ESPAÇO DE DISCUSSÃO 1: ASSESSORIA JURÍDICA POPULAR, EDUCAÇÃO JURÍDICA E EDUCAÇÃO POPULAR

  

Artigo


 A ASSESSORIA JURÍDICA POPULAR NO CONTEXTO DAS OCUPAÇÕES URBANAS: O CASO DO COLETIVO MARGARIDA ALVES EM BELO HORIZONTE [1]

THE POPULAR LAWYERING AND THE URBAN OCCUPATIONS CONTEXT: THE COLETIVO MARGARIDA ALVES CASE IN BELO HORIZONTE

 Ana Gabriela Camatta Zanotelli[2]

 Resumo: A advocacia popular, considerada uma atividade ainda em construção e organização no contexto nacional, é marcada pela atuação em rede, em que se busca estabelecer uma relação pautada na horizontalidade, solidariedade e protagonismo das coletividades assessoradas. Tendo em vista as performances adotadas por um Coletivo de Assessoria Jurídica Popular relevante no cenário nacional, o Coletivo Margarida Alves, buscaremos analisar como seus advogados membros podem ser caracterizados como atores específicos no cenário de ocupações urbanas de Belo Horizonte, tendo em vista as relações estabelecidas e as práticas exercidas em um processo de mobilização do direito.

Palavras-Chave: Assessoria jurídica popular; confronto político; mobilização do direito.

Abstract: The popular lawyering, an activity still under construction and organization in the national context, is an experience mainly based on networks, that seeks to establish relationships based on the horizontality, solidarity and protagonism of the advised movements. Considering the performances adopted by a relevant Collective of Legal Advice in the national scenario, the Coletivo Margarida Alves, we aim to analyze how its members can be characterized as specific actors in the scenario of urban occupations in Belo Horizonte, in view of their established relationships and the practices in a process of legal mobilization.

Keywords: Popular lawyering; contentious politics, legal mobilization.

1. Introdução

O presente trabalho tem por objetivo analisar a prática da assessoria jurídica popular a partir de um contexto específico de confronto político: as ocupações urbanas. Pretende-se definir como os advogados envolvidos no cenário de conflito podem ser identificados como atores, a partir de suas práticas e das relações que estabelecem em um processo amplo de confrontação. Para tal, partiremos da experiência de um grupo específico e relevante de advogados populares localizados na cidade de Belo Horizonte – o Coletivo Margarida Alves[3] -, inserido em uma ampla rede de atuação em prol de direitos, que guarda contornos locais, nacionais e internacionais. Nosso objetivo principal, assim, consiste justamente em abordar de forma breve as principais características da prática da assessoria jurídica popular, de modo a explicitar como os advogados percebem-se, organizam-se, relacionam-se e projetam-se no ambiente político local como atores específicos.

O Coletivo Margarida Alves foi criado por um grupo de advogados populares no ano de 2012, e constituiu-se juridicamente como associação no ano de 2014. A princípio, o Coletivo guardava grande proximidade com as Brigadas Populares e com os trabalhos desenvolvidos por tal organização política. Hoje, o CMA funciona de forma autônoma, em sede própria na cidade de Belo Horizonte, e conta com quatorze membros orgânicos (onze mulheres e três homens), todos advogados. O grupo é atualmente referência na assessoria jurídica popular não apenas em BH, mas em toda região metropolitana, acompanhando inclusive casos de alcance nacional e internacional. A Rede Margarida Alves mobiliza mais de cinquenta profissionais de todas as regiões do Brasil, e de várias áreas do conhecimento, como Direito, Psicologia, Comunicação e Arquitetura, que apoiam-se mutuamente a favor de causas comuns. O grupo foi selecionado como caso típico a ser analisado na presente pesquisa, por consistir em um ator relevante, organizado e ativo que atua em prol de causas importantes e urgentes no cenário nacional, cuja experiência é capaz de ilustrar a dinâmica e constituição atual da atividade no país.

            O trabalho insere-se em duas agendas de pesquisa que estão intrinsecamente conectadas: a abordagem da legal mobilization theory, ou mobilização do direito (MCCANN, 2006; LOSEKANN, 2013, 2015, MACIEL, 2011), e o estudo sobre cause lawyering, ou advocacia de causa (SARAT, SCHEINGOLD, 1998, 2006; SÁ E SILVA, 2010, 2015), ambas vertentes norte-americanas de pesquisa que vêm sendo nos últimos anos recepcionadas pela literatura nacional dedicada às confluências entre direito e sociedade. Estas duas abordagens são mobilizadas a partir da teoria do confronto político (MCADAM, TILLY, TARROW, 2005), a qual fornece as bases para a compreensão analítica das performances e repertórios construídos pelos advogados no contexto de confronto, tendo em vista o crescente processo de judicialização da política e uso da arena judicial por movimentos sociais, em âmbito internacional e, mais recentemente, local (ENGELMANN, 2006, 2007).

A luta pelo direito à moradia é cercada por diversas pressões externas, encabeçadas principalmente pela força policial do Estado, pelo próprio Poder Judiciário e pelos grupos economicamente dominantes. Neste cenário, a função social da propriedade, assegurada pelo inciso XXIII do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, é constantemente violada em detrimento de interesses financeiros que se articulam na esfera não apenas econômica, mas política e jurídica. É, pois, em um contexto de forte judicialização de demandas envolvendo resistências urbanas que surge o Coletivo Margarida Alves, cuja trajetória confunde-se com o processo de ressignificação da cidade de Belo Horizonte.

Entende-se que o confronto político que se desenrola a partir das ocupações urbanas fornece uma gama interessante de reflexões acerca da advocacia popular, suas funções e propósitos no cenário de ação coletiva e confrontação. O CMA configura-se, assim, como um ator relevante no contexto de luta dos moradores das ocupações, atuando de forma coordenada e em rede com outros atores apoiadores. Os advogados destacam-se justamente por atravessarem as fronteiras entre a institucionalidade e a não institucionalidade, a partir de práticas diversificadas que formam um repertório específico, que chamaremos de mobilização do direito.

            Neste trabalho, usaremos os dados coletados na pesquisa que deu origem à Dissertação de Mestrado intitulada: “Um pé na terra, outro no Tribunal: um estudo sobre a proposta de assessoria jurídica popular do Coletivo Margarida Alves” (ZANOTELLI, 2018). Trata-se de uma pesquisa qualitativa, que empregou como métodos a entrevista semi-estruturada com os advogados membros[4] do CMA, bem como a observação participante. As entrevistas foram sistematizadas de modo a abordar alguns aspectos individuais, como a vida acadêmica e profissional dos advogados, o trabalho no Coletivo e as percepções individuais acerca do direito e do sistema de justiça. Entendemos que a assessoria jurídica popular só é integralmente apreendida e caracterizada quando aspectos objetivos, como as práticas, a organização, e as causas a que se vincula, são considerados em conjunto com os fatores subjetivos, como concepções pessoais e ideológicas que definem e diferenciam a advocacia engajada de uma advocacia tradicional. As observações, por sua vez, aconteceram com o mínimo de influência por parte da pesquisadora em diversas ocasiões de atuação dos advogados do Coletivo. A análise presente, porém, recairá sobre um caso específico: as ocupações urbanas, mais especificamente as ocupações Izidora, uma das principais causas assessoradas pelo CMA atualmente, e um caso paradigmático no que se refere ao uso subversivo e à ressignificação do espaço urbano.

Tendo em vista os desafios bem como as potencialidades do emprego do direito como instrumento estratégico no processo de ação coletiva, passaremos a seguir à pormenorização e caracterização da atividade desenvolvida pelo CMA no contexto das ocupações urbanas de Belo Horizonte, a fim de compreender o papel que desempenha e as relações que estabelece.

  1. O confronto político na cidade de Belo Horizonte: as ocupações urbanas e o uso da arena judicial

Belo Horizonte é uma cidade projetada no final do século XIX para ser altamente racionalizada e organizada de forma a abrigar uma zona urbana, uma suburbana e uma rural. Em seu projeto inicial, a sede administrativa do estado de Minas Gerais não previa unidades habitacionais voltadas aos contingentes populacionais, e tal segregação socioespacial levou a inúmeros episódios de expulsão de pobres e operários de suas moradias. Apesar das investidas do Estado no sentido de implementar um recorte elitista à cidade, Belo Horizonte vem, desde o século passado, presenciando experiências de construções improvisadas de moradias e ocupações em seu território urbano e rural (RODRIGUES, 2016). A partir de um processo que vem se fortalecendo há décadas no município e região metropolitana, principalmente a partir dos anos 1960 e 1970 com a consolidação de movimentos sociais, a questão da reforma urbana ganha maior repercussão, sendo marcada por um crescimento significativo das vilas e favelas. A valorização imobiliária das áreas centrais, assim, caminha juntamente com o adensamento das favelas e periferização das áreas faveladas, principalmente nas regiões industriais da cidade (Idem).

Além da obstrução de canais de diálogo entre movimento popular e Estado durante o governo Lacerda (eleito em 2008, e reeleito em 2012 à Prefeitura de Belo Horizonte), a baixa oferta de habitação de interesse social e o aumento dos preços médios de aluguéis corrobora com o processo de segregação sócio espacial experimentada por parte da população de Belo Horizonte. A ocupação urbana, portanto, mostra-se como alternativa à ausência de políticas habitacionais na cidade (RODRIGUES, 2016), sendo intensificada no contexto de boom imobiliário experienciado pelo município no período pós crise internacional de 2008[5].

Os anos de 2006 a 2015 foram marcados por importantes investidas de ocupação de espaços urbanos em BH, as quais, apesar de guardarem diferenças em relação ao número de moradores, organização e mobilização interna, encontram-se unidas por um mesmo contexto de enfrentamento social, político e jurídico. Hoje, mais de 400.000 pessoas moram em ocupações irregulares em Belo Horizonte, sendo 10.400 nos “novos acampamentos” ou ocupações urbanas mais recentes. São elas: Camilo Torres, em Barreiro (2008), Dandara, no bairro Céu Azul (2009), Irmã Dorothy, em Barreiro (2010), Eliana Silva, em Barreiro (2012), Rosa Leão, Esperança e Vitória, na Granja Werneck ou Izidora (2013), além da Ocupação Cafezal, no Aglomerado da Serra, Zilah Spósito, na região Norte e duas ocupações denominadas Nelson Mandela (uma delas datada de 2014) (NASCIMENTO, BITTENCOURT, 2016).

Atualmente, a ocupação da Izidora (formada por três ocupações: Vitória, Esperança e Rosa Leão), marcada por ser espontânea – não encabeçada ou liderada por movimentos sociais –, consiste em uma das maiores disputas urbanas do mundo, tendo sido inclusive selecionada pelo Tribunal Internacional dos Despejos[6] como um dos sete casos mais emblemáticos no mundo sobre conflitos fundiários urbanos, em outubro de 2016. Em âmbito judicial, a área ocupada é objeto de quatro ações de reintegração de posse, propostas pela Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, pela empresa Granja Werneck S.A. e pelos seus proprietários (NASCIMENTO, BITTENCOURT, 2016). Desde o seu princípio, há cinco anos, a ocupação, realizada por milhares de famílias em um imenso terreno baldio e inutilizado, vem sendo objeto de ações judiciais. Em 2014, o Coletivo Margarida Alves impetrou um Mandado de Segurança visando suspender a ação de reintegração de posse coordenada pela Polícia Militar, sob a alegação de que a PM não tinha condições de garantir a segurança e a integridade física das famílias a serem desalojadas. O mandado de segurança impediu, à época, a realização da operação policial, mas teve seu mérito julgado apenas no ano de 2016, momento em que, por 19 votos a 1, teve seu provimento negado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais[7]. Hoje, as mais de 8 mil famílias resistem frente a um futuro incerto no que se refere à efetivação de seu direito à moradia.

Entendemos as ocupações urbanas como uma espécie de confronto político, que, segundo as definições de McAdam, Tilly e Tarrow (2005), consistem em interações públicas e coletivas que buscam a satisfação de interesses de reivindicantes, envolvendo o governo como um dos alvos ou objetos de reivindicação. Tais confrontos podem assumir características tanto contidas quanto transgressivas, uma vez que empregam tanto meios estabelecidos de reivindicação, como por exemplo a adoção de procedimentos institucionais convencionais de defesa, quanto formas inovadoras e diretas de reivindicar, com a inserção de novos atores no cenário de ação coletiva. Observa-se, assim, um contexto de luta e resistência política a partir de um repertório diversificado que reúne o uso de instrumentos judiciais de defesa de direitos, aliado a ações coletivas diretas tidas como contra-hegemônicas.

O reconhecimento do Judiciário como arena pública aberta às demandas sociais e à formação de opinião, e a instrumentalização do direito em prol de lutas político-sociais vêm configurando-se cada vez mais como uma estratégia adotada no âmbito das resistências de movimentos sociais e outras coletividades, sendo observada especialmente no contexto das ocupações urbanas[8]. O CMA incorpora-se, assim, a um cenário sociopolítico emergente marcado pelo crescente protagonismo político do Judiciário (ENGELMANN, 2006, 2007, 2017), e pelo emprego de instrumentos judiciais no âmbito das lutas político-sociais, que ocorre por meio do uso estratégico do direito e da mobilização de advogados engajados, fenômeno conhecido na literatura como “mobilização do direito” (MCCANN, 2006; LOSEKANN, 2013) ou ainda “mobilização política de direitos” (MACIEL, 2015).

  1. O Coletivo Margarida Alves: relações e repertórios

 O contexto de ressignificação da cidade de Belo Horizonte, a partir dos processos de ocupação e higienização urbana[9], foram determinantes para a atividade do CMA, a princípio, focar prioritariamente na defesa das ocupações urbanas. Foi a partir das conexões realizadas neste cenário que a maioria dos advogados que hoje formam o CMA reuniram-se e iniciaram sua atuação na advocacia popular. Atualmente, o Coletivo insere-se no cenário de ativismo e militantismo político local e nacional em defesa de movimentos sociais, territórios, comunidades e terceiro setor, participando de diferentes lutas na cidade de Belo Horizonte e região metropolitana, mas sendo ainda fortemente pautado pela dinâmica das ocupações urbanas.

            O processo de confrontação em que os advogados estão inseridos é constituído por uma pluralidade de forças exercidas por diferentes atores, tanto colaboradores quanto opositores. Entendendo o CMA como uma potência orientada à resistência e transformação social, torna-se possível afirmar que as forças opositoras a seu trabalho consubstanciam-se em atores influentes, poderosos e estáveis no cenário neoliberal. Tendo em vista especificamente as ocupações urbanas, pode-se citar como principais opositores todos aqueles que de alguma forma respaldam e colaboram à manutenção do status quo, apoiando a reintegração de posse dos territórios, tanto nas próprias instituições estatais quanto na sociedade civil de forma ampla, como por exemplo forças políticas conservadoras, grandes empreendimentos econômicos, setores da Polícia Militar, e o Próprio Poder Judiciário. Os aliados citados pelos advogados, por sua vez, seriam aquelas forças pontuais e insistentes que se relacionam na formação de redes de apoio, como os movimentos sociais, os grupos de advogados populares, organizações financiadoras, Defensoria Pública e Ministério Público, grupos de pesquisa e extensão de Universidades, as Brigadas Populares, a Pastoral da Terra, entre outros.

            Nessa gama, os principais apoiadores seriam justamente os movimentos sociais. De fato, a assessoria jurídica popular latino-americana encontra-se vinculada desde sua origem às lutas travadas por movimentos, no processo de redemocratização política no período pós ditadura, e organiza-se de acordo com os interesses e demandas dessas coletividades (JUNQUEIRA, 1996). Os advogados utilizam seu saber profissional com o objetivo de oferecer aos movimentos opções técnico-legais a serem adotadas em suas lutas e utilizadas na defesa de seus direitos. A partir dos dados coletados em campo, pôde-se observar que a relação entre os advogados e os movimentos envolvidos na luta por moradia na cidade de Belo Horizonte é pautada por ideários de autonomia, horizontalidade e protagonismo dos movimentos. Tratam-se de princípios que orientam a atividade de assessoria jurídica desenvolvida, uma vez que os movimentos não se constituem como mero clientes (expressão, inclusive, rechaçada pelos advogados populares), e são concebidos como parceiros de uma luta conjunta em prol de objetivos maiores de justiça e igualdade social. Conforme a fala da advogada a seguir:

É legal dizer que a gente tem uma relação de extrema proximidade com o movimentos, né. A gente realmente tem a perspectiva de construção da estratégia jurídica a partir da luta política, assim, porque definitivamente a gente não acha que o Judiciário e que nós advogados somos protagonistas das lutas, assim, a gente só fortalece a perspectiva do judicial, assim, né do Judiciário, do jurídico nas lutas populares. Então, nesse sentido, assim, nosso trabalho só faz sentido junto com as lutas populares. Mas a gente também marca uma autonomia em relação aos movimentos, assim, porque, apesar da gente ter uma inserção muito próxima e uma coisa de pé no chão, assim, né, que chama de advogada pé na terra e tal, que tá próximo inclusive dos contextos que a gente atua, por exemplo, em ocupação urbana a gente não trabalha do escritório, a gente faz um trabalho de, enfim, de construir junto o cenário, assim. Mas a gente também marca a nossa autonomia, porque, enfim, a gente tem uma atuação técnico-jurídica, mas a gente também sabe que a nossa atuação também é política, então, e nesse sentido,a gente tem princípios, assim, né. E aí a gente tem limites, a gente tem posições políticas para colocar nos cenários. A gente também não é, assim, os advogados contratados do movimento, entendeu? Nós somos parceiros na construção da luta política popular. (NATÁLIA, 25 de maio de 2016).

            É justamente na configuração do processo de mobilização que os advogados populares diferenciam-se da advocacia tida como tradicional. Optando pela escolha conjunta de estratégias e táticas de ação, constituídas por performances plurais, tanto jurídico-legais quanto políticas, os advogados populares constroem uma relação afetiva, voluntária (já que na maioria das vezes não recebem qualquer contribuição financeira) e horizontal com as coletividades assessoradas, incorporando ações típicas de movimentos sociais à sua atuação institucional habitual. Isto afeta diretamente sua relação com os movimentos, já que as decisões estratégicas não são impostas unilateralmente pelos profissionais, mas, em tese, construídas em parceria a partir de uma troca de experiências.

Na prática, entretanto, a pretensão de horizontalidade da relação é tensionada a todos os momentos, a depender, principalmente, do nível de empoderamento e organização interna das coletividades assessoradas. Há a possibilidade de o movimento conduzir o processo de mobilização, submetendo os advogados a suas deliberações, bem como corre-se o risco de os advogados encabeçarem a tomada de decisões estratégicas, silenciando os movimentos. O grande desafio dessa relação seria, portanto, a manutenção da autonomia de ambas as partes, em um processo de protagonismo por parte dos movimentos assessorados. Conforme salienta Sá e Silva (2010), a advocacia popular tem como objetivo dar apoio àqueles indivíduos em situação de vulnerabilidade, empoderando-os para a ação coletiva e para a condução da luta. A fala a seguir exemplifica as oscilações características do vínculo entre movimentos e advogados populares, e os desafios delas decorrentes:

Então a gente chega nesses movimentos que a galera ainda não tem a cultura de resistência, por mais que a gente sempre tente chegar nessa relação horizontal – e até que eles mais nos pautem, né, do que o contrário – o que se dá é o contrário: é uma expectativa muito grande na gente, e se colocam num lugar hierarquicamente abaixo, assim, de assistidos, né, e de… Não tô achando palavra, mas é como se fosse tipo assim: “nossa, agora nós estamos sendo abençoados por esses doutores que vieram aqui”. Mas isso no contexto de um território que tenha menos maturação política. Mas à medida que a galera vai se organizando e vai se fortalecendo e vai se movimentando politicamente, a gente vê que essa relação muda muito, muito. E até pra passar o contrário, de começar a exigir da gente, como aparelhos da luta que tá acontecendo, o que também a gente não se propõe a ser, né. A gente se propõe construir junto e não ser um aparelho isolado, na visão utilitarista, né. […] E é um debate que a gente tem que ter sempre quando isso começa a rolar, gera conflito, gera treta, né, construção política, com construção de uma alternativa de produção social, ela passa por isso também, né. Então, assim, esses conflitos de como é que a gente vai viver um com o outro? Como é que a gente vai construir um com o outro? […] Mas a forma que a gente se propõe a construir é sim horizontal, construindo junto, dando sim uma atenção maior, entendendo que os protagonistas são os territórios. Assim, construindo juntos, né, tentando não hierarquizar a demanda, a luta, e quem tem que se apropriar dela são os territórios. Muitas vezes já são apropriados, já chegam pra gente com todo esse empoderamento, outras não. (JORGE, 05 de agosto de 2017).

            A advocacia popular é essencialmente marcada por seu caráter coletivo. Diferente da advocacia tradicional liberal, construída majoritariamente de forma individual, os advogados populares entendem que suas práticas (tanto em relação às suas formas, quanto em relação a seus fins) devem ser pensadas e construídas de forma coletiva, somando-se a diferentes grupos, jurídicos ou não, a fim de possibilitar as intervenções estruturais a que se propõem (VÉRTIZ, 2013). Sendo assim, o apoio de outras organizações, instituições estatais e indivíduos é primordial para a formação de uma estrutura de atuação alinhada, que conjugue diferentes práticas, experiências e forças técnicas, financeiras e pessoais em prol de um mesmo objetivo de transformação social estrutural. Trata-se de um processo marcado pela interação, que conecta diversos atores e performances, gerando uma interpretação integrada e plural acerca do confronto (LOSEKANN, 2013).

Destaca-se, no cenário das ocupações urbanas, as ações coordenadas com defensores e procuradores específicos da Defensoria Pública e do Ministério Público de Direitos Humanos. A fala a seguir exemplifica este processo de convergência de esforços, que ocorre quando um dos entes envolvidos na causa, seja o CMA, a Defensoria ou o MP, constata a relevância e indispensabilidade de uma atuação conjunta.

Lá no nosso contexto, Belo Horizonte, a gente conta muito… Faz muita atuação em conjunto com a Defensoria Pública, né, principalmente nos casos das ocupações, que normalmente a gente atua na defesa, e a Defensoria Pública vem depois e entra com a Ação civil pública, que ela é legitimada, né. […] É, a Defensoria Pública de Direitos Humanos. E no sentido de… às vezes quando a gente tá, tipo assim, com a corda no pescoço, já tem ordem de despejo e não tem como a gente atuar mais, a gente aciona a Defensoria, “ah, agora vocês precisam de fazer isso e tal, vocês têm que intervir no processo de alguma forma”. Então sempre a gente atua em parceria. (NATÁLIA, 25 de maio de 2016).

            A relação com os membros da Defensoria Pública, Ministério Público e outros aliados consubstancia-se em uma rede de atuação e ocorre de forma contingencial, sendo cada um deles mobilizados quando mais interessante e estratégico a cada uma das causas. É o caso, por exemplo, dos grupos de pesquisa e extensão universitários, que auxiliam no trabalho em campo e na produção de materiais acadêmicos para publicização das causas, dos membros da rede de atuação – como advogados e arquitetos –, indispensáveis aos processos de organização interna, defesa, manifestações, embates e discussões, e das agências fomentadoras, que apoiam as ações do CMA financeiramente por meio de editais.

A relação entre os advogados populares e o Poder Judiciário, por sua vez, guarda peculiaridades e dilemas que dizem respeito, especialmente, à natureza deste Poder e à forma como este é encarado por aqueles profissionais. Isto porque o Judiciário guarda características historicamente opostas aos interesses das populações vulneráveis, ao mesmo tempo em que consiste em um dos principais espaços estratégicos de atuação de advogados populares. Apesar de ser tido majoritariamente como um opositor à atividade desenvolvida pelo CMA, o Judiciário possibilita, a partir de seus trâmites internos, que se discuta legalmente demandas e interesses, influenciando diretamente ou indiretamente lutas políticas e sociais. As influências que os Tribunais exercem sobre as demandas sociais vão muito além da decisão judicial em si, mas também afetam as lutas indiretamente ao aumentar a relevância de dada questão na agenda pública, fornecer recursos simbólicos para esforços de mobilização em diversos campos, influenciar de modo significativo a disposição das partes para continuar, para intensificar, para amenizar ou mesmo para se retirar da disputa ou relação em jogo, além de ter a capacidade de gerar diversos tipos de contramobilização (MCCANN, 2010).

Ou seja, apesar de sustentarem uma visão crítica em relação ao Poder Judiciário, tido como classista, machista, racista e conservador, os advogados do CMA são compelidos a ocupar esse espaço de mobilização, seja como réus de ações judiciais, ou como litigantes proativos e estratégicos. Na fala a seguir a advogada destaca o pessimismo dos advogados em relação ao Judiciário, mas ressalta a necessidade de se ocupar essa arena para uma construção gradual de pequenos êxitos sociais.

Então, é um espaço [o Judiciário] que a gente leva muita porrada, que a gente já entra perdendo. E toda a estrutura dele já tá montada pra manter o status quo, né. Aí nosso entendimento do Judiciário é o seguinte: a gente tá em território inimigo, a gente precisa manipular as regras desse campo, que muitas vezes, muitas vezes não, na maioria das vezes, é de onde saem as principais decisões de opressão, né, que fortalece o sistema de opressão, e aí a gente tem que manipular as regras e achar as brechas dentro, e a gente tem conseguido em alguns casos. (PAULA, 05 de agosto de 2017).

Percebe-se, assim, que a relação dos advogados populares com o Poder Judiciário guarda peculiaridades quando comparada àquela estabelecida pela advocacia tradicional. Isto porque, conforme assinalam os advogados entrevistados, sua atuação busca dar voz aos assistidos, aproximando a linguagem jurídico-legal a suas realidades e buscando traduzir o contexto amplo de luta social em demandas judiciais pontuais. A possibilidade de manipulação das formalidades legais e institucionais a favor de demandas de cunho popular, visando explorar as contradições do próprio sistema de justiça, portanto, é uma das principais características da advocacia popular e engajada (SÁ E SILVA, 2010). A teoria da mobilização do direito, abordada a seguir, fornece as bases para se discutir o uso estratégico do direito por movimentos sociais e outras coletividades no contexto de confrontação e resistência.

3.1. A mobilização do direito

 A mobilização do direito consiste em uma linha de pesquisa que visa analisar a relação entre direito e movimentos sociais a partir do estudo das influências do direito nas lutas políticas-sociais, encarando-o como uma das táticas estratégicas empregadas por indivíduos no processo de reivindicação e mobilização coletiva. Frances Zemans (1983, p. 700 apud MCCANN, 2006a, p. 5) afirma que “o direito é mobilizado quando um desejo ou necessidade é traduzido em uma demanda ou afirmação de direitos”. McCann (2006b), considerado o principal teórico da área, defende que os instrumentos e discursos jurídico-legais podem ser empregados de diversos modos e em variados momentos no processo de mobilização coletiva, seja no bojo de ações judiciais, no processo de comoção popular e reunião de ativistas em potencial, na formação de defensores populares, no reconhecimento e formação de identidades coletivas, nas reuniões com autoridades estatais e na formação da agenda de reivindicações

 Losekann (2015) aponta que a confrontação via judicial é explicitamente tomada como contida pelos autores. Entretanto, as relações desenvolvidas entre os sujeitos reivindicantes e profissionais do direito (como advogados militantes e membros do Ministério Público) geram o empoderamento de sujeitos, que passam a entender-se como atores políticos e titulares de direitos. “Sendo assim, podemos seguramente vislumbrar atores políticos constituídos a partir de repertórios judiciais” (LOSEKANN, 2015, p. 5). No que concerne ao fator inovação, a autora ressalta que o repertório de mobilização do direito – como já vem sido defendido por uma vasta agenda de pesquisa (AKS, 2004; ANDERSEN, 2008; BURSTEIN, 1991; ISRAEL, 2011; MACIEL, 2002, 2011, 2015; MCCANN, 2006; VANHALA, 2011) – é capaz de gerar mudanças institucionais e sociais, e não decorre necessariamente do uso exclusivo de estratégias convencionais. Ou seja, o uso de instrumentos judiciais nas lutas político-sociais não se limita à litigância judicial, e pressupõe o emprego de mecanismos convencionais para fins não convencionais, alterando a lógica de interesses em jogo e os próprios usos do direito.

