ESPAÇO DE DISCUSSÃO 12: DIREITOS, MEMÓRIA E JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO

  

Artigo


AUTOS DE RESISTÊNCIA: TRANSIÇÃO, MEMÓRIA E O CARÁTER FUNDAMENTAL[1]

Priscila Tinelli Pinheiro[2]

Bruno Gadelha Xavier[3]

Resumo: A busca pela anistia esteve interligada à luta pela retomada da democracia, pela volta do Estado de Democrático de Direito e pelo reconhecimento e respeito aos direitos humanos. Nesse contexto, surgiu a Lei da Anistia (6.683), a qual concedeu o perdão do Estado para aqueles que cometeram crimes políticos entre 1961 e 1979. Em virtude dos abusos cometidos no passado, faz-se necessária a apresentação da Justiça de Transição como uma forma de garantir direitos fundamentais, cujo objetivo basilar é a busca da memória e da reparação dos danos sofridos na ditadura militar. Ademais, a questão da retomada da memória está diretamente ligada à construção de uma identidade nacional, pois sem a compreensão das transformações na esfera social, econômica e política de uma nação não surgirá o sentimento de pertença em seus próprios membros, dificultando a busca da verdade real por quem não vivenciou tal contexto. Objetiva-se averiguar a relevância da construção de uma identidade nacional na sociedade por meio do resgate da memória e compreender o direito à memória como um direito fundamental. Como principais resultados, observa-se a necessidade de resgatar os acontecimentos do passado contados por pessoas que sofreram com os arbítrios de um governo autoritário.

Palavras-chaves: memória; direito fundamental; identidade nacional; ditadura militar

Abstract: The quest for amnesty was intertwined with the struggle for the resumption of democracy, for the return of the Democratic State of Law and for the recognition and respect for human rights. In this context, the Law of Amnesty (6,683) arose, which granted pardon of the State to those who committed political crimes between 1961 and 1979. Due to the abuses committed in the past, it is necessary to present the Transitional Justice as a guarantee basic rights, whose basic objective is the search for memory and reparation of the damages suffered in the military dictatorship. In addition, the question of the resumption of memory is directly linked to the construction of a national identity, for without understanding the transformations in the social, economic and political sphere of a nation there will not arise the feeling of belonging in its own members, hindering the search for truth by those who did not experience such a context. It aims to ascertain the relevance of the construction of a national identity in society through the rescue of memory and to understand the right to memory as a fundamental right. The main results are the need to rescue the events of the past told by people who suffered with the will of an authoritarian government.

Keywords: memory; fundamental right; national identity; military dictatorship.

INTRODUÇÃO

Ao longo da história da sociedade brasileira, houve inúmeras lutas sociais, transições de governos, repressões políticas, crises econômicas que, por vezes não são do conhecimento de todos, mas apenas daqueles que vivenciaram determinado contexto histórico ou o repassaram, por meio de relatos a outras pessoas.

Contudo, mesmo diante de tantos acontecimentos históricos, muitas gerações permaneceram passivas em decorrência do completo desconhecimento do contexto social. Postura essa que – num segundo momento – foi transformada em participações populares contrárias aos atos dos governantes. A todo esse conhecimento, dá-se o nome de memória, a qual é construída pelas lembranças dos indivíduos que vivenciarem de perto os fatos no decorrer da história bem como pelos respectivos registros.

Nesse sentido, é importante que a memória histórica seja retomada tanto por meio de narrativas de testemunhas daquela época, quanto pelos registros contidos nos livros e em outros materiais, já que se busca o conhecimento das várias versões do mesmo fato a fim de construir uma memória integral e uma consciência crítica.

Ademais, a questão da retomada da memória está diretamente ligada à construção de uma identidade nacional, pois sem o conhecimento e, principalmente, sem a compreensão das transformações na esfera social, econômica e política de uma nação não é possível a formação de um sentimento de pertença em seus próprios membros, o que dificultará a busca por uma verdade real por quem não vivenciou tal contexto.

1 O DIREITO FUNDAMENTAL À MEMÓRIA

Em primeiro lugar, para se discutir acerca da fundamentalidade do direito à memória é preciso analisar os direitos fundamentais, ou seja, compreender o seu significado, além do tratamento conferido a eles, no Brasil, e, por fim, a sua finalidade perante o Estado Democrático de Direito. Nesse sentido, Dimoulis e Martins (2011, p. 49) apresentam o seguinte conceito de direitos fundamentais:

direitos fundamentais são direitos público-subjetivos de pessoas (físicas ou jurídicas), contidos em dispositivos constitucionais e, portanto, que encerram caráter normativo supremo dentro do Estado, tendo como finalidade limitar o exercício do poder estatal em face da liberdade individual

A partir da definição apresentada, extrai-se que para ser classificado como direito fundamental é preciso que seja inserido no texto constitucional, o que seria um aspecto formal do conceito. Deste modo, somente atingiria o status de fundamental aquele direito que fosse reconhecido como tal pelo Estado e, como consequência desse reconhecimento, passasse a compor o rol de direitos fundamentais da Constituição Federal. Por outro lado, há o aspecto material, o qual consiste na limitação ao poder estatal em face da liberdade individual, conforme descrito no conceito exposto.

Diante disso, pode-se afirmar, que o reconhecimento de um direito como fundamental é imprescindível para a construção de uma ordem democrática e, nesse sentido, destaca-se que para ser positivado na Constituição Federal, o direito precisa refletir a necessidade da sociedade a qual ele está inserido, já que o texto constitucional é considerado “[…] o espelho do legado cultural de um povo, e explicita o seu modo específico de existência” (DANTAS, 2010, p. 37).

Além disso, os direitos fundamentais constituem os principais valores de uma sociedade, que em decorrência dessa característica foram expressamente previstos na Carta Magna. Porém, vale ressaltar, que o rol previsto no texto constitucional não é taxativo, ou seja, não esgota a previsão dos direitos fundamentais, já que por representarem as necessidades da sociedade variam de acordo com o contexto vivenciado pela mesma.

Neste sentido, entende-se que o rol dos direitos fundamentais deve ser composto por direitos que se aproximem cada vez mais da realidade vivenciada pelas novas gerações e evitar, com isso, um rompimento entre o que se passa no país e o que seu Direito confere tratamento.

Partindo do pressuposto de que os direitos são classificados como fundamentais e, posteriormente, positivados na Constituição Federal a partir da necessidade de cada nova sociedade surge, então, a discussão acerca da importância de se considerar a memória como um direito do povo e, além disso, elevá-lo ao status de fundamental. Em primeiro lugar, é importante salientar que há dois tipos de memória, quais sejam a individual e a coletiva.

Por memória individual, entende-se que ela se consiste na “[…] capacidade que cada ser humano possui de guardar as experiências vividas e/ou transmitidas, possibilitando o aprendizado e o aperfeiçoamento de objetos e dos modos de fazer e de viver” (DANTAS, 2010, p. 52). Por outro lado, a memória coletiva pode ser definida como “[…] o processo seletivo de retenção e utilização contínua de ideias, impressões, imagens, conhecimentos e experiências adquiridas e vividas anteriormente” (DANTAS, 2010, p. 52).

Com base nessas definições, pode-se afirmar que a memória constitui a lembrança do passado, seja aquele vivenciado pelo próprio indivíduo, que se resume na memória individual ou aquele protagonizado por toda a sociedade em um contexto histórico anterior, o qual perfaz a memória coletiva. Importante ressaltar, que aqui trabalharemos com a defesa da memória coletiva, ou seja, aquela que influencia diretamente para a formação de um Estado Democrático, pois há transparência nos acontecimentos pretéritos, principalmente, no que tange aos motivos que acarretaram tais fatos, o que se resume na verdade real dos fatos.

Acerca disso, Barbosa e Vannuchi (2009, p. 55) defendem que “a democracia, para que efetivamente se consolide, necessita, portanto, que os povos conheçam toda a verdade sobre o seu passado, como forma de aprendizado, para modificar o presente e gerar um futuro de paz”. Assim, fala-se da memória como um direito em decorrência do fato de que as novas gerações têm a necessidade de conhecer o passado de seu país, visto que por muito tempo a sociedade brasileira foi vítima dos arbítrios do Poder Público e a verdade quanto a esses fatos nem de longe foi transmitida de forma integral à população. Portanto,

a integridade e revelação do conteúdo dos registros históricos, especialmente naqueles países, como o Brasil, passaram por um processo de transição política, é fundamental para consolidação do regime democrático e para proteção dos direitos individuais e coletivos (SAMPAIO; ALMEIDA, 2009, p. 261).

Isso ocorre, sobretudo, face à postura do Estado e das autoridades no sentido de que transmitem ao povo aquilo que lhes é conveniente contando, assim, a sua versão dos fatos, a qual é titularizada como memória oficial. Acerca dessa memória oficial, afirma-se que ela

[…] consiste na construção de uma sucessão de fatos “históricos”, tidos como importantes para o desenvolvimento do Brasil, para fornecer um quadro de referências à memória coletiva, delimitando-a, justificando-a e organizando-a. com isso, pretende-se a sua aceitação pelos indivíduos e pela sociedade, que passa a ter uma origem e um destino comum, reforçando o sentimento de pertença dos indivíduos ao grupo, condição sine qua non de sua coesão interna, além de demarcar as fronteiras (territoriais e sociais) entre grupos diversos (DANTAS, 2010, p. 56).

Desta forma, partindo da premissa de que a verdade e a memória são direitos e, sobretudo, necessidades do povo, é preciso que haja uma segurança maior quanto a elas, de forma que a positivação de tais institutos é imprescindível para a luta do povo frente ao esquecimento das lutas e conquistas sociais. Nesse momento é que surge a importância de se elevar o direito à memória ao status de fundamental, uma vez que, a partir deste ato, o Estado terá um obstáculo concreto à camuflagem da verdade dos acontecimentos e o dever de proporcionar o conhecimento amplo das suas práticas frente à sociedade.

Outro ponto que embasa tal premissa é o fato de que “a memória social é pública, e por ser compartilhada consegue sobreviver aos indivíduos, transcendendo-os” (DANTAS, 2010, p. 55). Ou seja, com a publicidade da memória é possível que a história seja repassada às futuras gerações, de forma a evitar a alienação acerca dos fatos que levaram à conquista de uma sociedade democrática e a construção de um governo que começasse a respeitar os direitos coletivos e sociais. Diante disso, pode-se descrever, que

resgatar a memória, por meio de iniciativas e ações múltiplas, levadas a cabo tanto no âmbito do Estado, como por legítima pressão da sociedade civil, não é somente uma demanda da democracia brasileira, mas uma exigência da comunidade internacional, no sentido de promoverem-se a paz e a justiça mundialmente (BARBOSA; VANNUCHI, 2009, p. 57).

Neste diapasão, constitui uma das características da democracia o livre acesso às informações e aos atos praticados pelo Poder Público, por isso, diz-se que “todo governo democrático deve, portanto, assegurar o livre acesso à informação, prestando contas de seus atos à cidadania” (BARBOSA; VANNUCHI, 2009, p. 59).

Por isso, diz-se que o resgate da memória está diretamente ligado a formação da identidade nacional, já que quando se conhece e entende o passado de uma sociedade é possível construir um raciocínio lógico que nos levará a descoberta da nossa identidade acerca disso, discutiremos em um próximo tópico. Assim, “o direito à verdade assegura o direito à construção da identidade, da história e da memória coletiva. Serve a um duplo propósito: proteger o direito à memória das vítimas e confiar às gerações futuras a responsabilidade de prevenir a repetição de tais práticas” (PIOVESAN, 2012).

Com base nisso, surge a importância da luta em busca da verdade dos fatos a fim de que toda essa história não caia no esquecimento e se perca com o passar dos anos. Deste modo, faz-se necessária a perpetuação desses acontecimentos por meio da transmissão da história a cada geração, porém isso somente será possível com o conhecimento das lutas sociais que culminaram na construção de uma democracia. Assim, “[…] direito à verdade rompe com o pacto do silêncio e com uma injustiça continuada. Lança luzes à dimensão sombria de nossa história, na defesa dos direitos à justiça, à verdade e à memória individual e coletiva” (PIOVESAN; BICUDO, 2012).

Apesar de todas essas considerações, não basta a implantação do direito à memória no rol dos direitos fundamentais da Carta Magna, sem que haja, em contrapartida, uma atuação positiva do Estado em prol de garantir a sua efetivação. Deste modo, “o que é exigido dos Estados é a completa e imparcial análise dos fatos e fidedigna disseminação da informação que está sob seu poder” (SAMPAIO; ALMEIDA, 2009, p. 267). Portanto, o Poder Público “deve garantir que a questão seja amplamente averiguada e que os resultados da investigação se tornem públicos, independentemente de o resultado obtido agradar ou desagradar os agentes estatais” (SAMPAIO; ALMEIDA, 2009, p. 267).

A fundamentalidade do direito à memória é, portanto, extraída da necessidade do povo em conhecer sua história e, principalmente, suas lutas. Desse direito nascem outras construções, as quais consistem no sentimento de pertença, o qual é responsável por despertar o interesse das novas gerações em olhar para o passado com orgulho e admiração daqueles que tanto fizeram para se chegar à democracia.

Além disso, há também a formação de um sentimento de repulsa por atos praticados pelo Poder Público com o fim de reprimir aqueles que contrariavam suas determinações. Por isso, é que não podemos abrir mão desse direito e relembrar os fatos pretéritos e, com isso, evitar que os erros cometidos no passado se repitam no presente ou mesmo no futuro. Acerca das atitudes concretas do Estado no que tange ao resgate da memória, por meio do tratamento conferido a esta na Constituição Federal de 1988 falaremos no próximo tópico.

2 PREVISÃO DO RESGATE DA MEMÓRIA NA CF/88

A Constituição Federal de 1988, em seu art. 216, traz o conceito de patrimônio cultural e lhe confere a respectiva proteção. Segundo o texto constitucional, “constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira […]”. De acordo com Dantas (2010, p.114), o patrimônio cultural é fruto da análise de 3 conceitos basilares, que são: os bens culturais, a cultura e o patrimônio cultural em si.

Nesse sentido, é importante descrever que o patrimônio cultural é a manifestação da cultura de um povo e esta, por sua vez, pode ser definida “[…] como as diferentes maneiras de viver de um povo, transmitidas de geração a geração recebidas por tradição, bem como o modo de falar, as crenças, o saber e o artesanato representam a forma do homem se relacionar em sociedade” (MAIA, 2003, p. 39). Portanto, a cultura é todo o arcabouço histórico que individualiza e, ao mesmo tempo, identifica um povo.

Com relação aos bens culturais, pode-se depreender que estes são “[…] os elementos heterogêneos que compõem a Cultura e são identificados porque indivíduos ou grupos sociais conferem-lhes algum tipo de valor, capaz de torná-los importante e aptos ao reconhecimento e à proteção” (DANTAS, 2009, p. 114). Esses bens culturais retratam a diversidade de culturas, ou seja, cada grupo social, étnico, econômico teve, ao longo da história, a sua contribuição, o que culminou na composição do patrimônio cultural, o qual merece a sua proteção por parte do Poder Público.

Ainda com relação aos bens culturais, é importante destacar a definição atribuída pela Convenção de Haia (1954) aos bens titulares de tal característica, qual seja:

Para fins da presente Convenção são considerados como bens culturais, qualquer que seja a sua origem ou o seu proprietário:

  1. a) Os bens, móveis ou imóveis, que apresentem uma grande importância para o patrimônio cultural dos povos, tais como os monumentos de arquitectura, de arte ou de história, religiosos ou laicos, ou sítios arqueológicos, os conjuntos de construções que apresentem um interesse histórico ou artístico, as obras de arte, os manuscritos, livros e outros objectos de interesse artístico, histórico ou arqueológico, assim como as colecções científicas e as importantes colecções de livros, de arquivos ou de reprodução dos bens acima definidos;
  2. b) Os edifícios cujo objectivo principal e efectivo seja, de conservar ou de expor os bens culturais móveis definidos na alínea a), como são os museus, as grandes bibliotecas, os depósitos de arquivos e ainda os refúgios destinados a abrigar os bens culturais móveis definidos na alínea a) em caso de conflito armado;
  3. c) Os centros que compreendam um número considerável de bens culturais que são definidos nas alíneas a) e b), os chamados “centros monumentais”.

E o terceiro conceito, que é do próprio patrimônio cultural, resume-se ao “[…] conjunto formado por esses bens culturais, valorados pela sociedade, que assume um conteúdo e um perfil diferenciado consoante cada contexto social e histórico” (DANTAS, 2010, p. 115). Com base nessa transcrição, podemos afirmar, que o patrimônio cultural é o reflexo do contexto histórico protagonizado por cada tipo de sociedade, o qual mesmo tendo ocorrido no passado tem forte influência no presente e no futuro motivo este, que evidencia a necessidade de conservação deste patrimônio.

Importa salientar que a caracterização do patrimônio cultural foi reformulada, pois somente com o advento da Constituição Federal de 1988, o rol passou a ser exemplificativo, ou seja, deixou a cargo da Administração Pública a proteção tanto de bens de natureza material quanto de imaterial, o que é mais fácil de se adequar à natureza multidimensional das culturas atuais.

Apesar de toda essa evolução em matéria de proteção constitucional aos bens culturais, ainda é preciso avançar, pois para que o patrimônio cultural se efetive como um fundamento do direito à memória é necessário que a sociedade tome “[…] consciência do seu papel fundamental de guardiã do próprio patrimônio, passando então a impedir a degradação e a destruição do meio ambiente, imóveis e objetos culturais, numa ação de salvaguarda preventiva” (MAIA, 2003, p. 41).

