DESAFIOS PARA A PRESERVAÇÃO DAS EMPRESAS NO CENÁRIO PÓS LAVA JATO

Artigo

DESAFIOS PARA A PRESERVAÇÃO DAS EMPRESAS NO CENÁRIO PÓS LAVA JATO

Luciana Levy[1]   

Lucas Cherem de Camargo Rodrigues  [2] 

Introdução

Nos últimos seis anos, no período de 2012 a 2018, o setor de Infraestrutura brasileiro vivenciou desde a euforia do mercado, com pesados investimentos na área para compensar o atraso de muitas décadas, até uma grave crise, devido à recessão da economia e os fatos desvelados pela denominada “Operação Lava Jato”, envolvendo os principais players do setor, que, somados, resultaram em um imenso “pé no freio” e retrocesso para a infraestrutura do país.

Com cinco anos de duração até o momento, a Operação Lava Jato é considerada a maior ação de combate à corrupção da história no país, pois rompeu muitos paradigmas – de impunidade, especialmente – e impactou diretamente os principais conglomerados empresariais fortemente atuantes no setor de Infraestrutura que tiveram, em maior ou menor grau, envolvimento nos fatos desvelados.

Neste contexto, além das crises econômicas e no setor, as empresas envolvidas passaram a enfrentar uma grave crise interna sem precedentes, com um turbilhão de acontecimentos e circunstâncias jamais antes imaginadas, assistindo à prisão de importantes executivos, buscas e apreensões em suas sedes, investigações minuciosas e bloqueio de bens de pessoas físicas e jurídicas, quebras de sigilo bancário, além de credibilidade e imagem profundamente abaladas.

Diante desse novo cotidiano de profundo stress, com forte participação midiática e pressão popular, essas empresas, sentindo na pele a mudança de paradigma e a necessidade – e até oportunidade – de fazer parte dessa “guinada”, viram-se na mais severa busca pela sobrevivência, muitas delas optando por uma solução consensual com as autoridades, por meio da celebração de acordos de leniência. Da mesma forma, muitos dos executivos celebraram acordos de delação premiada com as autoridades competentes. No mesmo compasso, todas as empresas obrigaram-se a reformular seus processos internos, rompendo paradigmas de uma cultura de negócios que não tem mais lugar no momento atual do país.

Não se pretende neste artigo fazer uma análise exaustiva de todos os aspectos enfrentados pelas empresas do setor durante o desenrolar da Operação Lava Jato e na nova realidade do país, até porque para isso seria indispensável uma análise caso a caso, levando em consideração as particularidades de cada empresa, de cada fato envolvido e de cada acordo firmado.

O enfoque deste artigo será em três pontos de dificuldades que foram e têm sido enfrentadas pelas empresas e que consideramos relevantes para a sua preservação e continuidade.

Tais pontos guardam relação com medidas legislativas, judiciais e administrativas que afetam diretamente as empresas envolvidas. São eles: (i) a insegurança jurídica na celebração do acordo de leniência, (ii) as decisões do Poder Judiciário no contexto da Operação Lava Jato, e (iii) a paralisia decisória do Direito Administrativo.

I – Impactos da Operação Lava Jato nas empresas do setor de infraestrutura – Contexto

Deflagrada a Operação Lava Jato, as empresas que tiveram seu envolvimento apontado pelas investigações sentiram imediatamente o reflexo no mercado de capitais, tanto nos entraves para a obtenção de financiamentos –  seja para elas mesmas, seja para os projetos por elas desenvolvidos – como na revisão dos ratings pelas agências internacionais de classificação de risco, colocando em dúvida a capacidade das empresas de honrar com as obrigações financeiras correntes.

As instituições financeiras aumentaram os requisitos de compliance e pacote de garantia das dívidas exigidos e, diante da impossibilidade de cumprimento dessas novas exigências por parte das empresas, passaram a negar-lhes novos recursos. Sem recursos, em pouco tempo as dívidas já existentes deixaram de ser honradas, surgindo a necessidade de renegociação para evitar um efeito cascata.

Como consequência, projetos recém conquistados e em fase inicial foram paralisados – senão devolvidos – pelos vencedores dos certames. Também ganhou força a renegociação de contratos, onde cabível, e a venda (em atacado) de ativos (com enorme depreciação no valor). Este passou a ser o roteiro das empresas envolvidas nos fatos que vieram à tona, na tentativa de ganhar alguma liquidez e tentar se reerguer. Além disso, pleitos de recomposição do equilíbrio econômico financeiro dos contratos em curso aumentaram sobremaneira, no contexto da forte recessão econômica e crise no setor.

Com efeito, assistimos a uma crise gravíssima de credibilidade para as referidas empresas, levando-as a um cenário de extrema dificuldade de acesso ao crédito, elas que já operavam com pouca liquidez, alavancadas e comprometidas com projetos de capital intensivo que dependiam de aporte de recursos ou de financiamentos.

Some-se a isso as altas taxas de juros e as poucas fontes de financiamento dos projetos de infraestrutura, quase todos restritos à linhas de bancos de fomento como BNDES e Caixa Econômica Federal, um problema já conhecido do setor, mas que agravou a situação em momento tão delicado. Isso sem falar em bancos internacionais que, declaradamente, deixaram de financiar projetos de empresas envolvidas na Operação Lava Jato.

Ademais, as agências de classificação de risco rebaixaram e continuam rebaixando as notas de empresas antes consolidadas no mercado, considerando a rigidez (ou falta dela) dos seus padrões de governança, e sua capacidade de honrar os compromissos financeiros assumidos, o que torna mais difícil e mais cara a obtenção de crédito à empresa cuja nota tenha sido rebaixada.

Não bastasse tudo isso, o governo, principal investidor no setor de infraestrutura, com o cenário de crise, decidiu suspender tais investimentos.

Todos estes fatores resultaram em obras paralisadas, projetos com grandes dificuldades financeiras, descumprimento de obrigações contratuais, pedidos de recuperação judicial, e muitas disputas entre empresas acionistas e entre entes públicos e privados, o que também acabou por afastar novos investimentos no setor.

Nos projetos que ainda reuniam condições de continuidade, passou-se a enfrentar uma paralisia nas decisões dos agentes públicos, prejudicando sobremaneira o andamento de tais projetos, conforme será abordado mais adiante.