Os repertórios podem ser conceituados como formas especificamente políticas de agir, constituídas a partir de um conjunto de performances improvisadas e inovadas com base em roteiros (scripts) compartilhados coletivamente (TILLY, TARROW, 2015). Entende-se, assim, os advogados populares como atores indispensáveis ao desenvolvimento de um repertório específico de ação coletiva, qual seja a mobilização do direito (LOSEKANN, 2013). As performances que constituem este repertório, por sua vez, guardam natureza não apenas jurídico-legal, mas também política, em um processo de luta por direitos que ocupa espaços tanto institucionais quanto não institucionais.

Na ocupação Izidora, observa-se uma forte organização comunitária que, em conjunto com os advogados do CMA e seus aliados, articulam-se coletivamente, participam de cursos de formação de defensores populares, discutem estratégias, organizam ações diretas, participam de mesas de negociação com autoridades, produzem material de divulgação sobre a causa, debatem sobre as violações sofridas, sanam dúvidas acerca de seus direitos e promovem cursos de formação sobre feminismo e empoderamento das mulheres, por exemplo. Concomitantemente, na instância judicial, correm as ações judiciais que discutem a propriedade do terreno e pleiteiam a reintegração de posse. Trata-se, como se vê, de um confronto que guarda tanto uma dimensão transgressora, quanto uma dimensão contida, envolvendo, em um mesmo contexto, os mesmos atores, e o mesmo território. O CMA, nesse cenário, ocupa posição fundamental de articulador e apoiador de ações diretas, de formação popular e trabalho de base, ao lado de uma atuação técnica diante das Cortes, como defensor formal dos ocupantes ou colaborador do Ministério Público e Defensoria Pública.

As falas a seguir ilustram as performances empregadas pelos advogados populares no contexto das ocupações urbanas, evidenciando que a luta pelo reconhecimento de novos direitos e pela garantia de direitos assegurados implica um repertório amplo, diversificado e criativo, que gradualmente é alterado por meio de performances inovadoras capazes de atingir a sociedade em geral e o poder público em particular.

A advocacia que eu busco construir hoje nas ocupações é uma advocacia que tem territorialidade, se expressa num território popular periférico, que pensa o direito não só a partir da disputa institucional, disputa do Judiciário – claro, tem que ser feita, porque em muitos momentos o que vai segurar é a decisão judicial, uma liminar que a gente vai conseguir, um efeito suspensivo – mas acima disso a gente sempre trabalha com essa mentalidade de que a luta é jurídico-política. Assim, o direito é uma perna, a gente faz a disputa institucional no Judiciário, nos poderes públicos também, né, no Executivo, numa audiência pública no Poder Legislativo, então o direito faz parte dessa luta institucional, mas é fundamental, talvez seja mais importante, a luta direta, a luta que se faz também no trancamento de via, nas ocupações de prédios públicos, na pressão direta em favor dos direitos. A gente vem tentando trabalhar então nessas duas pernas,a gente sempre deixa isso claro pras comunidades (LUCAS, 03 de agosto de 2017)

Por exemplo, no caso das ocupações a atuação judicial pode permitir que aquela comunidade tenha tempo pra se consolidar, pra se organizar, pra poder perdurar no tempo, né, pra se consolidar e tornar o despejo cada vez mais difícil de ser realizado. Então, é uma ferramenta importante nesse sentido, né. E também pra explicitar os conflitos, que são conflitos de ordem social, né. Por exemplo o caso da Izidora suscita um conflito entre uma cidade-empresa e uma cidade construída pelos pobres urbanos, então a atuação no Direito permite explicitar, explicitar a lógica perversa da produção do espaço urbano, por exemplo […]. Então, a advocacia popular ela explicita, né, essas contradições que estão colocadas na sociedade (MÁRIO, 9 de março de 2017).

[…] tudo que a gente faz é alinhado a partir de um espaço de debate com os movimentos e com os territórios, e tem os processos de formação e diálogo com o território. Então é isso, a gente participa de assembleias, tudo que a gente faz, sei lá, a gente tira um direcionamento político, e aí a gente tem alguma vitória ou alguma derrota, e aí a gente vai passar isso pra comunidade também na perspectiva jurídica. A gente participa de espaços, assembleias, reuniões, dentro do território. Além disso, eu, especificamente, coordeno dois projetos na Izidora, um é com as mulheres, que é um projeto que a gente conseguiu com o Fundo Elas, que é no sentido de formação com as mulheres, no sentido de debate em relação a gênero, raça e classe e sexualidade pra fortalecer as defensoras de Direitos Humanos dos territórios numa perspectiva de potencializar a atuação delas também numa perspectiva de direito. Então a gente constrói oficinas e espaços de debate e de ação também. Por exemplo, tem o processo de construção, muito a partir dessa articulação das mulheres, de construção de um centro de poder popular lá dentro do território, então dentro desse processo a gente tá apoiando a construção do ZOCA, que é Zona Ocupada de Cultura e Arte, tem as mulheres que fazem curso de costura, então a gente fortalece esse grupo e tal, enfim, tem várias ações que elas fazem e tal. […] Então é isso, assim, escrita de peças, acionamento administrativos, incidência política, acionamento internacional, incidência direta no território numa perspectiva de formação, construção disso tudo a partir da interlocução de um núcleo político e tal. E as ações de comunicação também. (NATÁLIA, 16 de outubro de 2017).

Destaca-se, neste ponto, a prática da orientação e educação jurídica popular realizada pelos advogados nos territórios em que atuam. Essas performances realçam a importância dada à relação de parceria e horizontalidade que se busca estabelecer com os movimentos e coletividades no processo de mobilização, visando fornecer aos assistidos conhecimento para formular suas demandas pessoais e coletivas em termos políticos e legais, orientar outros advogados e demais profissionais e articular suas próprias expectativas e interesses. McCann (2006c) afirma que as performances observadas no processo de mobilização do direito são concebidas tendo em vista a pretensão de transformação cognitiva das coletividades assistidas. Campilongo (2011), neste mesmo sentido, assevera que a prática da advocacia popular (por ele chamado de serviços legais inovadores) busca romper com a sacralização do direito de forma a privilegiar uma educação de direitos que aproxime a comunidade do universo jurídico. A partir destas e de outras características apontadas pela literatura que trata da advocacia engajada na América Latina, passaremos a seguir a uma breve caracterização do CMA como ator no processo de mobilização do direito, tendo em vista o cenário específico de ocupações urbanas de Belo horizonte.

3.2. O Coletivo Margarida Alves como ator: afetividade e estratégia

 Apesar de possuir um forte caráter ideológico, no sentido de dirigir sua atividade à promoção da justiça, empoderamento de indivíduos e coletividades e o fortalecimento de lutas sociais a partir da concepção de uma nova ordem jurídica (SÁ E SILVA, 2010), a atividade desempenhada pelos advogados populares compõe um processo altamente institucionalizado de mobilização e luta por direitos e justiça. Os advogados populares, assim, desempenham um papel de ressignificação das instituições jurídicas no contexto de confronto político, tendo de adequar sua atuação às demandas dos grupos assessorados – com quem mantém uma relação marcada pela intimidade e afetividade –, e às instituições e atores estatais, demasiadamente formalistas e conservadores.

            Logo, é possível afirmar que os advogados populares desempenham uma função tanto política quanto técnica. A primeira característica da assessoria jurídica popular desenvolvida na América Latina, marcada pela atuação crítica, ativista, afetiva e contra-hegemônica; e a segunda explicitada na experiência da advocacia de causa norte-americana (cause lawyering), mais estratégica e focada no emprego dos instrumentos previstos pelo ordenamento jurídico como meio de efetivação de direitos (SÁ E SILVA, 2015). “Enquanto os AIPs [advogados de interesse público] norte-americanos buscam conectar o povo ao direito, os AIPs latino-americanos buscam conectar o direito ao povo” (grifo no original) (Idem, p. 348).

Tais disparidades são evidenciadas a partir das performances empregadas pelos advogados populares latino-americanos, os quais, segundo Sá e Silva (Idem) adotam métodos e estratégias agressivas e de alto impacto, aliando um trabalho jurídico convencional com uma pluralidade de performances não-legais. Esta característica muito se deve ao contexto político, social, jurídico e ideológico em que se desenvolve a atividade no contexto do sul e norte global. Sarat e Scheingold (1998), afirmam que, no contexto da Civil Law, observado na América Latina, as fronteiras entre direito e política são mais rígidas que nos países da Common Law, porém, a atuação tímida das Cortes e a frustração dos advogados na luta por efetivação de direitos nos países da Civil Law, acabam por motivar uma atuação estratégica mais política.

Vértiz (2013) assinala como características principais da advocacia popular latino-americana: o reconhecimento crítico do caráter político do direito, que em seu processo de aplicação tradicional acaba por manter e reforçar as desigualdades sociais, o exercício coletivo da prática profissional, e a defesa de setores populares vulneráveis. No caso do Coletivo Margarida Alves, observa-se que, de fato, a esfera jurídica subordina-se à esfera política, e a exploração dos instrumentos jurídico-legais de atuação ocorre de forma crítica, visando revelar as contradições existentes no sistema, a fim de afetá-lo e desestabilizá-lo de alguma forma. Conforme salienta a advogada a partir da fala a seguir, a atuação dos advogados populares busca empregar de forma criativa e estratégica as ferramentas previstas institucionalmente como forma de gerar uma reflexão acerca da ineficácia do direito posto no processo de transformação social e diminuição de desigualdades.

O direito constrange, ele coloca em formato, em padrões, assim, não é possível você ter ações muito radicais no campo do direito. Mas por outro lado ele fornece uma linguagem. A linguagem dos direitos é uma linguagem que legitima muito perante a sociedade, né. Eu fico pensando assim, pra mim o caso do MST é um caso emblemático assim desse uso estratégico da linguagem jurídica, porque o MST quer resolver o problema de distribuição da terra no país, olha pra uma Constituição que diz que tem a função social da propriedade, olha pra um Estado que não faz a reforma agrária e diz: olha se o Estado não tá fazendo, eu vou fazer cumprir a Constituição, assim, a Constituição tá do meu lado, não do lado do Estado. A mesma coisa nas ocupações urbanas, a gente tá ocupando, a gente tá aplicando, dando sentido, dando vida ao princípio da função social da propriedade, assim, quem não tá fazendo isso são os proprietários e o Poder Judiciário conivente com isso. E eu acho que essa linguagem é uma linguagem que legitima, né, que dá legitimidade à luta política perante a sociedade, de modo mais amplo, assim, muito grande. Ou seja, é uma linguagem assim: nós não somos os foras da lei, nós estamos na verdade cumprindo a lei (LUANA, 09 de outubro de 2017).

            Tendo em vista, portanto, a grande discrepância entre o que o direito prevê e o que se observa na realidade social, a advocacia exercida pelo CMA, em consonância com a experiência observada na América Latina, não se limita à atuação perante tribunais, mas constitui um repertório plural de performances políticas, que perpassam as concepções individuais e ideológicas dos advogados acerca do direito e do sistema de justiça. A busca pela implementação e reconhecimento de direitos está relacionada à crítica ao próprio direito hegemônico e institucionalmente reconhecido. Entendendo o direito como um sistema de origem burguesa, voltado à manutenção dos privilégios de uma classe dominante, a advocacia popular objetiva a “construção de um novo direito que se contraponha ao direito existente, velho e conservador” (JUNQUEIRA, 2002, p. 200; tradução nossa)[10].

            Esta atuação engajada e crítica, que alia elementos afetivos e ideológicos na relação de aproximação com as causas e atores envolvidos, e nos propósitos políticos e sociais utópicos perseguidos pelos advogados populares, é aliada a elementos estratégicos. Trata-se da chamada litigância estratégica, que ocorre quando se opta por entrar com uma ação judicial por se entender que a conjuntura política encontra-se favorável, e o caso pode desempenhar importante impacto social e político com sua judicialização. O litígio estratégico é tido como aquele que tem o objetivo de “resolver causas concretas de violação de direitos, mas também de produzir efeitos legais e sociais” (LOSEKANN, 2016). O Mandado de Segurança que denunciou os abusos policiais realizados durante um despejo na ocupação Izidora e impediu que uma nova ação policial ocorresse é um exemplo de litigância estratégica realizada pelo CMA no âmbito das ocupações urbanas.

            Partindo-se da teoria da mobilização do direito, que enxerga a litigância a partir de seu viés estratégico, inserida em um cenário mais amplo de luta política, a função do advogado popular seria justamente explorar as brechas do Judiciário e as diferentes interpretações legais, aliando o caráter estratégico e pragmatista, observado na advocacia de causa norte-americana, a uma base ideológica crítica que visa a alteração do status quo, empenhando-se pela reforma do direito e questionamento das estruturas jurídico-legais sobre as quais sustentam-se as leis e decisões judiciais

  1. Considerações finais

 Caracterizar o advogado popular como um ator específico em um dado contexto de confrontação parte da compreensão da assessoria jurídica popular como uma atividade política, social e jurídica. Para tal, entendemos ser necessária a apreensão das relações estabelecidas entre estes atores e seus aliados e opositores, sua forma de organização interna, suas concepções ideológicas pessoais e as performances por eles empregadas em um repertório amplo de mobilização do direito.

As ocupações urbanas, uma das principais pautas defendidas pelo Coletivo Margarida Alves, fornecem os elementos necessários para a análise da atividade da assessoria jurídica popular no contexto nacional atual, tendo em vista a ampla rede de atuação que se forma em sua defesa e as diversas ações empregadas pelos advogados, em parceria com as coletividades assessoradas, na defesa do direito à moradia.

Tendo em vista as características do CMA, brevemente exploradas no presente trabalho, é possível compreendê-lo como uma experiência típica de assessoria jurídica popular latino-americana, que alia o emprego estratégico dos instrumentos jurídico-legais a uma atuação crítica e militante em prol de coletividades vulneráveis. Trata-se de um repertório de ação coletiva marcado pelo trânsito constante entre a institucionalidade e a não institucionalidade, em que os atores envolvidos aproximam-se como militantes e parceiros de causas comuns, mas distanciam-se na delimitação de sua autonomia e de suas atribuições próprias no contexto de luta. A expertise jurídica dos advogados, suas origens socioeconômicas (que muito se diferem das dos assistidos) e a necessidade de adequação às lógicas do sistema, deslocam-os em direção à arena institucional, forçando-os a servir como ponte de acesso e tradutor de demandas sociais tidas como contra-hegemônicas em um contexto historicamente conservador.

A articulação entre a esfera jurídica e a política é marcada por constantes tensões que, conforme salienta Vértiz (2013), dizem respeito às regras de funcionamento específicas de cada um dos âmbitos em que estes profissionais atuam. Cada um dos espaços é marcado por atores bem definidos e por maneiras interiorizadas e específicas de atuar. O campo jurídico, mobilizado e articulado com frequência pelos advogados populares no desempenho de seu trabalho, é conceituado por Bourdieu como um “universo social relativamente independente em relação às pressões externas, no interior do qual se produz e se exerce a autoridade jurídica, forma por excelência da violência simbólica legítima” (1989, p. 211), a qual pertence ao Estado e pode revestir-se do exercício de força física. Como um campo relativamente autônomo e dotado de lógica própria, o campo jurídico requer a observância de regras e formalidades específicas pelos atores que nele se inserem, revelando-se inacessível àqueles que não dominam tais diretrizes. Por tal motivo, cabe ao advogado popular atravessar e reatravessar, incessantemente, a linha tênue entre política e judicialidade de modo a possibilitar a efetividade do acesso à justiça àqueles com quem se aliam no contexto de lutas.

As diferentes performances empregadas no contexto das ocupações urbanas demonstram a fluidez e hibridez do CMA como ator no cenário de confronto. A partir de um repertório de mobilização do direito que alia proximidade afetiva com os assistidos, peticionamento judicial, participação em mesas de negociação, manifestações e outras ações diretas, lobby e oficinas de formação popular, os advogados populares desempenham uma atividade profissional técnica diretamente implicada no processo político, guardando características tanto de (a) movimento social, ao atuar diretamente e afetivamente com os demandantes em favor de suas causas, realizar trabalho de base em territórios (mesmo que de forma esporádica), construir relações horizontais e colaborativas com os assistidos, militar em favor das causas para as quais atuam por meio de demonstrações políticas diretas; (b) aliado de movimentos, auxiliando-os em sua atuação a partir de redes de apoio ou de forma autônoma por meio de cursos de formação, oficinas e assessoria técnica; (c) e profissionais do direito, ao atuar perante as Cortes, em processos judiciais, seguindo as formalidades institucionais exigidas na atuação jurídico-legal.

Nesse sentido, observa-se que o CMA não produz um esforço no sentido de se constituir como um ator específico no processo de mobilização em que se insere, sendo aqui entendido como um ator híbrido que contingencialmente utiliza-se de diferentes estratégias, jurídicas ou políticas, em um contexto de resistência às constantes violações de direitos vivenciadas por setores populares urbanos.

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INCONGRUÊNCIAS ENTRE OS MÉTODOS DE AVALIAÇÃO UTILIZADOS NO ENSINO JURÍDICO E A CONSTRUÇÃO DE UMA EDUCAÇÃO POPULAR

Elis Regina Arevalos Soares[11]

Jefferson Lemes dos Santos[12]

 Resumo: Pretende-se alertar para o fato de que a construção de uma educação jurídica popular depende umbilicalmente de métodos de avaliação que proporcionem aos educandos e educandas um crescimento pedagógico, não podendo ser o fator de criação de abalos emocionais que agridam sua personalidade e subjetividade, ao ponto que tamanho estresse gerado com a avaliação se torne um elemento obstante de um processo educacional que, dentre outros aspectos, preze por uma saúde mental. Visa-se, além disso, destacar que tais práticas são reiteradas tanto por docentes comprometidos com a reprodução do ensino bancário quanto os docentes militantes por uma pedagogia crítica.

Palavras-chave: Métodos de avaliação; Educação popular; Ensino jurídico.

 

  1. EDUCAÇÃO COMO FERRAMENTA DE EMANCIPAÇÃO SOCIAL.

A primeira construção teórica de impacto relevante na comunidade científica sobre o impacto dos métodos pedagógicos na formação cidadã dos alunos foi a obra “Fundamentos da Escola do Trabalho[13]” escrita por Moisey Mikhaylovich Pistrak em 1926. A partir dessa obra paradigmática o ambiente educacional passou a ser analisado sob uma ótica eminentemente política, onde os métodos pedagógicos utilizados pela instituição escolar  teriam a potencialidade de formar indivíduos para atender as sociais. Deste modo, numa sociedade pautada num modelo de produção capitalista os indivíduos seriam formados para atender as demandas de reprodução do sistema. A partir dessa percepção  Pistrak  tenta cunhar uma  “nova escola” em que o resultado do processo de formação não seria a mera criação de uma massa proletária para a produção de capital, mas sim a formação de cidadãos politicamentes atuantes e conscientes do seu papel transformador da realidade, em suma alunos revolucionários.

As ideias que compõem o livro tiveram a oportunidade de serem ( na medida do possível) colocadas em prática durante o regime socialista da URSS. Pistrak compôs o Narkompros (Comissariado do Povo de Educação ) órgão equivalente ao atual Ministério da Educação brasileiro, cuja a finalidade era pensar a política educacional que a recente república adotaria. Apesar do sucesso inicial de algumas práticas adotadas ( como a vinculação entre escola e trabalho, sobretudo nas séries iniciais, ou a auto-organização dos alunos em “grêmios” que tinham amplo poder na esfera administrativa dos unidades de ensino) o tema da prática pedagógica passa por um período de latência nos debates acadêmicos. Sua relevância volta a ser suscitada a partir da obra Vigiar e Punir[14] de Michel Foucault em 1975.

Apesar do autor não abordar de modo central o tema dos métodos pedagógicos utilizados nas instituições de ensino, suas considerações sobre a incidência de um poder disciplinar criador da subjetividade cujo um dos locus de aparição seria o ambiente escolar (forma da disposição das cadeiras e sala, a arquitetura da escola sob forma  panóptica, e a utilização da vigilância hierárquica como elemento “educacional”), motivaram grande parte da comunidade científica a pesquisar o quão elementar são  os métodos pedagógicos na formação do aluno e como a atuação estatal poderia corroborar para a efetivação de um sistema de formação mais democrático e atrelado aos Direitos Humanos.

Todo esse ambiente discursivo da metade do século 20, proporcionou uma multiplicidade de abordagem sobre o processo educativo.Um dos grandes expoentes deste período foi o educador Paulo Freire consolidando uma série de reflexões sobre política de ensino, método pedagógico, papel do educador enquanto formador, e o papel do aluno enquanto sujeito do conhecimento.

Partindo de uma perspectiva dialética, o autor se debruça de sobremaneira no papel transformador da educação. Percebe-se em grande parte de suas críticas um apelo à característica interacional da educação entre o locus de produção do saber e o contexto social que o permeia, de modo que o processo educativo não seja descolado da realidade material e concreta que subjaz tanto educador quanto educando, mas sim um reflexo deste e um ambiente de discussão e construção deste.

Tal aporte fica evidente quando colocamos sob análise sua militância contra o ensino bancário, ou tradicional, justamente por se pautar numa metodologia que dificulta o reconhecimento do educando enquanto sujeito capaz de intervir/transformar a realidade da qual faz parte. Basicamente o ensino bancário proporcionaria   uma consciência de reprodução do status quo,  que forçosamente é introjetada no educando. Esse processo, além de altamente degradante pelo método pedagógico baseado tão somente na sonoridade e repetição, é politicamente catastrófico pois contribui para uma manutenção de uma realidade pré-constituída e minagem de possibilidades e perspectivas de mudança.

Mas,  se  para  a  concepção  “bancária”  a  consciência  é,  em  sua  relação  com  o  mundo,  esta  “peça” passivamente escancarada a ele, à espera de que entre nela, coerentemente concluirá que  ao  educador  não  cabe  nenhum  outro  papel  que  não  o  de  disciplinar  a  entrada  do  mundo  nos educandos. Seu trabalho será, também, o de imitar o mundo, O de ordenar o que já se faz espontaneamente.  O  de  “encher”  os  educandos  de  conteúdos.  É  o  de  fazer  depósitos  de  “comunicados” — falso saber — que ele considera como verdadeiro saber[15]

Diante da constatação desse papel trasnformador da educação, a discussão sobre o dia-a-dia nos bancos universitários ganha uma relevancia ainda maior, pois é conforme as práticas alí consubstancializadas  que a realidade irá gradualmente se modificando. Nesse sentido a importância do pedagogo deixa de ser pautada na relação educador/aluno, de cunho individual, para impor-lhe uma realidade que transcende as relações subjetivas alí cativadas, fazendo com que sua responsabilidade seja social/socializada no processo de educação. Andrezza Maria Batista do Nascimento Tavares, ao estudar o papel do pedagogo na transformação social em ambientes que transcende os “muros escolares”, atesta o papel fundamental da educação social enquanto promotora de uma ideologia  emancipadora, onde os sujeitos são estimulados a compreender e intervir na “globalidade” a partir de seu contexto de exclusão, valorizando sempre a autonomia desses sujeitos, a descentralidade e sua participação.

A educação social propõe desenvolver e reconhecer a multiplicidade de estratégias de politização social, uma vez que a prática educativa está mergulhada  num modo de produção que limita as possibilidades de ruptura com o sistema. Tal perspectiva pedagógica convida os sujeitos a assumirem a sua identidade coletiva, convocando os educadores sociais a tornarem a própria ação educativa objeto de luta.[16]

Ainda que muito tenha-se produzido sobre a necessidade do desenvolvimento de métodos pedagógicos mais progressistas, pouco avançou-se na sua implementação. O ambiente universitário, justamente por ser dotado de uma visão tecnicista da produção do conhecimento, é o ambiente com menos receptividade às perspectivas transformadoras. Além desse problema que atinge o ambiente universitário de modo geral, alguns cursos têm a capacidade de dificultar ainda mais essa receptividade dada as características de produção do saber atrelado ao objeto de estudo do curso. É assim por exemplo com os cursos de direito, que em razão de uma própria construção histórica, extremamente positivista e exegética, tem-se pouca abertura para uma postura que fuja do dogmatismo bancário.

ensino do direito no Brasil é marcado por uma abordagem exegética. Os alunos, por meio de aulas expositivas, aprendem conceitos e normas que são e poderão ser utilizados no dia-a-dia dos Tribunais, independentemente das funções que irão exercer (seja como advogado, juiz, promotor ou procurador). Ocorre, contudo, que cada vez mais as relações sociais tornam-se complexas e imprevisíveis, exigindo do jurista não apenas um conhecimento sistemático, mas também maior capacidade argumentativa[17]. 128.

Essa “estrutura” do curso de direito dificulta que o processo educativo deixe de ser sonorista, mnemônico, e pouco reflexivo, para se tornar um processo em que o educando seja valorizado enquanto sujeito. Não muito raro educadores se  abstém de tentar uma metodologia diferente, sobretudo nas avaliações, sob o argumento de que a “vida forense” lhe obriga a aprender o conteúdo daquela forma. Isso fica mais evidente quando vemos as constantes reproduções de questões de concurso público em carreiras jurídicas  ou exames da Ordem dos Advogados do Brasil, em avaliações periódicas. Todo  modelo que está introjetado nessas avaliações (falso meritocracismo, individualismo, educação para o Mercado, etc) são “derramados” no meio do processo educativo, fazendo com que, mesmo que tenha-se buscado uma perspectiva crítica durante a apresentação do conteúdo, ao utilizar tais modelos avaliativos.

Ainda que se reconheça essa “estrutura” aos cursos de direito, tal reconhecimento não pode servir como justificativa para que a reprodução do ensino bancário continue a ocorrer em escala industrial (literalmente). É papel das universidades enquanto instituição, e principalmente dos educadores enquanto facilitadores do processo educativo, trabalharem constantemente e criativamente para vencer todos os gargalos apresentáveis à promoção de uma educação emancipadora,  sobretudo buscando incessantemente métodos avaliativos que venham valorizar o aprendizado.

 2.O ATUAL MODELO DE AVALIAÇÃO COMO EMPECILHO À UMA PEDAGOGIA EMANCIPATÓRIA

Com frequência as avaliações são erroneamente consideradas atividades a se cumprir ao final de um período letivo. Na verdade, o ideal seria que essas atividades fossem desenvolvidas ao longo do processo de aprendizagem, como ferramentas que otimizem o ensino, o diálogo entre estudantes e docentes e a capacidade de sintetizar, aplicar e relacionar os conteúdos. Três classificações de avaliações são considerados pertinentes, nesse sentido: a avaliação diagnóstica, a avaliação formativa e a avaliação somativa.

As avaliações diagnósticas são iniciais e se tratam de uma forma de conhecer os estudantes, identificar seus interesses, suas aptidões, necessidades e o grau de profundidade das informações que eles já possuem sobre o assunto a ser estudado. A partir dessas avaliações é possível definir as estratégias de ensino, os tópicos a serem abordados e o formato das próximas avaliações.

Já as formativas visam avaliar o andamento do processo de aprendizagem, indicando se há necessidade de mudanças estratégicas ou redefinição de prioridades, ou seja, apresenta resultados que colaborarão para a orientação, reforço ou correção dos métodos utilizados até então. As avaliações formativas não têm caráter seletivo e são essencialmente inseridas no processo de formação.

As avaliações somativas se apresentam de maneira mais pontual que as duas anteriores. Elas ocorrem ao final do processo de formação como meios de se verificar se as metas estabelecidas ao início do ciclo de aprendizado (por meio das diagnósticas) foram atingidas e, normalmente, titulam o estudante.

Quando aplicadas de forma adequada as avaliações podem trazer contribuições positivas para o ensino. O processo avaliativo pode ser responsável por fornecer um feedback em relação a eficácia das ações do docente no que toca à pertinência do ensino. Além disso, por exigirem análises e sínteses acerca dos temas trabalhados, as avaliações acabam por estimular e facilitar a integração interdisciplinar por parte dos alunos que, dessa forma, observam e relacionam questões comuns entre as disciplinas.

