Direitos Humanos no Brasil da pandemia

Resumo

Direito à moradia como referência para se pensar outros direitos humanos. Projetos articulados de direitos sociais como garantia de vida digna. A convergência das crises política, social e sanitária na pandemia.

Artigo

Direitos Humanos no Brasil da pandemia

Maria Guadalupe Piragibe da Fonseca

Rio de janeiro, 30 de junho de 2020

 

Em memória de Miguel Baldez, defensor incansável dos direitos humanos

 

Resumo

Direito à  moradia como referência para se pensar outros direitos humanos. Projetos  articulados  de direitos sociais como garantia de vida digna. A convergência das crises política, social e sanitária na pandemia.

Palavras chave: Direitos humanos. Direito  à  moradia. Direitos sociais

I

O Brasil passa por um momento de perplexidade diante dos fatos políticos e sociais que a cada dia nos surpreendem a todos com seus desdobramentos.  São fatos, dizem historiadores e cientistas políticos, que não encontram  paralelo na história pretérita do país. Isso preocupa na medida em que pareceria que estamos diante de uma ruptura de padrões de comportamento, tanto nas esferas do governo e da administração pública, como e  principalmente, no âmbito do agir social. A essa perplexidade se acrescenta  uma outra, motivada por uma pandemia que nos tomou  de assalto. Um vírus agressivo que nos tira de circulação, nos isola do convívio como única estratégia de cercear, o quanto  possível, o seu alastramento.

Num momento como este,  alguns dos problemas sociais que se instalaram no Brasil como verdadeiras endemias ganham cores mais dramáticas: habitações precárias, sistema de saúde sem recursos,  educação sem rumo, aviltamento  do trabalho, desmatamento indiscriminado, meio ambiente ameaçado e por ai vai. Em tempos de Covid19 todos esses problemas parecem crescer, ganham dimensões inusitadas, colocando a descoberto todas as mazelas que  discursos políticos de tempos normais costumam  driblar ou minimizar.   Tentar entender a crise política e colaborar para a superação da crise sanitária é o único que podemos fazer no isolamento.  Que inspiração pode vir  do direito nesta época tormentosa de pandemia aliada ao descalabro político?

Na área do conhecimento jurídico, conceitos e teorias existem para explicar e justificar a existência de regras e sanções aplicáveis à conduta das pessoas. Na área da pratica jurídica trata-se da efetiva aplicação das  formas legais  para a solução de conflitos. Sob este aspecto, o  direito é   uma técnica, sofisticada, mas uma técnica. Ou seria uma arte ?  Essa é uma controvérsia antiga que não vem ao caso agora. Desde logo, vale afirmar que a  mediação dos conflitos é feita pela adequada aplicação das leis, fora desse esquema, teremos o caos. Mas, por outro lado, é certo também que o direito  tem sido, ao longo dos tempos, um  campo propício à reflexão sobre o homem e a sociedade, sobretudo quando esse pensamento vem aliado a outros saberes. Na verdade, é no contexto da interdisciplinaridade que o pensamento jurídico se alarga para tornar possíveis vias de acesso  à análise crítica dos seus conceitos, regras, modos de interpretação e aplicação das leis. Com que objetivo?  Para que o direito não venha a perder contato com a realidade, com os fatos do cotidiano, com as pessoas destinatárias da sua proteção. Em momento tão especial  e preocupante, e sob os influxos da  crítica do direito, a proposta  nesta rápida reflexão consiste em  tematizar, mais uma vez, os direitos humanos e sociais.

Pensar os direitos humanos nunca é demais, até porque, cada época,  cada etapa, cada momento da vida das sociedades  coloca os direitos humanos em perspectivas diferentes. A Declaração Universal dos Direitos do Homem completa  72 anos. De lá para cá, quantas situações tormentosas de guerras, de pestes, de rebeliões, de perseguições, de terrorismo pelo mundo afora colocaram em xeque as garantias definidas naquele documento inspirador de tantas legislações democráticas.