Acerca da relação do patrimônio cultural com o direito à memória, é importante destacar que o primeiro é uma herança, a qual o passado deixou para os que não puderam vivenciá-lo. Assim, toda essa riqueza não deve ser perdida com o passar do tempo, o qual contribui para o deterioramento das construções, no caso dos bens materiais, e para o esquecimento, no caso dos imateriais. Deste modo, a preservação do patrimônio cultural é, além de um dever do Poder Público, um direito da comunidade, a qual necessita do conhecimento da sua história e “[…] pretende ver conservada a memória de fatos e valores culturais da nação brasileira” (MAIA, 2003, p. 41).

Portanto, “preservar o patrimônio nacional é dever do Estado e direito da comunidade, que pretende ver conservada a memória de fatos e valores culturais da nação brasileira” (MAIA, 2003, p. 39). Além disso, “é sabido que todo o ato de preservação de patrimônios culturais traz consigo a ideia de que é preciso salvar algo que está em perigo de desaparecimento ou se quer tirar do silêncio e do esquecimento” (ABREU; MATTOS, 2012).

Assim, a proteção que deve ser conferida aos bens públicos vai muito além do tombamento, sendo este apenas um dos instrumentos de proteção. Acerca disso, Maia (2003, p. 40) afirma, que não se entenda por preservação apenas o ato do tombamento. Preservar é conservar a memória, portanto conceito genérico que dá ao Poder Público o direito de, conforme a legislação, exercer todas as atividades administrativas indispensáveis ao fomento de ações de preservação, sem ferir direitos individuais.

O tombamento, por sua vez, é um instituto jurídico muito utilizado pelo Poder Público na preservação dos bens culturais, pois confere proteção sem retirar a propriedade do particular. Apesar de o particular continuar com a propriedade do bem, lhe são impostas algumas restrições quanto ao uso e a conservação do mesmo a fim de manter na íntegra aquela edificação, o que retrataria de forma mais fidedigna aquele momento histórico.

Além da proteção ao patrimônio cultural pela Constituição Federal de 1988, pode-se verificar outra forma de resgate da memória por meio do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, cujo art. 68 dispõe que “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.

Com relação ao surgimento da necessidade de preservação do patrimônio cultural brasileiro juntamente com o reconhecimento da propriedade das comunidades quilombolas, é importante descrever, que o Estado teve a preocupação com a formação da identidade nacional, a qual está intimamente ligada à manutenção das construções históricas, documentos, culturas tradicionais, dentre outros.

Nesse sentido, está a afirmação de Ramos, a qual considera que a Constituição de 1934, marco inicial da preservação do patrimônio histórico, juntamente com a Constituição de 1988, cujo texto inovou ao assegurar o direito de propriedade das comunidades quilombolas, marcaram uma transição na postura do Estado face a cultura dos grupos tradicionais, bem como a história da própria sociedade brasileira. Para a referida autora, o Poder Público entendeu, na elaboração dessas constituições, a necessidade de preservação da memória e, sobretudo, de formação da identidade nacional. Desta forma, a consciência sobre a importância da preservação do patrimônio histórico e artístico surge, efetivamente no Brasil, com a mesma finalidade que a fez surgir em outras regiões do mundo. Era o momento em que o Estado pretendia incorporar um ideário de identidade nacional que ao mesmo tempo concedesse bases de sustentação junto ao povo brasileiro. Seria uma identidade nacional para um discurso político específico. O objetivo era encontrar tal sustentação na valorização e reconhecimento da cultura nacional a partir de suas raízes mais populares (RAMOS, 2012).

Acerca disso, curial destacar que por muitos anos, mesmo após a abolição da escravidão, em 1888 com a Lei Áurea, as comunidades afro-descendentes ainda se encontravam à margem da sociedade, haja vista os resquícios do período da escravidão ainda tão presentes naquele povo. Era praticamente inexistente o reconhecimento dos direitos daquele grupo, porém com a evolução constitucional passou-se a observar mais de perto esse grupo étnico e a garantir a preservação das suas memórias culturais, o que se verifica no seguinte trecho:

o que se percebe com a legislação brasileira para o tema é que esta reflete uma preocupação com a valorização e o reconhecimento de elementos característicos da cultura afro-brasileira à medida que pretende criar mecanismos de preservação da memória desses povos e por conseqüência dessa cultura considerando que privilegia a auto identificação a partir de critérios que remontam a trajetória histórica destes grupos. E através disso contribuir para um processo de conscientização que permita a estes povos e a estas culturas saírem do lugar de descriminados e marginalizados, em que tantas vezes foram colocados (RAMOS, 2012).

Apesar de legalmente garantido, o direito à propriedade das comunidades quilombolas é apenas o reconhecimento de um direito desse grupo étnico, pois ainda há muito que se fazer para compensar o passado de exclusão, que marcou a história dos afro-descendentes. Acerca disso, é preciso que haja uma transformação nas atitudes da sociedade atual no sentido de incentivar o reconhecimento e a consequente efetivação dos direitos desse grupo, os quais sejam capazes de, ao menos, amenizar essa história de sofrimento marcada pela escravidão.

Assim, o conhecimento desse passado histórico é extremamente importante para que se possa compreender a realidade que, ainda nos dias atuais, essas minorias enfrentam. Portanto, toda essa história faz parte da nossa identidade, visto que os afro-descendentes foram essenciais para a construção da sociedade em que vivemos e, inclusive, para o fomento da economia brasileira.

Por fim, é possível depreender após essa análise acerca da preservação do patrimônio histórico e do reconhecimento da propriedade das comunidades quilombolas, que a inserção dessas medidas no texto constitucional é apenas o primeiro passo, visto que muito há que se fazer sobre essa questão, pois o mais importante, além da preservação de monumentos, documentos históricos e terras de grupos tradicionais, é fazer despertar na sociedade o interesse pela busca do conhecimento dessa história para que a mesma não se perca com o decorrer do tempo.

3 A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO E A FORMAÇÃO DA IDENTIDADE NACIONAL

A identidade do povo, por muito tempo, foi uma visão criada e imposta pelo Estado à sociedade. Visão essa, que favorecia a manutenção dos governantes no poder sem questionamento do povo acerca das medidas tomadas pelos chefes de governo. Essa situação foi fruto de uma

[…] estrutura patriarcal que os acompanhava desde o período colonial, o povo não desenvolveu a capacidade de cooperar, de viver a democracia, precisavam ser tutelados, agora não mais por um senhor clânico, que representava o localismo, o mandonismo e sim por um Estado autoritário que governaria para coletividade, evitaria a descentralização, seria responsável pela transição democrática e pela construção do sentimento nacional. (ANDRADE, 2010, p. 7)

Assim, o Estado era o único responsável pela construção da identidade nacional, uma vez que ele se utilizava de diversos mecanismos para a implantação do sentimento de pertencimento na sociedade. Contudo, o problema enfrentado por esse processo unilateral era que a identidade construída ou mesmo imposta pelo Estado não se adequava a certos grupos, ou seja, não os identificava. Nesse sentido, “o Estado foi muito ativo em relação à construção de identidades, porém, isso não quer dizer que o povo se submeteu a tudo criado pelo governo” (ANDRADE, 2010, p. 7).

Nesse sentido, apesar de todo o movimento do Estado para a imposição de determinada identidade nacional, é importante compreender que para o estabelecimento do processo de construção da identidade, são necessários dois protagonistas, quais sejam: o Estado e o povo. Desta forma, “apesar do Estado em muitos casos oferecer um modelo de identidade nacional, essa consciência nacional só seria construída se tivesse como base a cultura popular e o seu consentimento” (ANDRADE, 2010, p. 8). Não faz sentido, portanto, uma identidade imposta, já que as principais características desse processo é a identificação do povo e, sobretudo, a construção do sentimento de pertencimento para com aquilo que foi fundamental para destacá-los dos demais.

Assim, o que legitima a identidade nacional é o próprio povo, pois apesar da identidade ser construída de variadas formas, todas elas voltam-se para aquilo que pertence ou que um dia pertenceu àquela sociedade. Por isso, é possível descrever a íntima relação existente entre memória e identidade nacional, já que a primeira é a fonte primária para se alcançar a segunda. Nesse sentido, Carretero (2010, p. 33) afirma, que a história parece ser muito eficaz para nos fazer membros do grupo social com o qual compartilhamos “algo”, que, por regra geral, é formulado por meio de um relato original; além disso, esse mesmo relato nos separa daqueles que não pertencem ao grupo. A história […] é o instrumento privilegiado para diferenciar “nós” dos “outros”, instância na qual se constrói uma identidade relacional.

Além disso, ressalta-se que a identidade não se resume aos acontecimentos que marcaram a história de certos grupos, haja vista que outras comunidades podem ser identificadas por seus costumes, pela sua língua, por seus rituais (ANDRADE, 2010, p. 4), ou seja, cada grupo possuirá sua própria base identidária, a qual servirá como uma espécie de digital para individualizá-lo frente aos demais.

Acerca disso, mister se faz ressaltar os dois sentidos do termo identidade nacional apresentados por Andrade. Segundo a autora, identidade nacional pode ser vislumbrada com base na objetividade ou na subjetividade, ou seja, para os que adotam o critério objetivo, a identidade nacional seria entendida como “[…] um elemento imutável, integrador” (ANDRADE, 2010, p. 3), por outro lado aqueles que preferem o critério subjetivo encaram a identidade como algo “[…] construído, transformado, podendo um mesmo indivíduo se sentir fazendo parte de diversas identidades e a qualquer momento se desvincular de uma delas” (ANDRADE, 2010, p. 3).

Pode-se afirmar, então, que o critério mais adequado para o cenário atual é o subjetivo, visto que esse processo não é estanque, ou seja, renova-se e complementa-se a cada nova geração, pois a história deve ser legada de geração em geração, não podendo ser ignorada (CARRETERO, 2010, p. 32) e, como vimos, ela é fundamental para guiar a construção da identidade.

Consoante a essa questão, devemos nos reportar ao duplo sentido da história, a qual pode “por um lado, oferecer a informação organizada e crítica do passado, e por outro, oferecer uma memória solidária com o sentimento de identidade nacional […]” (CARRETERO, 2010, p. 37). Assim, a história apresenta-se com uma fonte essencial de retomada ao passado, uma vez que ela é capaz de revelar os acontecimentos ocorridos em épocas passadas, os quais, muitas vezes, são desconhecidos pelas gerações atuais e futuras, seja porque ficaram perdidos no tempo sem registro ou mesmo porque foram esquecidos pela população.

Desta forma, a história funcionará como um verdadeiro quebra cabeça em que as peças são representadas pelos fatos históricos. Por meio dessa alusão, pode-se afirmar que na ausência de um fato, a história encontrar-se-á incompleta, o que impossibilitará a sua compreensão. Portanto, para que seja compreendida por aqueles que não fizeram parte do processo histórico, ela necessita de uma sequência cronológica.

Pollak (1992, p. 205) destaca a influência da memória no processo de construção da identidade por meio da seguinte passagem:

[…] a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si.

Além da importância da memória e da história no processo de construção identidária, pode-se destacar, ainda, a contribuição do reconhecimento de bens culturais como patrimônio histórico-cultural, o qual “[…] não constitui apenas um acervo de obras raras ou da cultura de um passado remoto e distante, nem serve tão só para relembrarmos nostalgicamente os tempos idos” (ORIÁ, 2012, p. 134), mas sim para identificar os feitos históricos de toda a sociedade.

A partir da análise do processo identitário, podemos afirmar que o fato dele ser composto tanto pelo Estado, quanto pelo povo revela a importância dessas duas figuras estarem em harmonia, haja vista que na sociedade atual é inadmissível que o Estado, de forma unilateral, crie identidades e as imponha aos seus grupos formadores.

Em suma, o próprio povo deve buscar a verdade dos fatos, pois deste modo, ele será capaz de compreender a sua origem e, além disso, traçar ou, ao menos, prever o destino de sua própria sociedade, tendo em vista que o passado é a principal fonte de conhecimento do futuro. Assim, o Estado, como parte integrante do processo identitário não deve servir como um obstáculo à busca pela revelação do passado, mas sim como um aliado do povo nessa busca pela construção ideal da identidade nacional.

Como um dos mecanismos de construção desta identidade nacional, aponta-se a Justiça de Transição, que se traduz na busca pela revelação da história e pela reparação dos direitos violados ao longo de um período de repressão. Ou, ainda, pode ser conceituada como o empenho para a constituição de um momento de pós-conflito, marcado pela violação dos direitos humanos (ZYL, 2009, p. 82). É importante destacar que, no presente trabalho, o período e o espaço a serem analisados é a ditadura militar no Espírito Santo.

Desse modo, a finalidade da justiça transicional é de “processar os perpetradores, revelar a verdade sobre crimes passados, fornecer reparações às vítimas, reformar as instituições perpetradoras de abuso e promover a reconciliação” (ZYL, 2009, p. 31). Assim, a justiça, a verdade, a reparação, as reformas institucionais e a reconciliação são pilares que sustentam a efetividade da Justiça de Transição.

Para os autores Dimoulis, Swensson Junior e Martins (2010, p. 92), um dos principais objetivos da justiça de transição é a satisfação das vítimas da atuação arbitrária e violenta do Estado, que se materializa nas transformações, reparações morais e materiais e a pacificação da sociedade, eliminando os conflitos e as tensões.

Nessa perspectiva, para combater um legado de atrocidade deixado pelo período de repressão no Brasil, são necessárias diferentes estratégias sejam judiciais ou extrajudiciais. Uma delas é o julgamento dos perpetradores que cometeram graves violações dos direitos humanos, sendo que esse julgamento servirá tanto para consolar as vítimas quanto para evitar futuras violações e abusos dos direitos humanos. Entretanto, é válido reconhecer que o sistema implantado, hoje, da justiça penal não está desenhado para tratar de violações generalizadas e sistemáticas que constituem, assim, centenas de crimes, como é o caso dos crimes ocorridos no período da ditadura. Para Zyl (2009, p. 34) isso ocorre porque “o processo da justiça penal deve demonstrar um comprometimento minucioso com a equidade e o devido processo legal com a necessária implicação de uma designação significativa de tempo e recursos”.

Deve-se, ainda, destacar que os julgamentos desenvolvem uma função importante no que tange a auxiliar a devolução da confiança entre a sociedade e o Estado. Isso ajuda, também, a restabelecer a dignidade dos perseguidos políticos e a diminuir seus sentimentos de mágoa e marginalização. No entanto, é sabido que a justiça não será feita apenas em um tribunal em virtude do tamanho das atrocidades ocorridas no período ditatorial e, portanto, é necessário o complemento com outras estratégias da efetivação transicional.

É válido destacar que no Brasil, em 2001, foi criada a Comissão de Anistia pelo Ministério da Justiça, e como órgão responsável pela efetivação da política de reparação dos perseguidos políticos da época da ditadura militar, busca à recuperação da memória coletiva e individual do povo brasileiro (RELATÓRIO ANUAL DA COMISSÃO DE ANISTIA 2007, 2008, p. 7).

Nessa busca pela efetivação dos pilares da justiça de transição, as Comissões encontram dificuldades, tais como

[…] a assimetria existente entre os valores reparatórios percebidos por diferentes anistiados, que tiveram processos analisados por variados órgãos judiciais e da administração pública no período anterior à criação da Comissão de Anistia no Ministério da Justiça” (ABRÃO; BELLATO, 2009, p. 15)

Importa salientar que, os grupos de perseguidos políticos julgados pela Comissão de Anistia são os elencados pela sua lei criadora, formados pelo “cidadão violado em suas liberdades públicas e em sua integridade física e pelos demitidos dos empregos, a maioria em greves, durante o regime ditatorial” (ABRÃO; BELLATO, 2009, p. 15).

Uma das medidas adotadas pela Comissão para aproximar os perseguidos políticos de seus julgamentos foi a criação das Caravanas da Anistia, uma vez que, inicialmente os julgamentos eram realizados na capital do país e muitos dos perseguidos não possuíam condições de se deslocarem até lá. Além disso, em cada Caravana são resgatadas histórias locais e seus personagens, são prestadas homenagens aos que lutaram, são feitas as reparações devidas. Hoje, com as Caravanas da Anistia, podemos chegar a todos os cantos do país, identificando os milhares de perseguidos anônimos e pedindo desculpas públicas e oficiais, tal como ocorre com os perseguidos notórios, que têm seus processos acompanhados pela imprensa (ABRÃO; BELLATO, 2009, p. 18).

Além disso, a Caravana da Anistia tem um caráter educacional, já que são realizados julgamentos dos requerimentos de indenização em escolas, universidades e, também, em assembleias legislativas. Por fim, sabe-se que a caravana já passou por dezesseis estados e já julgou mais de quinhentos processos.

Desse modo, verifica-se a grande importância que a Comissão de Anistia tem para a efetivação e a consolidação da Justiça de Transição, pois ela traz uma aproximação dos perseguidos políticos com o reconhecimento das violações sofridas perante o Estado. No entanto, apesar da importância dela há, ainda, muito que ser feito na Comissão de Anistia, principalmente, em relação aos perpetradores que cometeram graves violações dos direitos humanos.