Apesar da tradição – ou imposição – de determinados métodos avaliativos é necessário considerar que existem muitas formas de se desenvolver avaliações. A determinação dos formatos dessas atividades deve ser realizada considerando a melhor adequação aos objetivos definidos no plano e às características dos estudantes. Essa escolha não deve se submeter às preferências do docente e da instituição, seja pela facilidade de correção, tempo de aplicação, ou qualquer motivo diverso que não priorize o processo de aprendizagem.

Um dos métodos avaliativos mais aplicados no ensino superior – e certamente o mais aplicado no ensino jurídico – é o das provas discursivas. Existem duas formas de provas discursivas: as provas discursivas dissertativas e as provas discursivas de respostas curtas. Em ambas formas, para um mínimo de aproveitamento da avaliação é necessário, entre outros pontos, que o grupo de estudantes seja pequeno. Além disso, é preciso, também, que se objetive estimular a expressão escrita e que a turma tenha tempo suficiente para organizar mentalmente as respostas e redigi-las. As provas discursivas são recomendadas para avaliar a capacidade dos alunos de sintetização, argumentação e raciocínio lógico, por exemplo, no entanto, apresentam algumas limitações relativas a correção como a influência da subjetividade do professor, a possibilidade de um estudante que tenha assimilado o conteúdo ser mal avaliado por não saber reproduzi-lo por meio escrito e a demora em se obter um feedback.

Outra metodologia avaliativa muito utilizada é a das provas objetivas, que, se executadas de maneira adequada, podem propiciar uma correção imparcial e exata, um feedback imediato aos alunos e rapidez na aplicação. Por outro lado, esse tipo de prova não estimula a criatividade, além de poder ser respondida contanto com a capacidade de memorização ou, até mesmo, com a sorte, apenas. São exemplos de questões objetivas: as de verdadeiro ou falso, associação, múltipla escolha, ordenação e, inclusive, as de lacuna.

Em disciplinas que objetivam alcançar conhecimentos e habilidades de natureza psicomotora ou neuromuscular, a proposta avaliativa mais adequada é a das provas práticas. Esse formato pode se referir tanto à observação da execução de atividades (por ex.: procedimentos laboratoriais) quanto à observação do resultado dessa execução (por ex.: produção de uma peça gráfica). O registro desse tipo de prova acontece com a utilização de uma folha de cotejo ou escala de classificação, onde o professor descreve e categoriza o desempenho do estudante.

Além dos meios supracitados, ainda é possível se realizar uma avaliação através de prova oral. Esse método vem caindo em desuso mas se faz necessário em algumas situações, como a avaliação de portadores de necessidades especiais, estudantes de idiomas e em cursos de pós-graduação.

Mesmo funcionando como importante elemento do processo de aprendizagem, a avaliação possui muitos aspectos que devem ser analisados de maneira crítica. As notas resultantes dos processos avaliativos influenciarão na vida acadêmica e na carreira do estudante das mais diversas formas: seja na sua visão de si mesmo, na tentativa de uma vaga para estágio ou projeto extra-curricular, no sentir-se motivado, no sentir-se pertencente ao ambiente acadêmico, na escolha da área de especialização, na remuneração, hierarquia, entre tantos outros fatores que se intensificam caso esse estudante seja de origem popular. Por esse motivo, a construção dessas notas deve ser feita da maneira mais saudável possível.

Hoje, na esmagadora maioria das instituições de ensino, as avaliações continuam sendo percebidas pelos estudantes como fontes de estresse, visto que ocorrem sequencialmente, em poucos dias e visam testar e raquear os alunos, em vez de auxiliar no aprendizado. Muitos professores ainda agravam essa situação utilizando as avaliações, sadicamente, como forma de se vingar. Outro agravante é a premiação da memorização que, diversas vezes, não corresponde à assimilação do conteúdo, especialmente em disciplinas que possuem como objetivo a internalização da capacidade crítica ou o desenvolvimento do raciocínio lógico.

Numa perspectiva maior, ainda podemos enxergar o mau uso das avaliações como mais um meio – proposital – de se contribuir para o imobilismo social. O ranqueamento acima mencionado é uma forma de seleção profissional a partir das características sócio-econômicas, e não técnicas. Se apresenta como uma consequência da junção de elementos como herança cultural e relações familiares que servirá para justificar a supervalorização dos estudantes das classes mais abastadas – muito mais habituados ao ambiente acadêmico e à ideia de, naturalmente, se concluir o ensino superior – em relação aos economicamente vulneráveis – muitas vezes os primeiros de suas famílias a alcançar a oportunidade de chegar ao ensino superior. Assim se estrutura uma elite intelectual encarregada de suprir as necessidades de embasamento teórico das classes dominantes.

As avaliações tradicionais podem ocasionar um déficit na produção acadêmica e conhecimento do aluno que, no tempo que dedicaria à pesquisar e aprender melhor sobre sua área de interesse, estará estudando de maneira não condizente ao seu próprio ritmo, para uma prova desproporcional sobre um assunto que não desperta tanto seu interesse. E, ainda, após a realização da prova, esse conhecimento adquirido a contragosto desaparece, pois o estímulo não estava em aprender a partir da descoberta, mas sim, em ser aprovado a partir da digestão do conteúdo imposto pelo professor.

Outro elemento que se encontra prejudicado pelas avaliações usuais é a capacidade de se trabalhar em grupo, em seu lugar incentiva-se a competição e o sentimento de individualidade, extremamente valorizados pelo sistema capitalista e prejudiciais à convivência em ambientes profissionais. Essa pressão competitiva acaba por dar espaço para o surgimento de mais um componente negativo frequentemente observável no sistema tradicional de avaliação: as colas. Tal artifício, frequentemente utilizado para se alcançar a nota necessária numa disciplina mal ministrada, é um problema que deve ser combatido pelo professor de forma preventiva, e não punitiva. Ser honesto sobre o método de avaliação, coerente na cobrança do conteúdo e dialogar sobre o formato que a turma considera adequado, são formas de diminuir essa pressão. É importante lembrar, também, que o constrangimento se ser pego colando é infelicidade suficiente, não se faz necessária a punição, crítica ou estigmatização do estudante.

Para uma avaliação que proporcione resultados positivos no processo de aprendizado é preciso que se trabalhe com o entendimento de que ela não se trata de um objetivo, mas sim de um meio para que se alcance as metas estabelecidas. Uma ferramenta que não deve ser utilizada para dificultar a permanência no sistema de ensino, tampouco segregar e inferiorizar os estudantes, mas sim como um processo contínuo de valorização dos educandos como sujeitos protagonistas do sistema de ensino.

 3.LIBERDADE DE CÁTEDRA E CULTURA PEDAGÓGICA ANT-EMANCIPATÓRIA .

 O processo de reabertura democrática iniciada na década de 80 surge de modo umbilicalmente interligada com o desenvolvimento e consolidação do ensino superior no Brasil. A luta travada pelos movimentos estudantis a partir de 68 demonstram um protagonismo universitário e uma sensibilidade pujante dos discentes organizados em prol de demandas nacionais,  mas também revela o reflexo  de uma demanda local, interna e institucional que as universidades enfrentavam com o centralismo administrativo e político promovido pelo governo ditatorial.  A reforma curricular no ensino superior ocorrida em 1968 pela Lei 5.540/1968 , embora trouxesse algumas modificações importantes ao estabelecer critérios objetivos para o ingresso na carreira funcional e acabar com a figura do “cátedra vitalício”, não fora suficiente para afastar sua natureza autoritária, antidemocrática e centralizadora[18]. Prova dessa supressão da autonomia é a possibilidade de intervenção pelo poder central através da instituição de Reitores Temporários (pró-tempore), cuja a escolha competia discricionariamente ao conselho federal de educação. Segundo o   Art 48  do referido diploma:

O Conselho Federal de Educação, após inquérito administrativo, poderá suspender o     funcionamento de qualquer estabelecimento isolado de ensino superior ou a autonomia de qualquer universidade, por motivo de infringência da legislação do ensino ou de preceito estatutário ou regimental, designando-se Diretor ou Reitor pró tempore

Com a derrocada do desenho institucional autoritário perpetrado durante o  regime militar e a consolidação de um novo horizonte democrático para o Estado brasileiro, o debate acerca da autonomia universitária ganha uma ampla relevância na política nacional. O processo constituinte de 87/88, cujos trabalhos foram iniciados a partir do anteprojeto elaborado pela comissão provisória de Estudos Constitucionais, já trazia em seu art 389 uma ampla descrição do desenho do que se entenderia por autonomia universitária.

Art. 389 – A prestação pluralista do ensino e assegurada pela autonomia institucional e a autoorganização do ensino público e pela livre organização da iniciativa privada. Parágrafo único – As universidades organizadas sob forma de autarquia ou de fundação especial, terão reconhecidas a sua autonomia funcional didática, econômica e financeira, caracterizada na elaboração de seu orçamento e na fixação das normas necessárias à sua livre execução.

Registra os anais da Constituinte que durante o processo de elaboração do texto constitucional uma das disposições acrescentava a expressão “nos termos da lei”(ao conceituar autonomia universitária), sendo votada sua retirada após a intervenção do presidente na comissão de sistematização, Jarbas Passarinho, que vê na expressão uma possibilidade de redução do seu sentido e provável perda de aplicabilidade. Tal pronunciamento, ovacionado ao final pelos constituintes, transcreve-se um trecho:

 […] sem a expressão “nos termos da lei”, que pudesse vir a permitir algum retrocesso, alguma qualificação, alguma redução da autonomia universitária, que é o primeiro, o fundamental e cardeal pressuposto no qual se há de edificar a organização do ensino superior universitário neste País.

O texto constitucional é promulgado com uma redação que bem  traduz esse sentimento de “pressuposto cardeal e fundamental no qual se edifica o ensino superior”. Seu Art 207 coloca em patamar de igualdade a autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, como pressupostos que devem ser vistos de modo indissociáveis e complementares na promoção de um ensino superior de qualidade. As normas infra-constitucionais que se originam a partir desse anseio político, agora constitucionalizado, ecoam o sentido da norma constitucional de maximização da liberdade de gestão dos centros universitários. A Lei de Diretrizes de Base da Educação é um desses diplomas legais que reverberam o intento do  Constituinte e atribui aos respectivos  colegiados de ensino e pesquisa  a autoridade a gestão didática e administrativa, conforme o Art 53:

Art. 53. No exercício de sua autonomia, são asseguradas às universidades, sem prejuízo de outras, as seguintes atribuições:

I – criar, organizar e extinguir, em sua sede, cursos e programas de educação superior previstos nesta Lei, obedecendo às normas gerais da União e, quando for o caso, do respectivo sistema de ensino;           (Regulamento)

II – fixar os currículos dos seus cursos e programas, observadas as diretrizes gerais pertinentes;

[…]

Para além da liberdade enquanto instituição, no  âmbito da sala de aula a relação entre  docente e discentes também encontra-se tutelada por uma natureza jurídica constitucional. Assim, determina como princípio para a ministração do ensino, a “liberdade de ensinar” tabulada pela redação do Art 206, II; possibilita ao discente aplicar a melhor metodologia  de mediação no processo educacional. Atualmente não existe qualquer discussão sobre a tutela constitucional da liberdade de cátedra, ao contrário sua efetividade goza de um nível tão elevado de consolidação que existem um acirrado debate para tolher-lhe, consignando o  projeto de lei “escola sem partido” (PL N.º 867, DE 2015). Em suma é totalmente impossível negar a tutela dada pelo Texto Constitucional à liberdade de cátedra, seja em nível do conteúdo ministrado, seja na metodologia de mediação. Neste sentido  entende   Horácio  Wanderlei Rodrigues et all, em artigo científico publicado em 2014 sobre a liberdade de cátedra na Constituição de 1988  que:

Consideradas  todas  as  questões  expostas neste  artigo, é  possível  afirmar  que  a liberdade de ensinar é uma garantia constitucional de duplo direcionamento:  […] b) garante a liberdade de ensinar do professor, que:  no  âmbito  do  conteúdo  da  disciplina  que  está  sob  sua  responsabilidade,  mesmo no contexto de um projeto pedagógico específico, mantém o espaço de  manifestação  das  suas  posições  e  convicções,  devendo  entretanto,  em respeito  ao  direito  à  educação,  à  liberdade  de  aprender  do  aluno  e  ao pluralismo  de  ideias,  também  propiciar aos  discentes  o  acesso  às  demais posições  e  teorias  aceitas  pela  respectiva  área  do  conhecimento;  ou  seja,  o docente possui liberdade de ensinar, mas possui também o compromisso de cumprir o conteúdo programático definido para a disciplina ou módulo e de propiciar  aos  alunos  acesso  à  pluralidade  de  posições  existentes  sobre o tema sob sua responsabilidade pedagógica; e no âmbito didático-pedagógico, mantém autonomia de escolha, respeitada a necessária  adequação  entre  meio  e  fim;  as  opções  tem  de  ser  as  adequadas para os conteúdos, competências e habilidades a serem trabalhados[19].

Ainda que os dispositivos normativos confiram aos educadores grande liberdade para inovar em práticas pedagógicas, a realidade tem demonstrado que a inserção desses métodos ainda fazem-se tímidas. Talvez as razões para tal problemática não esteja no arcabouço normativo, mas sim encontre guarida em disposições mais profundas, sobretudo aquelas atreladas à cultura do ensino jurídico. Tal dimensão configura-se como fator explicativo para o modus operandi do processo pedagógico permanecer inerte e distante de qualquer perspectiva emancipadora.

JOSÉ HUMBERTO DE GÓES, em tese de doutoramento pela Universidade de Brasília analisa  algumas característica que se repetem nos bancos universitários de cursos jurídicos, nos ajudando a entender as faces dessa cultura, que para o autor encontra supedâneo em quatro abordagens metodológicas distintas que podem ou não se interrelacionar, sendo elas:  “Pedagogia do Medo”,  “Pedagogia do Resultado”, “Pedagogia da Reprodução” a  “Pedagogia do Silenciamento”.

Faz necessário frisar  neste trabalho a pedagogia do medo pois aparentemente  ela é a que mais se sobressai dentre as práticas antipedagógica. Ela  teria por finalidade utilizar a posição “hierárquica” do professor para fazer com que o processo de aprendizagem seja intermediado pelo medo da reprovação. Todo processo educativo tem sua finalidade desfigurada quando a metodologia se cauca  nessa perspectiva haja vista a total impossibilidade de se chegar a efetiva condição de emancipação. Não é preciso discorrer muito para concluir os efeitos traumáticos, tóxicos e estressantes causados por essa perspectiva nos educandos.

A “Pedagogia do Medo” tem como elemento central, como o próprio nome indica, o “medo”. Este constitui uma pedagogia porque figura como princípio epistemológico, gnosio lógico e metodológico que fundamenta, inspira e condiciona enquanto, nas relações de ensino/aprendizagem, é alimentada [a pedagogia]  por  comportamentos que criam  em seus  integrantes  um universo de subjetividades, por conseguinte, de percepções, que também influenciam nos conteúdos e nos objetivos da formação jurídica. Para a “Pedagogia do Medo”, educar é disciplinar[20].

Sua centralidade em relação às demais dá-se justamente pela sua ampla utilização em todas as disciplinas componentes da grade curricular. A pedagogia do resultado, silenciamento e reprodução teriam uma vinculação direta às disciplinas exigidas em concursos ou exames similares, deixando assim de lado aquelas disciplinas com característica mais zetética e de conteúdo propedêutico. Já a pedagogia do medo seria utilizada pelo em ambos os tipos de disciplinas.

Essa separação pela natureza das disciplinas encontra sustentáculos na RESOLUÇÃO CNE/CES N° 9, DE 29 DE SETEMBRO DE 2004, e teria como condão ampliar a liberdade do professor em relação às disciplinas do primeiro eixo.

Art. 5º O curso de graduação em Direito deverá contemplar, em seu Projeto Pedagógico e em sua Organização Curricular, conteúdos e atividades que atendam aos seguintes eixos interligados de formação:

I – Eixo  de  Formação  Fundamental,  tem  por  objetivo  integrar  o  estudante  no  campo, estabelecendo as relações do Direito com outras áreas do saber, abrangendo dentre outros, estudos que  envolvam  conteúdos  essenciais  sobre  Antropologia,  Ciência  Política,  Economia,  Ética, Filosofia, História, Psicologia e Sociologia.

Conclusão:

Após exaustiva análise dos conjunto teórico que sustenta a produção epistêmica do processo de aprendizagem, bem como sua interrelação com os dispositivos jurídicos que regulamentam o processo de aprendizagem, tem-se como  síntese  conclusiva:

Tem-se ao longo da história uma construção doutrinária militante pela educação enquanto processo de emancipação social.

Tal construção encontra um antagonismo ontológico nos  métodos pedagógicos que não reconhecem o aluno enquanto sujeito ativo no processo de conhecimento, sobretudo no que tange os métodos pedagógicos de avaliação.

Vislumbra-se que o texto constitucional assegurou uma ampla liberdade de cátedra à docência, possibilitando a implantação de um processo pedagógico emancipatório. Este horizonte entretanto faz-se distante uma vez que existe uma cultura pedagógica com guisa a privilegiar a pedagogia  do medo que dificulta a efetivação de um verdadeiro processo emancipatóro.

  1. Referências bibliográficas.

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TAVARES, Andrezza Maria Batista do Nascimento. O pedagogo como agente de transformação social para além dos muros escolares- Tese, Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal-RN, 2010.

VENTURI, Thais Pascoaloto; GLITZ, Frederico Eduardo Zenedin. A CONTRIBUIÇÃO DO MÉTODO DO ESTUDO DE CASOS E DO EXAME DE ORDEM NA REFORMULAÇÃO DO ENSINO JURÍDICO Ensino jurídico e desafios contemporâneos / Organizado por Eroulths Cortiano Junior…[et al]. — Curitiba: OABPR, 2014. (Coleção Comissões; v.14) 200.

Ligia Maria Vettorato Tresvisan, Educação Superior no Século XXI e a Reforma Universitária Brasileira Ensaio: pag 04  aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.13, n.47, p. 127-148, abr./jun. 2005,

RODRIGUES, Horácio Wanderlei; MAROCCO,  Andréa  de  Almeida  Leite. Liberdade de  cátedra  e  a  Constituição Federal  de  1988:  alcance  e  limites  da  autonomia  docentes.  In: CAÚLA, Bleine  Queiroz  et  al. Diálogo  ambiental,  constitucional  e internacional. Fortaleza: Premius, 2014. v. 2. p.  213-238.

GÓES JUNIOR, José Humberto De. “O Que É Direito, Para Que Se Possa Ensiná-lo?”  As Percepções Dos Sujeitos Sobre O Direito, O “Ensino Jurídico” E Os Direitos Humanos . Tese  presentada  ao  Programa  de  Pós- Graduação  em  Direito como  pré-requisito  à obtenção  do título  de Doutor em Direito. Brasília, 2015. pag 368.



UM OLHAR CRÍTICO AO ENSINO JURÍDICO BRASILEIRO: O SENSO DE JUSTIÇA E A DIMENSÃO SIMBÓLICA DOS DIREITOS NA FORMAÇÃO DE ESTUDANTES[21]

Luciana Lombas Belmonte Amaral[22]

  1. INTRODUÇÃO

            O artigo que será apresentado tem como objetivo refletir sobre os desafios quanto à formação dos estudantes de direito no ensino jurídico a partir da perspectiva da Antropologia do Direito, em especial das noções de sensibilidade jurídica/senso de justiça (KANT DE LIMA, 2010) e de dimensão simbólica dos direitos (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2010). Essa articulação será realizada considerando alguns dados qualitativos obtidos na pesquisa empírica realizada no âmbito do mestrado em 2017 (PPGDH-UnB), além da literatura pertinente disponível em livros e artigos científicos.

  1. A CARACTERIZAÇÃO DOS REFERENCIAIS EMPÍRICOS E ACHADOS DA PESQUISA DE CAMPO

             Em minha dissertação de mestrado, desenvolvida no PPGDH-UnB (2017), propus o estudo dos desafios à educação em direitos humanos no ensino jurídico de uma instituição privada de ensino superior do DF. Para a compreensão desse objeto de estudo, escolhi, como guia de análise, as representações sociais dos estudantes dos últimos semestres do curso de direito.

            A pesquisa de campo foi realizada entre os meses de outubro a dezembro de 2016 e considerou a observação participante (HAMMERSLEY & ATKISON, 1994; BECKER, Howard, 1999; NETO; 2009; RICHARDSON, 1999) da vivência dos estudantes dentro de sala de aula em nove diferentes disciplinas do 9º e 10º semestres do curso de direito, mas também de acontecimentos nos espaços comuns da faculdade, cujos relatos e experiências desta pesquisadora no decorrer da pesquisa foram consignados em diário de campo (HAMMERSLEY & ATKISON, 1994; NETO; 2009). Essa etapa da pesquisa foi imprescindível porque, ao ousar um primeiro contato com a interface etnográfica, pude compreender com mais profundidade as falas dos estudantes, situando o contexto “de onde” e “sobre o que/quem” falavam.

            Além disso, foram feitas entrevistas semiestruturadas (TRIVINOS, 2008) com sete estudantes do 9º e 10º semestres, duas professoras e o coordenador do curso de direito e, por fim, o grupo focal (BACKES, et al., 2011; UW I-TECH, 2008) composto por cinco estudantes. Para o tratamento dos dados empíricos foi observada a proposta da análise de conteúdo em Guerra (2010). Ao longo da pesquisa de campo, que foi influenciada pela pesquisa etnográfica (HAMMERSLEY & ATKISON, 1994; MALINOWSKI 1978), foram construídas narrativas dos sujeitos da pesquisa (FLICK, 2004; SCHWANDT, 2006) para aprofundamento da compreensão sociológica.

            Os resultados da análise foram subdivididos estrategicamente em duas diferentes etapas, sendo a primeira voltada às representações sociais do estudante de direito sobre a formação universitária e a segunda, aos desafios da educação em direitos humanos no ensino jurídico. A abordagem sociológica das representações sociais (PORTO, 2006, 2010, 2015) se mostrou um valioso aporte teórico-metodológico desta pesquisa uma vez que possibilitou identificar blocos de sentido (e de oposição) em relação às ideias, crenças e valores compartilhados pelos estudantes de direito em relação ao ensino jurídico que vivenciam.

            A partir das representações sociais do estudante de direito sobre sua formação universitária, que constituíram o aporte teórico-metodológico da pesquisa qualitativa[23], pude identificar, inicialmente, que essa formação não está limitada às experiências vivenciadas no eixo ensino da faculdade de direito. Num contexto “para além dos muros da universidade”, os sujeitos da pesquisa conduziram meu olhar“para fora” do ensino jurídico, ou seja, para refletir sobreaspectosnãocircunscritos à sala de aula. As ideias, valores e crenças que transitam entre os estudantes e constituem ancoradoros para determinadas representações compartilhadas sobre o direito e a justiça – mas também sobre os direitos humanos – estão submetidos à significativa tensão e influência de diferentes instituições sociais (BELMONTE AMARAL, 2017): a família, as redes sociais digitais (com destaque o Facebook, o Instagram e as vídeo-aulas do Youtube) e as relações sociais vivenciadas nos estágios particulares e não-obrigatórios, isto é, aqueles que não constituem extensão universitária.

            O cenário hipotético de que uma possível práxis conservadora e individualista do ensino jurídico nos cursos de direito seria a únicaquestão a se ater enquanto obstáculo à educação em direitos humanos foi se relativizando aos poucos à medida em que as falas e as vivências dos estudantes sinalizavam para um cenário mais complexo. Noutras palavras, a partir do olhar dos estudantes, inevitavelmente, fui conduzida a pensar meu problema de pesquisa num espectro mais amplo, no qual os obstáculos à educação em direitos humanos não estariam cirunscritos – tão-somente – ao ensino jurídico do curso de direito.

            Em busca da compreensão de suas falas e vivências, pouco-a-pouco, era convidada a me ater também a outras instituições sociais, que, fisicamente, não estavam em sala de aula, mas, de uma forma intrigante, mostravam-se presentes em suas narrativas sobre o ensino jurídico, seja para fortalecer sentidos apreendidos em sala de aula, seja para delimitar espaços de disputa: a sala de aula, os conteúdos ministrados pelas/os professoras/res, diálogos e as experiências vividas no curso de direito versus as ideias, valores e crenças que compartilhadas fora da universidade entre estudantes seus pais, mães, irmãs, avôs/avós, nas comunidades e em diferentes espaços físicos e virtuais digitais.

            A possibilidade de conviver e de observar as/os estudantes, dentro das salas de aula e noutros espaços comuns do campus, momentos da pesquisa em que pude enxergar a importância de meu primeiro exercício etnográfico, bem como a análise minusciosa das entrevistas em profundidade e do grupo focal foram essenciais para indagar se os desafios à educação em direitos humanos no ensino jurídico estariam delimitados apenas ao vivido na universidade, isto é, aos conhecimentos e às experiências ali adquiridas, em especial no eixo ensino.

            De outro lado, é importante ressaltar que as diversas inquietações vivenciadas na pesquisa empírica  também contribuíram para acreditar que as representações sociais, não obstante se constituam de um compartilhamento de ideias, valores e crenças sobre determinados aspectos, não merecem ser compreendidas a partir de um pressuposto de sujeitos homogêneos. Em sentido contrário, ao longo do processo analítico e ao construir uma narrativa sobre cada um dos sujeitos (considerando a descrição de minhas experiências com cada estudante), pude observar o quanto suas trajetórias e vivências no ambiente universitário são únicas, além de outras peculiaridades que lhes são próprias, não obstante estivessem reunidos fisicamente num mesmo espaço e tempo.

            Com base nessas primeiras reflexões analíticas para compreensão do mundo empírico, entendi que uma das mais significativas contribuições das representações sociais como aporte teórico-metodológico da pesquisa de campo é a possibilidade de indagar sobre como e por quê os estudantes, sujeitos com trajetórias pessoais e vivências acadêmicas diferentes, encontram-se em determinados pontos de ideias e comungam algumas ideias, valores e crenças, alimentando práticas sociais específicas. Compreendi que essa partilha de determinadas visões de mundo sobre a formação universitária que vivenciam sugere a existência de uma afirmação simbólica[24] entre os estudantes,  o que, por sua vez, consolida a pertença social do denominado  “mundo do direito”, “de dentro”, categorias nativas[25] utilizadas pelos próprios estudantes quando de se referiam a todos aqueles estudantes e profissionais que se formaram no curso de direito e detém o saber jurídico[26].

            Sem dúvida, a reflexão sobre os pontos de tangenciamento existentes entre diferentes sujeitos, que conduzem a uma visão de mundo convergente num ou noutro aspecto, consolidando uma pertença social, permitiram-me reconhecer, nas representações sociais, um objeto de estudo valioso para a reflexão nas ciências sociais.

III.ARTICULANDO OS REFERENCIAIS EMPÍRICOS À LUZ DAS NOÇÕES  DE SENSIBILIDADE JURÍDICA E DE DIMENSÃO SIMBÓLICA DOS DIREITOS

            Consoante visto, para além dos muros da universidade, entendeu-se que a formação universitária vivenciada pelos estudantes de direito sujeitos da pesquisa integra-se num emaranhado de redes, envolvendo, concomitantemente, diferentes níveis hierárquicos[27], sujeitos e instituições sociais em torno de determinados saberes, discursos e práticas. Esse contexto de redes visualizada no campo foi refletida a partir do pensamento de Foucault (1996; 1998), sobretudo porque as relações de poder e de saber representaram uma constante nas falas dos estudantes. Além disso, foi  possível observar como as vivências em diferentes instituições sociais se imbricam, de diferentes maneiras, nas representações sociais dos estudantes quanto à formação universitária.

            Nas ideias, valores e crenças compartilhados por eles sobre essa formação não está, apenas, a práxis vivenciada no ensino jurídico, mas também as experiências acumuladas em seu convívio familiar, em seu estágio (obrigatório e não obrigatório) e nas redes digitais do Facebook, Instagram e Whatsapp. Dessa maneira, as visões de mundo sobre a formação universitária que são partilhadas pelos estudantes transitam em teias, na qual o ensino jurídico é mais uma dessas instâncias sociais.