Foram criadas na legislação medidas urgentes, como a possibilidade de prorrogação antecipada e de devolução amigável das concessões e a possibilidade de relicitação, conforme disposto na Lei 13.448/17. No entanto, apesar de tais medidas terem sido bem recebidas pelo setor, quase dois anos depois do início da vigência da referida lei, a imprescindível regulamentação ainda está parada, com o respectivo Decreto engavetado. A Lei então deixou de cumprir sua principal finalidade, que era a de dar soluções céleres aos casos mais críticos, evitando paralisações de obras, recuperações judiciais de empresas e extinções litigiosas de concessões e PPPs.

Neste cenário difícil, as empresas envolvidas nos fatos desvelados pela Operação Lava Jato, no intuito de sobreviver e continuar a atuar no mercado de infraestrutura nacional, viram na celebração do acordo de leniência uma possibilidade de solução consensual com as autoridades competentes, para que, pagando por seus erros e cumprindo com as obrigações impostas pelas autoridades competentes, pudessem virar a página, preservando os projetos e ativos em andamento, assim como sua própria continuidade.

No entanto, as questões relativas à competência para celebração do acordo de leniência vêm causando grande insegurança jurídica às empresas que optaram por esta solução e celebraram o acordo.

II – Insegurança jurídica na celebração do acordo de leniência

Thiago Marrara define o acordo de leniência no processo administrativo sancionador como o “ajuste entre certo ente estatal e um infrator confesso pelo qual o primeiro recebe a colaboração probatória do segundo em troca da suavização da punição ou mesmo da sua extinção. Trata-se de instrumento negocial com obrigações recíprocas entre uma entidade pública e um particular, o qual assume os riscos e as contas de confessar uma infração e colaborar com o Estado no exercício de suas funções repressivas.”[3]

O acordo de leniência não é novo na legislação brasileira, mas consagrou-se recentemente como instrumento de solução consensual no âmbito do processo administrativo, para combate à corrupção, com a edição da Lei 12.846/13, a denominada Lei Anticorrupção, que trouxe a previsão de responsabilização administrativa e civil das pessoas jurídicas por atos lesivos à Administração Pública.

Antes disso, o acordo de leniência era utilizado somente no âmbito do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, no qual o CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica – tem papel central, sendo certo que, nesta esfera, o instituto do acordo de leniência já atingiu maior grau de maturidade, estando consolidado, pois desde o ano 2000 foi introduzido na legislação aplicável à defesa da concorrência a possibilidade de celebração de acordo de leniência com pessoas físicas e jurídicas, com a  confissão e colaboração na elucidação de fatos relativos a práticas contra a ordem econômica, em troca de redução ou extinção de penalidades aplicáveis aos infratores.

No âmbito da Lei Anticorrupção, a empresa que firma um acordo de leniência confessa o ilícito cometido e colabora de forma eficaz com as investigações em curso, identificando outras pessoas físicas e jurídicas envolvidas nos fatos, fornecendo informações e documentos relativos a tais ilícitos, tornando o processo conduzido pela autoridade competente mais fundamentado, com material probatório mais robusto, e permitindo que tal processo tenha um curso mais célere. Em troca, a empresa tem como benefício a mitigação das penalidades que lhe são aplicáveis em virtude do ilícito confessadamente cometido, com a isenção da sanção de publicação extraordinária da decisão condenatória, a isenção da proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicas e de instituições financeiras públicas, a isenção ou atenuação da proibição de contratação com a Administração Pública, e, por fim, a redução da multa imposta em até dois terços do valor.

No contexto da Operação Lava Jato, a possibilidade de mitigação de penalidades aplicáveis contra as empresas envolvidas, que muitas vezes é a única chance de sobrevivência de tais empresas, levou à escolha do caminho da celebração do acordo de leniência por muitas delas.

No entanto, existe uma questão que gera insegurança jurídica às empresas, que diz respeito à competência para celebrar o acordo de leniência.

Na Lei Anticorrupção, a questão da competência, tanto para instauração e o julgamento de processo administrativo para apuração da responsabilidade de pessoa jurídica, quanto para a celebração do acordo de leniência, está prevista em seus artigos 8º e 16 da Lei, que têm a seguinte redação:

Art. 8º – A instauração e o julgamento de processo administrativo para apuração da responsabilidade de pessoa jurídica cabem à autoridade máxima de cada órgão ou entidade dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, que agirá de ofício ou mediante provocação, observados o contraditório e a ampla defesa.

  • 1º A competência para a instauração e o julgamento do processo administrativo de apuração de responsabilidade da pessoa jurídica poderá ser delegada, vedada a subdelegação.
  • 2º No âmbito do Poder Executivo Federal, a Controladoria-Geral da União – CGU terá competência concorrente para instaurar processos administrativos de responsabilização de pessoas jurídicas ou para avocar os processos instaurados com fundamento nesta Lei, para exame de sua regularidade ou para corrigir-lhes o andamento.”

Art. 16 – A autoridade máxima de cada órgão ou entidade pública poderá celebrar acordo de leniência com as pessoas jurídicas responsáveis pela prática dos atos previstos nesta Lei que colaborem efetivamente com as investigações e o processo administrativo, sendo que dessa colaboração resulte:

I – a identificação dos demais envolvidos na infração, quando couber; e

II – a obtenção célere de informações e documentos que comprovem o ilícito sob apuração.

  • 1º O acordo de que trata o caput somente poderá ser celebrado se preenchidos, cumulativamente, os seguintes requisitos:

I – a pessoa jurídica seja a primeira a se manifestar sobre seu interesse em cooperar para a apuração do ato ilícito;

II – a pessoa jurídica cesse completamente seu envolvimento na infração investigada a partir da data de propositura do acordo;

III – a pessoa jurídica admita sua participação no ilícito e coopere plena e permanentemente com as investigações e o processo administrativo, comparecendo, sob suas expensas, sempre que solicitada, a todos os atos processuais, até seu encerramento.

Pela simples leitura dos dispositivos acima transcritos já se pode constatar o problema  existente no que tange à competência para a condução do processo administrativo e celebração do acordo de leniência, eis que a Lei Anticorrupção não atribui tal competência a um único órgão específico, e sim à “autoridade máxima de cada órgão ou entidade pública”, fixando ainda a competência concorrente da Controladoria Geral da União no âmbito do Poder Executivo Federal.

O resultado é a possibilidade de inúmeras autoridades instaurarem, conduzirem o processo administrativo, e celebrarem o acordo de leniência, gerando enorme insegurança jurídica às empresas que temem – justificadamente – que a solução consensual firmada com uma autoridade não seja reconhecida pelas demais autoridades não signatárias do acordo, continuando, assim, tais empresas expostas a processos administrativos e judiciais.