Destaca-se que, além disso, a busca pela verdade é outra estratégia que deve ser utilizada para a efetivação da justiça transicional, já que ela ajuda a prevenir o futuro de novas violações. No entanto, para que seja possível sensibilizar as futuras gerações contra a tortura e diversos outros abusos ocorridos no período ditatorial é necessário ter o amplo conhecimento dos fatos e o reconhecimento do Estado das atrocidades cometidas (ZYL, 2009, p. 35).

A verdade é aquilo que não se pode modificar, transformar, assim, a verdade aduz segurança para a vida do cidadão que deve ser praticada tanto na vida privada, quanto na vida pública. Em relação à verdade, Paulo Klatau Filho descreve que, “se na vida privada, o dever de dizer a verdade consiste num imperativo da moral, na vida pública, esse dever será tratado com o mesmo rigor” (KLATAU FILHO, 2008, p. 67).

Nesse sentido, nota-se que o Estado tem o dever de buscar e mostrar a verdade de todas as ocorrências de sua história. Dever esse, que está fundamentado na garantia da sociedade de obter informação e vai ser a partir da informação que os indivíduos podem desenvolver o senso crítico e respeito com a vida humana. Pode, assim, afirmar que qualquer limitação ao acesso à informação só se justifica quando existir notório e essencial interesse público, o que não se enquadra em relação a verdadeira história que ocorreu no período ditatorial (SAMPAIO; ALMEIDA, 2009, p. 263).

Tendo em vista a importância da verdade para que o Estado consiga, assim, informar a verdadeira história para o cidadão, é que existem as comissões de verdade em diversos países. Essas comissões possuem a finalidade de dar voz às vítimas no meio público e seus próprios testemunhos acabam contribuindo para a construção da verdade, ou seja, destruindo as mentiras oficiais sobre as violações dos direitos humanos. Além disso, ao dar voz às vítimas, o Estado contribui para a minimização de seus sofrimentos.

Outro benefício que as comissões da verdade trazem é proporcionar e dar incentivo às mudanças das instituições estatais, pois é de grande importância analisar e identificar as instituições que violaram os direitos humanos, já que é por meio do reconhecimento dessas práticas realizadas no passado que poderá combater, de fato, essas violações (ZYL, 2009, p. 36).

Assim, é válido descrever que em novembro 2011 foi criada a Comissão Nacional da Verdade no Brasil por meio da Lei 12.528. Comissão essa, que terá o prazo de dois anos para verificar violações aos direitos humanos ocorridos entre 1946 e 1988, incluindo, assim, o período ditatorial. A comissão é constituída por sete integrantes, os quais serão nomeados pela própria presidenta da República e quatorze auxiliares, sendo que a comissão tem a faculdade de auxiliar o poder público na busca pelos restos dos desaparecidos e, ainda, nas demais buscas de reparação da Justiça de Transição às vítimas por meio das informações que forem obtidas durante o seu prazo de vivência.

A Comissão é um auxílio necessário para que a sociedade tenha o conhecimento verdadeiro de sua história. Além disso, será objetivo da Comissão recomendar adoção de medidas públicas que previnam a violação de direitos humanos de forma que garanta a sua não repetição, assim como gerar a reconstituir a história de cada caso, para que as vítimas sejam amparadas.

Embora a Constituição de 1988 não reconheça de forma expressa o direito à verdade, ela deixou indícios no corpo do seu texto, como, por exemplo, o princípio da transparência na esfera pública, em que é obrigatório à esfera pública ser transparente em seus atos, ou seja, mostrando a verdade de suas decisões e de seus feitos. Dessa forma, pode-se dizer que o direito à verdade advém dos princípios constitucionais junto com os comprometimentos internacionais firmados pelo Brasil (SAMPAIO; ALMEIDA, 2009, p. 263).

Verifica-se, dessa forma, o tamanho da importância desse pilar da justiça de transição e o quanto ele está emergente no Estado democrático. Assim, cabe uma luta pela eficiência da Comissão Nacional da Verdade e, principalmente, pela verdade por inteiro. Pois, uma verdade pela metade jamais trará a clareza do nosso passado e a prevenção de arbitrariedades para as futuras gerações.

Quanto à reparação, é importante dizer que ela é devida às vítimas de abusos de direitos humanos e, de acordo com Paul Zyl (2009), pode ocorrer de vários modos, tais como ajuda material, que a é a mais adotada nos países que se tornaram cenário dessas atrocidades, além da assistência psicológica e da adoção de medidas simbólicas, como a criação de monumentos em homenagem às vítimas. Além da reparação concedida às próprias vítimas, deve-se considerar que, muitas delas estão mortas e desaparecidas. Desta forma, a reparação deve ser proporcionada à sua família, a qual também foi atingida com a repressão.

Uma das vertentes da reparação é garantir que a vítima tenha o retorno da situação em que ela se encontrava antes de sofrer abusos, que é uma tarefa um tanto quanto difícil, haja vista a natureza de tais atos violentos sofridos por esses cidadãos e o consequente efeito psicológico acarretado. Porém, não se deve encarar a reparação como uma tarefa impossível, pois é sabido que muitas vítimas preferem que a verdade seja revelada antes mesmo da concessão da indenização monetária. Para elas, a falta de investigação corresponde à continuidade de um período de repressão e de completa violação aos seus direitos. É como se o Estado não se importasse em sair de uma posição de inércia para lutar contra a perpetuação desses atos violentos e, principalmente, contra a repetição de tais atrocidades.

É importante ressaltar que, pior do que não receber a devida reparação, é ter a possibilidade que, violações aos direitos humanos ocorreram novamente e, que as próximas gerações estarão fadadas a essa cruel realidade, caso não seja construído um presente marcado por investigações sérias e, pela consequente, punição dos responsáveis. Nesse sentido, estabeleceu-se “[…] uma gama de medidas especiais de reparação, que vão desde a restituição e indenização à reabilitação, satisfação, prevenção e garantia de que isso não ocorrerá novamente” (REVISTA ANISTIA POLÍTICA E JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO 3, 2010, p. 366). Para que a reparação seja completa, é importante que haja investigação profunda acerca dessa época, pelo Estado.

Com relação a essa previsão de justa e adequada reparação, Paul Zyl (2009, p. 36) faz uma ressalva sobre como proporcionar tal reparação. Desta forma, o autor faz questionamentos se o órgão responsável pela concessão da indenização terá que diferenciar as vítimas, seja pelos “tipos e graus de tortura” (ZYL, 2009, p. 36) ou pelos “meios socioeconômicos” (ZYL, 2009, p. 36).

Cabe menção à Declaração de Princípios Básicos de Justiça para Vítimas de Crime e Abuso de Poder, a qual versa sobre […] “questões de restituição, indenização e assistência a vítimas de crime” (REVISTA ANISTIA POLÍTICA E JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO 3, 2010, p. 369), dentre essas disposições, pode-se citar as seguintes:

  1. a) as vítimas têm o direito à restituição pelos danos sofridos; b) elas devem ser informadas de seus direitos ao buscar restituição; c) infratores ou terceiros devem fazer uma restituição justa às vítimas, suas famílias e dependentes. Tal restituição deve incluir devolução dos bens ou pagamento pelo dano ou prejuízo sofrido, reembolso pelas despesas incorridas como resultado da vitimização, prestação de serviços e restabelecimento de direitos; d) quando uma indenização não estiver totalmente disponível pelo autor ou por outras fontes, o Estado deve se esforçar para prover uma indenização financeira; e) as vítimas devem receber assistência e apoio material, médico, psicológico e social (REVISTA ANISTIA POLÍTICA E JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO 3, 2010, p. 369).

Por fim, é importante dizer que a não reparação ou a reparação deficiente para as vítimas de atos violentos tem como principal fator a impunidade dos agentes responsáveis pelo cometimento de tais atrocidades.

Para assegurar que o Estado não fique inerte diante da obrigação de concessão da reparação devida às vítimas, o Comitê de Direitos Humanos, a Comissão Interamericana e o Tribunal Interamericano de Direitos Humanos, que têm como função a vigilância aos Estados no que tange ao cumprimento dos tratados de direitos humanos (REVISTA ANISTIA POLÍTICA E JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO 3, 2010, p. 414), estabeleceu um parâmetro para o exercício dessa vigilância, que tem como pressupostos “[…] a investigação dos fatos, imposição da justiça às pessoas responsáveis e assegurar reparação para as vítimas” (REVISTA ANISTIA POLÍTICA E JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO 3, 2010, p. 415).

No entendimento do Comitê de Direitos Humanos, a concessão da anistia não é um encargo do Estado, o qual é responsável pela investigação dos atos ilícitos cometidos e a correspondente punição dos agentes responsáveis por tal execução, haja vista que a adoção de tal medida acarreta o esquecimento da população, o que pode contribuir para a repetição desses atos.

Observa-se, a partir dessas considerações, que durante o regime militar diversas violações dos direitos humanos foram cometidas, principalmente, por instituições estatais. Nesse sentido, para combater as atrocidades ocorridas no passado é de extrema importância a ocorrência de reformas institucionais, pois, por exemplo, se uma autoridade pública que cometeu torturas continuar no seu cargo vai gerar uma sensação de impunidade e de desrespeito em relação à sociedade e principalmente os perseguidos políticos.

Assim, cabe ao governo adotar programas de depuração e saneamento administrativo para que os que desrespeitaram os direitos humanos sejam afastados dos cargos públicos (ZYL, 2009, p. 37). A retirada dos perpetradores dos cargos públicos reestabelece a confiança da sociedade com o Estado e, ainda, restaura a integridade dessas instituições.

Contudo, verifica-se a importância do compromisso do Estado de reformar suas instituições que cometeram inúmeros abusos no período ditatorial, tendo em vista que algumas delas são de extrema relevância para o governo e não podem ser extintas. Assim, como auxílio na consolidação da justiça de transição é necessário que o Estado faça sua reforma institucional de forma séria e eficaz para que, dessa maneira, as vítimas, os familiares das vítimas e até mesmo as novas gerações sintam confiança em seu governo.

E, como último pilar da justiça transicional, tem-se a reconciliação, a qual se perfaz com as recordações das atrocidades cometidas em um período de repressão e a, consequente, construção da história do país. Porém, é preciso diferenciá-la do perdão obrigatório, da impunidade e do esquecimento, já que essa é a confusão criada por muitas pessoas, que rejeitam a ideia de reconciliação.

Com relação à importância da construção da história, Ost (2005, p. 42) preconiza que “à sociedade sem memória não é possível atribuir uma identidade, nem ter pretensões a qualquer perenidade”. Assim, pode-se depreender que uma sociedade que não repassa seus acontecimentos às próximas gerações está fadada à ruína, como se sua base fosse construída sobre um montante de areia.

Desta forma, um dos pontos da reconciliação é a transmissão para o presente e para o futuro dos acontecimentos do passado, pois essa é a principal forma de evitar a volta da época de repressões. Somente conhecendo o passado é possível evitar a sua perpetuação. Por isso é que “a reconciliação […] não pode reduzir-se a ignorar o passado, negando o sofrimento das vítimas ou subordinando a exigência da prestação de contas e a reparação a uma noção artificial de unidade nacional” (ZYL, 2009, p. 39).

A reconciliação se torna essencial na medida em que, permite a construção da memória individual e coletiva e apta a aproximar os cidadãos, que não vivenciaram tal período da história protagonizada por seu país. Com o conhecimento dessas atrocidades será possível evitar que elas se repitam no futuro ou mesmo no presente.

Outra importância da construção da memória de um povo é que por meio de […] “lembranças decretadas, comuns e fundadoras, erige-se a consciência coletiva” (OST, 2005, p. 50) e, é justamente, essa consciência coletiva, que possibilita a realização de ações sociais, as quais impedirão a execução de atos contrários aos direitos humanos seja no presente ou no futuro.

Cabe ressaltar que, a construção da memória encontra dificuldades, que vão desde a repulsa dos próprios governantes à divulgação da verdade ocorrida à época da ditadura até a divulgação de informações selecionadas sobre os acontecimentos pretéritos. Sobre essa última, Ost (2005) a denomina de “memória em migalhas”, a qual impede a ligação entre o passado e o presente. Acerca disso, o autor prescreve que atualmente, o declínio da memória é ainda mais acentuado por dois fenômenos. O primeiro deles reside na superabundância de informações e imagens geradas pelas mídias, da qual resulta uma comunicação imediata e pontualizada em detrimento da coerência temporal e da hierarquia de sentidos, que é buscada pela narração dos acontecimentos no registro da memória. […] Quanto ao segundo fator de declínio da memória coletiva, ele reside na fragmentação ao infinito de grupos e subgrupos de pertença que definem cada uma das afiliações parciais e superficiais, logo, pouco capazes de suscitar identidades coletivas e mobilizadora (OST, 2005, p. 54).

Desta forma, a reconciliação também se perfaz com o estabelecimento do nexo entre o “passado e a realidade” (OLIVEIRA, 2009, p. 210), contudo um dos maiores desafios é “[…] o reconhecimento na nossa tradição, na história, no passado, as origens que permitem a existência desta realidade fenomênica que ainda fomos incapazes de nos reconciliar” (OLIVEIRA, 2009, p. 211).

Acerca disso, Oliveira (2009) faz uma ressalva ao dizer que, o período da ditadura militar deve ser analisado sob um olhar crítico a fim de evitar a repetição de tal repressão, ademais, é preciso “[…] compreendê-lo sem a necessária gana de vingança, aceitá-lo, reconciliar-se com este passado de forma a que não seja, novamente, vivenciado pelas gerações presentes e futuras, de forma a que não venha se fazer presente (OLIVEIRA, 2009, p. 212).

Deste modo é inegável a função do Estado nessa luta pela construção da paz social. Para tanto, é importante citar um exemplo de como os países que passaram por períodos de repressão, lidam com essa situação pós-conflito. O Chile, por exemplo, criou uma Comissão Nacional para Verdade e Reconciliação, cuja função é “a investigação de violações sérias aos direitos humanos perpetradas no Chile durante o período da ditadura militar” (REVISTA ANISTIA POLÍTICA E JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO 3, 2010, p. 409).

Portanto, é preciso que o Estado brasileiro continue na luta para o completo estabelecimento da justiça de transição, pois esse é apenas o começo da construção da identidade do povo brasileiro. O mais importante, que ainda não foi implantado pelo governo, é a investigação dos fatos ocorridos e de seus respectivos agentes, porque somente conhecendo o que de fato ocorreu no período de repressão é que a sociedade conseguirá estabelecer o nexo entre o passado e o presente, o que consequentemente servirá como obstáculo à repetição de tais atrocidades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo contou com o exame acerca da fundamentalidade da memória aliada à sua previsão na Constituição Federal de 1988 e no ADCT, o que demonstra a preocupação estatal com o seu resgate e, ainda, discutiu-se a função exercida pela memória na formação escolar.

Diante das considerações tecidas, podemos afirmar que a memória não representa nem de longe meras lembranças que devem ser deixadas no passado, mas pelo contrário, observou-se que esse instituto deve estar presente em todos os momentos e, principalmente, durante a formação escolar, pois é nesse momento da vida que o indivíduo está formando sua consciência crítica e conhecendo as diversas áreas do saber.

Ademais, observamos que a memória não serve apenas para conhecer os acontecimentos históricos, mas possui uma finalidade ainda maior que se resume na construção da identidade nacional. E esta, por sua vez, é capaz de nos revelar a nossa origem, bem como o nosso futuro, ou seja, ela nos revela de onde viemos e para onde vamos, o que é essencial para a construção de um legado para as futuras gerações.

Por fim, trabalhamos no último tópico com a problemática do resgate da memória como fonte para a formação da identidade nacional, haja vista que o conhecimento do passado histórico é essencial para o entendimento dos acontecimentos vivenciados pelas gerações pretéritas, o que permite a compreensão da realidade vivenciada atualmente. Nessa oportunidade, apresentamos formas para a implementação da memória no ambiente escolar, onde elegemos a disciplina de história o maior mecanismo para essa efetivação, haja vista a sua capacidade de libertação do indivíduo, bem como o espaço para o desenvolvimento de pesquisas acadêmicas, as quais são primordiais para novas descobertas.

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O “ESTADO DE EXCEÇÃO” COMO RESPOSTA PARA A “VIOLÊNCIA URBANA”: a dialética no vazio de conceitos e o caso brasileiro[4]

Erik Magalhães de Avilez[5]

 

Resumo: Durante uma análise da situação do Brasil no que tange à “violência urbana”, pode-se cair nas tentações de deduzir que a violência como forma preferencial da organização estatal de agir é uma prerrogativa e característica exclusiva do Estado brasileiro, sendo perpetrada por indivíduos de maneira isolada e pontual, e somente real dentro do recorte temporal específico escrutinizado. Este trabalho, contudo, visa comprovar como a dialética entre os conceitos de “estado de exceção” – formal ou informal – e de “violência urbana” são postos em diálogo de maneira utilitária para que o Estado possa perpetrar suas violações de maneira sistemática e contínua. Estes conceitos citados serão analisados de um ponto de vista semântico conceitual, sob as leituras de Pierre Bourdieu, Loïc Wacquant e Giorgio Agamben, de forma que, conquanto seja crucial observar que propor uma exclusividade no uso da violência por parte do Brasil – ou de qualquer outro Estado, nesta instância – como sendo um erro analítico sério, dada a identidade violante do Estado, é mais adequado analisar a realidade do caso específico dentro de uma lógica de violências estatais como práticas estabelecidas de ação do Estado.

