao enquadramento de crises macroeconômicas como objeto da tutela de riscos extracontratuais, conclui-se que crises econômicas agudas e de caráter recessivo podem enquadrar-se no conceito de álea extraordinária, tal como delimitado pela norma da alínea “d” do inciso II do artigo 65 da Lei 8.666/93.

Essa caracterização enseja o reequilíbrio econômico-financeiro da concessão a favor do concessionário, independentemente da alocação do risco de demanda sob sua responsabilidade. A assunção do risco (ordinário) de demanda pelo concessionário não lhe torna responsável por prejuízos derivados de eventos atípicos e atinentes à álea extraordinária, tais como as crises macroeconômicas agudas, mesmo que repercutam diretamente em variações de demanda.

 Referências bibliográficas

 GONÇALVES, Pedro Costa, com colaboração de MACHADO, Carla e MOREIRA, José Azevedo. Direito dos Contratos Públicos. Coimbra: Almedina, 2016. p. 559.

JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria Geral da Concessões de Serviço Público. São Paulo: Dialética, 2003.

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GUIMARÃES, Fernando Vernalha. “Alocação de riscos na PPP”, In Parcerias Público-Privadas: Reflexões sobre os 10 anos da Lei 11.079/2004. Coord. Marçal Justen Filho e Rafael Wallbach Schwind. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.

GUIMARÃES, Fernando Vernalha. PETIAN, Angelica. RILLO, Regina. ROSÁRIO, Larissa. Distribuição de riscos nas concessões rodoviárias. Brasília: Senai/CBIC. 2017.   https://cbic.org.br/infraestrutura/wp-content/uploads/sites/26/2018/09/guia_de_riscos.pdf. Acesso em 01 de novembro de 2018.

GUIMARÃES, Fernando Vernalha. “Repartição objetiva de riscos nas parcerias público-privadas”, in Enciclopédia Jurídica da PUCSP – Tomo Direito Administrativo. https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/28/edicao-1/reparticao-de-riscos-nas-parcerias-publico-privadas.

MOREIRA, Egon B. O equilíbrio econômico-financeiro nas concessões e PPPs: formação e metodologias para recomposição”, In Contratos administrativos, equilíbrio econômico-financeiro e a taxa interna de retorno (MOREIRA, Egon B. Belo Horizonte: Fórum, 2016.

VELLOSO, Raul. Recessão extraordinária e o abalo das concessões de 2013: Instituto Nacional de Altos Estudos. Rio de Janeiro, 2016.

 

Notas de Rodapé:

[1] Pós-doutor pela Columbia University School of Law (NY, EUA – Visiting Scholar, 2017). Doutor em Direito pela UFPR. Professor de direito administrativo de diversas instituições. Autor de livros na área de infraestrutura. Advogado e sócio do VGP Advogados.

[2] “O equilíbrio econômico-financeiro nas concessões e PPPs: formação e metodologias para recomposição”, In Contratos administrativos, equilíbrio econômico-financeiro e a taxa interna de retorno (MOREIRA, Egon B. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p.89-106); “Repartição objetiva de riscos nas parcerias público-privadas”, in Enciclopédia Jurídica da PUCSP – Tomo Direito Administrativo. https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/28/edicao-1/reparticao-de-riscos-nas-parcerias-publico-privadas; “Alocação de riscos na PPP”, In Parcerias Público-Privadas: Reflexões sobre os 10 anos da Lei 11.079/2004. Coord. Marçal Justen Filho e Rafael Wallbach Schwind. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, páginas 240 e 241. Parceria Público-Privada, 2a. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 303.

[3] Pode-se entender que, embora contratualmente alocado ao pode concedente, esse risco está, de fato, alocado ao usuário, pois a recomposição da equação econômico-financeira se dará por meio der revisão tarifária, como dispõe a referida norma.

[4] GUIMARÃES, Fernando Vernalha. “Alocação de riscos na PPP”, In Parcerias Público-Privadas: Reflexões sobre os 10 anos da Lei 11.079/2004. Coord. Marçal Justen Filho e Rafael Wallbach Schwind. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 244.

[5] Considerando-se que o provisionamento de custos para riscos pressupõe em geral a multiplicação do percentual de probabilidade de sua ocorrência pelos custos necessários para reparar os prejuízos de sua materialização, é fácil perceber que a utilização do seguro pode significar alternativa mais eficiente comparativamente à hipótese retenção do risco pelo poder concedente. Isso porque os seguros contam com instrumentos de incentivo à prevenção do risco, ao passo que o poder concedente não é um agente estimulado a exerce-la, dada sua facilidade de transferir as eventuais perdas a terceiros (contribuintes e usuários).