Além da abrangência trazida pela Lei Anticorrupção, é fato que os dispositivos legais que versam sobre as medidas combativas à corrupção no Brasil não estão adstritos à Lei Anticorrupção supracitada, havendo dispositivos que versam sobre a matéria também na Lei de Improbidade Administrativa e na Lei de Licitações, por exemplo.

A interpretação de todo este conjunto normativo nos leva a concluir que existe uma multiplicidade de órgãos e entidades públicas com competência e atribuição para adotar medidas de combate aos atos que violam a Lei Anticorrupção, em prol da proteção do patrimônio público, responsabilizando as pessoas físicas e jurídicas infratoras.

Nesse contexto de sobreposição de competências, o Ministério Público tomou a dianteira na interlocução com as empresas envolvidas nos fatos da Operação Lava Jato e celebrou acordos de leniência, com base nos dispositivos da Lei Anticorrupção. Celebrou também acordos de delação premiada com pessoas físicas, com base na Lei 9.807/99 e na Lei 12.850/13, a qual atribuiu, em seu artigo 4º §6º, a competência ao Ministério Público para a negociação e celebração dos acordos de delação premiada com as pessoas físicas investigadas.

Como é sabido, o acordo de leniência e o acordo de colaboração premiada possuem grande semelhança, já que ambos buscam aumentar a eficácia e a celeridade das investigações de atos ilícitos, culminando com a elucidação dos fatos e punição dos agentes responsáveis, em troca do abrandamento de penalidades aplicáveis à empresa ou ao colaborador, conforme aplicável.

Não obstante a responsabilização da pessoa jurídica prevista na Lei Anticorrupção, fato é que os atos ilícitos que violam a Lei Anticorrupção são praticados por pessoas físicas e, por isso, os relatos dos acordos de delação premiada dos executivos das empresas geralmente compõem a base fática para o acordo de leniência com a pessoa jurídica. Isso gera inclusive um outro ponto de insegurança, no que tange à possibilidade de o acordo de delação premiada de uma pessoa física ser invalidado e a extensão do efeito disso no acordo de leniência celebrado pela mesma empresa.

A Advocacia-Geral da União (AGU), por seu turno, passou a contestar judicialmente os acordos celebrados pelo Ministério Público Federal sem a sua participação, com os quais a AGU não concordava, tendo sua tese prevalecido judicialmente. Para as empresas, a mensagem foi de insegurança e a certeza de que somente o acordo firmado com o Ministério Público não bastaria, havendo a necessidade de acordos paralelos com a AGU e o Ministério da Transparência e Controladoria-Geral da União (CGU).

Em outra ponta, o Tribunal de Contas da União (TCU) também passou a questionar a competência do Ministério Público Federal e os acordos celebrados, adotando uma posição de fiscal e revisor dos acordos celebrados, defendendo a prerrogativa de alterar desconsiderar acordos de leniência firmados pelo Ministério Público Federal e homologados pela Justiça. Deste posicionamento resultam decisões proferidas pelo TCU que impactam sobremaneira as empresas, como por exemplo bloqueio de seus bens, quando há discordância do TCU com relação aos valores pactuados no acordo de leniência firmado.

Ademais, a empresa que firma o acordo de leniência continua exposta às sanções da Lei de Improbidade Administrativa, em razão da proibição nela contida de celebração de acordos ou qualquer tipo de transação envolvendo questões de improbidade administrativa. Apesar das intensas  discussões em torno desta proibição (que chegou a ser revogada pela MP 703/15, que perdeu a vigência) e de posicionamentos como o da 5ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, que entende que o advento da Lei Anticorrupção promoveu a derrogação, ainda que tácita, da antiga vedação ao acordo de leniência na Lei de Improbidade Administrativa[4], fato é que há Tribunais em que prevalece o entendimento da proibição da transação, resultando na exposição das empresas que celebraram acordos de leniência às sanções decorrentes das ações de improbidade administrativa.

Frise-se, ainda, que o fato de o Ministério Público Federal ter firmado acordos de leniência não significa que os demais membros do Ministério Público Federal e dos Ministérios Públicos Estaduais estão vinculados a estes acordos. Diante da autonomia funcional dos membros do Ministério Público, cada um deles tem a faculdade de aderir ou não ao acordo firmado pelo Ministério Público Federal, cabendo às empresas, após a celebração do acordo, diligenciar e negociar com cada um destes entes para obter tais adesões.

Somente pelo exposto até aqui já se nota que a celebração de um acordo de leniência com o Ministério Público Federal é apenas o início de um árduo caminho a ser seguido pelas empresas. Não está sendo alcançado, portanto, o objetivo do instituto do acordo de leniência, que é de ser instrumento viabilizador da continuidade dessas empresas, para que elas possam virar a página e ter foco total em no desenvolvimento de seus negócios – e não na superação das brechas da lei – para sua sobrevivência.

É inegável o avanço trazido pela Lei Anticorrupção, ao prever o acordo de leniência como solução consensual no combate à corrupção, sendo o instituto, sem sombra de dúvida, um forte aliado para a preservação das empresas. Por outro lado, seu marco legal é claramente insuficiente, eis que traz muitas dúvidas no que tange à competência e, com elas, a insegurança jurídica. As dúvidas que acometem as empresas que desejam uma solução consensual vão desde a entidade com quem deve iniciar as negociações até a extensão da efetividade do acordo em si, após celebrado.

Evidentemente que o cenário mais seguro para tais empresas seria o de se ter todos os atores na mesa de negociação, mas não é tarefa fácil. Não há sequer convergência entre as instituições. Pelo contrário. O cenário atual é de total ausência de coordenação entre as instituições e competição entre elas, com tentativas de desqualificar e invalidar trabalhos já desenvolvidos e acordos celebrados. E mais do que isso. Não há certeza sobre o posicionamento do Poder Judiciário após a celebração do acordo, sendo certo que, na hipótese de modificação ou invalidação do acordo em juízo, o longo tempo de negociações será perdido, voltando a empresa à estaca zero, mesmo após ter apresentado todas as informações que lhe cabia.

Como consequência a tamanha insegurança jurídica, as empresas acabam não tendo alternativa senão entabular negociações paralelas com os diversos órgãos públicos, para celebrar diversos acordos, tornando uma via crucis sem fim a busca pela garantia de respeito aos termos do acordo de leniência.