            Entre os referências empíricos, foi possível verificar que algumas ideias e valores compartilhados pelos estudantes sinalizavam blocos de sentidos convergentes entre eles e as diferentes instituições sociais nas quais transitavam. Exemplo disso é o status social do “mundo do direito”, valor que é atribuído aqueles que detém o saber jurídico (via credenciamento pelo curso de direito) e que é compartilhado simultaneamente pelos estudantes, nas salas de aula, nas relações de estágio, entre os familiares e com outras pessoas da comunidade (aqueles “de fora” do “mundo do direito”). A exaltação pelo saber jurídico, que é, a partir das representações sociais do estudantes, um saber inerentemente crítico e superior a de outras áreas das ciências sociais, confere aos “de dentro” do “mundo do direito” um status social privilegiado aos demais. Tal valoração, que é  reconhecida pelos estudantes (ainda que alguns estudantes não concordem com essa supervalorização) e é reiterada em diferentes instituições sociais e níveis hieráquicos articula-se aos atributos da inteligência, prosperidade profissional e riqueza.

            A relação do saber e do poder em articulação ao direito e às formas jurídicas da práxis profissional foi objeto de estudo de Foucault (1996, 1998, 2003) e de outros autores contemporâneos.Ao refletir sobre a produção e a reprodução do saber jurídicoque inculca verdades, Kant de Lima (2010), também influenciado pelo pensamento foucaultiano, ressalta, a partir de sua pesquisa empírica com estudantes policiais civis e militares, que a reprodução do conhecimento universitário “reproduz as formas institucionais de produção e reprodução do saber jurídico e militar, seja na caserna, seja no tribunal”(KANT DE LIMA, 2010, p. 28-29). Criticando o formato dogmático e instrucional do ensino jurídico brasileiro, observa-se que o autor estabelece uma conexão entre duas instituições sociais distintas, a acadêmica e a profissional, que acabam por constituir parte de uma rede que dissemina verdades de critérios pouco reflexivos e críticos.

            Noutro texto de sua autoria, Kant de Lima (2012) chama a atenção para o fato de que essa rede estabelecida entre o ensino e as instituições profissionais, o que também foi observada na pesquisa de campo que desenvolvi, é propulsionadapelo grande número de docentes dos cursos de direito no Brasil exercentes de cargos profissionais alheios ao universoacadêmico. Essa “colonização das faculdades de direito pelo campo profissional” (KANT DE LIMA, 2012, p. 39) não só se retroalimenta dogmas jurídicos, como também fortalece as segregações por hierarquias, nosquais os detentores de cargos públicos mais altos deteriam saber jurídico de excelência. Os níveis hierárquicos existentes entre os profissionais exercentes de cargos públicos e outros considerados privilegiados no “mundo do direito” foram atributos bastante presentes nas representações sociais dos estudantes de direito sobre a formação universitária, seja ao se referirem aos magistrados-professores/procuradores-professores, seja quando da assimilação de hierarquias – de cargos considerados destaques da carreira jurídica – nos estágios realizados.

            Esse cenário, que revela um saber jurídico calcado na dogmática e na reprodução e que, por sua vez, forma-se a partir da naturalização de hierarquias em razão do saber jurídico, proporciona um distanciamento da realidade, obscurecendo “com uma cortina de fumaça as relações de hierarquia, de poder, de desigualdade que estão na sociedade, queiram os juristas ou não” (KANT DE LIMA; LUPETTI BATISTA, 2014, p. 17).

  1. RESULTADOS

            Interessante notar que, além da dogmática, a significativa idealização normativa do direito a partir das leis e a sua centralização exacerbada à figura do Estado foram aspectos observados na pesquisa de campo. Das falas dos estudantes quanto ao direito, foi possível verificar que as ideias a esse respeito estão significativamente articuladas à regulação normativa desempenhada pelo Estado, nas quais as pessoas parecem desempenhar papéis de figurantes, não de protagonistas. Não há qualquer referência nas falas dos estudantes quanto à existência de outras formas de administração de conflitos senão por intermédio de normas jurídicas advindas da função legislativa (via de regra) e, especialmente, do judiciário.

            O que se observa é que a atuação estatal é mencionada pelos estudantes como instância única e centralizadora para administração de conflitos, tendo o Estado concentrado simultaneamente todas as funções de elaboração, interpretação, aplicação e fiscalização do direito. A ideia de pluralismo jurídico, isto é, a existência de mais de um sistema jurídico coexistente e/ou de um sistema jurídico estatal articulado com produção jurídica não-estatal (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2010, P. 459) não está presente nas narrativas dos estudantes.

  1. CONCLUSÕES

            A partir da Antropologia do Direito, têm-se, como um dos aspectos atrelados à ausência de sensibilidade jurídica a ausência de reflexão empírica sobre o direito entre estudantes e profissionais no ensino jurídico. O distanciamento da realidade social – que obsta a articulação do direito aos fenômenos sociais por eles regidos (Kant de Lima, 2012) –, bem como a falta de compreensão das demandas por direitos, acordos e decisões judiciais, também em razão do método dogmático-dedutivo do pensamento e prática jurídica que se fundam em “fortes mecanismos de filtragem interpretativa para dar sentido normativo ao caso em tela” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2010, p. 454).

VI – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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A Atuação da Assessoria Jurídica Universitária Popular frente ao Poder Legislativo: Estudo de Caso do Projeto de Emenda à Lei Orgânica 02/2017 na Cidade de Londrina-PR[28]

The action of Pro Bono Legal Advice Offered by Undergraduation Students before the legislative power: case study on the amendment project to organic law 02/2017 in the city of Londrina

 

Ana Luísa Ruffino[29]

Raquel Cardoso Mailan[30]

Renato Rack de Almeida[31]

Victoria Quaglia Morato[32]

  Resumo: O presente artigo busca analisar o trabalho realizado pelo Projeto Integrado de Ensino, Pesquisa e Extensão – LUTAS: Assessoria Jurídica Universitária Popular em conjunto com o Movimento dos Artistas de Rua de Londrina (MARL) e com os moradores da Ocupação Flores do Campo (FLORES) na tentativa de impedir a aprovação do Projeto de Emenda à Lei Orgânica 02/2017 (PE 02/2017) que ameaça a luta dos movimentos sociais e limita a efetivação da função social da propriedade no município de Londrina/PR. A fim de tensionar o Poder Legislativo e conscientizar a população sobre os efeitos do projeto, os movimentos uniram-se e realizaram diversas ações de caráter extrajudicial, as quais serão apresentadas e, ao final, avaliadas com base nos preceitos da Assessoria Jurídica Universitária Popular.

Palavras-Chave: Assessoria Jurídica Universitária Popular; Extrajudicial; Legislativo; Função Social da Propriedade; Movimentos Sociais.

Abstract: This paper seeks to analyze the work developed by the Teaching, Research and Extension Integrated Project – LUTAS: Students Popular Legal Services Pro Bono Legal Advice Offered by Undergraduation Students together with the Londrina Street Artists Movement (MARL) and the dwellers of Flores do Campo Occupation (FLORES) in the attempt of hindering the approval of the Amendment Project to the Organic Law 02/2017 (PE 02/2017), which threatens the struggle of social movements and limits the implementation of the social function of property in the municipality of Londrina /PR. In order to pressure the Legislative Power and make the population aware of the effects of the project, the movements joined and took several extrajudicial actions. These actions will be presented and then analyzed on the basis of the LUTAS precepts.

Key words: Pro Bono Legal Advice Provided by Undergraduation Students; Extrajudicial; Legislative; Social Function of Property; Social Movements.

1. Introdução

Compreendendo que as Assessorias Jurídicas Populares (AJUPs) atuam a partir de demandas populares – por via judicial ou não -, considerando a multiplicidade do campo de trabalho para a organização popular e, baseados na atual conjuntura, que fez ascender a luta de classes, acreditamos na importância de atuação das AJUPs junto ao Legislativo, tensionando as instâncias de poder para efetivação de direitos ou na tentativa de impedir a aprovação de leis que promovam retrocessos.

Dentro deste contexto, a presente pesquisa analisa o trabalho feito pelo Projeto Integrado de Ensino, Pesquisa e Extensão – LUTAS: Assessoria Jurídica Universitária Popular (LUTAS) em conjunto com o Movimento dos Artistas de Rua de Londrina (MARL) e com os moradores da Ocupação Flores do Campo (FLORES) na tentativa de impedir a aprovação do Projeto de Emenda à Lei Orgânica do Município 02/2017 (PE 02/2017) que limita a efetivação da função social da propriedade na cidade de Londrina/PR e penaliza movimentos sociais e pessoas que lutam por vias não institucionais.

Para a realização do trabalho, optou-se pela metodologia de Estudo de caso, tendo como objetivo geral apresentar as estratégias e mecanismos elaborados pelo LUTAS em conjunto com outros movimentos sociais para atuar frente ao Poder Legislativo municipal e, como objetivo específico, avaliar a efetividade das ações realizadas.

2. Atuação Extrajudicial das AJUPs

A solução de conflitos por vias extrajudiciais configura uma via de atuação pautada nos princípios da organização e educação populares, encontrando campo de trabalho na maioria das AJUPs, conforme indicam levantamentos, como, por exemplo, a Cartografia Social e Análise das Experiências de Assessorias Jurídicas Universitárias Populares Brasileiras (2014) e também o Mapa Territorial, Temático e Instrumental da Assessoria Jurídica e Advocacia Popular no Brasil (2012).

A princípio, faz-se necessário destacar alguns obstáculos que acabam por direcionar a atuação das AJUPs para o campo extrajudicial que Severi (2014) elenca. Entre os fatores apontados estão a falta de fontes de financiamento para as atividades desempenhadas pelas AJUPs e o distanciamento de advogados e advogadas populares das estratégias sociopolíticas de mobilização popular.

Com base nos estudos supracitados, verifica-se que o trabalho de Assessoria Jurídica, em via de regra, conta com “baixos índices de litigância, situação que contrasta com os altos índices de litigiosidade apresentados pela justiça brasileira.” (GEDIEL et al, p. 67, 2013)

Porém, os “baixos índices de Litigância” não devem ser compreendidos apenas como uma consequência de problemas estruturais e da ausência de fontes de financiamento. A busca por soluções à margem do Poder Judiciário também tem como origem o descrédito ao sistema judiciário tradicional e o esforço em propor mecanismos alternativos de proteção aos Direitos Humanos.

Por esses motivos, o campo Legislativo constitui espaço fecundo para atuação das AJUPs na tentativa de impedir a aprovação de leis que promovam retrocessos e, principalmente, auxiliar no fortalecimento dos sujeitos coletivos de luta.

Necessário, ainda, apontar as referências que fundamentam o trabalho desempenhado pelas Assessorias Jurídicas Universitárias Populares para que seja possível compreender a importância e a necessidade da atuação extrajudicial para realizar trabalhos de Assessoria Jurídica Popular.

Habitualmente, as AJUPs configuram-se como projetos extensionistas das faculdades de Direito espalhadas pelo país. Apesar da confluência de leituras e da proximidade de referenciais teóricos e políticos, não há uma conceituação única que delimite de forma acabada o trabalho desempenhado pelas Assessorias Jurídicas ou pelo Advogados Populares, como elucidado por GEDIAEL et al, (2013 p.28). Contudo, resta evidente que o trabalho de Assessoria Jurídica desempenha papel diferenciado da mera assistência, sendo pautado em princípios que são didaticamente apresentados no trabalho de FURMANN (2003).[33]

O princípio de negação do paternalismo e subordinação dos oprimidos e o princípio de presentificação têm, explicitamente, caráter freiriano, que permitem a prática da educação popular desenvolvida por Paulo Freire, porque consideram a participação ativa do oprimido no seu processo de emancipação, trabalhando com a situação presente do assessorado, sua demanda, seu fato gerador. Inserida na realidade, diferentemente, da teoria jurídica tradicional proporcionada pela assistência, a assessoria permite a humanização do assessorando. O princípio de negação do individualismo segue, também, uma ideologia emancipatória e pode-se dizer que foi bastante inspirado pela atuação de movimentos sociais.

Por fim, busca-se a aplicação do princípio da negação do dogmatismo e positivismo, o qual consiste na postura crítica ao direito posto por parte dos estudantes e demais membros, bem como a promoção de formas de exercício da cidadania e de um direito que não o judicial.

Portanto, a negação do dogmatismo e do positivismo jurídico é característica a ser enfatizada no trabalho de Assessoria Jurídica Popular e, por esse motivo, as atuações das AJUPs de forma extrajudicial são mais do que comuns; são necessárias, uma vez que o Direito mostra-se como ferramenta assecuratória dos interesses da classe dominante.

Desta forma, verifica-se que a tendência pela mescla de atuações judiciais e extrajudiciais no direito popular vem das práticas antecessoras às AJUPs, como é o caso das práticas insurgentes executadas pelos advogados populares na defesa de pessoas perseguidas pelo regime militar, época em que os advogados sequer tinham o apoio da Lei; e, posteriormente, pelo Instituto Apoio Jurídico através dos seus ‘‘serviços legais inovadores’’ para promover o acesso à justiça e aos direitos humanos, se utilizando, nem sempre, de vias oficiais do Direito como indica RIBAS (2013):

Entende-se por práticas jurídicas insurgentes o conjunto das manifestações por parte dos movimentos populares: todas as reivindicações e conquistas, sejam instrumentalizadas judicialmente ou não, sejam possibilitadas com o auxílio de advogados ou não, sejam eficazes ou não. (2013)

Em tempos que se sucedem ao Golpe de 2016, de Democracia frágil e de um sistema jurídico facilmente transponível para os opressores, o exercício de um direito insurgente, principalmente no tensionamento das instâncias do Poder Legislativo torna-se ordem.

3. Projeto de Emenda à Lei Orgânica 02/2017

Dentro deste contexto, a atuação extrajudicial do LUTAS frente ao Poder Legislativo do Município de Londrina/PR nasce da provocação feita por Movimentos Sociais da cidade que buscaram a AJUP na tentativa de aprofundar as discussões sobre o PE 02/2017, Projeto de Emenda à Lei Orgânica que ameaça a luta dos movimentos sociais e que, caso aprovado, pode trazer inúmeros retrocessos para a política habitacional do município.

O Projeto de Emenda à Lei Orgânica Municipal 02 de 2017 (PE 02/2017) foi apresentado em 14 de junho de 2017 pelos vereadores Filipe Barros, Mario Takahashi, João Martins de Souza, Eduardo Tominaga, Ailton Nantes, Jamil Janene e Felipe Prochet à Câmara Municipal de Londrina, tendo como proposta originária incluir dois parágrafos ao artigo 80 da Lei Orgânica do Município, com a seguinte redação:

  • 5º Ficam vedadas as doações, as concessões de direito real de uso, as permissões de uso de imóveis do Município para entidades, ONGs, OSCIPs, quaisquer tipos de associações ou movimentos estabelecidos, ou não, e até mesmo a qualquer das pessoas físicas envolvidas que tenham participado de invasões, apropriações irregulares ou que tenham se apossado ou esbulhado próprios públicos ou imóveis públicos.
  • 6º Ficam proibidas de participar da Lista de Espera da Casa Própria pelo Sistema Financeiro de Habitação e pela Companhia Municipal de Habitação de Londrina (COHAB-LD) as pessoas físicas que tenham participado de invasões, apropriações irregulares ou que tenham se apossado ou esbulhado próprios públicos ou imóveis públicos.

O projeto apresentava como justificativa impedir ações abusivas de grupos políticos ou de quaisquer entidades que buscassem constranger o Poder Público a fim de obter facilidades ilegais nas doações, concessões de direito real de uso, permissões e autorizações de uso de imóveis públicos no Município de Londrina.

Ademais, a proposta de Emenda à Lei Orgânica do Município tinha como argumento a necessidade de regulamentar a Lei Municipal 11.898, de 28 de agosto de 2013, que proíbe a inauguração e a entrega de obras públicas incompletas no Município de Londrina.

A redação inicial do projeto denotava flagrante desconformidade com o ordenamento jurídico brasileiro, atentando contra a Constituição Federal, no que se refere principalmente à função social da propriedade (CF, art. 5º, XXIII), além de propor a interferência do poder público municipal em um programa criado pelo governo federal, o Programa Minha Casa Minha Vida.

O projeto, entretanto, sofreu alteração após parecer do Diretor Presidente da Companhia Municipal de Habitação de Londrina (COHAB/LD) enviado à Comissão de Justiça, Legislação e Redação da Câmara Municipal. O parecer elaborado pela COHAB/LD foi favorável ao Projeto de Emenda e sugeriu alterações com fundamento na Lei Federal 13.465 de 11 de julho de 2017, a nova Lei de Regularização Fundiária que acabara de ser aprovada pelo Congresso Nacional.

Desta forma, com o alicerce fornecido pela nova Lei de Regularização Fundiária, o PE ganhou ares de constitucionalidade, pois, embora afronte a Constituição Federal, a proposta está amplamente escorada em Lei Federal. Após o primeiro substitutivo, apresentado em 14 de novembro de 2017, o projeto passou a acrescentar três parágrafos ao art. 80 da LOM e atualmente o texto tramita com a seguinte redação:

  • 5º As pessoas físicas, entidades, ONGs, OSCIPs, quaisquer tipos de associações ou movimentos estabelecidos ou não ficam proibidos de receber em doação, concessão de direito real de uso, permissão ou autorização os próprios imóveis públicos que invadiram, se apropriaram irregularmente ou que tenham se apossado ou esbulhado.
  • 6º Desde que cumpram os requisitos legais estabelecidos, as pessoas físicas, entidades, ONGs, OSCIPs, associações ou movimentos poderão receber outro imóvel, diverso daquele elencado no parágrafo 5º deste artigo, submetendo-se às mesmas condições oferecidas a todos, sem a obtenção de quaisquer privilégios ou preferências.
  • 7º Para fins de aplicação do previsto no parágrafo 5º deste artigo, deverão ser excetuados os casos que confrontem com o disposto em Lei Federal nº 13.465, de 11 de julho de 2017, que dispõe sobre a regularização fundiária urbana e rural, ocorridos até a data de 22 de dezembro de 2016, atendidos os demais critérios da legislação pertinente.

Embora o texto do Projeto de Emenda tenha como justificativa evitar futuros constrangimentos ao Poder Público Municipal e regulamentar Lei Municipal que impede a inauguração de obras públicas não finalizadas, é preciso destacar que a redação do PE 02/2017 afronta objetivamente ocupações urbanas.

No contexto em que foi apresentado, próximo do surgimento das ocupações do MARL e do Flores do Campo, o projeto parecia ter destinação específica, o desmanche de duas ocupações emblemáticas na cidade.

3.1 Movimento dos Artistas de Rua de Londrina (MARL)

O Movimento dos Artistas de Rua de Londrina (MARL) surgiu com a finalidade de reunir os artistas da cidade que desenvolvem trabalhos em espaços públicos, buscando estimular discussões sobre arte e política, favorecer trocas de experiências e informações e solidificar parcerias para que haja intercâmbio entre os artistas londrinenses e movimentos culturais brasileiros (MARL, 2012).

Em 27 de junho de 2016, o MARL ocupou um prédio abandonado no centro da cidade de Londrina para fazer dele sua sede e espaço de luta e resistência política e artística.[34] O prédio, de propriedade da prefeitura do município, foi sede da antiga ULES (União Londrinense dos Estudantes Secundaristas) e estava abandonado há, aproximadamente dez anos, tendo se deteriorado com o tempo.

A partir da ocupação, o MARL, apoiado pela comunidade e outras entidades, revitalizou o local, realizando reformas e adequações na estrutura, o que possibilitou que o prédio abandonado se transformasse em um centro cultural aberto à comunidade. O agora Canto do MARL promove mostras culturais mensais com apresentações de teatro, música, contação de histórias e exposições juntamente com uma feira de produtos provindos da agricultura familiar (Feirão da Resistência e da Reforma Agrária) e realiza semanalmente oficinas de capoeira angola e capoeira regional, aulas de violão, oficinas de teatro do oprimido, oficinas de circo, aulas de yoga, apresentações artísticas, debates e rodas de conversa. Além disso, o local abriga uma biblioteca comunitária e funciona como espaço para realização de ensaios de 17 coletivos culturais da cidade e para realização de reuniões de diversos movimentos da cidade. O espaço também é utilizado como abrigo para artistas de que estiverem apenas de passagem na cidade de Londrina.

3.2 Ocupação Urbana Flores do Campo (FLORES)

A Ocupação Urbana Flores do Campo teve início em outubro de 2016, com a ocupação, por 400 famílias, de um empreendimento imobiliário inacabado do Programa Minha Casa Minha Vida, denominado Residencial Flores do Campo. O residencial, que contaria com 1.218 unidades habitacionais, com previsão de entrega para janeiro de 2015, restou inacabado, pois a empreiteira responsável pela construção paralisou as obras e por quase dois anos o empreendimento ficou abandonado.

Em resposta à precária política habitacional do município de Londrina, o residencial foi ocupado por diversas famílias que possuíam cadastro na Companhia de Habitação do município e, possivelmente, seriam as proprietárias das unidades habitacionais abandonadas. Após a ocupação, muitos dos moradores deram, ao seu modo, continuidade às obras, realizando os reparos e acabamentos necessários para ali residir e resistir. O local chegou a abrigar cerca de 5 mil pessoas e conta com auxílio de projetos e movimentos sociais da cidade.

Alvo de pressões jurídicas e políticas, a Ocupação Flores do Campo, através de muita luta, resiste até os dias atuais à determinação de reintegração de posse que os ameaça desde o início da ocupação. Atualmente, moram na ocupação, aproximadamente, 150 famílias.

4. Ações Desenvolvidas

Em julho de 2017, membros das duas ocupações solicitaram auxílio do LUTAS: Assessoria Jurídica Universitária Popular para que pudessem compreender as verdadeiras dimensões do Projeto de Emenda apresentado na Câmara Municipal. Após os primeiros contatos, foram realizadas reuniões entre LUTAS e MARL para definir as estratégias político-jurídicas para impedir a aprovação do projeto de emenda.

A primeira decisão tomada pelo grupo foi a elaboração de um parecer jurídico. O documento foi construído com a perspectiva de realizar um genuíno trabalho de Assessoria Jurídica Popular, vinculado aos preceitos da Educação Popular. Durante as reuniões, os membros do Movimento dos Artistas de Rua de Londrina participaram ativamente na construção do parecer, sugerindo temas, autores e métodos de trabalho.

Desta forma, em conjunto, todos os envolvidos realizaram um trabalho que tinha como objetivo não apenas a construção de um parecer jurídico, mas também a realização de atividades que buscassem o protagonismo dos movimentos sociais de Londrina. Por esse motivo, para realizar o parecer jurídico foram feitos estudos e relatórios sobre os seguintes temas:

  1. a) Lei Municipal que estabelece normas para doações, concessões de direito real de uso e as permissões e uso de imóveis no Município de Londrina;
  2. b) Regimento interno da Câmara Municipal de Londrina;
  3. c) Estatuto da Cidade;
  4. d) Instituto da função social da propriedade;
  5. e) Concepção teórica e dogmática dos conceitos de posse e de propriedade;
  6. f) Plano Estadual de Habitação de Interesse Social do Paraná;
  7. g) Tratados internacionais de direitos humanos que versam sobre direito à moradia e;
  8. h) Os históricos da Ocupação Flores do Campo e do MARL.

Com a junção de todos os relatórios foi elaborado um parecer técnico-jurídico para que todos os envolvidos se municiassem de argumentos para aprofundar as discussões sobre o PE. O texto final do parecer foi concluído em assembleia aberta para membros do MARL, LUTAS e da Ocupação Flores do Campo em agosto de 2017.

Paralelamente à construção do parecer, no dia 27 de junho de 2017, foi realizado um ato no Centro Cívico de Londrina, com objetivo de dar notoriedade ao Dia Nacional de Luta do Teatro de Rua, comemorar um ano da ocupação do antigo prédio da ULES (União Londrinense dos Estudantes Secundaristas) pelo MARL e apoiar as ocupações urbanas por moradia. Nesta data, os manifestantes ocuparam a Câmara Municipal de Londrina, e fizeram a leitura de uma carta de repúdio ao Projeto de Emenda. A carta foi lida por membros do MARL e por moradores do FLORES.[35]

Após diversos encontros, foi elaborado o parecer jurídico e os membros do grupo de trabalho puderam compreender que Projeto de Emenda estava alinhado com a conjuntura de retrocessos sociais do período pós-golpe. Além disso, os estudos também colocaram em evidência a inconstitucionalidade do PE 02/2017, ao afrontar o inciso XXIII do art. 5º da Constituição Federal que dispõe sobre a função social da propriedade.

O estudo também demonstrou que o PE é contrário ao disposto em diversos tratados internacionais sobre direitos como, por exemplo, a Declaração Universal de Direitos do Homem, a Carta da Organização dos Estados Americanos e a Convenção Americana de Direitos Humanos.

Por fim, o parecer elaborado conjuntamente destacou, por meio de dados técnicos, que existiam mais de 2.607 pessoas que habitavam em assentamentos ou favelas aptas a serem regularizadas no município e que poderiam ter essa opção inviabilizada em uma eventual aprovação do PE. O parecer, ainda, mapeou diversos bairros de Londrina que se constituíram inicialmente como ocupações e vieram a ser regularizados a partir de políticas habitacionais de regularização fundiária.

Concluída a primeira etapa, deu-se início a segunda fase do trabalho destinada às ações políticas de convencimento das autoridades municipais. Ainda no mês de agosto de 2017 foi realizada uma reunião no gabinete do Prefeito Municipal de Londrina para discutir a proposta. Estavam presentes membros do LUTAS, MARL, FLORES, além do Prefeito, Procurador-Geral do Município e também do Diretor Presidente da COHAB/LD.

O parecer jurídico elaborado foi utilizado pelos membros de movimentos sociais presentes para que pudessem expor argumentos escorados em referenciais técnicos e jurídicos que evidenciavam as fragilidades da proposta.

A reunião no gabinete do Prefeito Municipal pressionou as autoridades, contudo, não obteve resultados práticos positivos para os movimentos sociais envolvidos. No final do mesmo mês de agosto de 2017, como já exposto anteriormente, o Diretor Presidente da COHAB/LD enviou parecer técnico para a Comissão de Justiça, Legislação e Redação da Câmara Municipal, elogiando o Projeto de Emenda e sugerindo alterações a serem feitas no PE.

As alterações sugeridas tinham como fundamento a Lei Federal 13.465 de 11 de julho de 2017, a nova Lei de Regularização Fundiária, que acabara de ser aprovada pelo Congresso Nacional. Desta forma, com o alicerce fornecido pela nova Lei de Regularização Fundiária, o projeto de emenda ganhou ares de constitucionalidade, pois, embora afronte a Constituição Federal[36], a proposta conta com amparo fornecido pela nova Lei de Regularização Fundiária.

O texto original do Projeto de Emenda foi alterado conforme sugestões feitas pelo Diretor Presidente da COHAB. A proposta passou a tramitar com uma nova redação que, desta vez, impedia que pessoas físicas, entidades, ONG’s, OSCIPs, associações, ou movimentos que promovam a ocupação de imóveis públicos pudessem receber em doação, concessão de direito real de uso, permissão ou autorização do município apenas os imóveis objetos de ocupação.

Além disso, a redação do projeto estabeleceu uma data limite para regularização das ocupações ocorridas até a data de 22 de dezembro de 2016. Com essa redação, caso aprovado o PE, ocupações realizadas em imóveis públicos após a data indicada não serão passíveis de regularização.

Diante deste contexto, membros do LUTAS e do MARL decidiram promover novos esforços, desta vez, fora do campo jurídico. O objetivo passou a ser a construção de novas estratégias dentro da esfera política e organizativa para tentar impedir a aprovação do PE.

O campo jurídico foi colocado em segundo plano e as atividades desenvolvidas passaram a priorizar a organização social. O plano de trabalho elaborado entre os envolvidos tinha como objetivo unir outros movimentos sociais, grupos e coletivos para participarem de ações públicas contrárias ao projeto de emenda. Uma carta de repúdio também foi elaborada com o objetivo de coletar assinaturas para que este documento pudesse ser utilizado para pressionar os vereadores municipais pela não aprovação do PE.