[6] Se, ao longo da execução da concessão, o risco deixar de ser passível de cobertura por contrato de seguro a preços razoáveis, será conveniente que a responsabilidade por sua materialização retorne ao poder concedente, a depender da previsão em contrato.

[7] Veja-se GUASCH, J. Luis. Granting and renegotiating infrastructure concessions: doing it right, p. 35.

[8] Além disso, uma dificuldade marcante no enfrentamento da questão marcante está em bem demarcar a relação de causalidade entre a crise e os prejuízos suportados na operação da concessão. Em muitos casos, as crises caracterizam-se como causa raiz para prejuízos diversos associados imediatamente a outros riscos alocados contratualmente. O impacto das crises nos preços de certos insumos é um exemplo. Assim como o é a queda acentuada nos níveis de demanda do serviço derivada de crises de cunho recessivo. Embora o risco de variação no preço de insumos, assim como o risco de demanda possam estar contratualmente associados à responsabilidade do concessionário, desde que a crise econômica seja um risco identificado no contrato como de responsabilidade do poder concedente, ou apto a atrair a tutela da álea extraordinária e extracontratual, sua materialização ensejará o reequilíbrio da concessão.

[9] Vide também GUIMARÃES, Fernando Vernalha. PETIAN, Angelica. RILLO, Regina. ROSÁRIO, Larissa. Distribuição de riscos nas concessões rodoviárias. Brasília: Senai/CBIC. 2017.   https://cbic.org.br/infraestrutura/wp-content/uploads/sites/26/2018/09/guia_de_riscos.pdf. Acesso em 01 de novembro de 2018.

[10] Um dos critérios muito debatidos no direto europeu para diferenciar os contratos de concessão de contratos convencionais de empreitada foi precisamente a alocação do risco de exploração do negócio sob a responsabilidade do concessionário. Para fins de aplicação do regime jurídico correspondente, discutia-se se determinado ajuste pressupunha a transferência do risco de exploração do negócio (que se confunde com o risco de demanda) para que fosse submetido à disciplina da concessão de serviço público.

[11] Eis o texto da norma: “Para os fins do disposto nesta Lei, considera-se: concessão de serviço público: a delegação de sua prestação, feita pelo poder concedente, mediante licitação, na modalidade de concorrência, à pessoa jurídica ou consórcio de empresas que demonstre capacidade para seu desempenho, por sua conta e risco e por prazo determinado”.

[12] GUIMARÃES, Fernando Vernalha. “Alocação de riscos na PPP”, In Parcerias Público-Privadas: Reflexões sobre os 10 anos da Lei 11.079/2004. Coord. Marçal Justen Filho e Rafael Wallbach Schwind. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.

[13] GUIMARÃES, Fernando Vernalha. “Repartição objetiva de riscos nas parcerias público-privadas”, in Enciclopédia Jurídica da PUCSP – Tomo Direito Administrativo. https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/28/edicao-1/reparticao-de-riscos-nas-parcerias-publico-privadas.

[14] GUIMARÃES, Fernando Vernalha. “Alocação de riscos na PPP”, In Parcerias Público-Privadas: Reflexões sobre os 10 anos da Lei 11.079/2004. Coord. Marçal Justen Filho e Rafael Wallbach Schwind. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 238.

[15] Vide JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria Geral da Concessões de Serviço Público. São Paulo: Dialética, 2003, p. 401.

[16] Apenas no setor rodoviário, sete trechos da 3a. Etapa do Programa de Concessões de Rodovias Federais foram licitados. Já no setor aeroportuário, foram assinadas neste período as concessões de Guarulhos (SP), Brasília, Viracopos (SP), Confins (MG) e Galeão (RJ). De acordo com reportagem da edição de 18 de maio de 2018 do Estadão, estes terminais operavam com uma demanda em média em 30% abaixo da projetada na licitação. https://economia.estadao.com.br/noticias/negocios,demanda-de-primeira-leva-de-aeroportos-concedidos-esta-30-abaixo-do-previsto,70002313497.

[17] VELLOSO, Raul. Recessão extraordinária e o abalo das concessões de 2013: Instituto Nacional de Altos Estudos. Rio de Janeiro, 2016, p. 20.

[18] Recessão extraordinária e o abalo das concessões de 2013: Instituto Nacional de Altos Estudos. Rio de Janeiro, 2016, p. 20.