Essa ausência de alinhamento entre os órgãos acaba por fragilizar o instituto. Há empresas que estão optando pelo ajuizamento de ação judicial numa tentativa de que todos os agentes competentes sejam obrigados a participar do acordo, que seria neste caso firmado judicialmente, de forma a conferir maior segurança jurídica. Outras consideram a atratividade do acordo de leniência tão baixa pela ausência de garantia de respeito pelos demais órgãos que preferem se defender na Justiça.

Neste cenário de fragilidade do instituto do acordo de leniência, todos perdem. A sociedade perde duas vezes. Com a falta de estímulo das empresas para confessar seus crimes pela ausência de garantias de respeito ao acordado, perde-se a oportunidade de ressarcimento ao erário de forma eficaz e de elucidação de fatos ilícitos com celeridade. Perde também – e este é um ponto relevante para o setor de infraestrutura – porque não se dá a devida importância e prioridade à preservação da empresa, com a geração e manutenção de empregos, fomento da atividade econômica, geração de riquezas e pagamento de tributos.

III – Decisões do Poder Judiciário no contexto da Operação Lava Jato

Além da questão da insegurança jurídica causada pela sobreposição de competências, em decorrência do previsto na Lei Anticorrupção, as empresas envolvidas na Operação Lava Jato têm enfrentado desafios também na esfera judicial.

A Operação Lava Jato teve início em março de 2014 para investigar esquema de lavagem e desvio de recursos da Petrobras. Embora já tenha ganhado repercussão desde as duas primeiras fases, especialmente em razão da prisão do ex-diretor de abastecimento da petroleira Paulo Roberto Costa, começou a ter caráter “institucional”[5] a partir de novembro do mesmo ano, quando foram decretadas prisões preventivas de 19 executivos das maiores construtoras do país.

A esfera dos principais embates da Operação Lava Jato é o Poder Judiciário. Além das ações penais ajuizadas para punir executivos, agentes públicos e intermediadores considerados culpados, há diversas ações cíveis movidas contra as empresas envolvidas visando a reparação de danos ou aplicação de sanções de natureza não penal previstas na legislação.

O Judiciário tem a função de pacificar as controvérsias e oferecer segurança aos litigantes. No que diz respeito às empresas, o julgamento de seus casos com observância às garantias do contraditório e da ampla defesa definirá quais as consequências que devem suportar. Paga-se o que deve e a vida segue. Entretanto, o caminho da ação judicial é tortuoso e muitas vezes imprevisível. O enfrentamento do processo judicial pode ser mais tormentoso para as empresas do que a própria condenação. Adiante traremos algumas situações vivenciadas pelas empresas envolvidas que exemplificam as tribulações das ações cíveis ajuizadas no âmbito da Lava-Jato.

A arena das batalhas judiciais é Curitiba. Entretanto, embora possa soar natural que demandas relacionadas à Operação Lava-Jato sejam apreciadas em seu berço, a legislação processual não autoriza o ajuizamento das ações na capital paranaense. A regra geral, estabelecida no Código de Processo Civil (CPC), é o domicílio – ou sede no caso de pessoa jurídica, do réu, mas diversas ações foram ajuizadas sem que nenhum dos réus morasse ou tivesse sede em Curitiba.

A própria Constituição Federal estabelece que as causas em que a União for autora serão aforadas onde tiver domicílio a outra parte (art. 109, § 1º), o que deveria ser suficiente para resolver qualquer questão sobre competência.  Ainda que assim não fosse, o CPC estabelece para as ações para reparação de dano o local do ato ou fato como o foro competente, o que deveria afastar a competência de Curitiba, já que a Petrobras tem sede no Rio de Janeiro e não há descrição de qualquer ato ou fato praticado no Paraná. E nem mesmo os contratos firmados entre construtoras e Petrobras elegeram Curitiba como foro de resolução de litígios.

Apesar da clarividência da impossibilidade de processamento das ações em Curitiba, todas as arguições de incompetência foram rejeitadas, instância após instância, sob o fundamento de que Lei 7.347/85 estabelece que as ações civis públicas devem ser ajuizadas no local do dano. Tal argumento definiria o Rio de Janeiro como foro competente por ser a sede do ente lesado. Porém, o Judiciário entendeu que se trata de dano nacional por ter abalado toda a nação, autorizando que o legitimado ajuizasse a demanda em qualquer seção judiciária do país. Infelizmente, esse entendimento sacramentou a violação ao princípio do juiz natural, uma das mais relevantes garantias processuais.

A questão territorial não foi o único debate relacionado à competência. O Ministério Público Federal pretendeu que todas as ações cíveis da Lava Jato tramitassem no mesmo juízo, da mesma forma como ocorre nas ações penais, em que há uma vara exclusiva para casos da Operação Lava Jato[6]. Contudo, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região rejeitou tal pretensão, decisão confirmada no Superior Tribunal de Justiça.

As ações movidas contra as empresas no âmbito da Operação Lava Jato são para responsabilização por ato de improbidade administrativa, pleiteando ressarcimento ao erário e as sanções previstas na Lei 8.429/92, especialmente multa e proibição de contratar com o poder público. A lei é voltada para punir agentes públicos, mas os particulares que concorram ou se beneficiem do ato estão sujeitos às mesmas penas. Não cabe requerer punição das empresas no âmbito da Lei Anticorrupção, pois os atos questionados ocorreram antes do início de sua vigência.

A acusação de ato de improbidade consiste, em linhas gerais, no recebimento de vantagens indevidas por agente público[7] para favorecer empresas organizadas em cartel nas contratações com a Petrobras, causando danos materiais à estatal.

Não há dúvida que o ato de receber propina para favorecer particulares é improbidade administrativa. A questão é de prova, ônus que compete ao autor da ação e não pode se limitar a depoimentos prestados no âmbito de delação premiada. Comprova-se quem recebeu, qual o montante, quem pagou e quem se beneficiou; o juiz terá os elementos necessários para aplicar as sanções previstas na lei.

A questão do dano já não é tão simples. Para ter coerência com a tese acusatória, o prejuízo da Petrobras deve ser a diferença entre o valor pago pela execução dos contratos e o que seria pago se a obra tivesse sido contratada fora do ambiente cartelizado. Diante da complexidade e do alto valor dos contratos, a maioria com cifras de centenas de milhões de reais, a apuração deste delta é tarefa intrincada, embora tecnicamente possível.