Membros do LUTAS, ainda, procuraram suporte do Ministério Público Estadual. Uma reunião foi realizada junto ao Promotor responsável pela 24º Promotoria de Justiça, vinculada à atuação em Direitos Humanos e Saúde Pública. Durante o encontro, foi exposto que o Ministério Público Estadual não poderia promover ingerência no processo legislativo, porém, o Promotor responsável sugeriu a articulação de coletivos municipais que lutam pelo direito à moradia e direitos humanos, propondo a criação de um grupo de trabalho sobre moradia.

Ademais, os membros do LUTAS participaram de um evento, realizado na Universidade Estadual de Londrina – UEL, com tema “Construindo a Londrina que queremos: revisão do Plano Diretor”[37], que tinha como objetivo discutir o plano diretor do município. Durante o evento foi realizada a leitura de uma carta de repúdio ao PE, elaborada pelo LUTAS e MARL, e foram coletadas algumas assinaturas para o abaixo assinado em protesto ao projeto.

Além disso, também foi realizada uma reunião aberta na tentativa de mobilizar outros grupos e movimentos do município para que participassem das ações de lutas contra o PE 02/2017. Entretanto, a reunião não prosperou. Estiveram presentes apenas membros do grupo de trabalho e integrantes dos movimentos “Frente de Esquerda” e “Mobiliza Londrina”, além de um representante do Sindicato dos Jornalistas de Londrina.

Outras estratégias também foram pensadas, como a criação de uma página no Facebook e a criação de vídeos explicativos sobre a redação do PE e sobre as consequências de sua aprovação. O objetivo de criação da página e dos vídeos explicativos era sensibilizar a população, porém essas ideias não saíram do papel e logo foram descartadas.

Por fim, o grupo decidiu voltar suas atenções para o trabalho com os moradores que fazem parte de ocupações no município de Londrina. Com isso, está em andamento a confecção de panfletos para serem distribuídos nas ocupações e espaços públicos. Estrategicamente, a proposta de propaganda através dos panfletos foi pensada em conjunto com o MARL, que atuará realizando apresentações artísticas, ao que se seguirá a entrega dos panfletos e conversa com os presentes sobre o PE.

Além dessas atividades, o grupo estuda a possibilidade de realizar visitas aos gabinetes dos vereadores municipais para convencimento pessoal sobre os retrocessos que a aprovação do texto pode trazer para a política habitacional do município.

O parecer jurídico escrito no início das articulações da comissão ainda será adaptado ao formato de Manifesto, considerando a alteração da redação do PE. O objetivo é utilizar o manifesto como ferramenta de divulgação do PE, além de embasamento para futuras ações, como intervenções nas sessões de votação e conversas com vereadores e movimentos sociais.

Por fim, cabe destacar a última atividade realizada pelo grupo, no dia 04 de abril de 2018, quando foi realizada audiência pública na Câmara Municipal para discutir moradias populares e regularização fundiária no município[38]. Integrantes do grupo de trabalho estiveram na audiência e ocuparam espaços de fala para denunciar o caráter prejudicial do PE 02/2017.

Com relação à tramitação do projeto, em 2 de fevereiro de 2018, a Comissão de Fiscalização e Acompanhamento de Bens Públicos solicitou parecer do Conselho Municipal de Habitação, do Conselho Municipal da Cidade, da Secretaria Municipal de Assistência Social e da Companhia de Habitação do Paraná – COHAPAR.

Os dois Conselhos Municipais e a Secretaria de Assistência Social apresentaram pareceres contrários ao PE,  apontando a necessidade de construção  de políticas habitacionais inclusivas, ressaltando que o PE atinge populações altamente vulneráveis e que a aprovação do projeto reforçaria a condição de exclusão e penalização dessa população. O Conselho Municipal de Habitação enfatizou, ainda, o direito social à moradia e defendeu a ampliação das políticas públicas.

A COHAPAR, entretanto, não se manifestou e, em 17 de abril, o projeto foi enviado à Comissão de Políticas Urbanas e Meio Ambiente e à Comissão de Acompanhamento da Doação de Bens Públicos.

5. Avaliação das Ações Desenvolvidas

Partindo das dimensões de trabalho de uma AJUP, a atuação frente ao Legislativo que, a princípio, aparenta demandar ações por vias reformistas e institucionais, propiciou para o grupo a experienciação e prática da assessoria jurídica popular de forma a contemplar o tripé educação popular, organização popular e técnica jurídica, conforme apresentado na descrição das atividades desenvolvidas e pela análise que se segue.

Considerando-se o contexto político nacional, que irradia nas esferas estadual e municipal, constata-se um avanço neoliberal e conservador que se legitima a partir do aparelho estatal. A via legislativa, na atual conjuntura, tem realizado o papel, de forma instrumental, de desmontar direitos que se supunham consolidados, a exemplo das reformas nacionais (trabalhista e previdenciária).

Com relação ao Direito enquanto mantenedor dos privilégios burgueses e sua aplicação em momentos históricos de aparente ameaça à ordem social estabelecida, Lyra Filho (2012, p. 38) analisa que:

[…] se as regras do jogo, apesar de todas as cautelas e salvaguardas, trazem o risco de vitória, mesmo pelas urnas e dentro dos canais da lei, de correntes reestruturadoras, o poder em exercício (pressionado pelas forças do sistema e pelo seu próprio gosto de ficar no topo da pirâmide) trata de mudar as ditas regras do jogo, empacotando outro conjunto de normas legais.

O enfrentamento ao PE, portanto, despontou como uma luta necessária, considerando as consequências práticas para a luta por moradia, neste momento de redução de direitos por vias legais. No entanto, no decorrer das ações de enfrentamento ao PE, foi possível verificar um salto de qualidade quanto ao objetivo inicial.

A articulação com MARL e FLORES possibilitou um processo de educação popular, no sentido de traduzir o Direito conforme as demandas dos dois coletivos e ensejou ações conjuntas de lutas, a partir da necessidade do embate político que se forjou ao assumirmos a dimensão do que significa lutar contra um projeto político que limita as alternativas de garantia do direito à moradia.

No desenvolvimento das atividades da comissão, observamos o constante diálogo com o MARL na construção do processo de luta frente ao PE, que extrapolou o interesse imediato do MARL – obter a concessão de uso do imóvel ocupado – e o objetivo inicial do LUTAS – arquivamento/não aprovação do PE.

O movimento de avaliação das ações desenvolvidas conduziu a uma dinâmica criativa de formulação tática e culminou em uma análise crítica que deu novos contornos aos objetivos da comissão. Nesse sentido, o que se apresentava como objetivo primeiro, restrito à tramitação do projeto, evoluiu e possibilitou ao grupo organizar uma estratégia mais alinhada com a educação popular e construção coletiva junto a um movimento social e uma organização de luta popular a ser realizada conjuntamente.

Desta forma, a luta nasce a partir de uma demanda específica e, aparentemente, centralizada na via legislativa e se expande, em um movimento dialético, para a luta política popular. Nessa linha de pensamento, Ranulfo Peloso (2012, p.55) define a luta popular como “a justa reação da classe oprimida” e aponta que “a politização exige conquistas concretas; parte dos ganhos ligados ao reino da necessidade e dá um salto de consciência ao reino da liberdade”.

Observamos que o parecer jurídico, eleito como primeira tarefa da comissão, foi elaborado num esforço coletivo entre LUTAS, MARL e FLORES. Contudo, faz-se necessário realizar a crítica à comissão que, após a elaboração do parecer, não vislumbrou outras táticas de enfrentamento e construção permanente de articulação, o que resultou no afastamento dos membros do FLORES na realização das atividades programadas.

Fatores externos, determinantes na luta do Flores do Campo por moradia, também conduziram os moradores a outros objetivos prioritários e urgentes. Em novembro de 2017, foi organizada uma operação para reintegração de posse da área ocupada do residencial Flores do Campo, não concretizada devido à concessão de uma liminar que determinava a permanência dos ocupantes por um período de noventa dias, a fim de que o Poder Público apresentasse alternativa para destinação das quase 400 famílias. Com a iminência da reintegração, algumas lideranças deixaram a ocupação, tendo sido necessário um processo de reorganização dos moradores. Sendo assim, a luta popular do FLORES concentrou esforços em ações voltadas à comunidade e à luta por moradia.[39]

Já com relação ao MARL, durante todo o processo foi possível manter articulações conjuntas e paralelas no enfrentamento ao PE, realizando o diálogo através da participação de representantes do MARL nas reuniões da comissão e do LUTAS nas plenárias do MARL.

A última ação realizada, antes da finalização deste artigo, consistiu em um marco importante da luta política, ao reunir FLORES, MARL e LUTAS em Audiência Pública por Moradia e Regularização Fundiária, realizada na Câmara Municipal de Londrina, no dia 04 de abril de 2018.

Nesse momento, verificou-se a aglutinação das forças de resistência no que tange às ocupações urbanas, às possibilidades de regularização fundiária e, consequentemente, ao Projeto de Emenda. Surgiram falas dessas diversas demandas que, ao se interseccionarem, culminaram em um discurso coeso e alinhado, contemplando a luta dos coletivos para além de suas pautas específicas.

Conclui-se que processos de lutas populares podem ser ensejados a partir de ações frente ao Legislativo, desde que construídos de forma coletiva e com a consciência de classe como estratégia. Partindo desse pressuposto, o objetivo de impedir o projeto de emenda transformou-se em um objetivo tático, no decorrer do processo.

 Conclusão

Avaliando as ações desenvolvidas ao longo do processo de enfrentamento ao PE 02/2017, conclui-se que a atuação frente ao Poder Legislativo enquanto AJUP é viável, desde que realizada em conjunto com as organizações populares, diretamente afetadas pelo encolhimento de direitos que se dá por vias legais.

Destaca-se, entretanto, a pouca efetividade, até o momento, no que se refere à tramitação do projeto – que permanece em tramitação na comissão de redação e justiça da câmara sem data para votação -, mas, por outro lado, verifica-se o desencadeamento de outros processos importantes a partir dessa luta, como a mobilização e articulação dos movimentos populares com a AJUP em um processo coletivo de elaboração, tradução e socialização do conhecimento.

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Extensão universitária e o perfil profissional do bacharel em direito: correlações possíveis.[40]

 University extension and the professional profile of the bachelor in law: possibles correlations.

Raquel Cerqueira Santos[41]

Resumo: O Educação Jurídica há muito vem sendo traçada como uma espaço deficiente, anacrônica, conservadora, voltada para a reprodução do conhecimento, não tem conseguido preparar profissionais capazes de dar conta das importantes mudanças ocorridas na estrutura democrática do país, e da inserção de novos sujeitos coletivos que pleiteiam e constroem novos direitos. De viés liberal a educação jurídica, privilegia o caráter privatista, individual e unidisciplinar do Direito. A extensão universitária tem se mostrado nos últimos anos local privilegiado para o desenvolvimento de novas práticas, dos chamados “serviços legais inovadores”, e de um processo pedagógico único que permite a aquisição de novas habilidades por parte dos estudantes extensionistas. O presente trabalho, a partir de um estudo de caso desenvolvido com os profissionais egressos do Serviço de Apoio Jurídico da UFBA, pretende mapear quais as contribuições que a participação em um projeto de extensão pode trazer para a vida destes alunos já enquanto profissionais do Direito.

Palavras-chaves: Educação Jurídica. Extensão Universitária. Perfil Profissional.

 

 1.Introdução- Objetivos e Metodologia

            O texto aqui apresentado é proveniente de pesquisa realizada em trabalho de conclusão de curso e se relaciona a esta vivência extensionista desenvolvida no SAJU (Serviço de Apoio Jurídico) da Ufba.   As atividades desenvolvidas pelo projeto permitiram trânsito nos mais diversos espaços de discussão, acadêmicos ou gestados por sujeitos coletivos da sociedade civil. Dessa forma foi possível estabelecer parcerias com organizações não governamentais, associações, comunidades, movimentos sociais, secretarias governamentais, grupos de atuação institucionais, de forma que foi possível conhecer sujeitos, bacharelas e bacharéis em direito, que significam a sua prática profissional de forma diversa da dominante.

            Uma nova forma de pensar, discutir e produzir o direito é vivenciada cotidianamente na extensão universitária, espaço privilegiado da formação de cidadão comprometidos com a mudança social. O objetivo desta pesquisa é traduzir estas vivências, sentidos e impressões em linguagem minimamente objetiva. Para além dos efeitos sentidos no projeto estabelecido, quais são os impactos da experiência extensionista na formação do estudante de Direito? Seria possível considerar que tal experiência altera o processo de formação do profissional de Direito? Em que sentido? É possível concluir que a vivência da extensão possibilita a construção de novas práticas destes bacharéis em suas atuações profissionais? Se sim, em que medida estas práticas rompem ou coadunam com a manutenção do status quo?

            Tendo esta pesquisa se proposto a ser uma pesquisa no campo da sociologia do Direito, foi essencial buscar aporte teórico-metodológico em outras áreas das ciências humanas.Neste sentido que se incorporou a metodologia da pesquisa qualitativa, que nas palavras de Pedro Demo  surge como um esforço de objetivação de fenômenos e dados não objetivos, “esforço jeitoso de formalização perante uma realidade também jeitosa (1998, pág.101)” Com caráter essencialmente empírico a pesquisa qualitativa, privilegia “a informação interpretativa, da qual é necessário sempre duvidar e que precisa ser refeita. Esse tipo de dado é sobretudo ‘construído’, não apenas ‘colhido’ ”. (DEMO, 2001). De fato, conforme o mesmo autor:

A informação qualitativa não busca ser neutra ou objetiva, mas permeável à argumentação consensual crítica, dentro de meio termo sempre difícil de exarar: num extremo estará o questionamento de tudo sem que nada fique de pé; no outro, a crença fácil em tudo sem atinar para o implícito e o contraditório (DEMO, 2001, pág. 30).

            A categoria da “qualidade” também está presente na minha hipótese de trabalho. Entendo que boa parte dos bacharéis em direito que possuem uma vivência de extensão possuem ‘maior qualidade’, porque desenvolvem o exercício da autonomia, da ética em suas ações, da prática da democracia, estão envolvidos em processos de emancipação coletiva tendo sido educados no processo de “saber pensar pra melhor intervir”(DEMO, 1998, pág. 99)

            O desenvolvimento metodológico portanto, se deu em três etapas ou patamares de análise, desenvolvidas por Thompson e explicitadas por Pedro Demo em seu trabalho. A primeira etapa seria a de análise sócio-histórica,que busca situar o sujeito dentro do seu contexto histórico a segunda seria a de análise formal ou discursiva onde se pretende levantar dentro dos relatos os pontos em comum, as temáticas ou expressões recorrentes e a última seria a interpretação/reinterpretação etapa criativa onde há a construção dos possíveis significados extraídos das outras duas etapas

            O principal instrumento de pesquisa foi a realização de entrevistas abertas. Como tais, as entrevistas não possuíram um roteiro pré-concebido, mas foram desenvolvidas através de três grandes ‘eixos’ de questionamentos : a) qual era o contexto do ensino jurídico a época, em especial o contexto da Faculdade de Direito da UFBA, b) qual era a atuação do SAJU na época e em que esta experiência acrescentou ou inovou para a formação do aluno extensionista c) como tem sido a atuação profissional enquanto bacharel de direito, qual a trajetória profissional deste bacharel.

            Em uma tentativa de reconstruir o contexto histórico destes atores, os dados recolhidos na entrevista foram cruzados com outros documentos existentes (referenciados ou não durante as entrevistas); como atas, fotografias, cartilhas, textos produzidos pelos entrevistados enquanto estudantes; capazes de delimitar como se desenvolveu as trajetórias profissionais destas gerações de bacharéis desde o seu ingresso na Universidade até os dias atuais.

            A escolha dos entrevistados foi definida levando em consideração um recorte geracional. Tendo em vista que o tempo mínimo de formação do bacharel em direito é de 5 anos, e partindo da data inicial de 1994, foram escolhidos bacharéis que estejam inseridos dentro destas 4 gerações (de 1994 à 1999, de 1999 à 2004, de 2004 à 2009 e finalmente de 2009 à 2012).

            As entrevistas foram realizadas individualmente ou em grupo, e a escolha dos entrevistados levou em consideração a diversidade de ocupações exercidas atualmente e a diversidade de atuação dentro do projeto enquanto estudantes (grau de participação, em qual núcleo do projeto estava inserido, entre outros fatores). Outro critério para a escolha foram as indicações dos próprios entrevistados, que durante os relatos se referiam a pessoas que foram contemporâneas ou que de alguma forma foram referências durante a sua permanência no SAJU.

            Após a compilação e organização dos dados foi preciso tecer uma análise comparativa do processo pedagógico vivenciado por estes sujeitos enquanto estudantes em relação ao processo hegemônico que é desenvolvido nas faculdades de direito, e das suas práticas profissionais em comparação com o perfil hegemônico do profissional de Direito.

            Este artigo, se debruça principalmente sobre a terceira etapa descrita acima. Dessa forma ele enfocará as sínteses obtidas do conteúdo das entrevistas, tentando agrupá-las à partir

  1. Educação jurídica: um diagnóstico

            No ano de 2012, existiam no Brasil, em média 1240 cursos de Direito. Temos, portanto, cerca de 650.000 alunos de Direito no país, o que corresponde ao segundo maior curso em número de matrículas no ensino superior. Por ano, obtêm a graduação em Direito cerca de 100.000 bacharéis; no entanto, a média de aprovação no exame da ordem nos últimos anos gira em torno de 10% do total de candidatos inscritos. É este o cenário que nos apresenta os desafios de repensar o ensino do direito e a função do bacharel hoje (ASSOCIAÇÃO, 2012)

            Os primeiros cursos de Direito no Brasil são implementados logo após a independência do país, ainda no primeiro império7. A implantação de tais cursos se insere em um momento estratégico, onde a Coroa Nacional busca consolidar a independência, através da implementação de um aparato estatal próprio e do desenvolvimento de uma burocracia nacional. Os cursos de Direito, portanto, tem um papel central neste processo porque visam subsidiar a formação de burocratas e políticos capazes gerir o novíssimo Estado Brasileiro.

            Conforme aponta Sérgio Adorno em seu livro “Aprendizes do Poder”(1988) o liberalismo, em suas facetas econômicas e políticas, foi a ideologia de fundo que permeou a formação dos futuros bacharéis em Direito. Cabe ressaltar, no entanto, que no Brasil do início do século XIX, o liberalismo ganha nuances próprias, conseguindo conviver com o latifúndio e a escravidão.Era um liberalismo de homens, brancos, livres e proprietários.

            Sérgio Adorno chama a atenção para o fato de que a formação profissional desenvolvida no Curso de Direito da Faculdade do Largo de São Francisco (hoje integrante da Universidade São Paulo), em seus primórdios, pouco se relacionava com as Ciências Jurídicas propriamente ditas. O autor chega a conclusão que a formação do bacharel em Direito ocorria muito mais fora das salas de aula, nos inúmeros periódicos publicados pelo alunado da época; estando diretamente imbricada com o desenvolvimento de habilidades políticas, da argumentação, da fala e da escrita, num processo de “profissionalização do político”. Não se buscava essencialmente, portanto, a formação de juristas, mas a formação de políticos.(ADORNO, 1988)

            Este é também um ponto crucial para entender a que e a quem se destinava a formação em Direito na época. Em uma nação que acabava de se tornar independente, e em que a imensa maioria da população era analfabeta[42], os cursos de Direito ficaram responsáveis por formar a intelectualidade política do país, vindos da classe dos latifundiários ou da incipiente burguesia urbana, os bacharéis em direito eram do sexo masculino, dominavam a leitura e a escrita[43], e seriam os homens públicos do império brasileiro. Os cursos de Direito,portanto, não se pretendiam, nem ao menos em tese, a se constituírem enquanto espaços democráticos, conforme Sérgio Adorno:

Ao privilegiar a autonomia da ação individual em lugar da ação coletiva; ao conferir primazia ao princípio da liberdade em lugar do princípio da igualdade; e ao colocar, no centro no centro de gravitação do agir e do pensar a coisa política, o indivíduo em lugar do grupo social, o jornalismo acadêmico proporciona condições para promover um tipo de político profissional forjado pra privatizar conflitos sociais, jamais para admitir a representação coletiva. Um político liberal; seguramente, não um democrata.(ADORNO, 1988, pág. 239-240)

            O paradigma liberal continua perpassando as diretrizes dos cursos de direito ao longo dos anos, apresentando no entanto nuances a depender dos contextos políticos específicos do país em cada momento histórico.

            Na história recente do país esse quadro se agudiza no contexto histórico da ditadura militar que com a Reforma Universitária de 1968, altera significativamente o currículo dos cursos jurídicos no país. Há um predomínio das disciplinas dogmáticas, a concentração das disciplinas crítico-reflexivas na disciplina de ‘Estudo dos Problemas Brasileiros’, além, obviamente do controle exercido pelo regime ditatorial sobre as Universidades Brasileiras.

            Este quadro que mina a capacidade crítica das ciências sociais aplicadas e supervaloriza a formação tecnicista no campo do Direito só vem a sofrer pequenas alterações durante a “dissensão lenta e gradual” do regime militar, no final da década de 1970 e década de 1980, quando novos sujeitos coletivos conseguiram ter o mínimo de espaço para se articular democraticamente, e começaram a pleitear, entre outras pautas a democratização do Estado brasileiro. Segundo José Eduardo Faria:

Um terceiro efeito, não menos importante, foi o tipo de conduta adotada por esses novos movimentos e associações, rejeitando as relações hierárquicas impostas pelas ordens econômicas, política e jurídica em vigor, enfatizando o envolvimento e a participação dos cidadãos a partir de valores comunitários de forte conotação ideológica e um certo conteúdo utópico, descobrindo a importância de um uso “alternativo” do direito vigente e valorizando estratégias inéditas de articulação, mobilização e socialização dos grupos e das classes subalternas nos espaços coletivos da vida cotidiana e quase sempre fora dos marcos institucionais estabelecidos pela Constituição. (FARIA,1992 )

            É neste contexto que uma parcela dos pensadores da Ciência Jurídica se insere dentro do campo da Sociologia Jurídica e passam a recolher dados, discutir e analisar o perfil do profissional de Direito. Alguns destes teóricos se situam dentro de um campo teórico, o chamado Direito Alternativo10. Há um esforço de sistematização do que viria ser o bacharel em direito no Brasil, bem como de delimitação das características das instituições do sistema de justiça do país.

            Com o processo constituinte e a posterior promulgação da Constituição de 1988, o Direito passa a figurar novamente com certa centralidade nos debates políticos e sociais. É neste contexto que nos 1990 emergem inúmeras tentativas teóricas ou mesmo no campo da representação profissional (no âmbito da OAB, por exemplo), de repensar as bases da ciência jurídica e as diretrizes dos cursos de direito no país. Pode-se destacar portanto tanto as reflexões teóricas que desembocam na produção das obras no âmbito da coleção “OAB- Ensino Jurídico”, promovidas pelo Conselho Federal da OAB, como a produção normativa sobre o assunto, com destaque para a Portaria 1.886 editada pelo MEC em 1994.

            De lá pra cá presenciamos alterações importantes no contexto dos cursos jurídicos no país. Dentro de um cenário que conjuga uma consolidação (pelo menos a nível formal) da democracia, e um processo de mercantilização do ensino superior, com reflexos na explosão do número de cursos de direito do país, foi necessário repensar, o papel que desempenha o ensino jurídico na sociedade brasileira. É neste sentido que se apresentam algumas iniciativas, por parte do Ministério da Educação e da Ordem de Advogados do Brasil de estabelecer diretrizes pedagógicas e curriculares para os Cursos de Direito.

            Em 2004 o MEC Edita a Resolução CNE/CES nº 9 que reelabora o currículo dos Cursos de Direito implementando diretrizes importantes (BRASIL, 2004). Um ano depois o Ministério da Educação estabelece parceria com a Ordem dos Advogados do Brasil para a fiscalização dos cursos de graduação em Direito nas Instituições de Ensino Superior no país. Se tais iniciativas tiveram sua importância, é preciso apontar as suas limitações. As últimas construções teóricas elaboradas neste sentido, pouco avançam além de propostas de reformulações curriculares.

            Por outro lado, a institucionalização do exame da ordem, a estrutura da prova, e os níveis de aprovação insinuam uma política coorporativa, centrada no debate da reserva de mercado.1 Dialeticamente, a última década presenciou o surgimento pontual de novas propostas para direcionar o ensino do direito no país. Se por um lado – a nível estadual- a Bahia passa a contar com Universidades Estaduais que inserem novas perspectivas no currículo dos seus cursos12, por outro, emerge um projeto pedagógico, encabeçado pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas que direciona a formação do estudante para as necessidades de mercado e/ou para a aprovação nos concursos públicos.

            Se através deste panorama histórico percebem-se as diversas concepções que o ensino jurídico teve no país, ainda assim é possível apontar inúmeras linearidades acerca da estrutura dos Cursos de Direito no Brasil.

            O modelo de ensino jurídico sempre foi idealista. Mesmo as duas correntes principais da filosofia do Direito, que embasaram o ensino jurídico e que durante muito tempo se estabeleceram enquanto correntes antagônicas (quais sejam o jusnaturalismo e o positivismo), tem suas premissas baseadas em conceitos ideais.

            Se por um lado o jusnaturalismo propõe um Direito universal, atemporal e a histórico baseado nas leis da natureza ou divinas, o juspositivismo se concentra em analisar os métodos de produção e aplicação da norma, ou seja o processo lógico-formal (e também ideal, porque desenvolvido no campo das idéias) de subsunção da norma  ao fato.

            Surge daí talvez a primeira característica marcante que os cursos de Direito assumiram no país: o seu alheiamento aos conflitos inerentes à dinâmica social. Ao revestir os acontecimentos da vida de um caráter estritamente jurídico, a metodologia normativo-positivista extirpa da realidade social os inúmeros outros fatores que compõem tal acontecimento. Se por um lado é correto dizer que toda ciência, e principalmente as ciências sociais, escolhem um enfoque sobre o qual deverão observar o objeto, diante da incapacidade de abarcar toda a complexidade do real, no Direito, no formato em que se apresenta o ensino jurídico hoje, não se trata de uma questão de enfoque, mas de total afastamento da realidade

La falta de un análisis epistemológico a nível de educación provoca la aparición de un conjunto de soluciones abstractas, fragmentarias e aisladas de lo social, sin ninguna correlación con las situaciones reales e inoperantes para cualquier proceso de transformacíon, sin niguna posibilidad de integra el esfuerzo intelectual a un sistema más amplio de reordenación. (WARAT,1974, pág.365)

            Sendo assim, nos moldes do ensino jurídico tradicional, não é que haja uma tentativa de analisar os conflitos sob uma ótica jurídica, e por isso, como em qualquer campo do conhecimento, se produza uma análise limitada da realidade. O fato é que não há nem a pretensão da análise de um conflito real. Todas as operações são feitas através da lógica formal, sendo o pano de fundo “casos concretos” hipotéticos, que propositadamente eliminam toda e qualquer  conflituosidade. Isto quando o objeto de estudo não se resume a glosa das leis e da jurisprudência dos tribunais.

            Os processos de disputa política presentes em qualquer conflito real, seja ele coletivo ou transindividual, não são abarcados enquanto objeto de estudo do direito. O mesmo ocorre com aos diversos outros fatores que interferem diretamente na constituição do conflito, ou até mesmo na forma com que ele é encarado pelo judiciário (relações interpessoais, fatores psicológicos, econômicos, de gênero e raça) , todas essas facetas não só não fazem parte do objeto de estudo do direito, como sua própria existência é negada, através do postulado da igualdade perante a lei.

            Tais perspectivas possuem influência direta sobre como se estruturam os cursos de Direito no Brasil. Vasta é a bibliografia acerca da estruturação dos cursos jurídicos, e elas incluem desde perspectivas acadêmicas, análise teóricas com proposições críticas, proposições que partem da entidade de classe profissional (OAB),até mera proposta de alteração curricular. Todos estes pontos de vista, no entanto, parecem convergir na constatação das enormes deficiências do ensino jurídico.