Estamos  hoje no Brasil sob os efeitos da  pandemia, tal como  o resto do mundo, mas com a peculiaridade de  estarmos vivendo esse  drama sanitário no interior de outro: o drama  de  um governo central sem projetos. Sem projeto de saúde, de educação de segurança social, de moradia, de economia.  Todos sofremos com o ritmo acelerado da contaminação pelo virus, e com o desmando político, mas sofrem mais e morrem mais, como sempre, os menos favorecidos, os mais desprotegidos. As medidas paliativas dirigidas aos  mais vulneráveis, sob forma abrigo, alimentação, ajuda financeira emergencial  são válidas na medida em que tentam enfrentar a questão crucial da sobrevivência de legiões de adultos e crianças necessitados, mas não resolvem o problema endêmico da  marginalização de milhões de pessoas.

Num pais como o Brasil onde a desigualdade campeia, pensar e repensar os direitos humanos é mais do que uma  necessidade, é uma  obrigação. Obrigação, no sentido de dever  de cada um individualmente, mas sobretudo  dever do poder público. Sendo que, neste momento de pandemia a questão dos direitos humanos  se impõe com mais força ainda. O  sentimento de solidariedade que deveria  funcionar como pré condição para  quem pensa e lida com o direito, hoje se torna um imperativo no sentido ético do termo. Então,  quem melhor para referenciar uma reflexão sobre os direitos humanos numa sociedade acintosamente desigual do que Miguel Baldez, advogado do movimento popular, professor, pensador, defensor  pertinaz  das demandas  dos  desamparados. Baldez nos deixou em junho deste ano, morreu em paz tendo combatido o bom combate. Legou-nos suas idéias, seus  ideais, seu exemplo  de comprometimento com os interesses das camadas sociais  mais humildes.  Empreendeu  algumas lutas  aparentemente quixotescas, mas por isso mesmo tão  nobres, tão cheias de ensinamentos, tão destemidas.

Baldez atuou como conselheiro e professor do Instituto  Apoio Jurídico Popular – AJUP –  instituto que  marcou presença significativa na cidade do Rio de Janeiro, nos anos 80/90, financiado pela Inter American Foundation, instituição de apoio a projetos sociais em países periféricos. Tive o prazer e a honra de fazer parte do quadro de docentes daquela instituição dirigida por Miguel Pressburger. Na qualidade de  professor, Baldez  discutiu  e difundiu alguns importantes elementos teóricos para  fundamentar a sua ação como advogado do movimento popular, dentro da linha do direito insurgente,  identificado  também como direito alternativo. Várias outras denominações  se acrescentaram para designar o mesmo objeto de estudo, na medida em que  muitos pesquisadores passaram a se interessar pelo tema, ressaltando diferentes aspectos, motivações  e objetivos desse aparentemente novo  direito.

Sendo assim, uma das maneiras de colaborar com o entendimento e a realização dos direitos humanos hoje, no Brasil, é continuar a trazer para a mesa de debates, com Baldez, dentre outros,  o acervo de idéias acumuladas  sob a epígrafe de  direito  insurgente. Nunca foi fácil definir a insurgência como categoria de mediação entre direito e movimentos populares, inclusive porque nenhuma teoria propriamente jurídica  respalda essa idéia.  Há, isso sim, uma vasta e pertinente literatura a respeito dos possíveis fundamentos  filosóficas e sociológicas do direito insurgente, ou direito alternativo. Contudo, aqui e agora interessa  mencionar o direito insurgente  principalmente como uma prática que começa por testar interpretações das leis com o intuito de estendê-las o suficiente para abranger reivindicações  de segmentos deixados à margem de uma autêntica  proteção jurídica e, no limite, propor  solução diferente da legal.  Ou seja, o  direito insurgente, na linha das pesquisas sobre o pluralismo jurídico, considera que situações vividas pelas comunidades de despossuídos  firmam para elas autênticos direitos que se insurgem contra as prioridades definidas em lei.  Assim, por exemplo, defende-se que, a posse da terra prevalece sobre títulos de  propriedade em benefício de comunidades carentes ocupando terras ou terrenos  sem função social.