O método correto para a averiguação do dano seria a realização de perícia para apurar o valor de mercado da obra na época da contratação. Diante da dificuldade, os órgãos acusatórios preferem adotar critérios presumidos. Um deles, adotado em algumas ações por sua facilidade, é considerar o percentual da propina informada pelos delatores (de 1 a 3% do valor dos contratos), pois esse valor estaria embutido nas propostas e poderia ser deduzido se não houvesse o esquema. Aplica-se o percentual ao valor dos contratos e obtém-se o valor do prejuízo da Petrobras.

A falha deste critério é estar integralmente baseado numa presunção. O valor pode ter sido simplesmente deduzido do lucro da contratada, o que não comprovaria a ocorrência de dano à contratante. E se o autor da ação não provar que o valor estava embutido na proposta – o que será difícil, o pleito indenizatório não poderá ser acolhido.

Outro critério apresentado em algumas ações é a utilização de estudo econométrico elaborado pelo Tribunal de Contas da União, que concluiu que “o valor mais provável” do potencial prejuízo causado à Petrobras com a redução dos descontos nas licitações, no período de 2002 a 2015, em razão da existência dos cartéis na Diretoria de Abastecimento, é de 17% em relação à estimativa das licitações tomando por base metodologia econométrica e dados de regressão consagrados internacionalmente e fartamente aceitos pelas cortes americanas[8]. A utilização deste parâmetro para fixação do dano é inviável por duas razões. A primeira, por se tratar de mera presunção, não podendo ser aplicado de forma linear a todos os contratos celebrados entre Petrobras e empresas acusadas, sob risco de enriquecimento sem causa da Petrobras como também de não ter o dano completamente indenizado na eventualidade da diferença ser superior a 17%. A segunda é a garantia constitucional do contraditório, que impede a utilização do estudo técnico como prova diante da ausência de participação dos réus na sua elaboração.

Outro método de quantificação do dano apresentado pelos órgãos acusatórios é a devolução do lucro obtido pelas empresas nos contratos. Trata-se de critério conceitualmente falho, porque o lucro não é ilícito e também está previsto nos contratos inquestionavelmente lídimos. Não há dano pela simples constatação da previsão de lucro nos contratos. O raciocínio de que a devolução do lucro consistiria na perda do proveito econômico do contrato ilicitamente firmado pode até soar razoável, mas não encontra previsão na Lei 8.429/92, pois o art. 9º trata apenas do enriquecimento ilícito obtido pelo agente público.

Além do dano patrimonial, as ações quase sempre também requerem dano moral coletivo ou para a própria Petrobras. Ainda que a jurisprudência admita a condenação por danos morais coletivos nas hipóteses em que há lesão injusta e intolerável de valores fundamentais da sociedade, o requerimento na via da ação para responsabilização por ato de improbidade administrativa é inadequado, pois não há previsão na Lei 8.429/92. A propósito, a multa civil já tem o caráter punitivo e reparatório que é objetivo do pleito de ressarcimento por dano moral. Formular tal pedido visa a, na verdade, contornar o limite estabelecido no artigo 12 da Lei de Improbidade. A jurisprudência do Tribunal Regional Federal da 4ª Região sempre foi firme no sentido da impossibilidade de condenação por danos morais em ação de improbidade, mas, na era da Lava Jato, já há decisão em sentido oposto.

Como visto, as discussões a respeito da reparação do dano trazem diversos desafios às empresas envolvidas na Operação Lava Jato que respondem a ações judiciais. Mas, antes mesmo das discussões a respeito da quantificação, é necessário enfrentar as questões relacionadas ao bloqueio de bens. Desde o momento em que passou a prevalecer a tese de que a cautelar de indisponibilidade de bens é tutela de evidência e dispensa o periculum in mora, que foi posteriormente confirmada pelo STJ em recurso especial repetitivo, os pleitos de indisponibilidade de bens passaram a ser recorrentes e, na maioria das vezes, deferido pelo juiz.

O bloqueio de bens pode envolver congelamento de ativos financeiros, bloqueio para transferência de imóveis e veículos, dentre outras medidas cautelares. Por mais que se alegue que a medida não retira a propriedade do réu, mas apenas limita o atributo da livre disposição, o fato é que as consequências da decisão são nefastas para as empresas, especialmente no quadro de grave dificuldade financeira das empresas já mencionado. De acordo com a jurisprudência hodierna, o valor da indisponibilidade está limitado ao valor da indenização perseguida acrescida da possível multa a ser aplicada, até o limite máximo previsto em lei. Como visto, a apuração do dano nas ações de improbidade no âmbito da Operação Lava Jato traz critérios deveras questionáveis, mas, mesmo assim, os valores indicados na petição inicial costumam ser a baliza para fixação do valor a ser bloqueado.

Em tempos de crise no setor da infraestrutura, um bloqueio no valor astronômico, que pode ultrapassar a casa do bilhão de reais, traz prejuízos gravíssimos para a empresa. O bloqueio de ativos financeiros via bacenjud pode imobilizar todo o caixa da empresa. Empregados e fornecedores deixarão de receber a remuneração devida. As obras em andamento poderão ser paralisadas. Como visto, as consequências ultrapassam a esfera da empresa acusada. Tudo isso liminarmente, antes do exercício do contraditório e da ampla defesa.

Alguns magistrados têm adotado cautela na apreciação do pedido de indisponibilidade de bens, seja fazendo juízo crítico a respeito do valor indicado, seja adotando medidas que não prejudiquem a continuidade das atividades da empresa. O bloqueio de percentual do faturamento já foi adotado em algumas ocasiões e, apesar das dificuldades que traz à empresa, é medida menos nociva que uma imobilização patrimonial considerável de seus ativos.

O último comentário a ser feito a respeito das ações judiciais no âmbito cível da Operação Lava Jato diz respeito à pluralidade de legitimados para o ajuizamento de ações de improbidade.

O art. 17 da Lei 8.429/92 dispõe que a ação judicial poderá ser proposta pelo Ministério Público ou pela pessoa jurídica prejudicada. Normalmente, tal dispositivo não causa qualquer embaraço, eis que a ação costuma ser movida por um ou por outro, quando não conjuntamente. Se a ação é ajuizada pelo Ministério Público, o ente público participa da ação, e vice-versa. Porém, os casos da Operação Lava Jato trouxeram cores diferentes a essa questão.

Nos casos da Lava Jato, a pessoa jurídica prejudicada é a Petrobras. Embora não exista qualquer dúvida quanto a isso, a União Federal se apresenta como legitimada concorrente para ajuizar ações de improbidade, adotando como argumento ser a acionista majoritária da Petrobras e a existência de dano nacional. O Judiciário vem acolhendo a pretensão da União. O único juízo que reconheceu a ilegitimidade ativa teve a decisão reformada pelo Tribunal.