  1. Experiência extensionista e perfil profissional: o que é possivel correlacionar?

           A partir desta análise/diagnóstico da estrutura do ensino jurídico no Brasil, as entrevistas com os profissionais foram guiadas buscando perceber as continuidades/descontinuidades que a participação em um projeto de extensão provocaram na sua formação profissional.

            Conforme metodologia já explicitada, foram realizadas entrevistas abertas que possibilitaram a estruturação de algumas categorias de síntese aqui apresentadas. Para delimitar estas categorias, alguns critérios foram importantes: o primeiro deles é a recorrência de determinadas características no grupo de entrevistados, ou seja, comportamentos ou percepções acerca da vivência profissional que se mostraram recorrentes nos entrevistados, ainda que exercendo profissões diferentes, ou que oriundos de gerações diversas de formandos.

            Outros parâmetros também foram delineados a partir de leituras acerca de quais deveriam ser, idealmente, as habilidades desenvolvidas por um jurista dentro da sua formação de ensino superior, ou seja qual seria o perfil geral esperado de um profissional de Direito hoje. As leituras a que me refiro partem basicamente de dois textos essenciais: o primeiro são as normatizações do MEC (Ministério da Educação) , acerca dos cursos jurídicos do país, e de quais devem ser as prioridades pedagógicas, bem como qual o perfil esperado do egresso: mais especificamente retomo a Resolução nº9 de 2004, que afirma:

Art. 3º- O curso de graduação em Direito deverá assegurar, no perfil do graduando, sólida formação geral, humanística e axiológica, capacidade de análise, domínio de conceitos e da terminologia jurídica, adequada argumentação, interpretação e valorização dos fenômenos jurídicos e sociais, aliada a uma postura reflexiva e de visão crítica que fomente a capacidade e a aptidão para a aprendizagem autônoma e dinâmica, indispensável ao exercício da Ciência do Direito, da prestação da justiça e do desenvolvimento da cidadania.(BRASIL, 2004)

Do texto normativo ressalto três características esperadas do egresso da graduação em Direito que serão utilizadas como parâmetro: a) “formação geral humanística e axiológica”- considerado neste trabalho enquanto desenvolvimento do sentido humanitário e da ética , b) “adequada interpretação e valorização dos fenômenos jurídico e sociais, aliada a uma postura reflexiva e de visão crítica”- considerada em termos de uma maior capacidade no diagnóstico de problemas ao perceber que o jurídico é transpassado por uma série de outros fatores sociais, inclusive o político e c) “aptidão para a aprendizagem autônoma e dinâmica” – visualizada como o exercício da autonomia, tanto no processo educacional, quanto nas práticas cotidianas.

            A segunda são as reflexões desenvolvidas por Roberto A. Ramos de Aguiar (2004) em que o autor delineia, num imenso conjunto de habilidades possíveis, quais aquelas que seriam importantes para o jurista atual, bem como aponta, em contraponto, quais tem sido as tendências pedagógicas seguidas pelas atuais escolas de Direito.  Roberto Aguiar, por sua vez, ressalta inúmeras habilidades que ele acredita essenciais para o exercício jurídico. Neste sentido ele coloca a necessidade de desenvolver habilidades como a habilidade de dialogar, de ser curioso, de entender o mundo ao outro e a si mesmo, de ler e redigir; de entender, interferir e solver conflitos, etc. Entre as várias habilidades listadas, ressalto duas que se mostraram muito presentes nas entrevistas e serão estabelecidas enquanto comparativos: a) a habilidade de saber operar com as técnicas jurídicas tradicionais, b) e a habilidade de agir e pensar multidisciplinarmente.

            Por fim, as outras categorias de análise elegidas, derivaram diretamente da freqüência com apareceram nos relatos desenvolvidos, estando presentes nas narrativas de entrevistados de gerações diferentes e que exercem profissões diversas. São elas: a)proximidade com os sujeitos coletivos; b) capacidade de trabalhar em grupo, c) prática da democracia, com o sentido de desenvolvimento da participação e do diálogo.

            Nesse sentido foi possível elencar oito categorias comparativas para analisar as práticas profissionais desenvolvidas pelo grupo estudado.A síntese das entrevistas permitiu apontar que dentro da experiência extensionista, na análise desta amostra de bacharéis, se desenvolveu um processo educativo que propiciou ao estudante e posteriormente ao profissional: a) o exercício da autonomia em contraponto com uma educação paternalista e bancária; b) a proximidade com sujeitos coletivos em contraponto com uma formação liberal individualista que vê o direito sobre a perspectiva de problemas individuais; c) a prática da democracia, com o sentido de participação e diálogo em contraponto com uma prática autoritária da sala de aula e das instituições jurídicas (e sociais em geral); d) ter uma maior capacidade no diagnóstico de problemas ao perceber que o jurídico é transpassado por uma série de outros fenômenos, inclusive o político em contraponto com a perspectiva dogmática que tenta expurgar do Direito as outras manifestações da vida e) o desenvolvimento do sentido humanitário em contraponto com uma formação que não privilegia a ética; f)o desenvolvimento da capacidade de trabalhar em grupo em contraponto com a prática educacional que privilegia o aprendizado individual; g) o domínio de técnicas jurídicas tradicionais, na perspectiva de discussão e reconstrução destas técnicas; h) uma visão interdisciplinar, em contraponto com uma formação jurídica monodisciplinar.

  1. a) Desenvolvimento do sentido humanitário e da ética

            A vivência em um projeto de extensão, e o contato direto e constante com os sujeitos envolvidos desperta no estudante um olhar direcionado a compreensão das questões do outro.Esta é uma visão muito marcante na perspectiva do trabalho desenvolvido no núcleo de assistência[44]

            Ao relatar este aspecto, diversos entrevistados colocaram que o processo educacional vivido na instituição os levaram a priorizar condutas voltadas a transparência51, a sensibilidade aos problemas alheios e a valorização da dimensão humana nos diagnósticos e decisões.

Primeiro de ter mais sensibilidade. Sensibilidade com as pessoas. Sensibilidade no dia a dia. O contato das atividades de extensão com a sociedade, embora a gente ressalve um contato com a área sindical, dá uma outra dimensão da vida. O primeiro é que dá sensibilidade né, lembrar o básico que as vezes não aparece, que as pessoas tem dificuldades, tem sentimentos, nos processos não são somente o interesse econômico, é um problema de ordem social, um problema de ordem psicológica. Ouvir, ouvir sempre, ouvir mais. Por que é uma das formas de, primeiro, ser ouvido e ouvir o outro, estabelecer contato, e de fato uma relação dialógica. Isso eu tento fazer nas audiências. Adoro ouvir as partes.(M.C.S.O, 2013)

Mais do que uma previsão burocrática, da presença curricular das disciplinas de ética geral e/ou profissional, o compromisso ético é um elemento estruturante do processo educacional. Existe a grande dificuldade em incorporar no dia-a-dia do estudante práticas e que apontem para o horizonte de concretização dos valores humanitários. Pouco vale a especialização e refinamento técnico sem um compromisso ético com a sociedade que se quer construir. O que existe é uma postura política diferenciada. Um olhar diferenciado do profissional. E hoje minha militância no campo da prática jurídica , como professora, docente, é justamente fazer com que meus estudantes tenham esta reflexão também. Quer ser advogado? Que tipo de postura devemos ter com o cliente nosso, a pessoa que nos procura, o limite da nossa atuação, o limite da nossa

atuação ética.(A.A.M, 2013)

            As questões acerca da ética profissional deixam de se estruturar apenas enquanto discurso teórico e passam a pautar de forma prática as experiências do estudante, trazendo concretude a um tema que muitas vezes é tratado de maneira abstrata e universalista.

  1. b) Maior capacidade no diagnóstico de problemas ao perceber que o jurídico é transpassado por uma série de outros fatores sociais, inclusive o político.

            A experiência extensionista desenvolvida dentro do SAJU propicia uma nova forma de aprendizado acerca dos fenômenos jurídicos. A primeira grande diferença entre o processo pedagógico desenvolvido predominantemente nas salas de aula e como este processo tem sido desenvolvido dentro da extensão, é a própria definição do objeto do conhecimento jurídico.

            Na análise dos entrevistados uma das primeiras diferenças percebidas entre o SAJU – seja no âmbito do núcleo de assistência, seja no âmbito do núcleo de assessoria- e a sala de aula, é a possibilidade do contato direto e prático com problemas reais. Segundo entrevistada, a experiência no núcleo de assistência: “É uma experiência muito boa. Tem um lado muito bom. Porque de uma lado você de fato vê a realidade. Agente vive, de certa forma, dentro de muros em toda vida. Então você começa lidar com problemas reais.”

            Dessa forma temos o deslocamento de um processo pedagógico, em sua forma hegemônica, desenvolvido de maneira plana, através do exposição de conceitos e encadeamento de idéias, para um processo de aprendizagem onde o estudante se depara com uma situação problemática, de geometria poligonal, com diversas dimensões arestas e vértices articuladas e articuláveis no mesmo objeto. Nesse sentido, o aluno tem que desenvolver a capacidade de articular ao mesmo tempo diversos fatores, seja de ‘ramos’ diversos do direito, seja de conhecimentos que transcendem o âmbito das disciplinas jurídicas propriamente ditas.

            Ao se deparar com um caso concreto de posse sobre uma do estudante extensionista é exigido que seja capaz não só de manejar os conceitos de Direito material ou processual, mas também , que saiba perceber os limites da atuação estritamente processual, avaliar as correlações de forças envolvidas naquele  despejo e manejar estratégias no âmbito político para a resolução daquele problema.

Qual era a situação: Eles eram moradores de uma região lá do Uruguai próxima do rio. Era um aterro na verdade, no meio do rio. e a prefeitura estava desalojando eles de lá. A prefeitura não o Estado,iam fazer uma obra lá. Então eles estavam ali porque não tinham pra onde ir, não tinham o que fazer e tavam ali pra ver o que é que poderia ser feito.[…]

E aí a gente foi pegar tal, mas foi pegar com os olhos de assistência. Com os olhos judiciais da coisa. E aí a gente começou a pesquisar a situação, a gente foi lá, teve contato com eles, fez uma assembléia lá com o pessoal, que foi muito bacana, mas a gente bateu com a cara na parede do tipo: “Tá, beleza, eles tão lá, o governo tá querendo tirar eles. Eles são donos do espaço? Não. A posse deles é lícita? Não.Espaço público, na verdade espaço aterrado inclusive, até ambientalmente a posse deles é errada. Tem alguma chance da gente entrar com a demanda pra resolver o problema? Não.” Não tinha chance. Qual é a resposta?A gente vai chegar pra eles e dizer: “olha, vocês estão errados, arrumem um lugar pra vocês irem e se virem.” Aí que surgiu a idéia de “não, vamos fazer diferente, vamos tentar conversar com a prefeitura, vamos tentar mediar a situação.” (F.O.C.,2013)

            Mesmo se retratarmos um caso de cunho aparentemente individual, o contato direto com a situação enquanto problema e não enquanto narrativa, exige que o estudante necessariamente historicize e complexifique a realidade que lhe está posta.  Além disso o estudante tem que lidar não só como a dinâmica dos ‘casos’, mas inclusive com a realidade e as significações adquiridas pelos sujeitos que passam a integrar este conjunto, como a dinâmica interna do próprio SAJU, do Poder Judiciário, da Defensoria, etc. Ele deixa de estar diante de uma imagem linear dos fatos, onde os sujeitos e interesses estão bem delimitados, e passa a ingressar uma cadeia de relações que envolve um leque de atores, cada um deles com interesses diversos e muitas vezes contraditórios entre si.

            E neste processo, o próprio aprofundamento teórico é demandado a partir das exigências práticas, e adquire uma nova significação no repertório educacional do estudante.

Pergunta: Como foi tua atuação na assistência? Porque assistência

lida mesmo com processo,

Resposta:O que é que acontecia, quando eu falo do tal desse estranhamento… Eu estudava pra Processo Civil. Eu odiava Processo Civil. Achava a coisa mais chata do mundo Processo Civil. Mas, quando eu via um problema concreto, que eu tinha que achar uma solução, e essa solução passava pelo Processo Civil, eu tinha um estímulo grande pra estudar o assunto. Eu aprendia mais quando eu tinha que estudar pras causas do SAJU do que na aula mesmo. Na aula era chato, simplesmente, nesse caso era aquele chato mas, um chato necessário. E quando é um chato necessário tem a diferença do prazer de chegar a conclusão que também é, termina sendo, compensatório também. (R.X, 2012)

            Como resultado temos profissionais com uma visão alargada do que venha a ser o fenômeno jurídico e de qual venha a ser o objeto de trabalho do bacharel de direito. Profissionais que aprenderam a raciocinar de forma não apenas linear, e que conseguem perceber quais os outros fatores da estrutura social imbricados na situação fática posta a sua frente.

Pergunta:Você se entende um advogado diferente?

Resposta:Eu acho que eu tenho uma…são vários níveis desse processo de exercício do Direito. Como eu advogo pra um escritório público, pra todo mundo e tal, então nestes espaços eu sou um tanto quanto igual a todos os outros advogados; com a diferença que eu consigo ver relações da natureza social das questões muito mais aprofundadamente do que um colega meu, e dar valor a isso. Então por exemplo, ações de família e etc, eu sempre procuro negociar, ver o outro lado, ter esse tipo de negociação, esse processo de convencimento político, que eu acho que é muito forte. Até nestes processos comuns acaba trabalhando a dimensão política do processo de você ir conversar com o promotor, ir conversar com o juiz, pra politizar a coisa e não trabalhar na lógica da técnica, mas trabalhar nos elementos políticos que estão envolvidos aí, na dimensão social, na dimensão humana, enfim nestas questões. (I.F.X.M, 2013)

            Ser capaz de analisar, entender e intervir sobre estas nuances é constituir-se enquanto profissional atento a realidade ao seu redor, e enquanto sujeito político. É esta, em grande parte, a perspectiva que a experiência extensionista possibilita ao estudantes : um ponto de vista que coloca o Direito como um campo maior que o judiciário e que politiza o objeto jurídico.

  1. c) Exercício da autonomia

Um dos princípios basilares do SAJU é o fato de se tratar de uma iniciativa essencialmente estudantil, onde as etapas de concepção estruturação e desenvolvimento do trabalho são capitaneadas pelos estudantes integrantes do grupo em cada momento histórico.

            Somado a este fator a estrutura organizacional do SAJU é pautada pela horizontalidade, de maneira que não se estabelece uma relação vertical entre os integrantes mais novos e mais antigos, nem entre os estudantes e os profissionais que integram o espaço (advogados monitores e técnicos colaboradores)

            Sobre estas premissas se construiu ao longo do tempo uma prática de atuação, aonde se coloca como central a figura do estudante e as suas próprias iniciativas no processo de aprendizagem.

Na assistência eu devo ter ficado o que, um ano, um ano e meio, três semestres, atuando ali a frente da assistência no plantão, e assim, foi uma experiência muito rica, porque era diferente dos escritórios de advocacia onde a gente estagiava. A gente tinha total autonomia na condução do processo. O que significa isso, a gente que tinha que controlar o prazo, a gente tinha que fazer a leitura do diário oficial todo dia pra ver, a gente tinha que entrar na internet pra ver o acompanhamento do processo, semanalmente a gente tinha que ir no fórum pra ver como estavam os processos, era a gente que ligava. Então toda a iniciativa de condução daquele processo era nossa. Então, isso era muito rico.(A.A.M., 2013)

Por isso tanto no núcleo de assistência, quanto no núcleo de assessoria as relações entre os estudantes e os eventuais profissionais envolvidos no projeto se deram na base do profissional “monitor” ou da figura do “técnico-colaborador”. Desta forma a figura do bacharel em Direito é sempre uma figura auxiliar, de acompanhamento e não de detentor das respostas.

E eu tinha uma idéia enquanto estudante, que mantive enquanto monitor,que o SAJU, não era, era o diferencial, é de que não era o advogado que dizia o que é que você tem que fazer. Eu enquanto estudante não trabalhava pra o advogado, muito pelo contrário até na verdade, se fosse alguém que tinha o que dizer lá eram os estudantes. Quando eu virei monitor, como eu tinha sido estudante antes, e pelo tempo que eu fiquei assumi uma certa, tinha uma certa liderança natural, pelo tempo que eu fiquei, então as pessoas queriam muito que eu solucionasse as coisas. “Ah, o que é que a gente tem que fazer aqui?”” Como é que a gente vai organizar o plantão?” Eu dizia: “Rapaz, não sei, vocês que sabem. Não faço a mínima idéia, vocês que tem que dizer.” (R.X, 2012)

            Os estudantes dirigem todo a dinâmica de funcionamento do SAJU, desde o estabelecimento do horário de funcionamento dos plantões de assistência, o controle de prazos no processo judicial, até os rumos que terão o trabalho com determinado movimento social. Esta perspectiva de trabalho destoa do perspectiva tradicional da sala de aula, onde hegemonicamente a educação ganha um caráter paternalista e bancário, centrada na figura do professor, responsável por determinar e guiar todos os contornos do curso que leciona.

            Têm-se portanto, um cenário centrado na autonomia do estudante, que passa a assumir responsabilidades sobre as atividades que deverão ser desenvolvidas, e desenvolve a prática da busca própria pelo aprendizado. Diferente de outros espaços práticos como os NPJ’s dos cursos de direito, as linhas do aprendizado não são determinadas pelo professor/monitor:

            Ao se deparar com um problema concreto o estudante inicialmente passa por um processo de pesquisa individual para buscar respostas para a situação posta, coletiviza os resultados com os seus colegas de grupo e só depois recorre ao auxílio do monitor/colaborador.Estas experiências desenvolvidas no seio da extensão são transpostas para as experiências profissionais dos entrevistados, inclusive nas discussões acerca do ambiente hierarquizado estabelecidos nos ambientes de trabalho.

E eu não sei lidar com chefia. Esse talvez seja um efeito colateral. Eu não sei ser chefe. E eu não sei estar na posição de chefiado numa forma tranqüila. Eu me acostumei a lidar com a idéia de chefia da forma que eu lidava com a idéia de coordenação. O chefe é aquele que organiza. É aquele que está ali pra organizar o trabalho das pessoas e facilitar a comunicação das pessoas, e não necessariamente pra dar a ultima palavra ou pra ter a palavra decisiva. Mas isso é um problema. (F.O.C., 2013

            Há portanto um incentivo a prática do aprendizado autônomo por parte dos estudantes, estabelecendo uma relação que se baseiam nas figuras do “professoranimador” (no caso específico ‘monitores-animadores’), e do aluno-pesquisador, responsável ele próprio pelos rumos do seu processo educativo. É neste sentido que aponta Álvaro Melo Filho ao identificar que para superar os desafios pedagógicos dentro do direito é necessário que os métodos de ensino agucem o raciocínio jurídico e desenvolvam a autonomia intelectual (OAB, 2000). Defende ainda que:

Por isso é de suma relevância que as figuras do professorinformador e aluno-ouvinte sejam substituídas pelo professoranimador e aluno-pesquisador, pois o problema fundamental da pedagogia jurídica é muito mais uma questão de consciência do que de conhecimento. (FILHO, 2000). (grifos no original)

 1.d) Habilidade de saber operar com as técnicas jurídicas tradicionais

Este talvez seja o ponto mais controverso dentro de um processo de formação baseado na extensão enquanto pilar central. Em algumas das narrativas a busca pelas ações extensionistas estava relacionada a um “estranhamento” em relação ao ambiente da Faculdade, e a uma recusa a visão hegemônica do Direito.

            Para alguns egressos , portanto, isso significou durante a graduação uma negação a dogmática jurídica, e muitos deles não priorizavam o ensino em sala de aula, questionando inclusive a própria validade do Direito.

            No entanto, pela proximidade de sujeitos que tem uma certa fragilidade social, e que demandavam juridicamente o grupo, estes alunos necessariamente tinha que aprofundar algumas questões teóricas tendo em vista que as teses hegemônicas no Direito eram conservadoras ou reacionários. Era necessário portanto construir teses de enfrentamento, e base técnica/teórica de desconstrução/reconstrução do Direito posto.

            Este fato inclusive recebe diversas interpretações pelos participantes, muitas vezes divergentes, a depender do contexto, das perspectivas pessoais e da geração em que estavam inseridos. Alguns apontam as deficiências inclusive da formação técnica oferecida pela Faculdade, a questão não girava em torno só do desinteresse do aluno pelos conteúdos ditos “dogmáticos”, mas sim da mediocridade com que estas disciplinas eram desenvolvidas dentro da Faculdade de Direito, onde predominava e ainda predomina estilos de aula e de avaliação que incentivam a “cultura do caderno”.Outros, em contraponto, apontam a centralidade de saber manejar também as técnicas jurídicas tradicionais, principalmente pela escolha política de atuar no Direito ao lado da parte que “já entra perdendo na sala de audiência.”

Eu assistia aula de processo civil. […] É aquela coisa. Havia algumas aulas que a gente filava pra caramba mas assistia alguma que a gente considerava importante. Por exemplo: processo civil. Por que, é sério. Por que a gente acha que tudo que é coisa da técnica, que é positivista e tal, não é importante. Mas eu acho que é. Por exemplo, se a gente quer ser advogado como é que a gente faz a b… de um curso de processo civil na faculdade de direito e vai ser advogado depois de movimento social? Se a gente precisa saber processo civil mais que o advogado do latifundiário, advogado do fazendeiro, advogado do empreiteiro. Precisa saber mais que eles pra poder dentro do direito conseguir fazer alguma coisa. Então, eu não sou da tese que “vamos esquecer o direito positivo” e vamos fazer militância […] Tem que saber processo civil. Processo civil é fundamental. (J.S.B, 2012)

De forma geral no entanto, os profissionais ressaltam a necessidade de dominar as técnicas jurídicas tradicionais; tanto para usar como instrumento de defesa das organizações populares, quanto para possibilitar a sua discussão e desconstrução.

Mas a grande maioria dos professores, eu acho que a gente não tinha uma identificação, assim, a gente não se enxergava naquele direito que era colocado e aí fazia com que a gente investisse muito nesse Direito Crítico. Assim mesmo que a gente estudasse o direito material, mas a gente fazia uma releitura do direito material. Tanto que esse trabalho que a gente fez no Núcleo de assessoria dos Juristas Leigos ajudou muito a gente, porque a genteteve que fazer uma discussão de cada um dos direitos. Do Direito Penal, a gente discutia o módulo do Direito Penal, então a gente ia: “mas isso aqui, a gente vai discutir isso aqui com as pessoas da comunidade, mas isso aqui tem sentido?isso aqui é justo? a gente acredita que isso aqui deveria existir? deveria, não deveria?”.Então a gente fazia uma releitura mesmo de tudo que a gente tava vendo na faculdade a partir dos módulos mesmo do próprio juristas e do que a gente discutia lá, com os próprios cursistas. E isto era muito legal, ajudou muito na formação que a gente teve.”(L.E.K, 2013)

  1. e) Habilidade de agir e pensar interdisciplinarmente

A interdisciplinaridade é um fator muito forte em todas as gerações. Quase todos os entrevistados atuam de forma interdisciplinar, seja através dos projetos que desenvolvem na sua vida profissional, seja por terem incorporado um referencial  teórico que extrapola os limites do Direito.

            Os trabalhos desenvolvidos dentro do núcleo, exigiram no desenvolver dos seus processos a necessária relação com outras disciplinas para além daquelas incluídas no currículo regular do curso de Direito. A complexidade dos temas envolvidos nos projetos, exigiu por parte do grupo a apropriação de conceitos desenvolvidos em outros campos do saber.Resta muito presente nestes profissionais a noção de que os problemas nunca são só jurídicos, e que portanto é preciso se apropriar de conceitos desenvolvidos fora do Direito. O primeiro grande campo do conhecimento externo ao Direito que foi incorporado nas atividades do SAJU, principalmente no núcleo de assessoria do projeto, foi o campo da Educação. Este inclusive é o grande eixo vertebral que perpassa as atividades do núcleo desde a sua fundação até os dias atuais: os trabalhos na perspectiva da educação em direitos, e mais especificamente de uma educação jurídica popular.

            O grupo portanto, apropria-se de forma aprofundada das teorias desenvolvidas por Paulo Freire e sua perspectiva de educação popular, articulando-a com a perspectiva de educação em direitos. Este talvez seja o grande referencial teórico presente em todas as gerações. A leitura e discussão das obras de Freire e a construção de oficinas (seja nas atividades externas com as comunidades, seja nas atividades internas de formação do próprios integrantes como as capacitações), tornam-se a grande marca identitária do SAJU.

            As  leituras coletivizadas de outras temáticas também se mostraram uma constante em todas as gerações analisadas. A noção da limitação do direito diante das demanda apresentadas requereu uma ampliação, inclusive do repertório teórico destes estudantes, que se aproximaram também da sociologia, da ciência política, e de outros ramos das ciências humanas.

            Este contato com outros ramos do saber teve algumas influências mais diretas nos rumos profissionais destes atores, tanto que alguns deles mesmo não saindo do campo do direito buscaram inserção profissional em outras áreas do conhecimento.Como exemplo portanto temos bacharéis em Direito que atuaram enquanto educadores populares, que fizeram mestrado em arquitetura, ou em direito e sociologia.

            Mais do que a aproximação teórica com outros campos dos saber – que também se mostra importante nas escolhas profissionais posteriores dos sujeitos, se individualmente consideradas – o que as entrevistas apresentam de essencial é a habilidade de trabalhar com conceitos e categorias desenvolvidas fora da abrangência do Direito e de conjugar esforços, se articulando com outros ramos do conhecimento.

A isso se chama de passivo ambiental. Como é que a gente poderia repor? A gente trabalha com serviços ecossistêmicos perdidos. Mas não existe uma metodologia única. A gente tá criando umas aqui, a partir das tipologias de dano, trabalhando com todo setor. Nessa consultoria tem economista, tem contador, tem sociólogo, tem biólogo, tem agrônomo, tem todo mundo. A gente tá discutindo as metodologias possíveis, incluindo as metodologias que valorizem os impactos sociais, assim, que conheça os impactos sociais e que também tentem buscar reparações. Estamos criando uma teoria nova, de compensação por equivalente social, porque nunca se inclui na busca de reparação social, por exemplo, os pescadores.(L.E.K, 2013)

            Para uma das entrevistadas, se referindo a seu ambiente de trabalho:

“E um outro ponto que pra mim é bem gratificante que é a questão de você sair do mundo jurídico. É um outro mundo. A gente lida com pessoas de todas as formações. São colegas de todas as formações. Temos colegas arquitetos, sociólogos, músicos, engenheiros…”

(C.G.G.S, 2013)

            Nos deparamos, portanto com um bacharel que detém um repertório teórico mais amplo e para além disso, consegue articular-se melhor com outras disciplinas instrumentalizando-se de forma mais efetiva para o seu desenvolvimento enquanto profissional.

  1. f) Proximidade com os sujeitos coletivos

A experiência da extensão também propicia que o estudante entre em contato com novos sujeitos, muitas vezes invisibilizados dentro do ambiente da Faculdade de Direito. Através do SAJU, os estudantes passam a estabelecer os primeiros contatos com atores sociais que não fazem parte do dia-a-dia das Faculdades de Direito.

O público do SAJU era um público completamente diferente do público que os estudantes da faculdade tinham contato. As pessoas entravam na faculdade e passavam a conversar e admirar os juízes que davam aula, os promotores que davam aula, não tinha defensor público nenhum ensinando lá, advogado que dava aula, procuradores…E o contato era sempre esse, as conversas eram em torno desse tipo de ambiente e a realidade que era passada era essa. Os estudantes eram de classe média, classe alta; os professores eram de classe média, classe alta, todo mundo só convivia entre si…Então o mundo era bem restrito, era como a gente estar aqui nesse condomínio e o mundo tava aqui, o nosso mundo tava aqui fechado nesse condomínio. Os problemas que a gente via tavam aqui fechados, e a forma de discutir as leis,os problemas das leis era com base nisso.No SAJU, eu fui apresentado, na verdade, a um mundo diferente. Eu saí desse condomínio.(R.X., 2012)

            Em atividade recente realizada pelo SAJU em uma das suas capacitações, incluindo estudantes de diversos semestres, os participantes do espaço encontraram uma enorme dificuldade em entender o conceito de “movimento social”. Para muitos escapava o próprio significado da expressão. É somente no SAJU portanto, que os futuros bacharéis em direito da UFBA tem a possibilidade de descobrir o povo organizado,as comunidades, os movimentos sociais e as organizações da sociedade civil.