Palavras-chave: violência urbana, estado de exceção, violência estatal

Abstract: When analyzing the “urban violence” in Brazil, one may be tempted to assume that violence as the State’s main path of action is a prerogative and a characteristic that is exclusive to the Brazilian state apparatus. Through this paradigm, it would be availed that this violence happens only through specific individuals, in a defined frame of moment and region. However, this article aims to demonstrate how the dialectic relation between the concepts of “urban violence” and “state of exception” – formally or not – are used by the State so it may continue to execute its violences systematically. The aforementioned concepts will be analyzed from a semantic-conceptual and pragmatic point of view, from the readings of authors such as Pierre Bourdieu, Loïc Wacquant and Giorgio Agamben. Thus, it will be demonstrated how it is a serious mistake to understand the highlighted Brazilian case of State violences – or any other case for that matter – as an “exception of violent State” to the rule of “non-violent States”, being more adequate to comprehend its reality as a specific case within the general standard of contemporary State violence.

Keywords: urban violence, state of exception, State violence.

Introdução: a violência como traço definidor do Estado

É tentador analisar a “violência urbana” do Estado brasileiro sob um prisma individualizante, compreendendo a mesma como um fenômeno isolado e atípico no conjunto de análise dos Estados modernos, com atores, conjuntura e contexto únicos que permitam tal ocorrência. Conquanto de fato haja pontos que distinguem a situação do Brasil frente ao resto do mundo, é crucial observar que propor uma exclusividade no uso da violência por parte deste Estado e de suas unidades federativas seria um erro analítico grave, sendo mais fidedigno à realidade considerar as formas que esta violência assume de acordo com o espaço no qual está inserida.

A primeira armadilha neste caminho analítico se coloca na forma da restrição dos abusos estatais, e o uso recorrente do seu aparelho coercitivo, como algo que somente se dá dentro de um espaço claramente delineado, não ocorrendo de forma geral. Ceder a esta tentação primária nos levaria a buscar compreender somente a nível regional (seja em uma escala nacional ou municipal, por exemplo) os elementos que compõem a realidade da violência perpetrada por agentes do Estado.

Esta questão é respondida e desmistificada por uma das próprias definições do Estado em si. Se considerarmos o Estado “uma comunidade humana que pretende, com êxito, o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um determinado território” (WEBER, 1982, p.56, grifo do autor), fica claro que o Estado não se utiliza de força física somente para fazer valer sua vontade sobre o espaço físico no qual está constituído, mas que o uso desta força está na sua própria concepção, de forma a ser indissociável a existência do Estado de sua capacidade coercitiva.

Esta concepção é fruto da análise que parte do próprio Estado para defini-lo. Por mais que, sob esta perspectiva, estejamos limitados a “definir o Estado moderno sociologicamente em termos dos meios específicos peculiares a ele, como peculiares a toda associação política, ou seja, o uso da força física” (ibidem, p.55, grifo do autor), ela nos permite fugir da noção de que o que temos como política estatal de força física como instrumento de coerção no Brasil é algo inerente e unicamente brasileiro. Esta conceituação de Estado obriga a análise a se debruçar sobre as idiossincrasias do processo de formação e consolidação da violência neste caso específico em vez de arguir sobre uma ilusória dicotomia entre a universalidade do ethos violento do Estado versus as especificidades do arcabouço teórico do presente estudo.

À definição weberiana e à lógica decorrente citada acima, ou seja, da violência física estatal ser uma forma constituinte do próprio Estado e a vertente garantidora de sua existência, podemos somar a conceituação indicada por Pierre Bourdieu em suas aulas:

Se eu tivesse de dar uma definição provisória do que se chama “o Estado”, diria que o setor do campo do poder, que se pode chamar de “campo administrativo” ou “campo da função pública”, esse setor em que se pensa particularmente quando se fala de Estado sem outra precisão, define-se pela possessão do monopólio da violência física e simbólica legítima. (BOURDIEU, 2014, localização 347)

Ao acrescentar o ponto da violência simbólica à violência física, têm-se as ferramentas necessárias para uma análise crítica da segunda tentação que se interpõe no estudo de caso das violências estatais: aquela de compreender as ações violentas do Estado brasileiro e de seus agentes em níveis regionais como um caso fora da realidade estatal, enxergando-as a partir de uma lógica que individualiza o uso da força física dentro dos limites do Estado. Em outras palavras, a segunda atração perniciosa que se observa é a de pensarmos a violência não como uma política de Estado – e, em última análise, a “própria política própria”[6] do Estado, por excelência -, mas como a ação pontual de indivíduos que não representam a força que os enviou.

A partir da adição do ponto simbólico às forças que o Estado impõe sobre seu território reclamado para sua própria constituição/consolidação, vê-se que a violência física é a manifestação do potencial simbólico inerente ao Estado-ator dentro do Estado-campo; a potencialidade da violência não emana dos indivíduos que a trazem a cabo. Tomando as forças policiais como exemplo: ao coagirem a população à legalidade através de potenciais violências – ou através da execução das mesmas -, não se questiona com qual autoridade elas o fazem pelo próprio véu de legitimidade que o Estado concede aos seus agentes – véu o qual Bourdieu categoriza em seu trabalho sobre “O Poder Simbólico” (1989):

O poder simbólico como poder de constituir o dado pela enunciação (…) só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário. Isto significa que o poder simbólico não reside nos ‘sistemas simbólicos’ em forma de uma ‘illocutionary force’, mas que se define numa relação determinada – e por meio desta – entre os que exercem o poder e os que lhe estão sujeitos, isto é, na própria estrutura do campo em que se produz e se reproduz a crença. (p.14-15, grifo do autor)

Enquanto a agregação do potencial de violência simbólica, de juris, ao repertório de seus agentes (em si, constituídos e constituintes por e deste potencial) se dá através deste “reconhecimento” que ignora a arbitrariedade com o qual foi outorgado no campo simbólico, a autoridade estatal agrega o potencial da violência física aos seus mandatários através da delegação de suas forças – processo transladado por Bourdieu (2014) para seu conceito de “comissão” da autoridade estatal:

(…) a comissão (ou uma cerimônia de inauguração) é um ato típico de Estado (…) [para] mobilizar a doxa e transformar o que é tacitamente admitido como sendo óbvio, o que todos os membros de uma ordem social conferem a essa ordem: mobilizar de tal maneira que as proposições enunciadas por esse grupo possam funcionar como palavras de ordem e proceder a essa operação extraordinária que consiste em transformar uma constatação em norma, em passar do positivo ao normativo. (localização 1055-56, grifos meus)

Esta lógica implica na percepção de que o Estado, embora seja definido por seu monopólio da violência física no conceito weberiano, não o faz diretamente, dada a sua natureza conceitual. A aplicação de sua violência física se dá através dos seus agentes, aos quais comissiona seu poder reconhecido – neste caso, sua posse exclusiva do uso da violência física. É desta constatação que decorre o entendimento de que as forças policiais, ao agirem em nome do Estado, não têm poder a emanar de si mesmas, de forma que as ações que elas conduzem são, por definição, ação de Estado; se o Estado brasileiro não pode apertar o gatilho por sua natureza conceitual, ele o faz através de seus agentes[7].

Após verificar-se que a violência estatal não se apresenta de forma restrita a um território específico e também não é fruto da ação de indivíduos que atuam às margens da estrutura, mas são ramificações das próprias forças e existência estatais, pode restar a ilusão de que a violência estatal se dá somente em um recorte de tempo específico, não sendo atrelada à raison d’être do Estado, mas uma manifestação de uma conjuntura momentânea. Esta visão também se prova errônea quando posta sob o teste da própria medida que busca usar como artifício: o tempo.

Se a violência estatal é um traço determinante do ethos do Estado, não há Estado que exista sem sua violência – embora a violência como espinha dorsal do poder não seja um conceito restrito aos Estados. Como afirmou Walter Benjamin (2013, p.13), “não há documento de cultura que não seja também documento de barbárie”, de forma que é possível circunscrever o Estado dentro desta dualidade “documento de cultura/documento de barbárie”.

            Assim sendo, quaisquer armadilhas relacionadas a um recorte temporal limitado caem por terra ante a análise da existência do poder central, principalmente na forma do Estado e de sua lógica de manutenção de soberania interna e externa através de seu aparato coercitivo. Por mais que as escaladas de “violência urbana” se deem em pontos específicos da cronologia social, as violências estatais são uma constante nas organizações que se dão dentro de seu escopo, e qualquer “aparato de contenção” de tais escaladas que se fantasie como “estado de exceção” nada mais é do que a violência estatal condicionada sob uma nova perspectiva, buscando ser mais aceitável; o “estado de exceção”, embora temporário em conceito, é a regra pela qual o Estado (sobre)vive – nas palavras de Benjamin (Op. cit., loc. cit), “a tradição dos oprimidos ensina-nos que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é a regra”.

            Por mais que haja as tentações de observar a violência estatal como algo pontual, perpetrada por atores individuais em um momento e local específicos da história, a experiência humana empírica e as extensas análises sobre a sociedade estatal – das quais as aqui apresentadas, embora críticas e relevantes para a compreensão do Estado, são apenas fragmentos – demonstram ser necessário visualizar o Estado brasileiro como a extrapolação de uma realidade que, ao contrário de o que o próprio Estado afirma em prol de sua legitimidade, é regra, e não exceção. Dada esta lógica, os estudos podem voltar-se para quais são as razões para o agravamento da violência estatal em cenários como o brasileiro. Elimina-se, assim, o questionamento da validade destas preposições a nível universal para a conceituação – ou para a dúvida da existência – das violências cometidas pelo Estado.

“Violência urbana” e “estado de exceção”: dialética de conceitos no vazio semântico

Estabelecido que é um equívoco considerar a violência física e simbólica estatais[8] como decorrências de um recorte específico de tempo dentro da existência da estrutura do Estado, é importante considerar que os propósitos para os quais o Estado se utiliza de suas violências variam de acordo com o momento histórico analisado. Embora o Estado tenha como motivação geral a estruturação da “ênfase na apropriação dos ganhos pelos grupos dominantes” (BOURDIEU, 2014, localização 205-206), os meios pelos quais se alcança esse objetivo maior variam com o contexto nos quais estão inseridos. Para os fins da presente análise, são relevantes as discussões a respeito da conceituação de “violência urbana” e da resposta a ela na forma do “estado de exceção” para a permanência das violências estatais no âmago da sociedade – as quais, por sua vez, são as ferramentas do Estado em uso no Brasil para resguardar as metas supracitadas.

Estes conceitos são relevantes por articularem os dois eixos principais da presente pesquisa. Enquanto o conceito de “estado de exceção” foi aplicado durante a ditadura militar no Brasil, retornando de maneira não-oficial, mas de forma material, nas operações dos braços da Polícia Militar, o termo “violência urbana” é a pergunta contemporânea à qual o “estado de exceção” se estabelece como a resposta primária do Estado no uso de suas violências.

Sendo assim, começando pela questão originária, o primeiro conceito o qual é necessário analisar é o de “violência urbana”. De um ponto de vista tradicional, a Organização Mundial da Saúde (OMS) considera como violência:

The intentional use of physical force or power, threatened or actual, against oneself, another person, or against a group or community, that either results in or has a high likelihood of resulting in injury, death, psychological harm, maldevelopment or deprivation. (KRUG et al., 2002, p.5)

Este conceito se prova insuficiente no que tange à totalidade das violências que o Estado exerce através de seus agentes sobre a população primariamente por tratar estritamente da “força ou poder físico”, excluindo de sua análise a potencialidade simbólica inerente à estrutura e o campo estatais, conforme exposto anteriormente. Além disso, outros termos circunstancialmente defensáveis pelas partes violentas, como “uso intencional” ou “grandes chances de resultar”, acentuam a dificuldade de se obter um retorno concreto para a dúvida conceitual. Conforme exposto por Ristum e Bastos (2003, p.226):

A violência é conceituada, na literatura, de muitas formas diferentes; as rotulações e classificações são apresentadas sem a especificação de critérios, ou com critérios confusos, de forma a dificultar seu uso por outros pesquisadores. Conseqüentemente [sic], são muitas as dificuldades encontradas na complementação ou na comparação entre os dados de diferentes pesquisas.

A multiplicidade de matrizes de análises do próprio vernáculo “violência” se constitui como uma questão a ser continuamente trabalhada, dada a tendência a “ser inerentemente dirigida pelo julgamento social” (RISTUM & BASTOS, op. cit., loc. cit.), impossibilitando uma materialidade de definição para a discussão apresentada a respeito de “violência urbana”.

Distinguindo do uso do vernáculo “violência” dentro da expressão “violência urbana” do uso aqui feito em relação às violências estatais, estas últimas se configuram como a execução da vontade do Estado, firmado no “sequestro da autoridade” estabelecido em sua imagem como “ficção consentida”, em detrimento de uma parcela marginalizada e repetidamente agredida, simbólica e fisicamente, e em favor dos “grupos dominantes” (BOURDIEU, 2014). Calcando-se nesse arcabouço teórico, à menção de “violências estatais”, tem-se uma correspondência direta à realidade, nos atos perpetrados pelos agentes do Estado, por mais que a retidão dos seus meios seja questionada (ou não) pela validade dos fins. Assim, distingue-se um termo construído através de análises teóricas e observações empíricas – “violências estatais” – de um termo semanticamente vazio em sua repetição e pragmaticamente adaptável de acordo com a vontade das classes dominantes – “violência urbana”.

Antes mesmo da análise da função sintática que a expressão “violência” no campo urbano assume no discurso do Estado, a própria existência do termo vazio, apesar de sua reconhecida inabilidade em de fato definir seu escopo, indica o interesse em seu proveito; a insistência duradoura da manutenção de um termo oco já demonstraria, por si só, sua utilidade implícita. Giorgio Agamben aponta:

À incerteza do conceito corresponde exatamente a incerteza terminológica. (…) Se, como se sugeriu, a terminologia é o momento propriamente poético do pensamento, então as escolhas terminológicas nunca podem ser neutras. (AGAMBEN, 2004, p.15)

A observação tautegórica de Agamben a respeito da terminologia elucida a razão pela qual tal análise sintática se torna tão relevante, precedendo mesmo o debate sobre as soluções que o Estado oferece, através dos seus agentes, aos problemas definidos – quando não constituídos – pelos próprios agentes. A soma da “incerteza do conceito” à persistência de sua utilização no campo urbano nos apresenta um resultado que é incoerente, embora não acidental.

Assim sendo, ao formar-se a expressão “violência urbana”, esta, por consequência, pouco define, exceto o que aquele que a pronuncia pretende lhe impor como significado. É exatamente a observação que Loïc Wacquant faz em seu livro “Prisões da Miséria” (2011): “(…) uma categoria da concepção burocrática (‘violência urbana’) sob a qual cada um pode colocar o que lhe convier, visto que não corresponde a praticamente nada” (WACQUANT, p.75).

Esta perspectiva é crucial, visto que o “combate à violência urbana” é um dos mantos sob os quais o Estado contemporâneo se resguarda ao agir em suas violências. Um exemplo internacional recente que demonstra bem a importância – e utilidade para o Estado – do termo “violência urbana” dentro da lógica das violências estatais é visto nas consequências da expansão da “teoria da janela quebrada” à nível internacional. Wacquant se debruça sobre ela para analisar a forma como a repressão à pretensa “violência urbana” rapidamente demonstra ser uma repressão contra a miséria e aqueles os quais nela se encontram (ibidem). Descrevendo como o Manhattan Institute, nos Estados Unidos, deu um arcabouço “teórico” à “limpeza humana” que o Estado queria perpetrar na cidade de Nova Iorque – visando populações em situação de rua, a esterilização cultural de áreas marginalizadas e, principalmente, o aprisionamento de “indesejáveis” sob a política de “tolerância zero” -, Wacquant (2011, p.33) relata:

É ainda o Manhattan Institute que vulgariza a teoria dita da “vidraça quebrada” [broken windows theory] (…) adaptação do ditado popular ‘quem rouba um ovo rouba um boi’, essa pretensa teoria sustenta que é lutando passo a passo contra os pequenos distúrbios cotidianos que se faz recuar as grandes patologias criminais.

A “teoria da vidraça quebrada”, em outras palavras, exprimia a tendência do agravamento da violência urbana a partir de pequenas infrações; se havia uma janela quebrada em uma vizinhança que não era consertada, ela acabaria por estimular que outras também fossem depredadas, e a sensação de decaimento incentivaria maiores atos de vandalismo que, por fim, desembocariam em atos de violência. Wacquant, em sua obra supracitada, desmonta essa teoria pseudocientífica – uma codificação acadêmica para uma política violenta do Estado na figura da Polícia de Nova Iorque-, comprovando que ela buscava extirpar do perímetro urbano nova-iorquino uma parcela da sociedade em prol de objetivos econômicos. Desta forma, o Estado, atuando na cidade de Nova Iorque, encaixa sob o termo “guarda-chuva” de “violência urbana” qualquer “infração à ordem”, estabelecendo a autorização de “parar, questionar e revistar” em larga escala na cidade – a qual, sem surpresas, atingia de forma diferente os grupos visados e não visados pelas violências estatais:

A “tolerância zero” apresenta portanto duas fisionomias diametralmente opostas, segundo se é o alvo (negro) ou o beneficiário (branco), isto é, de acordo com o lado onde se encontra essa barreira de casta que a ascensão do Estado penal americano tem como efeito – ou função – restabelecer e radicalizar. (WACQUANT, 2011, p.45)

Embora “a comparação internacional [mostre] que não existe nenhuma correlação entre nível de crime e nível de encarceramento” (ibidem, p.14), o Estado se utiliza do vazio de sentido da expressão “violência urbana” para exercer suas próprias violências, objetivando, neste caso, “o controle punitivo do crime numa chave pornográfica e gerencialista”, e demonstrando que “a ‘mão invisível’ do mercado suscita o ‘punho de ferro’ do Estado” (WACQUANT, 2011, p.174, grifo do autor) – lógica essa que se internacionaliza através do chefe de polícia nova-iorquino William Bratton, e de seu prefeito, Rudolph Giuliani (ibidem).