Apesar da existência de demandas ajuizadas pelo Ministério Público, a União não se limitou a intervir nas ações em andamento, preferindo ajuizar as suas próprias. Racionalmente, não há qualquer utilidade para a existência de duas ações tratando do mesmo tema. Ainda que a União procure sustentar diferenças, como o critério adotado para quantificação do dano ou a inclusão das empresas que firmaram consórcio com a empresa acusada, suas postulações poderiam ter sido feitas na mesma ação. Na prática, a conduta da União acaba por prejudicar a celeridade processual, pois retardam o trâmite da ação já ajuizada, por se tratar de demandas conexas que precisarão ser julgadas em conjunto.

Outro problema decorrente da pluralidade de legitimados é a leitura que cada parte faz dos acordos de leniência firmados. Além dos problemas mencionados no tópico anterior, acrescenta-se aqui a recusa da União em aceitar a validade dos acordos de leniência firmados entre o Ministério Público Federal e as empresas, postura que contribui para a insegurança jurídica. Embora as empresas tenham se comprometido a indenizar os danos e pagar multa em valor significativo, recebendo em troca a desistência dos pleitos condenatórios nas ações de improbidade, a União pede o prosseguimento de sua ação e das medidas de bloqueio de bens já deferidas. Ainda que sejam respeitáveis os argumentos da União a respeito da legitimidade para celebração dos acordos de leniência, não se pode ignorar que há um compromisso estatal que precisa ser honrado. E nos casos em que houve acordos de leniência também com a União, foi a vez da Petrobras reclamar pelo prosseguimento do pleito condenatório diante da ausência de sua participação nos acordos. Felizmente, neste último caso, o Judiciário vem rejeitando a pretensão da Petrobras.

Ressalta-se que, até março de 2019, nenhuma das ações de improbidade no âmbito da Operação Lava Jato havia sido sentenciada em primeiro grau, nem mesmo a primeira delas, ajuizada em fevereiro de 2015. O posicionamento do Judiciário neste tema será de extrema relevância, sendo inevitável que se torne parâmetro para outros casos do gênero.

IV – Paralisia decisória no Direito Administrativo

Outro impacto sentido pelas empresas que atuam no setor de Infraestrutura após a deflagração da Operação Lava Jato foi a paralisia decisória no Direito Administrativo.

Um problema antigo se agravou enormemente. Os agentes públicos que, em sua maioria, já eram resistentes nos casos em que deveriam tomar decisões inovadoras, passaram a, na prática, deixar de decidir, arrastando processos por anos, por medo das severas – e muitas vezes desarrazoadas – punições dos órgãos de controle, com responsabilização pessoal do agente público.

Após o advento da Operação Lava-Jato, a crescente demanda da sociedade por punição de corruptos e corruptores e a consequente necessidade de resposta aos clamores populares, levaram à situação extrema de uma injusta generalização no sentido de que todos os agentes públicos fossem considerados desonestos, desonestidade essa advinda do simples fato de atuar na Administração Pública.

Os agentes públicos viram se tornar mais frequentes as responsabilizações pessoais pelas decisões tomadas no âmbito da gestão pública, muitas vezes por mera discordância do mérito da decisão pelo órgão controlador, e não por efetiva má-fé do agente público.

Passaram a ser frequentes os casos em que agentes públicos são alvos de condução coercitiva antes mesmo de serem intimados a depor, os casos de prisão preventiva ou provisória sem que haja provas contundentes, e os casos em que os agentes públicos têm seus bens bloqueados logo no início do processo.

Além disso, esses processos envolvendo agentes públicos costumam ocorrer com ampla exposição na mídia, o que muitas vezes acaba por gerar uma espécie de condenação antes mesmo do resultado do processo, causando danos irreparáveis à reputação do agente público, mesmo que ao final este venha a ser inocentado.

Esta situação gerou verdadeira letargia decisória. Os pleitos direcionados à Administração Pública passaram a ter respostas negativas constantes, ou, mais frequentemente, a ausência de decisões.

No “Direito Administrativo do Medo”, denominação dada pelos especialistas que debatem o assunto, fortaleceu-se a ideia de que o administrador público que indefere garante sua tranquilidade, passa incólume pelos riscos de punições acima citados, ainda que a contrapartida seja a omissão das responsabilidades decorrentes do seu cargo e que a sociedade seja a maior prejudicada por esta paralisia.

Entre saírem de suas zonas de conforto e assumirem posições que possam suscitar qualquer mínimo questionamento, ou ficarem inertes e protegerem seu nome e CPF, os agentes públicos passaram a preferir sempre a segunda opção, pela ausência de riscos, ainda que muitas vezes este posicionamento seja diametralmente oposto ao interesse público.

As empresas passaram a ter de enfrentar um caminho tortuoso a cada vez que se faz necessária uma aprovação de um órgão público. E não é difícil se imaginar a quantidade de ações no âmbito de um contrato celebrado com o Poder Público no setor de infraestrutura, que demandam a manifestação de agentes públicos para que haja a continuidade e o cumprimento do próprio contrato. São atos que vão desde uma anuência para mera reestruturação societária da empresa contratada, passam pela assinatura de termos aditivos ao Contrato, até a concessão de licença ambiental de projetos, por exemplo, e que ficam emperrados por tempo o bastante para prejudicar ainda mais os projetos em desenvolvimento.

Importante frisar que não está se defendendo a complacência total, a ausência de responsabilização do agente público por atos cometidos no exercício de sua função, nem está se sugerindo que não haja controle eficaz sobre os atos do agente público. Tampouco está se generalizando tais críticas à integralidade dos órgãos de controle e ao Poder Judiciário como um todo, mas apenas ressaltando que os excessos existem, que se tornaram mais frequentes nos últimos anos e que, por conta deles, vivenciamos essa “apatia” no processo decisório por parte dos agentes públicos.

É preciso que se tenha em mente que, para que o agente público possa cumprir sua função e dar andamento nas relações jurídicas existentes entre a Administração Pública e seus contratados/parceiros, não se pode responsabilizá-lo pessoalmente por eventuais falhas formais e operacionais que decorram naturalmente de sua atividade, e, menos ainda, por entendimentos divergentes dos órgãos de controle com relação ao mérito de decisões que dão azo a diversas interpretações, o que, como é sabido, não é raro no Direito Público.