Baldez atuou forte e eficazmente na defesa do direito à moradia numa cidade como o Rio de Janeiro onde os  mais pobres  disputam arduamente um espaço para se abrigar e construir um lar. A defesa empreendida por  Baldez  em favor  da comunidade do Horto Florestal, no bairro do Jardim Botânico, ameaçada de desalojamento desde 2013, tornou-se emblemática. Duas mil pessoas, a maioria descendente dos primeiros moradores que ali  se instalaram desde 1950, ocupam terreno hoje reivindicado pelo Instituto de Pesquisas  Jardim Botânico.  Baldez desenvolveu sua estratégia de defesa  junto à administração pública e aos órgãos  judiciais, defesa que   continuará certamente, assumida agora  por advogados que atuaram sob a sua égide.

II

Ter um teto é uma das condições mínimas  para uma vida  com  dignidade. Ter a pessoa onde alojar-se, ter  a família onde abrigar-se é um direito humano básico, dito também direito fundamental. Tomando,  pois, o  direito à moradia como referência tentarei refletir sobre outros direitos sociais que formam com o direito à moradia, um conjunto indissociável para garantir a dignidade da  vida em  uma sociedade minimamente civilizada.

A moradia é direito inscrito na Declaração Universal dos  Direitos Humanos, como também na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. No diploma legal brasileiro esse direito  consta do capítulo Direitos Sociais, art.6º.  Está equiparado  aos direitos à educação, à saúde, ao trabalho, à alimentação, à segurança, ao transporte, ao lazer, à previdência social, proteção à maternidade e à infância e  assistência aos desamparados. Pode-se dizer que o  espírito do art.6º. da Constituição brasileira, segundo uma interpretação sistemática abrangente, deixa transparecer uma articulação entre  os direitos ditos sociais, de modo a torná-los complementares entre si; sugere um todo articulado de partes  interdependentes. Portanto, o art.6º não se esgota na  enumeração dos direitos fundamentais sociais, seu verdadeiro propósito é evidenciar  a obrigação do poder público de criar condições  propícias à garantia de todos esses direitos  de forma  harmoniosa e eficaz.

De fato, a interdependência entre os direitos sociais, que se encontra na  intenção do art.6º  da Constituição de 1988, deve, ou deveria,  ser considerada como ponto de partida da construção das  políticas públicas correspondentes. Os projetos de habitação, educação, saúde, transporte, segurança e outros  precisam estar perfeitamente  combinados para  tornar efetivo o que a Constituição Federal pretende  garantir. Significa dizer que, se a moradia for pensada isoladamente –  como infelizmente tem acontecido nos programas de habitação para populações mais pobres –  a conseqüência pode ser desastrosa, ou melhor,  é desastrosa, frustrando o que a Constituição quer garantir;  basta olhar o que ocorre.   A partir, pois, do que entendemos ser o espírito do art 6º mencionado, o que se propõe aqui é um exercício de reflexão sobre as  políticas  que temos hoje na cidade do Rio de Janeiro nas áreas da moradia, da educação, da saúde, do transporte público e da segurança pública.