            Estas relações, e mais do que isso a capacidade de abstrair a demanda individual e coletivizá-la é levada para atuação depois da graduação. Parcela grande dos entrevistados teve alguma experiência de atuação em organizações da sociedade civil (muitas delas parceiras do SAJU, como a AATR, o GAPA, a CJP,e o CEAS).Uma outra parcela destes ainda mantém relações e atuações junto aos movimentos sociais.

  1. g) Capacidade de trabalhar em grupo

            O SAJU é um espaço essencialmente coletivo. Estruturado como atividade estudantil, toda a sua organização é pautada na formação de grupos. Esta diretriz começa a ser adotada com as formulações elaboradas pela primeira geração abarcada neste trabalho. Este primeiro grupo institui a gestão da entidade não mais contando com a figura de um presidente, mas através da constituição de uma diretoria executiva.É este grupo que estabelece também a organização dos plantões de assistência em grupos de três sajuanos(as): os triunviratos. A partir da terceira geração esta estrutura é repensada, e a diretoria executiva é substituída pela organização em grupos de trabalho.Esta apresentação é apenas para apontar como a organização em grupo sempre foi uma diretriz do desenvolvimento do projeto.

            Dentro desta estrutura o estudante é levado a desenvolver a habilidade do trabalho em grupo, já que nenhuma decisão, nem nenhuma atividade é desenvolvida de forma individual. Até mesmo no atendimento dos plantões de assistência, a estrutura dos triunviratos exige que os estudantes discutam e decidam conjuntamente os rumos de suas atividades.

A forma de atendimento assim montada inseriu na pauta de discussão da entidade uma nova orientação pedagógica do serviço, na medida em que foi criada a responsabilidade do grupo pelo estudo e acompanhamento geral dos casos e se quebrou a idéia formal de hierarquia entre os membros da entidade, cada um participando tendo em vista o famoso binômio possibilidade e necessidade.(LUZ, 1999)

            O mesmo se desenvolve no núcleo de assessoria e nas instâncias de gestão geral da entidade (aquelas que deliberam e executam acerca das atividades desenvolvidas pelo SAJU como um todo, e que englobam os dois núcleos) Esta perspectiva se desenvolve em contraponto com a prática educacional que privilegia o aprendizado individual e o típico modelo liberal de formação do bacharel em direito.

A experiência concreta no SAJU revela também que a gerência de uma proposta de trabalho coletivo tem um preço. A coletivização das ações, seja no âmbito da Assistência Judiciária ou Assessoria Jurídica, nos coloca de frente com nossos vícios de relação e limitações pessoais. Não é fácil assumir que a nossa relação com o outro ainda é marcada pelas impressões de um individualismo sem precedentes. O exercício da aceitação do outro e de seus limites sem anulação do ego. Este é um fator importante, que, por mais abstrato que pareça, tem interferência direta na coalizão ou dispersão de grupos que, assim como o grupo atual do SAJU, já conseguem produzir as metas viáveis. (LUZ, [1999?])

Esta é uma habilidade levada pra experiência profissional.

Isolado você não é nada […] Eu e mais três colegas que trabalhavam. Trabalhávamos em grupo.Era difícil. Eram quatro juízes que não se conheciam, que passaram a trabalhar em grupo, fazer reuniões semanais, tudo era decidido coletivamente. A gente estava até padronizando as decisões judiciais, pelo entendimento comum. Acho que a justiça só funciona assim. As varas melhorando coletivamente. Isso eu vejo muito da minha formação do SAJU. (R.N.B., 2013)

 1.h) Prática da democracia e do diálogo

A experiência de gestão da entidade também é um dos fatores marcantes que reverberam na atuação posterior de cada profissional. As discussões e decisões dentro do SAJU são realizadas em fóruns colegiados (Reunião dos Núcleos, Reunião Geral e eventualmente Assembléias Gerais). Nestes espaços as deliberações são tomadas a partir de discussões coletivas, onde todos os presentes tem direito a voz e voto.

            Essa organização exige dos estudantes o desenvolvimento da habilidade do diálogo, da negociação e da composição de interesses. A prática do saber argumentar, articular idéias e defendê-las e de ouvir e compreender as idéias opostas.Exige ainda uma postura participativa do aluno, uma vez que havendo instâncias de deliberação a adoção de determinada atitude depende diretamente da participação do aluno nestes espaços, apresentando suas idéias e tomando contato com as idéias dos outros.

            Mais uma vez, os entrevistados apontam que esta é uma experiência muito própria do SAJU, que se contrapõem aos outros espaço encontrados durante a faculdade e até fora dela. O SAJU era um espaço onde o diálogo e a contraposição de idéias não só era exercido, como era estimulado.O dissenso, portanto, é encarado como parte integrante do exercício democrático, numa perspectiva que aponta que nem sempre o consenso representa o diálogo e a participação.

            Diferentemente do que ocorre nas salas de aula ou até mesmo em outras iniciativas estudantis onde temos uma estrutura hierarquizada nos quais, em última instância, a decisão é tomada por uma pessoa ou órgão de cúpula.

Então estas foram, outra mudança e essa foi bem importante, talvez a mais importante, foi, era a questão da organização interna: da forma de discutir os problemas e de chegar as soluções dosproblemas, que eu não via em nenhum lugar fora e continuo não vendo. Na forma de fazer uma reunião em que todo mundo é, cada cabeça é um voto, literalmente.Aquela democracia grega sem os escravos.A democracia grega sem os escravos. O fato de discutir as coisas dessa forma levava você a aprender a discutir, aprender a ouvir argumentos contrários, de uma forma que ninguém aprende no direito, na faculdade de direito. Porque eu conversava com você, você era minha amiga, e eu ia pra reunião lá com você. Como todo o tema ia ser discutido, era inevitável que eu ia discordar de você, e eu tinha que aprender a não deixar de ser seu amigo porque você discordou de mim. Isto tem reflexos futuros tremendos na, no resto da vida mesmo, ainda mais no direito. E causa problemas também ter passado por esta experiência, causa novos estranhamentos também depois. Então foi uma mudança de paradigma mesmo (R.X.,2012)

Esta experiência reflete diretamente na formação do bacharel de direito, que aprende melhor a lidar com as divergências e tenta estabelecer práticas menos autoritárias e mais dialogadas, inclusive no seu ambiente de trabalho. Eu acho que pra mim, o grande lance do SAJU é a questão de comportamento. A forma como eu me comporto hoje é muito decorrente do ambiente democrático do SAJU. Então assim, eu trabalho com mais três pessoas, na mesma atividade que eu. A forma que você distribui, que você divide tarefas na verdade, a forma como você decide dentro dos espaços, e o hábito do debate, foi o que eu mais guardei do SAJU. (F.O.C., 2013)

 Talvez as vivências experimentadas nos âmbitos de decisão coletiva de iniciativas como o SAJU, sejam uma das poucas de exercício concreto da democracia em um mundo que “precisa de argumentos ‘válidos’ para justificar a sua incapacidade de gerar a felicidade coletiva.” (LUZ, [1999?])

  1. Conclusões

Nos quase dezoito anos abarcados na pesquisa, tímidos foram os avanços no entido de construir uma Educação Jurídica que conseguisse minimamente abarcar as mudanças contínuas pelas quais passa a sociedade. O Ensino do Direito figura como espaço mantenedor, e tem dificuldades de enxergar novos sujeitos, novos contextos (mesmo quando estes não possam ser considerados propriamente progressista). Permanece uma visão feudal, aristocrática, de defesa da conservação.

            Esta pesquisa se apresentou na verdade como mais uma grande oportunidade. A oportunidade de entrar em contato com os profissionais de Direito, os nossos antigos estudantes, alunos(as), jovens, sajuanos(as) e perceber o quanto de juventude persiste nestes bacharéis.

            O que encontrei foram profissionais aptos tecnicamente, (capazes inclusive de reconstruir a técnica), enraizados socialmente, participantes dos processos sociais que os circundam, em contato com outras formas de saber, capazes de apreender novos conceitos e reaprender conceitos antigos, capazes de se colocar politicamente e que efetivamente se colocam politicamente: se colocam do lado do povo.

            Estes profissionais, constroem e reconstroem o Direito, implementando fissuras e rachaduras, tentando romper com status quo, com a dominação e com a opressão. Nesse processo eles e elas constroem e reconstroem o mundo. Considero também uma oportunidade de repensar a educação, ainda que sob um viés tão específico e talvez estreito que é a educação jurídica. Se é fato que se formam juristas, e que juristas atuam no mundo; se é fato que juristas geralmente ocupam espaços de poder neste mundo, não seria necessário encarar a questão: “que juristas queremos formar?”

            As entrevistas, os dados recolhidos, as análises teóricas me apontaram no sentido de que a Extensão é necessária, e talvez quem sabe a única forma possível de repensarmos o processo educacional no ensino superior. O único espaço capaz de construir uma Universidade socialmente referenciada e mais do que isso, profissionais socialmente comprometidos.

            Se ela tem sido encarada como espaço de assistência social, de atividade optativa, de “pessoas bem-intencionadas” e “estudantes- utópicos”, que ela seja encarada como forma de realizar a educação, de gestar um novo processo pedagógico e de injetar utopia nos nossos profissionais, porque a utopia é sempre necessária.

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O POSITIVISMO JURÍDICO PERIFÉRICO NA JUSTIÇA CÍVEL DA PARAÍBA[45]

THE PERIPHERAL LEGAL POSITIVISM IN THE CIVIL JUSTICE OF PARAÍBA

Maylla Cavalcante de Lacerda[46]
Mylena Alves Trajano[47]
Rebeca Rodrigues do Nascimento Menezes
[48]

Resumo: Este artigo integra o projeto de pesquisa intitulado “O Positivismo Jurídico na periferia do capital: uma análise de setores do campo jurídico na Paraíba”, que está inserido no Grupo de Pesquisa Marxismo, Direito e Lutas Sociais, coordenado pela Professora Doutora Ana Lia Almeida. O projeto tem como foco analisar como as ideologias atuam no campo jurídico, sobretudo, como a ideologia do positivismo, uma corrente que difunde a ideia do direito como um sistema de normas “neutro”, “universal” e “objetivo”, ligado a “dogmatismos” e “formalismos” se adaptou à periferia do capital. Nesse contexto, a partir de uma visão ontológica, que caracteriza a ideologia como uma consciência prática da realidade, buscou-se investigar como tais aspectos positivistas atuam nas práticas reais dos juristas do campo jurídico da Paraíba, mais especificamente na Justiça Cível da Paraíba. Essa análise ocorreu através de visitas semanais ao Fórum Cível e da observação das audiências das varas em funcionamento, verificando elementos que são significativos da conformação positivista na periferia do capital.

Palavras-chave: direito, positivismo jurídico, ideologia, Justiça Cível da Paraíba.

 

ABSTRACT

This article is part of the research project titled “Legal Positivism in the periphery of capital: an analysis of sectors of the legal field in Paraíba”, which is part of the Research Group Marxism, Law and Social Struggles, coordinated by Professor Ana Lia Almeida. The project focuses on how ideologies act in the legal field, above all, as the ideology of positivism, a current that diffuses the idea of law as a “neutral”, “universal” and “objective” system of norms, linked to the “dogmatisms” and “formalisms” adapted to the periphery of capital. In this context, based on an ontological view, which characterizes ideology as a practical consciousness of reality, it was sought to investigate how such positivist aspects act in the real practices of the jurists of the Paraíba legal field, more specifically in the Civil Justice of Paraíba. This analysis occurred through weekly visits to the Civil Forum and observation of the audiences of the Courts in operation, verifying elements that are significant of the positivist conformation in the periphery of the capital.

Keywords: law, legal positivsm, ideology, Civil Justice of Paraíba.

  1. Introdução

No primeiro dia de visitas ao Fórum Cível de João Pessoa, assistimos a uma audiência em que a autora estava requerendo uma pensão complementar da avó paterna de seu filho, uma vez que o pai da criança não estava pagando há meses e nem tinha sido encontrado pelo oficial de justiça para comparecer às audiências. Diante disso, a juíza fez a leitura do processo para ter conhecimento do que se tratava o caso em análise e solicitou a presença de duas defensoras, uma para representar cada parte presente.
Em seguida, após um instante de conversa entre as defensoras e as partes, a defensora que representava a mãe pronunciou que esta exigia um valor de 300 reais, porém, a avó alegava que não havia possibilidade de pagar nenhum valor. Nessa situação, a juíza pediu que um dos auxiliares trouxesse uma calculadora e explicou que a pensão era, geralmente, vinte por cento do salário mínimo e, fazendo as contas o valor a ser pago pela avó, seria de 187 reais mensais, tendo como base o salário mínimo daquele ano. No entanto, a defensora da autora pediu que fosse feito o acréscimo das pensões que não foram pagas e, mais uma vez fazendo contas, chegou-se ao resultado de que o montante da dívida era de 1500 reais.
A juíza, então, se direcionou à parte ré que, durante todo esse momento de cálculos e estipulação de valores demonstrava estar confusa e atordoada,  para definir como seria feito o pagamento, o qual depois do parcelamento da dívida em 12 vezes, somado aos 187 reais ficou no total de 312 reais mensais. A avó após afirmar que não estava entendendo, alegou não poder pagar aquela quantia devido aos gastos que ela tinha com remédios dos quais era dependente, além de não ter renda para pagar todo aquele valor. Diante disso, foram feitos novos cálculos diminuindo a porcentagem da pensão para quinze por cento e diversos outros que perduraram por quase uma hora, mas que não são possíveis de serem descritos, pois durante esse período se instaurou uma confusão total de divisões, somas e porcentagens que nem mesmo nós, estudantes de direito, conseguimos entender.
Ao final, depois de a audiência ter sido absolutamente confusa e atordoante, a juíza, exigindo uma decisão da avó, lhe informa que seu filho seria preso se chegasse ao fórum por ter descumprido o mandado de intimação. Aquilo soou como uma ameaça. Aparentemente coagida, a avó da criança fica apreensiva e pergunta qual seria o valor a ser pago e, mesmo depois de todos os cálculos, ainda não havia um valor definido. Então, não levando em conta tudo que anteriormente tinha sido calculado, discutido e desconsiderando a situação das partes, o caso não teve uma solução, ficando acordado que seria resolvido em audiências posteriores.
Esse se trata apenas de um dos casos que presenciamos, na Justiça Cível de João Pessoa, em que a situação das partes é desconsiderada, sendo-lhes impostas regras e discursos que, em grande parte, não lhes fazem sentido e não são compreendidos, criando nas audiências um ambiente caótico de desentendimentos, fugindo da ideia que se tem que dali sairiam soluções. Dentro dessa perspectiva, é possível observar a maneira contraditória como o direito opera na prática, estabelecendo durante às audiências uma convivência entre formalismos e informalidades, que reflete a maneira como os valores da impessoalidade e da objetividade submetidos aos interesses individuais das elites na periferia do capitalismo, são funcionais para manutenção da ordem. Além disso, ainda é possível observar nos casos, como o narrado acima, a coexistência de violências e cordialidades típicas da nossa tendência ao personalismo, como problematiza Sérgio Buarque de Holanda (2006).
Com isso, buscamos verificar os elementos que são significativos da forma como o positivismo se adaptou na periferia do capital, conformando-se a aspectos próprios que reproduzem a sociedade de classes com todas as suas contradições. Aqui atentamos para o positivismo como uma consciência prática, tratada por István Mészáros (2004), a partir de uma visão ontológica de ideologia, a qual age diretamente no fazer jurídico de juízes, advogados, promotores e defensores públicos, no Brasil e na Paraíba, num processo que desconsidera os conflitos sociais e que reduz o direito à norma.
Além disso, a Justiça Cível é palco onde se processam dimensões essenciais da conflituosidade social, em especial os conflitos em torno da gestão da propriedade privada e sua forma tradicional de circulação, os contratos, além dos conflitos em torno das questões do patrimônio da família e das relações de gênero, geração e cuidados com as crianças. Sendo assim, torna-se indispensável para a compreensão das formas ideológicas que movimentam o direito observar as práticas dos juristas nesta seara, que de acordo com Pachukanis (1988), estão, perceptivelmente, voltadas para a propriedade privada, para a configuração do sujeito de direito como proprietário e para o Direito como um conjunto de relações sociais específicas caracterizadas como relações de troca.
O presente artigo integra as discussões promovidas pelo Grupo de Pesquisa Marxismo, Direito e Lutas Sociais e aqui sintetiza as abordagens iniciais feitas pelo grupo no projeto de pesquisa intitulado “O positivismo jurídico na periferia do capital: uma análise de setores do campo jurídico na Paraíba”, que insere-se no campo de investigação do papel das ideologias no funcionamento do complexo jurídico e aqui se apresenta com o objetivo de problematizar como o positivismo jurídico periférico opera nas práticas dos juristas na Justiça Cível da Paraíba.
As problematizações que fundamentam este trabalho se situam no campo da tradição marxista. As principais formulações que se aliam a essa tradição  são feitas por István Mészáros, Gyorgy Lukács, Evgeni Pachukanis e Florestan Fernandes e neste trabalho dialogam com as abordagens feitas por Roberto Schwarz e Sérgio Buarque de Holanda, além de algumas análises de teóricos críticos do campo jurídico no Brasil.
O caminho metodológico adotado foi a análise documental  de materiais iniciais desenvolvidos pelo projeto de pesquisa apresentado, que  reunia uma pesquisa de campo introdutória e que serviu de base para formulação de relatórios sobre o que foi observado nas audiências das varas da Justiça Cível, como também a pesquisa bibliográfica que situa o marco teórico do trabalho. Diante disso,  a pesquisa de campo consistia em ir semanalmente ao Fórum Cível Desembargador Moacyr Porto, em João Pessoa, localizado na avenida João Machado, onde foram feitas visitas no período de agosto a novembro, nas quartas-feiras, para assistir às audiências que tinham início às quatorze horas. Durante as visitas, eram observados elementos como postura dos juízes, das partes, da Defensoria Pública, dos advogados e do Ministério Público; assim como formalismos e informalidades; uso da retórica; recurso à ideia de neutralidade; recurso à lei; relações de classe; relações de gênero, raça, sexualidade e geração.

  1. O Positivismo Jurídico

O positivismo jurídico é geralmente caracterizado e criticado como uma corrente alheia à realidade social, que reduz o Direito à norma, ligado aos conceitos de acriticidade, dogmatização e formalismo. Nesse contexto, partindo de uma visão gnosiológica de ideologia, a qual situa a ideologia no plano da consciência e não da prática, Lyra Filho (1985), entende que tal redução do Direito à norma, expressa um falseamento da realidade do campo jurídico. Dentro dessa perspectiva, é importante destacar que essa visão gnosiológica de ideologia foi amplamente difundida por Marilena Chauí (2006).

Por outro lado, faz-se necessário a configuração do positivismo a partir de uma linha de raciocínio ontológica, abordada por István Mészáros (2004), a qual caracteriza o positivismo como uma consciência prática, que atua diretamente no cotidiano jurídico e que funciona para a manutenção do status quo do campo jurídico e da sociedade de classes historicamente construída. Essa funcionalidade positivista na América Latina e no Brasil tomou contornos peculiares, uma vez que, subordina-se à acumulação de capital dos países centrais, implicando num modelo de reprodução do complexo jurídico plenamente adaptado às condições do capitalismo periférico – nos termos das formulações de Florestan Fernandes (2009).

Nesse contexto, é importante destacar que há uma contradição na importação do positivismo jurídico para o Brasil, uma vez que a realidade brasileira não correspondia às ideias liberais difundidas no contexto europeu, como aborda Schwarz (1999). No entanto, a forma jurídica importada sofreu uma adaptação que conformou uma espécie de positivismo jurídico periférico que é constitutivo da forma jurídica tal qual se processou na periferia do capitalismo, partindo da ideia de Florestan Fernandes (2009) em seus estudos sobre capitalismo dependente.

Com base nessas reflexões, as análise feitas a respeito do positivismo Jurídico periférico na Justiça Cível da Paraíba, na qual se debruça este artigo, tem realizado problematizações incipientes sobre como o positivismo, através de elementos, quais sejam: uso da retórica, recurso à lei, à ideia de neutralidade, os formalismos exacerbados e caricaturas de um dogmatismo manualesco etc, sofreu adaptações na periferia do capital.

  1. A Convivência de formalidades e informalidades nas varas da Justiça Cível da Paraíba

A partir das visitas feitas ao Fórum Cível, a fim de observar a prática dos juristas na Justiça Cível da Paraíba, diversos elementos próprios da conformação do positivismo à periferia do capital foram percebidos e analisados.

Na grande maioria das audiências, verificamos uma convivência entre formalismos e diversos níveis de informalidade. A formalidade usada no trato com as partes, reflete uma desconsideração dessas no processo, uma vez que não há uma reflexão mínima sobre as relações sociais que constituem os conflitos. Tal situação revela a violência que o direito promove ao atuar de maneira descontextualizada, dogmática e acrítica, sendo isso um reflexo da forma como a educação jurídica se desenvolve no Brasil, como afirma Ana Lia Almeida:

“O ensino do direito, ao difundir e reforçar a crença de que o direito consiste num sistema de normas “lógico”, “neutro” e “independente” dos demais âmbitos da vida social, cumpre com certas funções indispensáveis à reprodução da sociedade de classes” (ALMEIDA, 2016, p. 873).

Acompanhamos uma audiência que tratava sobre interdição em que o tio entrou com o pedido para interditar sua sobrinha que morava com ele. Durante o questionário, a parte que seria interditada começa a falar das suas dificuldades, sentimentos e até mesmo o fato de algumas vezes escutar vozes. Nesse momento, a promotora se mostrou indiferente quanto a isso, interrompendo a fala da mulher, prosseguindo para outra pergunta e enfatizando que ela deveria responder somente as perguntas feitas. Essa postura da promotora evidencia o quanto os profissionais de direito, durante os procedimentos jurídicos se colocam em uma posição de distância e desinteresse para com as partes, visto que seguem de maneira rigorosa as perguntas protocoladas pelo Ministério Público, não permitindo que as partes ultrapassassem o limite jurídico estabelecido, num processo que desvaloriza o que ocorre na vida destas, naquilo que acontece fora da sala de audiência e que contextualiza os conflitos sociais.

Essa busca incessante dos juristas em se manterem numa posição de impessoalidade, se portando de maneira objetiva e técnica, não demonstrando empatia para com aqueles que procuram a Justiça com intuito de  resolverem suas questões, revela as adaptações dos valores liberais europeus que foram extremamente úteis para o sucesso do positivismo entre os intelectuais brasileiros. “Essas aspirações positivistas às ideias claras, lúcidas e definitivas, representam para nós um “repouso para o espírito”, na expressão de Sérgio Buarque de Holanda (2006, p. 173)”, como bem analisa Ana Lia Almeida (2015).

Nesse sentido, partindo da análise do caso acima, é imprescindível assistir à aplicação dos procedimentos jurídicos para interpretar o seu funcionamento e efeitos no contexto social. Ademais, é necessário voltar o olhar para as tensões e intenções, os valores em jogo e as disputas de poder que escancaram o efeito simbólico do ato jurídico, uma vez que aquilo que ocorre dentro da sala de audiência não é consequência de uma espaço neutro para a resolução dos conflitos postos, como aborda Miraglia (2005).
Aliada à perspectiva da impessoalidade, a linguagem utilizada pelos juristas,  caracterizada por ser difícil, técnica, formal e objetiva, realiza um papel fundamental para a ideologia do positivismo, como também para a manutenção da ordem e reprodução da sociedade de classes. Na quase totalidade das audiências assistidas, a linguagem jurídica técnica reflete um forte traço do formalismo, a qual é incompreendida pelas demais pessoas. Ocorre, portanto, uma espécie de tradução por parte dos magistrados do que está ocorrendo nas audiências para o escrivão com o objetivo de que conste nos autos apenas a linguagem própria mundo jurídico. Isso provoca um não entendimento das partes do que está acontecendo, as quais ficam alheias ao processo, de maneira contraditória, uma vez que, o que está se passando diz respeito às suas próprias vidas. Nesse contexto, Luís Alberto Warat expõe o que ele denomina como “senso comum teórico dos juristas”,presente no cotidiano dos juristas, “uma para-linguagem, alguma coisa que está mais além dos significados para estabelecer em forma velada a realidade jurídica dominante” (WARAT, 1994, p.15).

 Outra perspectiva do formalismo presente nas audiências é percebida através da rotulação de quem se configura como parte na audiência e de quem forma o universo jurídico a partir da observação das vestimentas. Como exemplo, nós, estudantes de direito, assistimos a uma audiência na qual a juíza nos confundiu com as partes, pois estávamos vestidas de maneira informal, de forma contrária ao casual chique, o padrão de vestimenta costume dos estudantes de direito quando frequentam ambientes jurídicos.

Diante disso, nos parece muito oportuno que em um ambiente como o da Justiça Cível da Paraíba que é palco de dimensões essenciais da conflituosidade social,  elementos como a vestimenta se destaque como fator preponderante para o estabelecimento de relações no cenário jurídico. Afinal, muito provavelmente existe um interesse de classe no fato de advogados, situados em uma região tão pobre e cheia de problemas, estarem ocupados em formar uma Comissão de Direito da Moda, como a recentemente criada pela OAB da Paraíba.

Por outro lado, simultaneamente a essas formalidades, existem as informalidades que revelam uma dimensão completamente diferente da analisada acima. Se trata das informalidades que se expressam nas conversas entre juristas, evidenciando que quando se refere às relações entre “iguais”, surge uma atmosfera amigável e flexível e todas aquelas exigências formais desaparecem, colocando em primeiro lugar a aproximação pessoal que, nessas relações, substitui o direito, demonstrando empatia e cordialidade entre si. Isso é fruto da nossa tendência ao personalismo, que se expressa através do homem cordial, como analisa Sérgio Buarque de Holanda

[…] toda a nossa conduta ordinária denuncia, com freqüência, um apego singular aos valores da personalidade configurada pelo recinto doméstico. Cada indivíduo, nesse caso, afirma-se ante os seus semelhantes indiferente à lei geral, onde esta lei contrarie suas afinidades emotivas, e atento apenas ao que o distingue dos demais, do resto do mundo. (HOLANDA, 2006, p.155)

Em concordância com o que foi dito, analisamos, no caso de interdição citado anteriormente, que no decorrer da audiência, uma funcionária do Fórum entrou na sala e, interrompendo o caminhar do processo, começou a falar com a juíza e com a promotora sobre um problema de saúde que uma colega em comum estava passando. Ela não pediu licença, simplesmente começou a falar sobre um cateterismo que sua amiga havia feito repentinamente, e a juíza, surpresa, demonstrou grande interesse, como também a promotora, perguntando como aquilo tinha ocorrido e continuaram nessa conversa até acharem conveniente voltar para audiência.

 Desse modo, esse “entra e sai” e  as conversas paralelas informais quando ocorrem no mesmo ambiente, juntamente com o uso da linguagem técnica e o recurso à retórica e à lei,  sinaliza a convivência de formalidades e informalidades, remetendo novamente a uma desconsideração da presença das partes, de forma contraditória e desrespeitosa, colocando de lado o que seria objetivo da audiência, resolver o conflito ali existente.