Conquanto um exemplo pontual de meados da década de 1990, a análise de Wacquant sobre este processo ilustra como a “violência urbana” é um artifício útil para o Estado, podendo assumir formas diferentes de acordo com a necessidade; demanda somente uma formalização pragmática, a nível civil, e uma (pretensa) codificação científica, a nível acadêmico, para que possa se ampliar e se sedimentar pelo tempo que se fizer necessária para manter a legitimação das violências estatais.

Outro exemplo prático da forma como a “violência urbana” assume formas diferentes de acordo com a seção que o Estado decide enfrentar se mostra no primeiro Programa Nacional de Direitos Humanos (1996), o qual declara:

Os assassinatos, as chacinas, o extermínio, os seqüestros, o crime organizado, o tráfico de drogas e as mortes no trânsito não podem ser consideradas normais, especialmente em um Estado e em uma sociedade que se desejam modernos e democráticos. (SEDH, 2010, p.233).

A construção do cenário, o qual coloca extermínios e chacinas no mesmo nível do tráfico de drogas e uma configuração genérica de “mortes no trânsito” demonstra quais eram as prioridades do Estado brasileiro em meados da década de 1990, tanto frente às questões internas quanto em relação às demandas internacionais, especificamente no que tangia o tráfico internacional de drogas. Em outras palavras, vê-se, neste documento, um retrato do que o Estado chamava de “violência urbana” à época.

Ao conseguir o apoio dos pilares civil e acadêmico, a construção da ideia da “violência urbana” fundamenta as respostas que o Estado já pretendia pôr em prática através de seus agentes antes mesmo da pergunta ser feita. Quando Agamben resumiu a importância das escolhas terminológicas, ele o fez exatamente ao versar sobre uma das proposições do Estado para solucionar o problema da “violência urbana”: o chamado “estado de exceção” (AGAMBEN, 2004).

Originário do termo e conceito romanos de iustitium – significando literalmente “suspensão do direito” -, o “estado de exceção” se apresenta como a ruptura nos procedimentos legais conforme o Estado demande necessário para que possa resguardar sua própria existência (ibidem). Contrapondo às teorias ortodoxas que compreendem a constituição do “estado de exceção” como uma resposta inevitável, senão recomendável, para a manutenção da estrutura ameaçada, Agamben aponta que o mesmo “se apresenta muito mais como uma técnica do governo do que como uma medida excepcional” (ibidem, p.18). Dentro desta lógica, há dois prismas sob os quais se pode olhar o “estado de exceção”, sendo eles a lente conceitual e semântica, conforme aplicada anteriormente à “violência urbana”, e o ângulo pragmático do “estado de exceção”, que compreende as ações que de fato ocorrem sob – ou fora de – sua égide terminológica.

Começando pelo prisma mais complexo, o âmbito pragmático destas ações no Estado-campo pelo Estado-ator (na linguagem de Bourdieu) para assegurar sua existência mostra possuir um largo escopo; em última análise, adotado o “estado de exceção”, o Estado se dá legitimidade para agir no escopo do executivo sem as restrições legislativas vigiladas pelo judiciário. Segundo Agamben:

Uma opinião recorrente coloca como fundamento do estado de exceção o conceito de necessidade. Segundo o adágio latino muito repetido, necessitas legel non habet, ou seja, a necessidade não tem lei. O que deve ser entendido em dois sentidos opostos: “a necessidade não reconhece nenhuma lei” e “a necessidade cria sua própria lei” (nécessité fait loi). Em ambos os casos, a teoria do estado de exceção se resolve integralmente na do status necessitatis, de modo que o juízo sobre a subsistência deste esgota o problema da legitimidade daquele. (AGAMBEN, 2004, p.40)

Dentro desta abordagem ortodoxa, a necessidade, em último caso, dota os agentes do Estado no campo estatal da autoridade demandada para seguir com suas ações conforme melhor julgarem. Contudo, o contraste se dá ao se pensar o que se definiria como “necessidade” para que tal comissão de forças ocorra. Por mais que o Estado busque compreender esta “necessidade” de forma específica para melhor embasar sua legitimidade, estes esforços se mostram transparentes em sua natureza.

(…) a aporia máxima, contra a qual fracassa, em última instância, toda a teoria do estado de necessidade, diz respeito à própria natureza da necessidade, que os autores continuam, mais ou menos inconscientemente, a pensar como uma situação objetiva. Essa ingênua concepção, que pressupõe uma pura factualidade que ela mesma criticou, expõe-se imediatamente às críticas dos juristas que mostram como a necessidade, longe de apresentar-se como um dado objetivo, implica claramente um juízo subjetivo e que necessárias e excepcionais são, é evidente, apenas aquelas circunstâncias que são declaradas como tais. (AGAMBEN, 2004, p.46)

Ao que acrescenta posteriormente, em relação à natureza “normativa/não-normativa” do “estado de exceção”:

Longe de responder a uma lacuna normativa, o estado de exceção apresenta-se como a abertura de uma lacuna fictícia no ordenamento, com o objetivo de salvaguardar a existência da norma e sua aplicabilidade à situação normal. A lacuna não é interna à lei, mas diz respeito à sua relação com a realidade. (AGAMBEN, 2004, p.48)

A observação de Agamben é pertinente principalmente quando o “estado de exceção” é observado sob o prisma semântico, sendo verificado que, mais uma vez, o termo cunhado para estabelecer o conceito é imbuído de uma doxa que precisa ser desmistificada. Ao denominar um período ou um conjunto de atos violentos, física ou simbolicamente, perpetrados pelo Estado como “estado de exceção”, um efeito triplo se desdobra entre os agentes do Estado enunciadores e seus interlocutores: afirma-se que tais atos, embora normativamente irregulares, são transitórios para um fim específico e supervisionados pelo próprio Estado.

Este efeito múltiplo que parte da enunciação, oficial ou não, do “estado de exceção” se mostra de maneira clara quando desmontada para análise. Enquanto a palavra “exceção” demonstra o reconhecimento de que a situação na qual as ações do Estado se dão não é a de rotina, a palavra “estado” automaticamente assume dois sentidos: ela representa tanto a ideia de algo passageiro[9] quanto a ideia de “Estado”, aquele que se coloca por trás da ação, respaldando no campo estatal os seus próprios agentes através de sua legitimidade conceitual.

É importante observar, contudo, que a realidade de um “estado de exceção”, no qual o Estado se dota de permissões que estão fora de suas capacidades legais para combater um pretenso inimigo que ameaça sua existência, não está condicionado a uma declaração oficial desta realidade. Como Benjamin apontou que a tradição daqueles oprimidos pelo Estado comprova que o “estado de exceção” raramente é excepcional e as sociedades raramente se veem sob um “estado de exceção” declarado, é consequente apontar o fato de que um “estado de exceção” oficial não é requisito sine qua non para que o Estado e seus agentes ajam além de seus escopos e perpetrem violências.

Assim sendo, o conceito de “estado de exceção” não é vazio, mas bem conciso em toda uma gama de informações falsas que estão presentes na sua enunciação. As violências que o Estado perpetra são de forma alguma um “estado” transitório de suas políticas, mas a sua política primária por definição, e não se impõem como “exceção”, mas a regra, gerando o que Agamben (2004, p.13) denomina de “totalitarismo moderno”:

O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, como a instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político. Desde então, a criação voluntária de um estado de emergência permanente (ainda que, eventualmente, não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos.

Desta forma, o “estado de exceção” se mostra como um conjunto de ações que o Estado busca tomar através de seus agentes e, sendo limitado pela ordem jurídica estabelecida, abre lacuna na legislação que o impede para poder seguir com o andamento de suas violências. Conforme apontado, esta realidade não precisa ser acompanhada pela definição oficializada de “estado de exceção”, podendo os agentes do Estado no campo estatal somente apoiarem-se em uma ameaça, verídica ou não, declarada pelo próprio Estado para que suas ações possam seguir.

            Estes traços do Estado e de seus atores não estão circunscritos a um recorte temporal ou geográfico: foi instituído o iustitium na Roma antiga quando esta se viu ameaçada pelos bárbaros; Abraham Lincoln outorgou o “estado de exceção” nos Estados Unidos da América em 1862 para fazer frente aos “insurgentes”, e nas mesmas terras estadunidenses, mais de um século depois, as medidas incluídas no Patriot Act, assinadas por George W. Bush em 2001, se assemelhavam em efeito àquelas outorgadas por Lincoln[10]; no Brasil, o “estado de exceção” foi inserido como o braço prático do discurso da luta contra a “ameaça comunista” durante a ditadura, e hoje assume a forma de um “estado de exceção” não-oficial no combate contra a “violência urbana”.

Embora contrapartidas corriqueiras, não se assume a equivalência do “estado de exceção” a um sistema político per se, pelo contrário; a própria concepção do “estado de exceção” implica em sua existência fora da constituição, sendo sua utilidade como ferramenta estatal condicionada à esta condição. Como também demonstrado por Agamben (2004, p.78):

O estado de exceção não é uma ditadura (constitucional ou inconstitucional, comissária ou soberana), mas um espaço vazio de direito, uma zona de anomia em que todas as determinações jurídicas – e, antes de tudo, a própria distinção entre público e privado – estão desativadas.

Consequentemente, embora o “estado de exceção” possa se estabelecer – e normalmente o faz – como uma ferramenta de regimes ditatoriais, seja para sua implementação inicial, desenvolvimento ou manutenção de longo prazo, é importante observar que são conceitos diferentes; do contrário, volta-se ao risco de acreditar erroneamente que o “estado de exceção” é, conforme seu nome, não a regra, mas uma excepcionalidade. Enquanto as ditaduras tendem a valer por um período definido – por mais extenso que ele seja – e encerrar-se neste recorte de tempo, o “estado de exceção” é uma ferramenta dos Estados como um todo, independentemente da situação de sua democracia de juris.

A complementaridade prática entre “violência urbana” e “estado de exceção” é emblemática frente ao seu contraste sintático, e este contraste reflete a dialética que é estabelecida entre os termos. Enquanto a “violência urbana” é apresentada no plano material, pelos agentes do Estado, a partir de pontos sem articulação clara entre si, tornando material o etéreo[11], o “estado de exceção” é a transição da materialidade para a conceituação; é a “necessidade do Estado” de executar suas violências, eliminando seus indesejados de maneira prática e objetiva, buscando tornar-se subjetiva para que seja mais bem aceita pela população graças às suas proposições de ser um “estado” e uma “exceção”. Em uma analogia funcional para este caso, o Estado, através de seus agentes, conjura um veneno sob um termo oco para oferecer um antídoto – que na verdade só beneficia ao próprio Estado – para sua população.

A composição dos “venenos” é o prisma pragmático das ações que ocorrem sob a égide terminológica do “estado de exceção”. Esta composição, para os Estados Unidos, se apresenta na forma do “terrorismo” – outro termo de definição exígua – para o qual o “estado de exceção” de facto codificado no Patriot Act é “antídoto”. No Brasil, a composição era representada pela ameaça do “comunismo” e, hoje, o Estado brasileiro, através de seus agentes, se vale da “violência urbana” para impor a vontade do Estado na “eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político” (AGAMBEN, 2004, p.13).

Além de ser o remédio do Estado para o mal criado pelo mesmo, as ações pragmáticas compreendidas no “estado de exceção” se apresentam, por vezes, como catalisador do problema que pretensamente buscava combater. No caso do Brasil, a “violência urbana” não é mitigada pela atuação das violências estatais em seu “estado de exceção” não declarado:

(…) a insegurança criminal no Brasil tem a particularidade de não ser atenuada, mas nitidamente agravada pela intervenção das forças da ordem. O uso rotineiro da violência letal pela polícia militar e o recurso habitual à tortura por parte da polícia civil (através do uso da “pimentinha” e do “pau de arara” para fazer os suspeitos “confessarem”), as execuções sumárias e os “desaparecimentos” inexplicados geram um clima de terror entre as classes populares que são seu alvo. (WACQUANT, 2011, p.11)

Em um retrato mais recente e concreto, a ocupação do Rio de Janeiro por forças militares, com equipamento que inclui tanques de guerra estacionados em pontos movimentados da metrópole, tem se provado ineficaz em relação ao combate contra a “violência urbana”[12]. Embora obviamente sem caráter prático, o tanque estacionado em vias de grande movimentação urbana, como o Largo da Carioca, representa a violência estatal em sua forma simbólica: um totem para a capacidade de violência física que o Estado possui, por mais inócua que seja como ameaça de fato.

            Tal exemplo é representativo da particularidade do caso brasileiro, conforme supracitado a partir de Wacquant, e apresenta a questão de como se pode diferenciar quais elementos das violências estatais se dão por causa da própria existência do Estado, como campo e como ator, através de seus agentes, e quais desses elementos são idiossincráticos em relação ao período ditatorial brasileiro e suas heranças funestas na forma das forças policiais brasileiras.

 Conclusão

Estabelecido que é um equívoco considerar a violência física e simbólica estatais como decorrências de um recorte específico de tempo dentro da existência da estrutura do Estado, este artigo considerou os propósitos para os quais o Estado se utiliza de suas violências, variando de acordo com o momento histórico analisado. Embora o Estado tenha como motivação geral a estruturação da concentração dos ganhos pela oligarquia dominante, os meios pelos quais se alcança esse objetivo maior variam com o contexto nos quais estão inseridos. Desta forma, demonstrou-se como as discussões a respeito da conceituação de “violência urbana” e da resposta a ela na forma do “estado de exceção” são cruciais para a compreensão da forma como o Estado alcança o fim mencionado.

Assim, embora o Estado brasileiro seja recorrentemente posto em voga devido aos seus números de “violência urbana”, de forma quase mitológica por veículos de imprensa, apresentou-se a lógica pela qual o Estado moderno, incluindo os democráticos, utilizam um termo vazio para dotá-lo do significado que for necessário para atingir seus interesses, através de um falso “estado de exceção”, que não é nem um “estado” nem “de exceção”.

Embora a desmistificação de uma excepcionalidade violenta do Estado brasileiro seja indispensável para a compreensão dos parâmetros dentro dos quais o Estado contemporâneo atua, esta pesquisa de forma alguma propõe-se como um fim em si própria, sendo mais relevante como um instigar de pesquisas posteriores. A principal pergunta que se levanta é sobre o conjunto de fatores que capacita o Brasil a se destacar em seus números de mortos em conflitos urbanos – e como cada um destes fatores colabora individualmente para tais resultados. Pesquisas neste âmbito têm a possibilidade não só enterrar de o paradigma que enxerga o Brasil como um “Estado fora da curva” em termos de suas violências, como também de expor outras lógicas pelas quais as violências estatais se dão, abrangendo suas origens e lógicas. Desta forma, há o potencial, inclusive, de trazer perspectivas de mitigação para este agravamento das violências que concedem ao Estado brasileiro seu funesto destaque em âmbito internacional.

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 A VIOLAÇÃO DO DIREITO À MEMÓRIA E À VERDADE E SEUS (D)EFEITOS NA (DE)FORMAÇÃO IDENTITÁRIA BRASILEIRA: O LEGADO DA DITADURA NA PRESENTIFICAÇÃO DO PASSADO [13]

THE VIOLATION OF THE RIGHT TO MEMORY AND TRUTH AND ITS (D) EFFECTS ON THE BRAZILIAN IDENTITY FORMATION: THE LEGACY OF THE DICTATORSHIP IN THE PRESENTIFICATION OF THE PAST

Gabriella Barbosa Santos[14]

 

Resumo: Este trabalho se debruça sobre a violação do direito fundamental à memória e à verdade como obstáculo para a Justiça de Transição e para a construção do processo identitário brasileiro, a partir da problematização da presentificação do passado da última ditadura civil-militar nas violações de direitos humanos promovidas na atualidade, sobretudo no que toca às questões de gênero e na reprodução da violência física e simbólica masculina sobre a vida das mulheres. A escrita dialoga com a noção de Jetztzeit, tempo presente, o agora, tendo como arcabouço teórico os estudos no campo da Filosofia da História, através da análise sobre as Teses VII e IX “Sobre o conceito de história”, cunhada por Walter Benjamin. Através das narrativas de mulheres que carregam as marcas da ditadura de 1964, irei tecer o diálogo com a verdade e com a memória histórica de nosso tempo, assumindo a postura de sujeita cognoscente e comprometida com as revoluções sociais e com a busca de seu caminho identitário, como mulher e como mulher brasileira. O golpe jurídico-parlamentar-midiático sofrido por Dilma Rousseff e por todas as mulheres do Brasil é mais um evento histórico que precisa se disputado através de uma arqueologia do tempo passado/presente.

Palavras-Chave: Memória; Verdade; Identidade; Presentificação; Passado.