O  que dizer dos  projetos públicos de  construção de habitações populares em áreas distanciadas dos centros das cidades, sem uma política de transporte condizente com o volume de pessoas que se deslocam todos os dias para trabalhar?  O que  o Rio de Janeiro nos mostra  ou é o total descaso com  as políticas de transporte de massa  ou  a  adoção de  medidas insuficientes e mal geridas,  como  é o caso dos BRTs que em pouco tempo colapsaram. O  caso crônico dos trens da Central do Brasil, verdadeiro tormento em horários de rush, diz bem da falta de interesse dos governantes por uma política tão crucial. O mesmo se diga do Metrô que, ademais, não chega aos bairros e comunidades mais pobres.  Acrescente-se que as tarifas cobradas pelos transportes coletivos são incompatíveis com o salário da maioria dos trabalhadores. Atualmente o valor das tarifas do transporte público anda por volta de R$4,70. Não é preciso nenhum momento especial como o da pandemia do Covid19   para se concluir que as políticas de  transporte público na cidade do Rio de Janeiro para a população de baixa renda, que vive nos subúrbios ou que foi removida para áreas distantes dos centros urbanos, é um fracasso. Quando um trabalhador precisa usar mais de um transporte coletivo para chegar ao seu destino, gastando duas ou mais horas nesse trajeto, sua vida se torna um tormento. Onde fica  a dignidade do trabalhador que precisa dormir na rua durante a semana e ir para a casa somente aos sábados? Ou porque a distância entre o trabalho e a  sua moradia é   enorme, ou porque o transporte é demasiado caro, ou as duas coisas? Essa é uma das  razões porque as populações faveladas das zonas sul e centro da cidade,  ou ocupando prédios abandonados, em locais próximos ao trabalho resistem à remoção para áreas afastadas. É o caso da comunidade do Horto Florestal.

Neste momento de pandemia a situação do transporte coletivo se torna ainda mais dramática. Como respeitar os protocolos  sanitários sobre o  afastamento entre os passageiros de um ônibus ou trem lotados? São patéticas as medidas de fiscalização da prefeitura do Rio de Janeiro para evitar aglomeração nos transportes coletivos.  Uma rede de transportes coletivos insuficiente em épocas normais é um desrespeito, mas se torna um verdadeiro massacre  em época de pandemia. Ou seja, quanto mais distante a moradia dos centros comerciais, maior a dificuldade do deslocamento diário de levas de trabalhadores. Quando deveria ser o contrário, quanto mais distante a moradia maior a facilidade de deslocamento para o trabalho. Mas, para que isso acontecesse, as políticas públicas de moradia aliada as de transporte  precisariam estar planejadas com  visão social. A preocupação com o social das políticas de transportes públicos supõe metas que não se limitem a atender aos interesses mercantilistas ligados ao  incremento do comércio, do laser, do turismo. Supõe ainda tarifas de transporte público acessíveis aos mais pobres, por meio talvez do subsídio.

A moradia  é o local inviolável onde a família tem o direito fundamental à intimidade, ao sossego, à tranqüilidade. Onde os adultos descansam  depois de um dia de trabalho e os menores recebem a atenção dos pais e/ou avós. A educação e a saúde, em princípio, dependem de uma moradia condigna. Sob esse aspecto, uma política de construção de moradias populares precisa levar em consideração, desde logo, o número de pessoas de  cada família que  vai  habitá-las. Uma casa para família de oito pessoas não pode ter o mesmo tamanho de uma outra destinada a  quatro pessoas. Para isso existem os cadastros das famílias que são inscritas como beneficiárias do projeto.  A educação, que começa no seio da família, tem a ver com as condições mínimas de acomodação dos habitantes  da moradia. O quarto é um espaço, a cozinha e o local de refeições outro, para começar. Todo o aprendizado das crianças relativamente à  noções de higiene, de disciplina na alimentação, de horário para brincar, estudar etc. depende da qualidade da moradia. A saúde, igualmente,   está na dependência direta das condições de higiene da moradia:  existência de ambientes dotados de espaço  suficiente para a  ventilação, iluminação, privacidade, isolamento em caso de doença.  Como controlar doenças sem espaço suficiente no interior das casas, sem  saneamento básico que inclui água potável e esgoto  tratado? É quase um milagre que uma família consiga, em situação de habitação tão precária, educar convenientemente os seus filhos e mantê-los saudáveis.

 Moradia sem saneamento básico é inadmissível, é desrespeitoso. Mesmo assim, há anos que rola nas prateleiras do Congresso Nacional o marco regulatório do saneamento. Foi preciso uma pandemia do porte da que nos aflige hoje  para que os parlamentares se lembrassem da existência de um projeto de saneamento básico  a ser  votado! Em época de pandemia para os 34 milhões de pessoas, que no Brasil,  não dispõem de água encanada, o ato de lavar as mãos, corriqueiro e básico para evitar o contágio, é impossível.