Deixar o gestor público à mercê do excesso de fiscalização e da responsabilização pessoal por estes fatores é estimulá-lo cada vez mais à paralisia, à inércia, e à consequente estagnação da máquina pública, uma Administração Pública emperrada.

Nas palavras de Carlos Ari Sundfeld “não podem cair nas costas do gestor as consequências do risco de falhar e as consequências da incerteza do direito. O gestor tem de ser protegido contra os excessos de fiscalização. Do contrário, morrendo de medo de algum processo, ele cruza os braços e fica esperando a aposentadoria chegar. Nossa máquina pública funciona cada vez menos. O que o direito tem de fazer agora é multiplicar os incentivos para a ação pública, e não ficar criando novos riscos para quem age, incentivando a acomodação e a paralisia. Em suma: mais sim, menos não.”[9]

É neste contexto que, numa clara tentativa de delimitar o espaço do controlador, surge a Lei 13.655/18, que altera a Lei de Introdução ao Direito Brasileiro trazendo dispositivos que visam dar maior segurança para a atuação do agente público, no exercício de suas funções. Podemos citar como exemplo os artigos 20, 22, e 28 da Lei 13.655/18, que possuem correlação com o tema aqui tratado e indicam mudanças que poderão permitir maior segurança ao agente público.

O texto do artigo 20 dispõe que:

“Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.

Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.”

O dispositivo exige que as decisões sancionatórias (inclusive as decorrentes de atos de improbidade administrativa contemplados no artigo 11 da Lei 8.429/92) sejam tomadas levando em consideração a realidade do agente público, ou seja, as dificuldades por ele enfrentadas no dia a dia, vis a vis as necessidades da sociedade, demonstrando-se, em qualquer caso, os efeitos práticos produzidos pela decisão.

Já o parágrafo único traz a ideia de que a fundamentação da decisão deverá demonstrar que todas as alternativas disponíveis para a solução da questão foram avaliadas e que a medida imposta ao agente público (ou a invalidação do ato) é uma solução que guarda a proporcionalidade e a adequação necessários. Caso a medida imposta seja muito gravosa, comparada a outras alternativas disponíveis, a fundamentação, de acordo com o dispositivo em análise, deverá ser mais robusta.

Aliás, com o advento da lei, aumentou-se o ônus do controlador de fundamentar robustamente decisões que considerem atos de agentes públicos como atos de improbidade, não sendo mais aceitável alegação genérica de violação aos princípios da Administração Pública, tipificados no artigo 11 da Lei n.º 8.429/1992.

O artigo 22 prevê que:

“Art. 22.  Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.

  • 1º Em decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente.
  • 2º Na aplicação de sanções, serão consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para a administração pública, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes do agente.
  • 3º As sanções aplicadas ao agente serão levadas em conta na dosimetria das demais sanções de mesma natureza e relativas ao mesmo fato.”

Na esteira do artigo anteriormente citado, este dispositivo também pretende que o controlador não leve em consideração para sua decisão apenas a literalidade das normas que tenham eventualmente sido violadas pelo agente público, mas tenha sempre em mente as dificuldades práticas que são enfrentadas no desempenho de suas funções e que possam justificar tal violação.

Os parágrafos 2º e 3º estabelecem os critérios para a definição da sanção, exigindo que o controlador olhe tanto para circunstâncias que agravem ou atenuem a suposta conduta irregular, mas, também, para o agente público em si, levando em consideração sua conduta e modus operandi no desempenho de suas funções até ali, evitando arbitrariedades. Além disso, o dispositivo fala em considerar sanções já aplicadas para estabelecer outras sanções sobre o mesmo fato.

Merece destaque, ainda, o artigo 28, que prevê que “O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro”.

Aqui existe um ponto relevante: não há definição na legislação para o que será considerado como erro grosseiro, abrindo um leque de opções vasto demais para que os controladores definam as hipóteses que ensejarão a responsabilização e, em última análise, este parâmetro continua nas mãos do controlador. Esta situação acaba por limitar, ou não incentivar o administrador público a inovar, pelo receio de que seu ato seja interpretado pelo controlador como um ato de improbidade administrativa.

De qualquer forma, não há como se negar o avanço, advindo da flagrante intenção de afastamento da simples culpa, como nos casos de falhas normais ou de divergências de entendimentos no Direito Administrativo.

O artigo 28 veio para proteger o gestor público que pretende inovar, mas está paralisado por medo de agir e ser responsabilizado pessoalmente, como esclarece Gustavo Binembojn[10]:

O art. 28 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) surge nesse cenário. Era preciso cuidar do gestor que quer fazer uma boa administração a partir de abordagens inovadoras, mas tem medo de agir. O legislador precisava lidar com o receio de qualquer espécie de criatividade administrativa, de não se querer assumir o risco do erro. Com efeito, o rigoroso sistema de controles administrativos, que nem sempre é suficiente para inibir casos graves de má gestão e corrupção, acaba por dissuadir a ação daqueles que poderiam sugerir mudanças. Dorme tranquilo quem indefere, dizia Marcos Juruena. O art. 28, LINDB, tem o escopo de proteger o gestor com boas motivações. Para que ele possa assumir o risco de deferir e dormir bem. Do mau administrador continuam tratando os inúmeros estatutos de controle da moralidade administrativa (Lei de Improbidade Administrativa, Lei Geral de Licitações etc.). A LINDB, no seu art. 28, quer tutelar o administrador com incentivos positivos de inovação no trato da coisa pública.

Em suma, é evidente a necessidade de mecanismos de controle da administração pública, mas é necessário coibir os excessos que geram a paralisia, a inércia, o “apagão das canetas”. Há que se coibir os excessos para se resguardar o funcionamento da atividade administrativa, buscando sempre o equilíbrio, e espera-se que as inovações legislativas exemplificadas acima colaborem neste processo.

V – Conclusão

Todo o exposto neste artigo procura demonstrar algumas das dificuldades enfrentadas pelas empresas no cenário pós deflagração da Operação Lava Jato e nos imensos desafios que devem ser superados para que tais empresas sobrevivam e continuem a atuar no mercado de infraestrutura nacional.

Tendo em vista que a Lei 13.655/18 é muito recente, ainda é intenso o debate acerca dos impactos que os novos dispositivos poderão causar ao ordenamento jurídico. No entanto, há a expectativa de que os efeitos práticos da aplicação da nova legislação se façam sentir e que o administrador público, com maior segurança jurídica, volte a decidir, a inovar, destravando a máquina pública, o que certamente terá efeitos positivos no setor de infraestrutura.