Abstract: This work focuses on the violation of the fundamental right to memory and truth as an obstacle to the Transitional Justice and to the construction of the Brazilian identity process, starting from the problematization of the presentification of the past of the last civil-military dictatorship in the human rights violations currently promoted, especially with regard to gender issues and the reproduction of physical and symbolic male violence on women’s lives. The writing dialogues with the notion of Jetztzeit, present time, now, having as theoretical framework the studies in the field of Philosophy of History, through the analysis on Theses VII and IX “On the concept of history”, coined by Walter Benjamin. Through the narratives of women bearing the marks of the dictatorship of 1964, I will weave the dialogue with the truth and the historical memory of our time, assuming the posture of subject cognoscent and committed to social revolutions and the search for their identity path , as a woman and as a Brazilian woman. The legal-parliamentary-mediatic coup suffered by Dilma Rousseff and by all the women of Brazil is yet another historical event that needs to be fought through an archeology of the past / present time.

Keywords: Memory; Truth; Identity; Presentification; Past.

1.                  Introdução

            Este trabalho tem por objetivo a análise sobre a violação do direito fundamental à memória e à verdade como obstáculo para a Justiça de Transição e para a construção do processo identitário brasileiro durante o período conhecido por (re)democratização, a partir da problematização da presentificação do passado da última ditadura civil-militar nas violações de direitos humanos promovidas na atualidade, sobretudo no que toca às questões de gênero.

            O recente golpe de Estado praticado em 2016 contra a Presidenta Dilma Rousseff é um desses exemplos, que teve como problema central o fato dela ser a primeira mulher a chegar à Presidência da República no Brasil desafiando o status quo masculino de/o poder que violou e viola o nosso direito à existência política. Nesse sentido, as histórias de sua vida, que também carrega as marcas da ditadura de 1964, e de todas as mulheres vitimadas pela violência machista e misógina nos porões ou nas ruas, se entrecruzam num espaço temporal que nunca fora rompido, mesmo que forçosamente silenciados.

A investigação proposta tem algo de autobiográfica, pois nascera de um desejo subjetivo desta pesquisadora em conhecer as raízes históricas de seu país, de modo a proporcionar a abertura do horizonte das reflexões críticas em torno de sua formação identitária, escovando a história à contrapelo, como advertiu Walter Benjamin em suas teses sobre o conceito da História, o referencial teórico e histórico por excelência deste trabalho.

Há, neste constructo, um misto de curiosidade acadêmica, de inquietação de “uma” sujeita epistemológica que busca por sua referenciação, por sua identidade e auto(re)conhecimento, pois compreendo, como Boaventura Santos, que todo conhecimento é autoconhecimento e que nosso comprometimento enquanto sujeitas/os epistemológicas/os diz muito sobre o que produzimos e sobre o que somos.

E todo o acúmulo narrativo aqui exposto é fruto desse processo por autorreconhecimento, em devir, lapidado por um tempo-presente, por um Jetztzeit [15]. É um processo, ao mesmo tempo, íntimo e compartilhado, já que não se pode desconsiderar os impactos que a verdade e a memória individual e coletiva causam em nossa formação enquanto sujeitas/os históricas/os. O que nos ocorre é a necessidade de possibilitar o gozo do direito à formação identitária, sobretudo das presentes gerações, direito que só pode ser exercido se a disputa histórica-narrativa se der de modo honesto, sem confiscos e oficiosidades.

A fundamentação teórica tem como ponto de partida a Filosofia da História, notadamente o pensamento revolucionário de Walter Benjamin, através da análise do seu conceito de História nas Teses VII e IX, respectivamente a tese da “escovação da história à contrapelo” e a tese do “Ângelus Novus” que inauguram a escrita. Benjamin analisa que a História, tal como a mesma tem sido concebida e construída nos últimos séculos é uma versão meramente descritiva dos fatos, através da qual restam perpetuadas tão somente àquelas versões correspondentes à ótica dos vencedores, sendo a própria História um instrumento a serviço das classes dominantes.

            Finalizamos o trabalho com uma proposição, considerando ser significativa a dimensão prospectiva do estudo, cuja aplicação em políticas públicas de educação e justiça pode servir para trabalhar socialmente os valores democráticos, com vistas ao repúdio à cultura da impunidade e do segredo, afirmando a importância da memória e da verdade como direitos fundamentais para garantia e uma narrativa justa sobre a formação identitária das presentes e futuras gerações.

2.                  O ANGELUS NOVUS E ESCOVAÇÃO DA HISTÓRIA À CONTRAPELO

Existe um quadro de Klee intitulado “Angelus Novus”. Nele está representado um anjo, que parece estar a ponto de afastar-se de algo em que crava o seu olhar. Seus olhos estão arregalados, sua boca está aberta e suas asas estão estiradas. O anjo da história tem de parecer assim. Ele tem seu rosto voltado para o passado. Onde uma cadeia de eventos aparece diante de nós, ele enxerga uma única catástrofe, que sem cessar amontoa escombros sobre escombros e os arremessa a seus pés. Ele bem que gostaria de demorar-se, de despertar os mortos e juntar os destroços. Mas do paraíso sopra uma tempestade que se emaranhou em suas asas e é tão forte que o anjo não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, para o qual dá as costas, enquanto o amontoado de escombros diante dele cresce até o céu. O que nós chamamos de progresso é essa tempestade. (BENJAMIN, WALTER, 2012, p. 24).

Figura 1 –  Angelus Novus

                      Fonte: Penhook.[16]

 A imagem alegórica que inaugura esta seção possui estreita relação com a ideia de consciência histórica de ruína desenvolvida no pensamento de Benjamin, que pretende significar o fragmento desvencilhado do tempo linear, rompendo com o tempo progressivo. “As alegorias são, no reino dos pensamentos, o que as ruínas são no reino das coisas” (BENJAMIN, 2013, p. 189), elas possibilitam o rompimento com a progressão do tempo, impedindo a cadência da natureza de se expressar destrutivamente, através do potencial de antecipação de catástrofes pela consciência histórica das ruínas.

Sem dúvidas, esta não poderia deixar de ser a nossa alegoria mais elementar, cujo objetivo é refletir sobre a compreensão em torno da História, sua relação com o tempo e os impactos na solidificação de verdades, memórias e identidades. Através dessa tese, definimos a perspectiva histórico-filosófica deste trabalho como elemento para refletir sobre as contingências históricas de um tempo a partir de uma verdade plural, de uma memória aberta e de uma identidade possível.

Benjamin (2012, p. 13) analisa que a História, tal como a mesma tem sido concebida e construída nos últimos séculos, é uma versão meramente descritiva dos fatos, através da qual restam perpetuadas tão somente àquelas versões correspondentes à ótica dos vencedores, sendo a própria História um instrumento a serviço das classes dominantes, deixando evidente que “nunca houve um documento da cultura que não fosse também um documento da barbárie”. A historiografia oficial/oficiosa, positivada, carrega em si a naturalização da violência, para além de sua institucionalização, ocultando a iniquidade do sistema político e jurídico que lhe sustenta.

Diante dos obstáculos impostos ao/à historiador/a em sua tarefa de narrar o passado, cujo preço tem sido, entre outros, a ocultação das histórias das/os oprimidas/os, cabe, na perspectiva esboçada por Benjamin (1994, p. 230-231), proceder à ruptura do continuum da História, promovendo o reencontro com o passado, como que num processo de limpeza dos escombros deixados pelos ventos do progresso.

O anjo da história torna-se a construção alegórica na obra que mais materializa o pensamento de Benjamin, no nosso entender. Aqui, o que se pretende é estimular a sensibilidade de leitura de um objeto, mesmo que impregnado de uma sensação de melancolia que tende a despertar o ato de interpretar. E a alegoria em imagem, favorece a associação livre de sentido, privilegiando o esforço de revelar a incompletude e o despedaçamento de realidades ainda não superadas, situação bastante evidente no Brasil.

A alegoria faz um convite à reflexão e nos interpela a fincar sobre as ruínas que se amontoam sobre nossos pés de sujeitas/os históricas/os. Sua visão soa catastrófica! É como se congelasse a História, provocando a fala das/os silenciadas/os que não se “adequaram” à marcha triunfal rumo ao progresso, este que homogeneíza o tempo e lhe aprisiona numa temporalidade linear que oculta escombros. A história, clamada no olhar do anjo precisa convocar à libertação dos fragmentos antes emudecidos, amanhecendo as possibilidades contidas, passíveis de cambiar o presente e desacorrentar o futuro.

Benjamin parece desejar salvar o passado no presente, recusando a linearidade histórica, herdeira da concepção positivista de mundo, onde se talhava a ideia de que a tarefa do/a historiador/a seria apenas representar o passado “tal como ele sempre foi” (Lowy, 2012, p. 65). Ele se insurge contra esse discurso, enfatizando a necessidade de rompimento com o contínuo da História, para que o passado não se repita de forma sempre igual, por ocasião de uma inexorável tempestade chamada progresso. Em seu ensaio sobre Fuchs, através da metáfora da tecelagem, Benjamin (apud LOWY, 2012, p. 122) assegura que “é preciso tecer na trama do presente os fios da tradição que se perderam durante séculos”.

Ao utilizar a alegoria da “escovação da história à contrapelo”, na Tese VII, Benjamin concentra sua crítica no apoderamento do discurso narrativo oficial, até então privilégio das classes dominantes, razão pela qual a contra-narrativa das/os oprimidas/os se faz imperiosa, quebrando a linearidade factual e predestinada ao mesmo esquema de poder. Na última passagem da tese, Benjamin assevera:

Nunca há um documento da cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento da barbárie. E, assim como ele não está livre da barbárie, assim também não o está o processo de sua transmissão, transmissão na qual ele passou de um vencedor a outro. Por isso, o materialista histórico, na medida do possível, se afasta dessa transmissão. Ele considera como sua tarefa escovar a história a contrapelo (BENJAMIN, W, 1985, p. 225).

Sua crítica de dirige, portanto, à compreensão absorta do passado e sua épica, banhadas por uma ode à neutralidade, indo ao encontro do fato no passado, do modo como ele foi, com a isenção do presente ou sua postergação enquanto um nexo de causalidade. A perspectiva positivista da história desenhou-se com as exigências de imparcialidade e objetividade, própria das ciências experimentais. E nenhuma corrente de pensamento se valeu mais da noção de progresso para linearizar os eventos históricos como o positivismo. Benjamin então se debruça sobre as motivações ideológicas em torno desse conceito. O relato histórico, para o filósofo passa a ser transmissão de experiência individual e coletiva.

Aqui também podemos tecer o diálogo entre Benjamin e Boaventra Santos, na medida em que, frente ao pensamento deste último, conseguirmos convocar sua epistemologia do silêncio[17] e repulsa ao desperdício das experiências como um elemento possibilitador de presentificações na dita pós-modernidade.  Em um de seus textos mais analisados, acerca do paradigma dominante, fica claro que uma das heranças deixadas pelo positivismo fora a nossa incapacidade para trabalhar com os objetos ausentes, o que, para ele, representa um desperdício de experiência. Diante dessa constatação, Santos propõe que sejam substituídas as monoculturas por ecologias do saber, objetivando presentificar as experiências ausentes, impostas aos outros paradigmas do conhecimento pelo paradigma moderno (ocidental), positivista.

A monocultura, esteio da narrativa unilateral e dogmática dos acontecimentos deve dar lugar ao passeio pelos labirintos de uma história narrada a partir da experiência daqueles registros que foram arbitrariamente silenciados, sob pena de violação do direito ao conhecimento. A presentificação destas ausências torna-se imprescindível, sob pena de não se oportunizar a pluralidade do debate sobre a verdade histórica, já que, boa parte dos sujeitos históricos foram ausentificados por indivíduos dominadores, calçados na apropriação e violência discursiva.

Sousa Santos (1996, p. 5) também dialoga, na contemporaneidade com o Angelus Novus de Benjamin, constatando que vivemos em um tempo de fulgurações, de repetição automática e infinita de domínio, capitaneado pela burguesia internacional que passa a ter o atributo de produzir a única teoria da história verdadeiramente burguesa, a teoria do fim da história, chegando a afirmar que a ideia de repetição “é o que permite ao presente alastrar ao passado e ao futuro, canibalizando-os”. Nesse sentido, o ponto em comum entre as teorias que respaldam o movimento orientado ao futuro (revolução, progresso, evolução), está na desvalorização do passado e o hipostasiar do futuro. “O passado foi visto como passado e, portanto, como incapaz de fazer a sua aparição, de irromper no presente. Pelo contrário, o poder de revelação e de fulguração foi todo transposto para o futuro”. (SANTOS, 1996, p. 6)

Benjamin lança mão da metáfora para posicionar a relevância do passado sobre o presente, onde o combate das/os oprimidos precisará romper com o os pilares oficiosamente edificados pelo exercício unilateral da história. As/Os oprimidas/os s devem colocar em xeque a dominação do presente e as históricas vitórias dos opressores, não deixando de pôr em questão, também, as suas vitórias do passado, retroagindo ao “fundo longínquo do tempo”. O sol vem representar o presente que ilumina o passado, numa relação dialética, onde o passado iluminado se converte em força no presente. Um sol que se levanta no céu da história, ressignificando o passado, símbolo de luta e utopia. (LOWY, 2005, p. 60-61)

Nesse sentido, há uma convocação das/os materialistas históricas/os no sentido de contestar a atitude contemplativa da história tradicional, revelando a constelação crítica que o passado, em seus fragmentos, acaba por formar precisamente como um instante do presente. Possuímos um inexorável volume de exemplos de estruturas sociais que se fragmentam por ocasião da amnésia imposta, compulsivamente, para afastar as origens dos fracassos que afligem o presente ou determinar o silêncio/esquecimento ou inverter a prospecção do passado (“hiper-historicismo”).

Por certo que os problemas existentes no Brasil não podem ter sua gênese atribuída ao período da ditadura, afirmação que soaria leviana. No entanto, o golpe civil-militar de 1964 interrompera um processo de mobilização política que demandava o confrontamento de questões sociais que pleiteavam, por exemplo, a inserção das camadas desprovidas de participação ativa nas decisões de interesse nacional, agravando, de sobremaneira, os níveis de desigualdade social experimentados na contemporaneidade.

Esse modo de operar das elites brasileiras marca um percurso da História do país, onde golpes de Estado são patrocinados com apoio das corporações financeiras internacionais e seletos grupos de poder mundial como forma de refrear o processo de amadurecimento democrático do Brasil, mantendo a subserviência aos ditames (neo)coloniais. A atual conjuntura brasileira é uma prova de como esse mecanismo tornou-se uma verdadeira empresa com engrenagens em todos os poderes e com o esteio do capital privado para desconstituir o processo de avanços mínimos nas políticas públicas experimentados até então.

O golpe jurídico-parlamentar-financeiro-midiático ocorrido em 2016, lapso de tempo recentíssimo em nossa acidentada História política soa como um presságio do Ângelus Novus que sempre recolhera os escombros não remexidos pela humanidade e que tenta, em vão, conter a tempestade do progresso. A estrutura montada para a deflagração desse golpe, travestido de impeachment (expressão jurídico-burguesa para “impedimento”) está sendo cercada por uma disputa de narrativa histórica diariamente demarcada nos anais do tempo. Uma disputa que, antes de tudo, visa demarcar a questão de gênero enquanto mote norteador dessa usurpação jurídico-burguesa do poder.

Quando da escrita de minhas memórias acerca do golpe de 2016 no Brasil no livro Mídia, Misoginia e Golpe, editado pela Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, contribui com o meu olhar histórico de sujeita epistemológica:

Eu descreveria como um golpe misógino, parlamentar, midiático e burguês. E a cada dia que passa a gente adiciona mais uma definição. É um golpe porque foi a retirada abrupta, violenta e ilegítima de uma mulher da Presidência da República, da primeira mulher Presidenta. Mas não é um golpe semelhante aos outros que já marcaram a história desse país, já que esteve ausente o questionamento acerca da sexualidade (leia-se, masculinidade) dos presidentes então depostos desde a inauguração da República.

Nesse sentido, reitero, como fiz no livro, que nenhum dos ex-presidentes brasileiros teve sua masculinidade questionada. Ninguém questionou a masculinidade de Fernando Collor, quando sofreu impeachment, mas a feminilidade de Dilma Rousseff foi estampada em carros e capas de revistas com um discurso machista e patriarcal de que mulheres que tem determinadas emoções ou determinados comportamentos são histéricas, esquizofrênicas e precisam de remédio. Basta lembrar do famigerado adesivo de carro produzido com uma caricatura da Presidenta de pernas abertas estampado nos postos de combustível do país.

Desse modo, cada sujeita/o datada/o neste tempo presente precisa promover uma busca em torno das raízes de sua/nossa formação identitária enquanto povo e enquanto pessoas. Só diante de uma educação em direção à pluralidade das verdades históricas e da garantia do direito à memória individual e coletiva poderemos nos (re)construir enquanto sujeitas/os do conhecimento de nós mesmas/os, enquanto sujeitas/os epistemológicas/os, datadas/os de um tempo, de um Jetztzeit.

  1. O DIREITO À VERDADE E À MEMÓRIA COMO CONDIÇÃO PARA A FORMAÇÃO IDENTITÁRIA BRASILEIRA

Verdade, memória e identidade são garantias essenciais à existência humana. Referidos verbetes relacionam-se entre si como consectários lógicos, considerando suas iniludíveis correspondências. No entanto, não existe aqui a pretensão de discutir os contornos filosóficos/epistemológicos destes vocábulos, constituindo verdadeiras aporias que não estão a salvo de corrosões semânticas e de representações imprecisas e/ou tormentosas[18].