[19] GONÇALVES, Pedro Costa, com colaboração de MACHADO, Carla e MOREIRA, José Azevedo. Direito dos Contratos Públicos. Coimbra: Almedina, 2016. p. 559.

[20] Sirva de exemplo julgado do Superior Tribunal de Justiça, que convive com outros em sentido contrário: “CONTRATO ADMINISTRATIVO. EQUAÇÃO ECONÔMICO-FINANCEIRA DO VÍNCULO. DESVALORIZAÇÃO DO REAL. JANEIRO DE 1999. ALTERAÇÃO DE CLÁUSULA REFERENTE AO PREÇO. APLICAÇÃO DA TEORIA DA IMPREVISÃO E FATO DO PRÍNCIPE. 1. A novel cultura acerca do contrato administrativo encarta, como nuclear no regime do vínculo, a proteção do equilíbrio econômico-financeiro do negócio jurídico de direito público, assertiva que se infere do disposto na legislação infralegal específica (arts. 57, § 1º, 58, §§ 1º e 2º, 65, II, d, §§ 5º e6º, da Lei 8.666/93). Deveras, a Constituição Federal ao insculpir os princípios intransponíveis do art. 37 que iluminam a atividade da administração à luz da cláusula manter da moralidade, torna clara a necessidade de manter-se esse equilíbrio, ao realçar as ‘condições efetivas da proposta’. 2. O episódio ocorrido em janeiro de 1999, consubstanciado na súbita desvalorização da moeda nacional (real) frente ao dólar norte-americano, configurou causa excepcional de mutabilidade dos contratos administrativos, com vistas à manutenção do equilíbrio econômico-financeiro das partes. 3. Rompimento abrupto da equação econômico-financeira do contrato. Impossibilidade de início da execução com a prevenção de danos maiores. (ad impossiblia memo tenetur). 4. Prevendo a lei a possibilidade de suspensão do cumprimento do contrato pela verificação da exceptio non adimplet contractus imputável à administração, a fortiori, implica admitir sustar-se o ‘início da execução’, quando desde logo verificável a incidência da ‘imprevisão’ ocorrente no interregno em que a administração postergou os trabalhos. Sanção injustamente aplicável ao contratado, removida pelo provimento do recurso. 5. Recurso Ordinário provido”. Recurso Ordinário em Mandado de Segurança 15.154-PE (publicado no DJU de 2/12/2002), Rel. Ministro Luiz Fux.

Há também recente Acórdão do TCU, onde se reconheceu que “a variação da taxa cambial (para mais ou para menos) não pode ser considerada suficiente para, isoladamente, fundamentar a necessidade de reequilíbrio econômico-financeiro do contrato. Para que a variação do câmbio seja considerada um fato apto a ocasionar uma recomposição nos contratos, considerando se tratar de fato previsível, deve culminar consequências incalculáveis (consequências cuja previsão não seja possível pelo gestor médio quando da vinculação contratual), fugir à normalidade, ou seja, à flutuação cambial típica do regime de câmbio flutuante e, sobretudo, acarretar onerosidade excessiva no contrato a ponto de ocasionar um rompimento na equação econômico-financeira, nos termos previstos no art. 65, inciso II, alínea “d”, da Lei 8.666/1993”. (Acórdão nº 1431/2017 – TCU – Plenário).

[21] Não estou aqui sustentando a impossibilidade de o contrato alocar à responsabilidade do concessionário riscos extraordinários, como os de caso fortuito e força maior e de crises macroeconômicas recessivas de grande intensidade, embora essa seja em princípio uma opção juridicamente inadequada em função da projeção do princípio da eficiência, pelas razões mencionadas atrás. Mas desde que o contrato de concessão não tenha feito essa opção, não faz sentido que o reequilíbrio fundado na ocorrência de crises que se assim se qualifiquem seja obstado pela alegação de alocação do risco de demanda ao concessionário. Seja pela subsunção do fato ao conceito de caso fortuito e força maior, eventualmente tipificado em contrato como risco do poder concedente, seja pelo seu enquadramento na dicção da norma da alínea “d” do inciso II do artigo 65, crises desta natureza e magnitude devem desencadear o reequilíbrio contratual, sob pena de conferir-se ao conceito de risco de demanda uma abrangência capaz de neutralizar os efeitos da alocação (legislativa ou contratual) de outros riscos – cujo efeito direto na concessão seja a oscilação de demanda.