Além do transporte coletivo, as famílias  transferidas para algum projeto de casas populares precisam de acesso próximo à escolas, creches, e centros de assistência médica. Não basta o projeto de construção de casas populares, a assistência médica, as escolas, as creches precisam ser programadas concomitantemente  sob pena do projeto de  moradia   se tornar  um engodo. Há um contingente ainda grande de crianças e adolescentes fora da rede escolar em todo o Brasil. Os motivos são vários, mas um deles é certamente  a distância entre casa e escola. Como estão distribuídas as escolas públicas no Rio de Janeiro? Como programar o local das escolas de modo a  combinar número de moradias e escolas próximas com número de vagas suficientes nas escolas?  O equivalente deve ser feito com relação aos  centros de assistência médica. A observação mais elementar mostra que  requisitos indispensáveis ao sucesso dos  projetos de moradias populares  escapam às cogitações dos gestores públicos, salvo exceções, se é que  existem,  não os conheço. O que se quer enfatizar aqui é que as duas  políticas públicas, de educação e de saúde,  precisam, obviamente, correr  pari e  passo com as políticas de habitação. Assim como o transporte coletivo é uma necessidade incontornável para quem vai ocupar casas fora do perímetro central das cidades, a existência de escolas de alfabetização, de creches, de hospitais ou centros médicos ou centros de assistência à saúde são igualmente indispensáveis. O gestor público, no Brasil, com inteligência para entender e vontade política para captar recursos e empreender  tais políticas articuladas, impedindo, ao mesmo tempo,  o desvio das verbas públicas ou privadas  destinadas aos  projetos,   mereceria um Nobel da Paz.

Infelizmente, em termos de habitação  popular, no Rio de Janeiro   vivemos no pior dos mundos, apesar do alarde feito em torno de algumas medidas nesse sentido, desde o início do século XX.  Uma ação bastante espetaculosa  aconteceu nos anos  60 quando ainda o Rio de Janeiro era cidade do Estado da Guanabara e  a sua população  estava calculada  em  pouco mais de 3 milhões.  A proposta do governo foi remover  favelas para, supostamente, permitir à população favelada  melhores condições  de moradia. Na verdade, tratava-se de liberar para a indústria de construção civil áreas valorizadas da cidade. Nessa época surgiram as vilas habitacionais, Aliança em Bangu, Kennedy  em Senador Camará, por exemplo, instaladas sem preocupação com infra estrutura. Mais adiante, outro plano decidiu  urbanizar as favelas, transformando-as  em favelas bairros, ou como se diz hoje, eufemisticamente, comunidades.   A verdade é que, sem planejamento sério de habitações, aliado a projetos complementares de transporte, escolas e centros médicos para a população de mais baixa renda da cidade, as encostas dos morros do Rio de Janeiro e os prédios abandonados  em áreas centrais da cidade continuam a ser  a opção dos mais pobres.

A resistência dos moradores do Horto Florestal e sua disposição de lutar para ver reconhecido o direito de permanecer no local onde vivem há anos  está motivado, também, pela proximidade de escolas públicas e de centros de assistência à saúde. Muitos  moradores de favelas permanecem nas favelas por falta de opção, ou gostariam de continuar na favela desde que urbanizada de modo satisfatório. É verdade que algumas favelas, apesar da precariedade e do risco para os moradores,   ganham  um certo charme. É o caso do Vidigal, em virtude da vista  para o mar e para dos bairros de Ipanema e Leblon. Um charme logo transformado  em fonte de renda. Hoje os que moram como inquilinos, alugando espaços  no Vidigal, não podem arcar com os aumentos e acabam por deixar a favela. Os que são proprietários cedem às ofertas tentadoras de especuladores imobiliários e terminam por vender suas casas. De uma forma ou de outra e por diferentes motivos, as famílias mais pobres continuam a ser  expulsas  do lugar onde viveram durante anos. Segundo dados do Observatório Legislativo do Estado do Rio de Janeiro – OLERJ – na cidade do Rio de Janeiro moram em favelas  mais de um milhão de pessoas, sendo que   a região metropolitana totaliza um milhão e setecentos mil favelados. Apenas 35% do esgoto  da cidade  é tratado (dados do Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental da UERJ). Essa carência afeta principalmente os habitantes das favelas que são obrigados a conviver com esgotos a céu aberto. Acrescente-se a falta de acesso à água potável. A  iluminação elétrica é precária e o sistema de “gatos” uma verdadeira  instituição.