 Definir tais aporias em suas variantes perspectivas tornaria o trabalho muito extenso, pois impunha o mergulho em arsenais filosóficos colecionados pela humanidade, já que aporias não residem no campo do consenso e da unanimidade, escapando a qualquer leitura convencional. Nesse sentido, pretendemos trabalhar para que a leitura do texto proporcione uma postura desconstrutivista, no sentido da assunção de sua indeterminabilidade e indecidibilidade, desobrigando o leitor de se armar de instrumentos prévios para destes elementos centrais conhecer. Os impasses aporéticos ficarão por conta de quem lê, portanto.

A fundamentalidade constitucional do direito à memória e à verdade se articula com outros princípios constitucionais, consolidando-se enquanto força normativa, para além da força social, cuja materialidade precisa estar sobre investigação e disputa. Contudo, esse diálogo não pode estar dissociado da reflexão em torno do modelo narrativo-historiográfico adotado pela comunidade que vive o pacto constitucional, devendo, ao contrário, ser debatido e, se preciso, posto em cheque por outros lugares narrativos, por outras verdades, por outras memórias.

[…] Conforme já assinalado, remonta à segunda metade do século XX a crescente afirmação de um Direito à Memória e à Verdade, configurando-se claramente como um direito transindividual, que ultrapassa a formulação por meio dos atores políticos tradicionais como partidos e sindicatos, alcançando os mais diversos grupos da sociedade civil e experimentando as mais diversas formas de reivindicação e concretização, não estando necessariamente preso à legislação estatal, visto que sua formulação e reivindicação continua a existir mesmo que a legislação imponha políticas de esquecimento, mas com fortes tendências de formalização no ordenamento jurídico, o que se vislumbra no caso brasileiro desde a promulgação da Constituição de 1988 (SILVA FILHO, 2008, p. 79) .

Esse imperativo de memória e verdade – em que pese todo o seu manancial de subjetividades, a exigir sua proteção na esfera individual – quando maculado, provoca, também, uma fratura cívica e de direitos sem determinabilidade específica, pois atinge a todos e todas. Nesta senda, afirmamos a aplicabilidade imediata do direito fundamental à verdade e à memória, em sintonia com o § 1º, art. 5º, da Constituição Federal.

O conceito de verdade aqui utilizado se aproxima da noção de verdade enquanto disponibilidade e pluralidade factual. Verdade que, segundo Foucault, não reside fora da esfera de poder. E em que pese a Filosofia lhe conferir o status de mero sentido (do) humano, há que se afirmá-la quando em risco sua manipulação por outros indivíduos ou grupos sociais que, além da força física, utilizam-na como instrumento de poder. Afirmar e disputar a verdade, no cenário sob o qual nos referimos é disputar a comunicação humana e a definição recíproca da identidade (SAMPAIO; ALMEIDA, 2009, p. 250).

Em sendo a verdade um “pressuposto e conteúdo do direito positivo brasileiro” (SAMPAIO, ALMEIDA, 2009, p. 262), não há como afastá-la do universo linguístico e retórico que sustenta o jurídico. Afinal, todas as especificações normativas no direito se referem, em grande medida ao sentido de “verdade”. O próprio estudo epistemológico em Direito não pode abrir mão desse conceito, apesar de toda a sua fluidez e abstração. O direito material, com todas as suas nuances, o direito processual e a propedêutica jurídica dialogam com a verdade de uma forma muito própria e assentada aos seus universos de abordagens.

E em se falando de democracia, sua imbricação com o pilar verdade é tão sintomática que, a efetivação desta, condiciona a possibilidade daquela. Seria uma via de mão dupla onde cruzaríamos com Saramago (1997), quando ele diz que é preciso permanecer a acreditar na democracia, contanto que ela seja de verdade. Nesse sentido, para uma democracia de verdade há que se defender uma democracia com verdade. E é isto que aqui procuramos argumentar.

Quando eu digo que a democracia em que vivem as actuais sociedades deste mundo é uma falácia, não é para atacar a democracia, longe disso. É para dizer que isto a que chamamos democracia não o é. E que, quando o for, aperceber-nos-emos da diferença. Nós não podemos continuar a falar de democracia no plano puramente formal. Isto é, que existem eleições, um parlamento, leis, etc. Pode haver um funcionamento democrático das instituições de um país, mas eu falo de um problema muito mais importante, que é o problema do poder. E o poder, mesmo que seja uma trivialidade dizê-lo, não está nas instituições que elegemos. O poder está noutro lugar. (SARAMAGO, 1997, p. 56).

Parece-nos haver uma relação muito intrínseca entre a verdade, os direitos de participação política e democracia, se pensarmos os direitos políticos para além da sua noção liberal de autonomia privada, conferindo também primazia à autonomia pública que, através da soberania da vontade popular, “pode-se aceitar tanto o domínio abstrato e impessoal das leis como a auto-organização espontânea de uma sociedade”. (SAMPAIO, ALMEIDA, 2009, p. 251).

O exercício direto do poder popular é a única hipótese de se legitimar as relações normativo-sociais e a garantia do direito à verdade, enquanto pluralidade de perspectivas torna-se condição para a configuração da verdadeira “soberania política”, de modo que o titular do poder constitucional – o povo, não seja escamoteado do processo de regulação social por arautos da política que a têm como instrumento de manipulação social e de defesa de interesses coorporativos e individuais.

A autonomia popular não pode ficar refém de uma suposta representatividade democrática. Entretanto, o ápice da participação cidadã na condução da vida pública só encontra guarida caso exista um “ambiente de livre fluxo de informações”, que possam municiar os indivíduos de múltiplas versões factuais capazes de lhes oportunizar a construção de seu processo identitário no bojo de um corpo social não hegemônico, mas diverso, onde as diferenças devem ser respeitadas.

“Se o fluxo de informações estiver comprometido, ou pela maneira propositalmente plantada ou pelo descaso na apuração da verdade, os indivíduos terão sua participação ativa impossibilitada pelo Estado. Deixarão de ser, assim, protagonistas na construção do sistema normativo daquela sociedade” (SAMPAIO; ALMEIDA, 2009, p. 252-253). A miragem de verdade aqui utilizada se aproxima, portanto, da ideia de verdade histórica, enquanto possibilidades de olhares em torno do passado, caso garantidas as fontes informativas e o desenvolvimento de uma comunidade política de sujeitos iguais (SAMPAIO; ALMEIDA, 2009, p. 252-253).

Por certo, é preciso que se esclareça que, a despeito do tema Justiça de Transição ser novo no cenário político e social, sobretudo o acadêmico (estudos da transitologia), a profundidade das reflexões sobre a mesma não deixam a desejar por ocasião de sua prematuridade. As bases doutrinárias e jurisprudências em torno do tema ganharam um fôlego muito grande nas duas últimas décadas, quando parte dos países latino-americanos passaram por transições políticas e sociais. Nesse sentido, diversas variantes e perspectivas sobre este processo histórico de transição e as bases filosóficas e normativas que foram construídas para sua legitimação têm sido levantadas e debatidas.

            A primeira experiência da Justiça de Transição ocorreu com o polêmico Tribunal de Nuremberg que fincaria os contornos para a criação de uma justiça inter e transnacional, na perspectiva humanitária[19]. Seguiram-se a ele, o Tribunal para a antiga Iugoslávia, Ruanda e Serra Leoa, precursores do Tribunal Penal Internacional. A segunda experiência se deu na conjuntura das ditaduras europeias, especialmente a portuguesa e espanhola, durante os anos 70, consideradas as mais extensas (quase cinquentenárias) do continente. E a terceira fase ocorrera no cenário das ditaduras latino-americanas, seguidas das asiáticas e africanas.

O termo “justiça de transição” fora cunhado em 1991, pela professora norte-americana, Ruti Teitel no momento em que despontavam quase todos os processos de redemocratização na América Latina. Sua definição tem como espeque, a associação da justiça transicional com períodos de mudança de um regime repressor para um regime baseado nos valores democráticos, marcado pelo aprofundamento democrático e pelo reconhecimento e responsabilização das violações cometidas contra a população nacional. Portanto, o cerne desta pesquisa reside na violação do direito fundamental à memória e à verdade, como consectário para a efetivação do direito à identidade.

A transição brasileira foi e continua sendo acidentada, especialmente em virtude do déficit de pluralidade narrativa sobre este devir histórico que, por isso, tende e tenderá a ser retomado. A geração seguinte à de 1964 pouco conhece sobre a estrutura constitutiva do país, o que dificulta seu olhar panorâmico sobre a história e a conjugação entre presente e passado, impedindo sua interferência no cenário catastrófico acumulado e a advertência sobre as fraudes da história dos vencedores, a história oficiosa.

Um lapso entre suas vidas e sua formação identitária cria obstáculo no tempo do agora, o Jetztzeit que surge em “meio à tempestade do progresso, ao esquecimento causado pela velocidade, meio à substituição infernal de jogos de ambição e poder e atua de forma erosiva sobre os monumentos dos opressores”, ou, “em outras palavras, a condensação de um tempo fora e dentro do tempo. Fora, porque exclui a Chrónos, e dentro, pois sua inspiração está no inconsciente reunindo o agora e o que passou e “libertando o futuro de sua forma presente desfigurada”. (CALADO, TEREZA, 2012, p. 3).

Contudo, o descarte do passado não pode se dar sem sacrifício, devendo existir disposição para arcar com isso. A compreensão sobre o direito à verdade precisa conduzir esse processo, pois a ideia messiânica de Benjamin em torno da salvação apregoa a conservação do passado como também transformação ativa do presente. Inclusive, interpelando Marx, de quem sorveu o materialismo, Benjamin evoca a exigência que vem do passado, por entender que “não haverá redenção para a geração presente se ela fizer pouco caso da reivindicação das vítimas da história” (LOWY, 2005, p. 52).

Constata-se assim, que o direito à verdade, para além de direito transicional, integra o rol dos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988. A própria locução “Estado Democrático de Direito”, jamais implementada no Brasil, só passa a ter sentido quando inserido em um contexto de efetivação do direito à verdade. “Por mais indeterminado que seja o significado desse princípio, sabemos, com segurança, o que ele não é ou significa. E certamente não o é o Estado que sonega informações de seus atos ou de sua história a seus cidadãos” (SAMPAIO; ALMEIDA, 2009, p. 264).

A escovação da história à contrapelo precisa ser um pacto intergeracional, desnudando a estrutura repressiva e confiscatória da verdade sobre o processo de formação identitária no Brasil, reconstruindo outras narrativas históricas sobre o tempo, sobretudo o tempo do agora.

4.  MEMÓRIA: UM LUGAR A SER (RE)VISITADO

Memória e narrativa são fenômenos interdependentes que conectam o sentido do ser com as experiências passadas, sempre referenciadas nas imagens de acontecimentos que supostamente esquecemos e na busca por lembrança. A memória “[…] como forma de conhecimento e como experiência, é um caminho possível para que sujeitos percorram os tempos de sua vida” (DELGADO, 2006, p. 38). Sujeitos que vivenciam e partilham reminiscências em sua subjetividade e em coletividade.

O ato de reconectar a vida presente com os momentos apreendidos pelo tempo possui muita inserção nos mitos. A mitologia[20] dos orixás também perspectiva e dialoga com esse elemento da existência, encarnando a memória na figura de Nanã, – “a lama sob as águas”. Nanã é representada como deusa dos pântanos, das águas serenas, do fundo dos lagos, cuja sabedoria ancestral resguarda as/os mais velhas/os e guia as/os mortas/os, sua exigência única para fornecer o material que forjaria o ser humano. A relação da memória com a morte é, portanto, de presentificação, de preservação e de autoreconhecimento, que em cadeia, desemboca na memória coletiva de cada povo. A memória coletiva possui relevância ímpar por remeter justamente a fatos históricos transcendentes às intimidades individuais, além de as influenciar. Seu raio de interesse pode ser na família, na comunidade local, em uma sociedade nacional ou comunidade humana, o que a impede de ser relegada aos estreitos limites da individualidade (SOARES; QUINALHA, 2009, p. 256).

Não noutro sentido, Pierre Nora adverte acerca da atualidade do fenômeno mnemônico, um elo eterno no presente, portador de afetividade e magia, nutrindo de lembranças vagas, telescópicas, globais ou flutuantes, privadas ou simbólicas, instalando a lembrança no sagrado. “A memória emerge de um grupo que ela une, o que quer dizer que há tantas memórias quantos grupos existem; que ela é por natureza, múltipla e desacelerada, coletiva, plural e individualizada. A memória se enraíza no concreto, no gesto, na imagem, no objeto” (NORA, 1993, p. 9).

A memória torna-se então compreendida enquanto ato político[21] que finca as bases sobre as quais a sociedade se afirma, redefinindo e transformando suas ações e valores. E, nesse sentido, o Brasil possui um vácuo memorial muito extenso se considerarmos que as grandes violações contra seu próprio povo ainda são pouco rememoradas e sabidas, a começar pelo genocídio indígena e pela escravidão dos povos africanos.

4.1. A Memória da (sob) tortura

 A memória pode ser analisada sob os aspectos comunicativo e cultural. A memória comunicativa é diretamente transmitida por aquelas/es que vivenciaram ou testemunharam seus acontecimentos lembrados. Sua duração é curta, no compasso da vida do/a seu/ua narrador/a, a fonte primária. Noutro sentido, a memória cultural emerge quando desaparece a memória comunicativa, no momento em que a sociedade passa a conhecer o iminente desaparecimento das testemunhas vivas, quando então, um conjunto de meio para conservação e proteção de suas lembranças passa as ser uma reação natural (SOARES; QUINALHA, 2009, p. 257).

No caso da sedimentação e garantia da memória brasileira dos acontecimentos ocorridos durante a ditadura civil-militar de 1964, prevalece, ainda, a proeminência da memória comunicativa, tendo em vista que muitas das vítimas daquele regime de exceção encontram-se vivas e sempre (ou quase sempre) dispostas a prestar seus testemunhos. Chegará o momento em que a memória cultural irá preponderar, como é sabido. Contudo, o importante é garantir que a contribuição das/os personagens responsáveis pelo registro da memória comunicativa seja de fato considerada, de modo preencher as lacunas deixadas pela memória “oficial”, que é oficiosa.

Em se tratando de memória comunicativa, importa destacar, como pano de fundo desta abordagem, a narrativa de um corpo feminino torturado, que transpôs para o cinema a arte de falar sobre o silencio. Todas as formas de linguagem para suportar a agrura do tema são válidas, sobretudo aquelas que não descartam a narrativa memoriosa da/o sujeita/o torturada/o, inclusive através da arte.

No caso presente, analisamos o filme brasileiro “Quem bom de ter viva”, da cineasta, ex-presa política e narradora de memórias, Lúcia Murat. O roteiro vivido/dirigido por Murat supera qualquer iconografia para tratar sobre o tema da tortura. Sua obra é um relato de vida, compartilhado com as suas então companheiras durante o regime civil-militar que se apoderou do Brasil. Sua narrativa é um grito, um desabafo e é, também, tortura. Um pedido de socorro para o diálogo sobre o não dito. Elegemos um cinema de memória, portanto, para falar sobre o que precisa ser dito.

O filme-documentário de Murat enfrenta a narrativa sobe a tortura nos corpos de oito mulheres que, de acordo com seus ideais, resistiam ao regime civil-militar de 1964. Seu trabalho é uma ode à memória e uma denúncia à humanidade sobre a violência contra aquilo que ela tem de mais recôndito, seus medos. Sua memória subjetiva saltou os muros do processo íntimo e deu voz a outras subjetividades também vilipendiadas. Este é o maior legado de sua narrativa memorial. Nesse sentido, a memória de Murat se confunde com a nossa memória identitária enquanto mulheres datadas em um tempo histórico que insiste em se repetir. A memória de Murat é a memória de Dilma Rousseff, vitimada pela ditadura e pela pretensa “democracia”, usurpada em sua dignidade e em sua condição de sujeita política. O que suas memórias têm em comum? A marca da violência patriarcal e da misoginia.

As mulheres presentes no filme nos dedicam um capítulo catastrófico da formação de nossa identidade nacional, através de seus relatos de tortura e, mais além, dos seus confrontos íntimos com ela durante boa parte de suas vidas. Marcas, legados dos quais nunca se desvencilham, na maioria das vezes. Entretanto, as nódoas desta chaga, sobretudo a psicológica, não foram capazes de impactar, definitivamente na lucidez de Murat, cuja contribuição repousa na rica abertura conceitual do universo mnemônico, transitando sobre o lembrar e o esquecer, “submetidos a uma releitura do que seja o olhar e a imaginação, principalmente o papel exercido por este olhar e imaginação ao se assistir um filme” (CUNHA, 2006, p. 48).

 Este é um cinema de auto referência, em que Murat possibilita pensar nas chances de reconstrução da memória, da permanência da vida com lastro na experimentação da violência pretérita, com seus ecos presentificados. Conforme acentua Maria Luiza R. Sousa (2008, p. 52), na película, “a crueldade e a violência emergem por intermédio da fala, do depoimento dado e não pela via explícita de cenas de tortura”, onde se “optou por borrar as fronteiras entre documentário e ficção”. Vertendo variadas memórias na memória da personagem, esta síntese da tortura feminina, a obra “relaciona-se, por sua vez, à impossibilidade do testemunho poder ser contido em uma única forma de expressividade”.

A violência de gênero foi objeto de abordagem da Comissão Nacional da Verdade que trouxe à lume a necessidade de se narrar a historiografia brasileira sob o ângulo das mulheres, afinal, toda a narrativa oficial/oficiosa da nossa trajetória fora masculina, como se o Brasil tivesse sua história parida exclusivamente por homens. A participação das mulheres nas organizações políticas e na luta armada entre os anos 1060 e 1970 pode indiciar uma das ‘rupturas iniciais’ que ocorriam com aquilo que à época se designava como próprio das mulheres, pondo em questão a tradicional hierarquia de gênero.