No que tange ao aspecto do quadro de insegurança que aflige hoje as empresas que firmaram ou pretendem firmar acordo de leniência, como foi dito, é impensável que uma empresa celebre um acordo com uma autoridade competente, confesse todos os ilícitos cometidos, coopere efetivamente com as investigações em curso, ressarça os cofres públicos e, ainda assim, continue, na prática, no staus quo ante, isto é, à mercê de questionamentos administrativos ou judiciais de outras autoridades que podem levar à aplicação de mais sanções, capazes de inviabilizar as atividades da empresa, como por exemplo a proibição de contratar com o Poder Público.

Para que este quadro seja modificado é indispensável o aprimoramento do diálogo entre os órgãos públicos e sua atuação coordenada. Somente assim podemos evitar a fragilidade do instituto do acordo de leniência, que é vantajoso tanto no que se refere ao interesse público – já que é um método eficiente de ressarcimento ao erário e de contribuição com a elucidação de ilícitos cometidos e punição dos culpados – quanto no que se refere ao interesse do ente privado, pois parte da premissa da preservação da empresa e continuidade de sua atividade econômica, estimulando a adequação das empresas às práticas de conformidade e uma nova cultura de negócios.

Por fim, é grande a expectativa com relação às decisões judiciais das ações de improbidade em curso no âmbito da Operação Lava Jato, que certamente serão precedentes importantes e nortearão o desfecho de outras ações semelhantes, que impactarão o futuro das empresas.

A superação destes desafios é fundamental para que as empresas possam se reerguer. Mas é preciso mais. É preciso uma mudança profunda no racional da sociedade com relação a estas empresas.

É evidente que a empresa envolvida em atos de corrupção deve pagar pelos erros cometidos. Os administradores devem ser processados e, se comprovados os atos ilícitos, devem ser punidos. A pessoa jurídica também deverá pagar as multas e indenizações devidas. Porém, a empresa que o fizer e que colaborar para o andamento das investigações no âmbito de um acordo de leniência deverá poder, de fato, ser preservada e seguir sua vida, gerando empregos e riquezas, beneficiando seus integrantes, parceiros, acionistas e a economia do país.

Observamos na experiência internacional, que a celebração de acordos entre empresas que cometeram atos ilícitos e as autoridades competentes efetivamente alcança sua finalidade: a empresa paga o que deve e vira a página, segue a vida.

No Brasil, infelizmente estamos vendo acontecer o contrário. Prevalece uma “demonização” absoluta das empresas que celebraram acordo de leniência, mesmo quando estão ressarcindo os cofres públicos mediante o pagamento de pesadas multas e estão cumprindo todas as obrigações impostas pelas autoridades competentes, e a despeito da capacidade técnica e da capacidade contributiva para o país dessas empresas.

Esperamos que haja uma tomada de consciência e que sejam implementadas medidas efetivas para que sejam superados os imensos desafios que as empresas do setor de infraestrutura têm pela frente e se evite um dano maior, que seria a derrocada em massa de importantes e até então sólidos conglomerados empresariais nacionais, no médio e longo prazos.

Referências bibliográficas

BINEMNOJN, GUSTAVO e CYRINO, ANDRÉ Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, Edição Especial: Direito Público na Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro – LINDB (Lei nº 13.655/2018), p. 203-224, nov. 2018.

MARRARA, THIAGO Acordos de leniência no processo administrativo brasileiro: modalidades, regime jurídico e problemas emergentes In Revista Digital de Direito Administrativo, v. 2, n. 2, p. 509- 527, 2015.  http://www.revistas.usp.br/rdda/article/view/99195/pdf_Marrara. Acessado em 02/02/2019.

Nota Técnica 01/2017 da 5ª CCR, disponível em http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr5/notas-tecnicas/docs/nt-01-2017-5ccr-acordo-de-leniencia-comissao-leniencia.pdf. Acesso em 05/12/18.

SUNDFELD, CARLOS ARI. Chega de axé no Direito Administrativo. Disponível em http://www.sbdp.org.br/wp/wp-content/uploads/2018/01/artigos-carlos-ari-sundfeld-chega-de-axe-no-direito-administrativo.pdf. Acesso em 14/11/2018.

Notas de Rodapé:

[1] Advogada, com atuação em projetos de infraestrutura, Presidente da Comissão de Infraestrutura e Desenvolvimento Econômico da OAB/RJ no período de 2013 a 2018.

[2] Advogado, especialista em Direito Público.

[3] MARRARA, THIAGO Acordos de leniência no processo administrativo brasileiro: modalidades, regime jurídico e problemas emergentes In Revista Digital de Direito Administrativo, v. 2, n. 2, p. 509- 527, 2015.  http://www.revistas.usp.br/rdda/article/view/99195/pdf_Marrara. Acessado em 02/02/2019.

[4] Nota Técnica 01/2017 da 5ª CCR, disponível em http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr5/notas-tecnicas/docs/nt-01-2017-5ccr-acordo-de-leniencia-comissao-leniencia.pdf. Acesso em 05/12/18.

[5] Diz-se “institucional” porque contrariando o conceito de operação, a Lava-Jato parece não ter uma finalidade específica. A Força-Tarefa, que conceitualmente é temporária, completou em abril de 2019 cinco anos de existência. E quando se fala em “fim” da Operação Lava-Jato é sempre com tom apocalíptico, como se houvesse vitória dos corruptos. A Lava Jato deixou de ser uma operação para ser uma entidade, ainda que sem personalidade jurídica.

[6] A Resolução 164 de 19/12/2014 suspendeu a distribuição processual à 13ª Vara Federal de Curitiba pelo prazo de 90 dias e vem sendo renovada desde então.

[7] Dirigentes e empregados da Petrobras são considerados agentes públicos pelo art. 2º da Lei 8.429/92.

[8] Acórdão 3089/2015 – TCU – Plenário; Relator Min. Benjamin Zymler.

[9] SUNDFELD, CARLOS ARI Chega de axé no Direito Administrativo. Disponível em http://www.sbdp.org.br/wp/wp-content/uploads/2018/01/artigos-carlos-ari-sundfeld-chega-de-axe-no-direito-administrativo.pdf. Acesso em 14/11/2018.

[10] BINEMNOJN, GUSTAVO e CYRINO, ANDRÉ Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, Edição Especial: Direito Público na Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro – LINDB (Lei nº 13.655/2018), p. 203-224, nov. 2018.