Portanto, todos esses aspectos da representação jurídica observados em nossas experiências na Justiça Cível da Paraíba, expõem a forma como a ideologia  do positivismo se adaptou à periferia do capital, tomando contornos próprios do modo constitutivo como as relações sociais se desenvolveram aqui. O direito ao regular as relações sociais, da forma como o faz, também regula as contradições nelas existentes, assumindo, dessa forma,  uma postura que é funcional para reprodução do capital e da sociedade de classes.  Sendo assim, a mediação jurídica tem, portanto, um “objetivo prático” que consiste em “garantir a marcha da produção e da reprodução social” (PACHUKANIS, 1988, p.13)

  1. Cordialidade e violências no campo jurídico

           As considerações feitas até aqui  transparecem a situação da audiência como uma encenação, levando em consideração todo formalismo utilizado para descrever o procedimento nos autos, para estabelecer comunicação com as partes e até mesmo determinante na forma de se vestir. No entanto, é nítida uma mudança desse cenário  no momento em que a conversa envolve um vínculo pessoal entre magistrados e advogados. Nessas ocasiões surge uma espécie de simpatia, de gentileza, um tratamento afetuoso e cordial, algo que raramente é visto nas relações dentro do ambiente jurídico que quase sempre se desenrolam através do recurso à lei fria e calculista. Diante disso, as situações judiciais representam uma reafirmação constante das hierarquias destacando uma assimetria entre os atores envolvidos, como também se expõe através de uma caracterização de campo rico em teatralidade e dramaticidade refletindo um sistema simbólico específico, de diálogos muito particulares, de disputas de poder, posições políticas e afirmações de valores, como aborda Miraglia (2005).

            Além disso, esse elo pessoal entre juristas, que provoca uma reorganização das relações, reflete o modo como a impessoalidade que, de acordo com a tradição liberal, seria capaz de orientar as decisões a respeito do trato com a coisa pública, se subordina rapidamente aos interesses pessoais. Nas exposições de  Roberto Schwarz    (2000,p.152), as novas ideias do séc. XIX – positivismo, naturalismo, evolucionismo –  assumem “ridículos particulares” no Brasil, conferindo um “quê” gratuito, incongruente e “iníquo” ao ideário liberal.

Nesse contexto, em uma das audiências assistidas, presenciamos o fato de um dos advogados presentes na sala ser amigo do marido da juíza, um desembargador. Antes da audiência de fato começar, esses passaram um bom tempo conversando, sobre seus trabalhos, familiares e conhecidos, enquanto que os demais presentes na sala não falavam nada, permaneciam estáticos, apenas escutavam e esperavam aquela conversa acabar. Quando começaram a tratar sobre o caso, era nítida a diferença de tratamento com a qual a juíza se dirigia ao advogado amigo, quando comparada ao modo que falava com o outro advogado, não que este também não fosse harmonioso, mas com o outro era perceptivelmente mais amigável e carinhosa.

             Isso revela, entre outras coisas, uma tendência ao personalismo, próprio da nossa formação social, de todo conformada por uma mentalidade doméstica definida como uma “cordialidade” típica do povo brasileiro, como analisa Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil. De acordo com as formulações do sociólogo, os brasileiros são possuidores de uma carga emotiva típica do ambiente doméstico que busca a todo modo estabelecer vínculos afetivos para facilitar suas demandas pessoais. Daí surge uma dificuldade em separar o público do privado, estando aquele permeado de interesses particulares no seu funcionamento.

            Desse modo, como aborda Sérgio Buarque, o Estado brasileiro deveria ser burocrático, todavia é patriarcalizado em virtude do vínculo estabelecido com as dominações arcaicizadas, denominadas pelo autor enquanto tradicionais e carismáticas. Logo, essa presença constante do privado no ambiente público pode ser justificada historicamente, desde a nossa constituição enquanto Estado, visto que o próprio nascimento do Estado, se dá pela transgressão da ordem doméstica e familiar, ou seja, a superação dos interesses privados em relação aos públicos.

O quadro familiar torna-se, assim, tão poderoso e exigente, que sua sombra persegue os indivíduos mesmo fora do recinto doméstico. A entidade privada precede sempre, neles, a entidade pública. A nostalgia dessa organização compacta, única e intransferível, onde prevalecem necessariamente as preferências fundadas em laços afetivos, não podia deixar de marcar nossa sociedade, nossa vida pú­blica, todas as nossas atividades. Representando, como já se notou acima, o único setor onde o princípio de autoridade é indisputado, a família colonial fornecia a idéia mais normal do poder, da respeitabilidade, da obediência e da coesão entre os homens. O resultado era predominarem, em toda a vida social, sentimentos próprios à comunidade doméstica, naturalmente particularista e antipolítica, uma invasão do público pelo privado, do Estado pela família. (HOLANDA, 2006, p. 82)

No entanto, como aborda Holanda (2006), no Brasil, se verifica que o processo de formação do Estado não se deu dessa maneira, uma vez que aqui essa instituição vai decorrer diretamente da família, sendo uma espécie de evolução desta. Nesse sentido, como foi esclarecido pelo autor e ilustrado no decorrer de nossas experiências, os detentores de cargos públicos, por exemplo, não conseguem distinguir os domínios público e privado.

Esse descaso quanto a gestão da coisa pública, revela a violência e desinteresse com que o Estado tem tratado os conflitos sociais, já que, em tese, a estrutura pública deveria estar disponível para responder às demandas da população como um todo; no entanto, se encontra poluída pela busca de satisfações particulares, uma vez que a maioria dos cargos públicos são ocupados pela ambição de prestígio e alta remuneração, e não pelo compromisso social.

Isso se deve em muito, como analisa Sérgio Buarque,  à mentalidade bacharelesca, a qual é resquício da tendência ao personalismo e mostra uma  necessidade de afirmação no outro e sobre o outro a todo momento. Todavia, essa “praga do bacharelismo” nunca correspondeu a uma formulação intelectual sólida, ao contrário a intelectualidade é marcada por um grande apelo à retórica. Essas observações são perceptíveis através do estudo da maneira como educação jurídica se conformou e se consolidou em nosso país. Nesse contexto, como aborda Ana Lia Almeida, “tudo que é ensinado em sala de aula é uma farsa ou simplesmente uma questão formal isolada de qualquer contexto, apresentada sem qualquer responsabilidade com a realidade.” (ALMEIDA, 2016, P. 874)

Dentro dessa pesctiva, em uma de nossas visitas rotineiras à Vara Cível do Fórum Cível de João Pessoa, presenciamos uma audiência em que a autora requisitava o pagamento de pensão alimentícia para o seu filho, o qual, não recebia o benefício pelo fato do pai não acreditar em seu efetivo parentesco com a criança. Seguindo os trâmites legais, a juíza, além de solicitar o pagamento da pensão, também requereu um exame de DNA, principalmente depois que a autora afirmou que o pai do seu filho teria registrado a criança, mas não reconhecia a paternidade porque era casado.                                               A juíza não prolongou a conversa, encerrou a audiência sem mais delongas, e, assim que a parte autora saiu da sala de audiência, a juíza comentou com a promotora: “essas mulheres pensam que é fácil ter filho de homem casado, pensam que eles vão assumir e pagar pensão. Já é difícil conseguir a pensão do solteiro, imagina do casado… Ela está sonhando e querendo demais”. Essa experiência revela uma mentalidade conservadora de aplicação do direito, uma vez que despida de qualquer análise do contexto em que se insere a vida daquela mulher, mãe e solteira, há, aqui, uma violência conduzida pelo comentário reprodutor de um pensamento puramente sexista, desvinculado de qualquer parâmetro legal. De acordo com isso Ana Lia Almeida (2014), analisa:

A mentalidade despudoradamente manualesca dos juristas revela a crença em certa desnecessidade de desenvolver capacidades analíticas que  é bastante conveniente para a manutenção da dominação de          classe.    Dessa forma, o positivismo jurídico no Brasil  foi vulgarmente reduzido a um dogmatismo barato, manualescamente paralisante, mas de todo disposto aos favoritismos personalistas; nos sendo muito mais próprio o provérbio popular “aos amigos, tudo, aos inimigos, a lei” do que o brocardo latino “dura lex, sed lex” (ALMEIDA, 2016, p. 44)

            É válido observar que além da violência do afastamento do contexto histórico e social que abarca tanto este como qualquer outro processo que é colocado diante do juízo, se processam outras dimensões da violência na Justiça Cível da Paraíba. Para exemplificar, entramos em uma sala de audiência que, mais uma vez, se tratava de pensão alimentícia. Desta vez, o pai e a mãe estavam presentes e, durante o desenrolar da conversa, ficou nítido que a autora da ação ainda nutria sentimento pelo pai da criança, mas o relacionamento entre eles já não era mais possível visto que ambos se tratavam de maneira rancorosa e o pai já tinha outra companheira . Por outro lado, em uma ação de divórcio litigioso que também presenciamos, embora não fosse perceptível a presença de sentimentos amorosos, os sentimentos de raiva e rancor podiam ser observados.

A violência comum, que caracteriza essas duas situações, se concretiza pela conversão de sentimentos em relação de troca. Nesse sentido, no divórcio, por exemplo, o ressentimento e o desamor se configuram como vingança e objetivam a retirada de bens do ex-companheiro, ou seja, há uma espécie de conversão de mágoas em trocas materiais. Essas relações se alinham as análises feitas por Pachukanis (1988) acerca do sujeito de direito como sendo proprietário de mercadorias, nas quais ele alega que a forma jurídica se fundamenta materialmente na troca.

Por fim, todo esse debate foi exemplificado e elucidado também no caso que inicia este trabalho, o qual envolvia a mãe da criança e a avó que passaria a pagar a pensão complementar. Em nenhum momento da audiência houve uma abordagem sobre a relação afetuosa que envolvia a criança, no processo jurídico esta se encontra numa posição como meio para uma conquista material. Nesta situação, o afeto esteve e permaneceu em segundo plano, o relevo estava apenas ao âmbito econômico, na estipulação de valores específicos. O direito, desse modo, “representa a forma, envolvida em brumas místicas, de uma relação social específica” (PACHUKANIS, 1988, p.42): a relação dos proprietários de mercadorias entre si.

Diante disso, os aspectos da perspectiva liberal, como a “impessoalidade”, a “objetividade” e a “neutralidade” que buscam de todo modo se concretizarem no direito, trazem dentro de si um desejo de manutenção da ordem e dominação de classe. Como foi amplo objeto de estudo no presente trabalho, essa situação se constituiu pela forma como o positivismo e, até mesmo, as relações sociais se adaptaram à nossa realidade, tomando contornos próprios, se configurando em tom personalista e conservador que  deve ser compreendido de forma imbricada no desenvolvimento dependente do capitalismo que se consolidou aqui, conforme as teses de Florestan     Fernandes (2009).

Além disso, não podemos deixar de perceber, como aborda Ana Lia Almeida:

Essa “ideia fora do lugar” que é o positivismo jurídico no Brasil, deve ser compreendida entre nós sob o ponto de vista da sua funcionalidade enquanto orientação ideológica de todo implicada na posição periférica que o Brasil e América Latina ocupavam – e ainda ocupam – na divisão internacional do trabalho. (ALMEIDA, 2016, p. 878)

  1. Considerações finais

Diante do exposto, fica claro que o positivismo jurídico e as ideias liberais assumiram uma posição dominante no campo jurídico, atuando de forma contundente com todos os seus aspectos num projeto de manutenção da ordem e da sociedade de classes. Contudo, o positivismo jurídico tomou contornos peculiares nos países periféricos, como no Brasil, conformando-se aos desejos e caprichos das nossas elites. Nesse contexto, verifica-se que o positivismo jurídico é tido como ineficaz e ultrapassado quando se leva em consideração a função do direito na dinâmica social. Dessa forma, existem outros modelos de direito a serem construídos que são amplamente defendidos pelo campo crítico, que buscam a transformação social.

            Isso, em muito, é fruto da forma como a educação jurídica é proposta, pautada em um ensino acrítico, dogmatizado, formalista e comprometido com satisfações particulares, apartando-se da realidade dos demais âmbitos da vida social. Esse ensino tem como forte característica uma mentalidade manualesca, que libera os juristas para não pensar, além de ser marcado pelo uso abstrato, retórico e descontextualizado das leis, expressando a forma funcional como o direito regulamenta as desigualdades e antagonismos da sociedade de classes.

Sendo assim, é de fundamental importância fazer esse estudo na Justiça Cível por ser um campo onde se desenrolam cenários importantes da conflituosidade social. Portanto, buscamos analisar o modo como esses vínculos se expressam no campo jurídico na periferia do capital, configurando um “positivismo periférico” que é inseparável desse modelo de sociabilidade.

Referências bibliográficas

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ALMEIDA, Ana Lia Vanderlei. O Apartheid do direito: reflexões sobre o positivismo jurídico na periferia do capital. Rev. Direito Práx. [online]. 2017, vol.8, n.2, pp.869-904. Disponível em:< http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/23508/20595 >. Acesso em Março de 2018.

ALMEIDA, Ana Lia. O Papel das Ideologias na Formação do Campo Jurídico. Revista Direito e Práxis, [s.l.], v. 5, n. 9, p.34-59, 8 dez. 2014. Universidade de Estado do Rio de Janeiro. http://dx.doi.org/10.12957/dep.2014.12876.

CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. Coleção Primeiros Passos, 2a Ed. São Paulo: Brasiliense, 2006.

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MIRAGLIA, Paula. Aprendendo a lição: uma etnografia das Varas Especiais da Infância e da Juventude. Novos estud. – CEBRAP [online]. 2005, n.72, pp.79-98. Disponível em:<http://www.scielo.br/pdf/nec/n72/a05n72.pdf>. Acesso em Março de 2018.

PACHUKANIS, E. B. Teoria Geral do Direito e Marxismo. São Paulo: Ed. Acadêmica, 1988.

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WAAT, Luís Alberto. Introdução geral ao direito. Interpretação da lei. Temas para uma reformulação. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1994.

NOTAS:

[1] Trabalho apresentado ao Espaço de Discussão 1 – Assessoria jurídica popular, educação jurídica e educação popular do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[2] Graduada em Direito (2014) e Mestre em Ciências Sociais (2018) pela Universidade Federal do Espírito Santo – UFES.

[3] Doravante chamado de CMA.

[4] Os nomes dos advogados entrevistados foram alterados para resguardar sua segurança e privacidade.

[5] Fonte: <http://www.otempo.com.br/capa/economia/ap%C3%B3s-boom-bh-v%C3%AA-queda-no-lan%C3%A7amento-de-im%C3%B3veis-1.785299> Acesso em novembro de 2017.

[6]  O Tribunal Internacional dos Despejos fica localizado em Quito, Equador, e é formado por organizações da sociedade civil para discutir ameaças graves de despejo no mundo.

[7] Fonte: <http://justificando.cartacapital.com.br/2016/10/05/izidora-o-direito-moradia-e-o-maior-conflito-fundiario-urbano-da-america-latina/> Acesso em abril de 2018.

[8] Atualmente, a literatura brasileira acerca do tema foca principalmente na chamada “judicialização da política” ou “politização da justiça”, fenômeno referente à expansão do potencial de mediação do Judiciário no processo político decisório das democracias contemporâneas e ao crescente número de ações judiciais, apontando o desvirtuamento do que seriam as funções típicas deste poder, caracterizado pela neutralidade na interpretação da vontade do legislador (ENGELMANN, 2017).

[9] Fonte: <https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/06/14/belo-horizonte-e-acusada-de-praticar-acao-higienista-contra-moradores-de-rua.htm>; <https://www.revistaforum.com.br/2012/06/05/verticalizacaohigienizacao- e-entristecimento-de-belo-horizonte> Acesso em novembro de 2017.

[10] Versão original: “construcción de un nuevo derecho que se contraponga al derecho existente, viejo y

conservador”.

[11] Acadêmica do 2º ano de Direito da UFPR.

[12] Acadêmico do 4º ano de Direito da UFPR, pesquisador bolsista do Programa de Educação Tutorial do MEC, PET – DIREITO.

[13] PISTRAK, M.M. Fundamentos da escola do Trabalho: uma pedagogia social. São Paulo: Expressão Popular, 2000. (Tradução de Daniel Aarão Filho).

[14] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: Nascimento da Prisão 36ª ed. Petrópolis: Vozes, 2009.

[15] FREIRE, Paulo – Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra. Pp.57-76. 1996

[16]  TAVARES, Andrezza Maria Batista do Nascimento. O pedagogo como agente de transformação social para além dos muros escolares- Tese, Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal-RN, 2010, 141 p
Disponível em: https://web.kamihq.com/web/viewer.html?source=extension_pdfhandler&file=https%3A%2F%2Frepositorio.ufrn.br%2Fjspui%2Fbitstream%2F123456789%2F14284%2F1%2FAndrezzaMBNT_TESE.pdf

[17]  VENTURI, Thais Pascoaloto; GLITZ, Frederico Eduardo Zenedin. A CONTRIBUIÇÃO DO MÉTODO DO ESTUDO DE CASOS E DO EXAME DE ORDEM NA REFORMULAÇÃO DO ENSINO JURÍDICO Ensino jurídico e desafios contemporâneos / Organizado por Eroulths Cortiano Junior…[et al]. — Curitiba: OABPR, 2014. (Coleção Comissões; v.14) 200 p.

[18] Ligia Maria Vettorato Tresvisan, Educação Superior no Século XXI e a Reforma Universitária Brasileira Ensaio: pag 04  aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.13, n.47, p. 127-148, abr./jun. 2005, disponivel na internet em: https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/29841/S0104-40362005000200002.pdf?sequence=1

[19] RODRIGUES,  Horácio  Wanderlei;  MAROCCO,  Andréa  de  Almeida  Leite. Liberdade  de  cátedra  e  a  Constituição Federal  de  1988:  alcance  e  limites  da  autonomia  docentes.  In:  CAÚLA,  Bleine  Queiroz  et  al. Diálogo  ambiental,  constitucional  e internacional. Fortaleza: Premius, 2014. v. 2. p.  213-238.

[20]GÓES JUNIOR, José Humberto De. “O Que É Direito, Para Que Se Possa Ensiná-lo?”  As Percepções Dos Sujeitos Sobre O Direito, O “Ensino Jurídico” E Os Direitos Humanos . Tese  presentada  ao  Programa  de  Pós- Graduação  em  Direito como  pré-requisito  à obtenção  do título   de Doutor em Direito.Brasília, 2015. pag 368.

[21] Trabalho apresentado ao Espaço de Discussão 1 – Assessoria jurídica popular, educação jurídica e educação popular do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[22] Mestre em Direitos Humanos e Cidadania (PPGDH-UNB). Especialista em Direito Processual (UNISUL) e em Prestação Jurisdicional (IMAG-DF).  Professora universitária (Introdução ao Direito e História do Direito; Direito do Trabalho). Advogada. Integra o Grupo de Trabalho Educação, Direitos Humanos, Mediação e Movimentos Sociais (CNPQ) e Núcleo de Estudos para a Paz (NEP – UNB).

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[23] A revisão de literatura realizada sobre as representações sociais considerou as reflexões de Durkheim (particulamente no que tange às aproximações e aos distanciamentos das representações coletivas às representações sociais de Moscovici), Moscovici, Jodelet, Guareschi, Jovchelovitch, Farr e, principalmente, Porto. Enquanto premisa téorico-metodológica da pesquisa (PORTO, 2010), pretendeu-se compreender a relação entre os sujeitos da pesquisa, os estudantes de direito, e o cotidiano universitário vivido, seus objetos-mundo, a partir do compartilhamento de ideias, valores e crenças sobre determinados temas de interesse. A dimensão sociológica a que se faz referência baseia-se no pressuposto de que “as ideias, valores e crenças, enquanto conteúdos das representações sociais, constituem uma importante matéria prima do fazer sociológico (PORTO, 2010), assumindo ‘blocos de sentido articulados, sintonizados ou em oposição e em competição a outros blocos de sentido, compondo uma teia ou rede de significações que permite o analista avançar no conhecimento da sociedade por ele analisada’ (PORTO, 2010, p. 66). Porto adverte que, não obstante se considere algumas proximidades quanto à origem da teoria, distancia-se da abordagem própria da psicologia social à medida que ‘não percorre passo a passo todo caminho’, vez que não tem como foco central os ‘aspectos propriamente cognitivos da formação e da constituição das representações sociais e de seus mecanismos de difusão’ (PORTO, 2010, p. 66).

[24] A afirmação simbólica entre indivíduos que dá ensejo à pertença social já havia sido objeto de reflexão de Jodelet (2001) sobre a importância das representações sociais às ciências sociais.

[25] A partir das reflexões de Cardoso de Oliveira (2008), entende-se que a Antropologia busca a exploração de diferentes alternativas interpretativas que estão à disposição do pesquisador para que as significações de termos e palavras utilizadas pelos sujeitos de pesquisa sejam adequadamente compreendidas, sendo os sentidos “nativos” preservados. É importante pontuar que a utilização de termos nativos e a substituição da palavra/expressão por outro termo, em especial em razão de respectiva tradução para língua diversa da nativa, parece constituir zona conflituosa na antrogologia, a exemplo das críticas Bohannan à Gluckman em razão das escolhas desse último quando da apresentação de seu estudo empírico sobre os Barotse.

[26] A força do status social e do saber jurídico do “mundo do direito” é bastante presente nas narrativas dos estudantes de direito. Constatou-se que o curso de direito ainda goza de um status sociais diferenciado perante o estudante e as pessoas que estão a sua volta, seus familiares e chamadas “pessoas comuns” da sociedade. O ingresso no curso do direito permite, ainda, com que estudantes sintam-se à vontade para se despirem do senso comum “dos outros”. Há, pelo saber jurídico, que é credenciado pelo curso de direito, um marco divisório entre mundos: “o mundo do direito” e o “mundo dos outros”. O senso comum está nos outros. A forma naturalizada com que estudantes fazem distinções pelo saber jurídico em relação aos “outros” aponta para um cenário entristecedor. Estudantes de direito compartilham ideias, crenças e valores que demonstram supervalorizar o saber jurídico, sinalizando que, de “posse” desse saber, há uma melhor visão de mundo sobre as coisas e as pessoas. A frase dita por Flor de Lótus, uma das estudantes da pesquisa, ecoa nesse sentido: “Coisa que você como pessoa, sem essa formação, não faria”. Entendeu-se, ainda, que o saber jurídico estaria associado a um pensar crítico e racional inerentes em razão do pertencimento ao “mundo do direito”. O saber jurídico transcenderia ao conhecimento do direito, permitindo a preparação para a vida, uma formação que é superior às demais. A família e as “pessoas comuns” conferem aos estudantes de direito atributos de inteligência, de futuros profissionais prósperos, ricos e que sabem resolver problemas. Os estudantes se sentem cidadãos exigentes, críticos e não enganáveis. “É a pompa que o direito traz”, diria Flor de Lótus. Em todo lugar, ouve-se doutor e doutora. Na família, nas atividades do estágio, nas salas de aula. “Em todos os semestres tem um ou outro professor que brinca”, relembra Caliandra, outra estudante da pesquisa. O status social a que transcende o estudante quando ingressa no curso de direito parece ser semeado por toda parte: diferentes sujeitos, instituições sociais, mas também nos livros didáticos de primeiro semestre, tal como havia salientado Foucault (1996) a respeito do discurso. Num deles, observa-se uma ideia muito similar às falas dos estudantes: “Quem fizer, com seriedade, o curso de uma faculdade de Direito, e obtiver o conhecimento científico da Disciplina da Convivência, está pronto para a vida. Está superiormente formado para enfrentar as exigências do quotidiano”. Ao invés de o ensino jurídico ensejar uma construção de sujeitos pluridimensionais (CARBONARI, 2007), o que se observa é o oposto: uma introjeção de segregações sociais, do “eu-estudante de direito” em relação ao “outro-pessoa comum”. Como pensar numa construção de sujeitos pluridimensionais se há uma naturalização de hierarquias e segregações pelo saber jurídico tão marcantes no “mundo do direito”? (BELMONTE AMARAL, 2017, p. 297).

[27] Além das hierarquias familiares (inclusive as relações conflituosas entre pais e filhas-estudantes) e aquelas havidas entre professor-estudante, nas narrativas dos estudantes, verificou-se que há um aprendizado da hierarquia do “mundo do direito” aonde se assimila, a partir das experiências nos estágios e do reforço dessa ideia em sala de aula, que mudar à realidade à sua volta é impossível e, antes disso, há uma hierarquia quase que intransponível. Uma hierarquia social que parece refletir o que DaMatta (1997) definiu como consciência da posição social. Há uma vigilância recíproca para que não se ameacem posições sociais muito bem definidas hierarquicamente no “mundo do direito” em que cargos públicos no judiciário são elevadas a posições privilegiadas. Aprende-se, assim, a subserviência aos cargos das carreiras jurídicas. No estágio, a hierarquia bem definida não permite troca de conhecimentos. O estagiário ainda “não é gente”, termo utilizada pela estudante Anis. Outro aspecto interessante verificado nas falas dos estudantes trata das utilização do termo respeito que, comumente, encontra-se associado a ideia de hierarquia, isto é, a posição social que entende estar situada determinada pessoa. Essa mesma ideia de “respeito” em razão do cargo foi observada na fala de outros cinco estudantes e no grupo focal quando falavam sobre experiências nos estágios e com profissionais de direito.

[28] Trabalho apresentado ao Espaço de Discussão Assessoria Jurídica Popular, Educação Jurídica e Educação Popular do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[29] Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Londrina, advogada colaboradora do projeto LUTAS: Assessoria Jurídica Universitária Popular. Email: [email protected]. Tel: 043 996795378.

[30] Graduada em Direito e discente do curso de Serviço Social, ambos na Universidade Estadual de Londrina, integrante do projeto LUTAS: Assessoria Jurídica Universitária Popular. Email: [email protected]. Tel: 043 99917-7417

[31] Graduado em Jornalismo pela Unilago e discente do curso de Direito da Universidade Estadual de Londrina, integrante do projeto LUTAS: Assessoria Jurídica Universitária Popular. Email: [email protected]. Tel: 017 99271-9827

[32] Discente do curso de Direito da Universidade Estadual de Londrina, integrante do projeto LUTAS: Assessoria Jurídica Universitária Popular. Email: [email protected]. Tel: 014 99866-2210

[33] Com as palavras do autor: “Objetivando orientar o desenvolvimento das atividades de ‘Assessoria jurídica’, reporta-se à delimintação principiológica apresentada na oficina de capacitação do SAJUP-UFPR (24 de maio de 2003): 1. Superação do individualismo e preferência pelo coletivo (negar o individualismo); 2. Participação Comunitária e Acadêmica Horizontais para Conscientização (negar o paternalismo e a subordinação); 3. Construção de um Direito Crítico (negar o dogmatismo e o positivismo jurídicos) e; 4. Presentificação (negar o absenteísmo).

[34] Filmagens da ocupação do prédio disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Q2_4UCsgAKY

[35] “Movimentos em apoio às ocupações de Londrina”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=SN0mJ9LoKQs

[36] ADI 5771 questiona no STF a constitucionalidade da nova Lei de Regularização Fundiária.

[37] https://www.bonde.com.br/bondenews/londrina/construindo-a-londrina-que-queremos-sera-lancada-na-segunda-454445.html

[38] Ata da audiência disponível em : http://www2.cml.pr.gov.br/atas/2018/upload_web/Ata_6499344863775666998.pdf

[39] https://www.bonde.com.br/bondenews/londrina/apos-audiencia-reintegracao-do-flores-do-campo-deve-ser-adiada-456940.html

[40] Artigo apresentado ao Espaço de Discussão ED 1 – Assessoria jurídica popular, educação jurídica e educação popular do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[41] Mestra em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília, graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia

[42] No censo realizado em 1872, 82,3% da população brasileira com idade acima de 5 anos de idade não era alfabetizada. (BRASIL, 1920)

[43] “Ao acentuar esse requisito como fundamento da participação política “legítima”. O publicismo acadêmico ajudou a consolidar a representação imaginária de que os analfabetos deveriam ser excluídos dos processos eleitorais, em nome de um imperativo maior – a razão, instrumento iluminador dos povos, sem o qual persistiria o alvedrio político.” (ADORNO, 1988, pág. 239)

[44] “Como é que essa assistência era pensada. Primeiro na forma de atender. Segunda coisa que se discutia lá. a questão de não tratar o cliente como objeto. Como se dava? Com as questões reais de contato com o cliente.”( V.L. 2013)

[45] Artigo apresentado ao Espaço de Discussão ED 1 – Assessoria jurídica popular, educação jurídica e educação popular do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[46] Cursando nível superior na UFPB. Email: [email protected]

[47] Cursando nível superior na UFPB. Email: [email protected]

[48] Cursando nível superior na UFPB. Email: [email protected]