Fora das favelas a alternativa é a moradia em cortiços, ou residências compartilhadas. O Observatório das Metrópoles da UFRJ  mapeou 54 cortiços onde vivem  800  famílias na zona portuária da cidade  do Rio de Janeiro. Edifícios  antigos e  sem conservação,  permanentemente em risco de incêndio ou desmoronamento. A falta de planejamento habitacional para os mais pobres explica, ainda,  as ocupações ilegais de prédios abandonados.

A segurança  é outro direito social previsto no art. 6º. da Constituição de 1988. Se a segurança é insatisfatória para toda a cidade do Rio de Janeiro e região  metropolitana, é especialmente ausente nos bairros mais pobres. Outra vez, a reflexão sobre a articulação de políticas públicas  nos leva a pensar agora  na precariedade do direito à moradia à margem de qualquer projeto de   segurança pública. A falta de políticas visando a segurança leva a resultados trágicos como a morte indiscriminada, inclusive a  de inocentes vítimas da  violência. Violência praticada por grupos que fazem sua própria lei,  como os  milicianos e os traficantes de droga ou pela  própria polícia paradoxalmente  encarregada de manter a paz: polícia despreparada ou preconceituosa. Moradia segura supõe recursos para a vida do dia a dia intra muros e supõe igualmente a segurança para  circular pelo  extra muros da residência, pelo espaço  que a todos pertence: ruas, praças, praias, e tudo o que cabe na expressão logradouro público.  Os projetos de segurança para a sociedade envolvem desde  garis que mantém limpos os espaços  públicos, até os guardas civis e polícia civil e militar para a manutenção da ordem. Na verdade, segurança não se inventa, ou melhor, projetos de segurança não se improvisam, mas dependem da adequação à sociedade destinatária, depende da adesão da população. Como qualquer outro projeto público, o de segurança é uma conseqüência das demandas sociais. Para dar certo, supõe também os exemplos que vêm de cima. A população  acreditará nos agentes de segurança se e quando  os seus dirigentes maiores  se comportarem como dirigentes, ou seja, com responsabilidade e espírito público.  Em tempos de pandemia a segurança pública mostrou mais do que nunca a sua ineficiência: polícia, não raro,  violenta, racista e misógina;  muitos fiscais corruptos e/ou despreparados, ressalvadas as honrosas exceções.  Essas qualidades negativas dos agentes de segurança, reflexo de uma macro política sem compromisso social, são replicadas pela sociedade, fechando-se desse modo um lamentável  circulo vicioso.

 Esta rápida reflexão sobre alguns dos direitos sociais contemplados na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e as políticas públicas correspondentes tragicamente  desconcatenadas, quer lembrar  que há muitos caminhos que levam à busca da melhor realização prática dos direitos humanos. Esses caminhos são  inesgotáveis, como inesgotáveis são as circunstâncias da vida social. Por isso, não existe uma receita pronta sobre a melhor maneira de efetivar os direitos humanos. Essa é uma questão permanentemente em aberto. Como estimulo a essa busca constante não faltam exemplos a serem seguidos, como o de Baldez. Em sua luta pelos direitos humanos   Baldez nunca capitulou  diante das dificuldades, nunca perdeu a esperança. Baldez nos ensina que em face dos problemas sociais é preciso renovar saídas, inventar soluções, inspiradas nas leis e  principalmente  nas aspirações populares. Diga-se de passagem, que essa disposição  o manteve jovem até o fim.

 

Palavras Chaves

Direitos humanos. Direito à moradia. Direitos sociais