A mulher militante política nos partidos de oposição à ditadura militar cometia dois pecados aos olhos da repressão: de se insurgir contra a política golpista, fazendo-lhe oposição e de desconsiderar o lugar destinado à mulher, rompendo os padrões estabelecidos para os dois sexos. A repressão caracteriza a mulher militante como Puta Comunista. Ambas as categorias desviantes dos padrões estabelecidos pela sociedade, que enclausura a mulher no mundo privado e doméstico (COLLING, 2004, p. 175).

E esta ruptura configura a consolidação do movimento feminista no Brasil, passando as mulheres a ocupar o mundo público, discutindo sobre a situação política do país, sobre o patriarcado, a divisão sexual do trabalho, a isonomia ente os sexos no casamento e o direito ao divórcio, além da disputa pelos espaços na educação superior. Um movimento questionador do estereótipo feminino, que restringia o a mulher “ao espaço privado e doméstico, enquanto mãe, esposa, irmã e dona de casa, que vive em função do mundo masculino” (RIDENTI, 1990, p. 2).

Por certo que o direito à verdade e à memória alcança a todas as pessoas, mas há que se reconhecer que as mulheres constituem vítimas diferenciadas de violência e aqui, a violência praticada nos porões da ditadura brasileira. De acordo com Zinani (2010, p. 36), “grandes vítimas da ditadura foram as mulheres, pois, enquanto presas políticas, sofreram dupla violência, por estarem presas e por serem mulheres”. Vitimadas sexualmente também como técnica de tortura contra seus/suas companheiros/as, pois a honra de tais inimigos era vilipendiada no corpo de suas mulheres, “corpos esses historicamente disputados como butim das mais diversas guerras”, “[…] explicitando, por exemplo, o caráter tradicionalmente sexista e homofobico da formação policial e militar, que constrói o feminino como algo inferior e associa violência a masculinidade viril” (CNV, 2014, p. 401).

Entre as conclusões a que chegou a Comissão Nacional da Verdade, o capítulo sobre ditadura e gênero, produzido através do Grupo de Trabalho Ditadura e Gênero possui uma importância peculiar[22], por mais lamentável que seja seu conteúdo, pois, em um país onde ainda não se consegue falar sobre gênero, sexualidade, autonomia e feminismo de modo aberta e honesto, fora cirúrgica a eleição do tema pela Comissão. Este precisa ser, portanto, um (re)encontro com a(s) história(s) das mulheres para a (re)construção do legado identitário brasileiro.

Assevera o Relatório que a violência sexual praticada por agentes estatais durante os procedimentos de segurança pública na ditadura constitui tortura, ao transgredir preceitos ínsitos à condição humana, vilipendiando a liberdade e a igualdade em dignidade e direitos, integrando, segundo a normativa e jurisprudência internacional, o rol de crimes contra a humanidade. A CNV constata que a violência sexual tornou-se uma prática alastrada no sistema, cujos primeiros registros aparecem logo após o golpe de 1964[23].

  1. […] Assim, este capitulo e dedicado a violência estruturada pela hierarquia de gênero e sexualidade, que busca anular a dignidade dos indivíduos violados, impedindo-os de viver como querem, de viver bem e sem humilhações. Tal violência atinge de forma diversa mulheres e homens, como mostram as investigações e os testemunhos realizados pelo grupo de trabalho “Ditadura e Gênero” (CNV, 2014, p. 400).

Segundo a CNV, após serem emolduradas na condição de prisioneiras, num espaço monolítico de poder, já que a paridade de armas passava longe dali, as mulheres eram catalogadas e segregadas em outros microespaços, de acordo com diferenças (culturalmente) atribuídas por seus algozes. Ancoradas na lógica da tortura e da hierarquia de gênero e sexualidade, as narrativas sobre a violência sexual colhidas pelo órgão foram descritas como abuso de poder, tanto no sentido da faculdade do algoz em produzir sofrimento, quanto na permissão pra fazê-lo. “Foi assim que rotineiramente, nos espaços em que a tortura tornou-se um meio de exercício de poder e dominação total, a feminilidade e a masculinidade foram mobilizadas para perpetrar a violência, rompendo todos os limites da dignidade humana” (CNV, 2014, p. 402).

O trabalho da Comissão em torno desse tema acabou por eleger a abordagem da violação sexual perpetrada contra as mulheres, especialmente por entender que a desigualdade e estruturação de gênero e sexualidade da violência são peças fundamentais para se tentar entender esse universo de crueldade. Ressalta, entretanto, que não se trata de ignorância frente às violações masculinas, segundo ele, “frequentemente associadas à emasculação do inimigo”, inclusive, a sua feminilização” (CNV, 2014, p. 400). De maneira contumaz, assevera:

  1. Assim, pode-se pensar a discriminação de gênero como a pratica de assegurar ou negar direitos considerando-se o gênero de cada individuo. Trata-se, portanto, da incapacidade não apenas do Estado, por intermédio de seus governantes e de políticas publicas adotadas, mas também da própria sociedade, de reconhecer a igualdade de direitos, status e oportunidades entre homens e mulheres, consentindo com o tratamento diferenciado, que se da, na quase totalidade das vezes, em prejuízo destas. (CNV, 2014, p. 400)

Seu resultado, além de solver uma dívida (ou principiar um pagamento) histórica com a população brasileira, promove uma reflexão sobre presentificação da discriminação de gênero, ressaltando a nossa ainda dificuldade em lidar com o tema. Além disso, perfaz-se enquanto instrumento de política pública que reverência o direito à memória, à verdade e à identidade, assumindo o caráter pedagógico na narrativa.

Não à toa, a CNV expressa sua preocupação com o descumprimento, pelo Brasil, dos comandos estabelecidos na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, aprovada pela Organização das Nações Unidas, em 1979, já que as violências praticadas contra suas vidas e corpos foram silenciadas levianamente, contribuindo de maneira significativa para a contumaz presentificação dos abusos.

Nesse sentido, as mulheres brasileiras são titulares do direito de acesso às informações de interesse subjetivo e público, do direito à compensação pelos danos experimentados e tributárias da memória, considerando o importante papel que desempenharam para a afirmação da identidade brasileira, frente a um contexto historiográfico eminentemente patriarcal. Suas memórias devem ser restauradas para elucidar as graves violações de direitos humanos perpetrados contra seus corpos, em contribuição à formação de uma consciência coletiva que oportunize os processos identitários e a afirmação da cidadania.

       Desse modo, a violência sexual compõe uma das mais antigas e abjetas expressões da violência de gênero, ao privar da titular do corpo, o direito à sua autonomia, portanto, liberdade, consoante se depreende das narrativas das mulheres à CNV (2014, p. 404), onde “aparecem sistematicamente relatos de humilhações, maus-tratos e torturas sofridas, acompanhados de referências explicitas ao fato de que haviam se afastado de seus “lugares de esposa e mãe” e ousado participar do mundo político, tradicionalmente entendido como masculino”.

       Nesse sentido, as violações de direitos humanos praticados contra Dilma Rousseff marcam o enredo de sua vida, enquanto mulher, enquanto sujeita histórica vitimada pela ditadura e enquanto primeira Presidenta da República brasileira, após mais de um século de supremacia masculina no poder institucionalizado. A memória feminina, nesse contexto, passa a condensar a dor sentida no vilipêndio, convivendo com o suplício de uma lembrança no corpo e no íntimo, inserindo sua titular como mais um dos alvos fáceis da biopolítica, resistindo, como testemunha. A sua relação com o passado se dá na forma de vítima, testemunho e memória. Enquanto vítima trava uma disputa (dispare) com o vitimário para constituir a perspectiva de sua enquanto narrativa.

Torturada nos porões da ditadura em Juiz de Fora, Zona da Mata mineira, em São Paulo e no Rio de Janeiro, Dilma foi supliciada com o pau de arara, com a palmatória, choques e socos que impactaram gravemente sua arcada dentária, fatos revleados em narrativa dela ao Conselho dos Direitos Humanos de Minas Gerais (Conedh-MG), em 2011.

Seu depoimento, além de visceral, traz nas entrelinhas os contornos de seu processo de formação identitária, enquanto mulher e militante. Acessar documentos sensíveis como os processos instaurados contra Dilma à época da ditadura, assim como contra outras vítimas do sistema, nos coloca em desconforto, sobretudo no que se refere ao paradoxo causado na utilização de codinomes como estratégia política de sobrevivência.

       Estela, Stela, Vanda, Luiza, Mariza, Ana…Dilma, quantas mulheres em uma só tentando ser apenas uma, aquela que não desiste da luta, aquela que protege o seu nome por amor. Por isso, esse testemunho, que carrega o paradoxo do indizível do sofrimento, precisa se constituir em um novo acontecimento político, que narre o lado oculto da violência, negado pelos arautos do esquecimento, demarcado a disputa narrativa de gênero na locomotiva da história brasileira. “O estresse é feroz, inimaginável. Descobri, pela primeira vez, que estava sozinha. Encarei a morte e a solidão. Lembro-me do medo quando minha pele tremeu. Tem um lado que marca a gente pelo resto da vida” (ROUSSEFFF, DILMA, 2001).

Sua narrativa diz por si só:

Eu vou esquecer a mão em você. Você vai ficar deformada e ninguém vai te querer. Ninguém sabe que você está aqui. Você vai virar um ‘presunto’ e ninguém vai saber, era uma das ameaças ouvidas de um agente público no período em que esteve presa. Tinha muito esquema de tortura psicológica, ameaças (…) Você fica aqui pensando daqui a pouco eu volto e vamos começar uma sessão de tortura (ROUSSEFFF, DILMA, 2001).

Absolutamente por si só:

Era aquele negócio meio terreno baldio, não tinha nem muro direito. Eu entrei no pátio da Operação Bandeirante e começaram a gritar: ‘Mata!’, ‘Tira a roupa’, ‘Terrorista’,’Filha da puta’, ‘Deve ter matado gente’. E lembro também perfeitamente que me botaram numa cela. Muito estranho. Uma porção de mulheres. Tinha uma menina grávida que perguntou meu nome. Eu dei meu nome verdadeiro. Ela disse: ‘Xi, você está ferrada’. Foi o meu primeiro contato com o ‘esperar’. A pior coisa que tem na tortura é esperar, esperar para apanhar. Eu senti ali que a barra era pesada. E foi. Também estou lembrando muito bem do chão do banheiro, do azulejo branco. Porque vai formando crosta de sangue, sujeira, você fica com um cheiro (ROUSSEFFF, DILMA, 2001).

Em depoimento prestado à CNV, em 28 de maio de 2013, Lúcia Murat nos auxilia, assim como durante o filme, relatando o que seria “tortura sexual científica”.

[…] Eu ficava nua, com o capuz na cabeça, uma corda enrolada no pescoço, passando pelas costas até as mãos, que estavam amarradas atrás da cintura. Enquanto o torturador ficava mexendo nos meus seios, na minha vagina, penetrando com o dedo na vagina, eu ficava impossibilitada de me defender, pois, se eu movimentasse os meus braços para me proteger, eu me enforcava e, instintivamente, eu voltava atrás (CNV, 2014, p. 406).

Além de vilipendiar a vida feminina, a tortura era objeto de premiação entre a organização masculina do poder e da arquitetura da violência, a exemplo da Medalha do Pacificador (ironicamente).

Uma das coisas que me aconteceu naquela época é que meu dente começou a cair e só foi derrubado posteriormente pela Oban. Minha arcada girou para outro lado, me causando problemas até hoje, problemas no osso do suporte do dente. Me deram um soco e o dente deslocou-se e apodreceu. Tomava de vez em quando Novalgina em gotas para passar a dor. Só mais tarde, quando voltei para São Paulo, o Albernaz completou o serviço com um soco arrancando o dente (ROUSSEFFF, DILMA, 2001).

Ao analisar as consequências das torturas e (com) violações sexuais nestas vítimas, a CNV constata que, apesar de eventos trágicos, são práticas persistentes, mesmo em tempos democráticos, causando nos sujeitos sua invisibilidade, inclusive em decorrência da subnotificação dos crimes ou mesmo, sua marginalização. E esse sofrimento ganha muito mais proporção quando se está diante de criminosos travestidos de agentes públicos que, em nome do Estado, praticam todo sortilégio de vilipêndio à dignidade humana[24] de sobreviventes que “ainda hoje padecem ao lidar com o estigma em torno dos crimes sexuais, a indiferença da sociedade e a impunidade dos violadores” (CNV, 2014, p. 422).

Compreendemos que a memória está localizada em diversos lugares, tão possíveis quanto a condição humana. As memórias são vastas, mas únicas e devem ter o seu lugar reservado em vida e para a vida. Por estar umbilicalmente ligada à história, o que precisamos reconhecer é a sua possibilidade de existência e convívio, saudável, ou frente a embates com outras memórias, notadamente as oficiais/oficiosas. “Resgatar a memória com verdade também é fundamental para elucidar o que é inconsciente e irracional, passando-se à consciência para transcendê-los” (BARBOSA; VANNUCHI, 2008 p. 29).

Uma memória que, quando analisada sob a vertente coletiva, ultrapassa os limites das intimidades individuais, as influenciando. Em seu entorno são articuladas narrativas, muitas vezes dissidentes e, às vezes, excludentes entre si. “Diante dessa diversidade em constante interação, a memória coletiva assume o caráter de uma arena de embates e acordos, em que se fazem possíveis as mais diversas e provisórias construções discursivas, contribuindo, cada qual a sua maneira, para a elaboração social de um evento compartilhado” (SOARES; QUINALHA, 2011. p. 12).

Em “Que bom te ver viva”, encontramos um filme-arquivo que labuta com a memória, esta matéria construída no presente e que exerce, segundo Halbwachs (2004), um fundamental papel no processo de coesão social, estimulando a solidariedade, apesar da distinção entre os grupos que lidam com a memória nas diversas forças sociais. A película é uma evocação arquivística do e para o presente, com espeque na definição de Derrida (2001, p. 48), para quem, “o arquivo constitui material que, por organizar e conter itens do passado, é voltado ao presente e, assim, pode “pôr em questão a chegada do futuro”.

Frente à omissão da sociedade, os relatos das mulheres vitimadas pela ditadura civil-militar brasileira, seja neste resgate cinematográfico ou nos documentos produzidos pelo Estado brasileiro sobre seus depoimentos, a exemplo do volume III da obra Direito à Memória e à Verdade e do Relatório da Comissão Nacional da Verdade, “resistem à ideia do esquecimento, não por serem unicamente uma plataforma política, mas por constituírem a única forma de dar continuidade às suas existências”, equacionando o “difícil equilíbrio entre não conseguir esquecer e continuar vivendo” (SOUSA, M., 2008, p. 53).

  1. Considerações Finais

 Como estar diante de histórias como as das personagens que nos auxiliam nessa narrativa, e não sentir o desconforto de conviver com um presente tão preso e mal resolvido com o passado? Como atuar diante de presente tão repetido, tomar ciência de catástrofes e não compreender o chamado do Anjo da História que, rotineiramente nos fita para dizer que os escombros, as ruínas produzidas pelo progresso ainda permanecem sob seus pés e que ele ainda gostaria de “demorar-se, de despertar os mortos e juntar os destroços”? O silencio violenta a verdade, confisca a memória e obstaculiza a identidade.

A herança legada pelo governo ditatorial é perfeitamente refletida no grau de autoritarismo que permeia nossas relações sociais, na democratização incompleta das estruturas e espaços institucionais e societários que obstaculizam a vivência plena da cidadania, bem como, na endêmica violência social e de segurança pública. Aquele futuro pensado para a redemocratização é hoje, um presente mal resolvido com os espectros do passado, cuja recusa em recolher e resolver as ruínas tem obstado a perspectiva de mudança.

O golpe de 2016 é a continuidade da nódoa de sangue que legaram ao país. Do mesmo modo, os desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres, até hoje, insepultos, não chorados. As personagens apresentadas neste trabalho, independente do lugar histórico no qual figuram, possuem um ponto de convergência muito claro quando nos permitimos compreender os seus processos históricos, caso os escovemos à contrapelo.

     O processo de “redemocratização” no Brasil não fora, portanto, concluído. O Estado de Direito caminha para retornar a seu posto, mas não a Democracia, que ainda perambula pelo caminho. E esta inconclusão precisa ser discutida de forma transparente na sociedade, através de uma análise reconstrutiva do modelo de relacionamento entre esta e o Estado. Para tanto, torna-se condição sine qua non, a concretização da verdade e a sedimentação da memória histórica, pilares da Justiça de Transição, sob pena de perpetuar o culto de um “pacto” simbólico e pernicioso que paira sobre o território nacional e permanecer confiscando as identidades individuais e sociais. Sem verdade não há soberania popular, e sem soberania, a Democracia escapa mui facilmente pelas mãos.

A narrativa de Dilma Rousseff enquanto mulher e líder política, no passado e no presente é uma sugestiva mensagem intergeracional, de grande lição. Quando não depuramos nossas verdades históricas e não disputamos a memória das narrativas de nossos tempos, legamos um déficit identitário ao povo brasileiro, deformado e com defeito. Infelizmente esse é um traço marcante no Brasil, tanto é que pouco tempo após o último golpe de Estado praticado em 1964, voltamos a ser vítima dessa mesma orquestra das elites brasileiras e transnacionais.

Que aprendamos com os nossos erros e acertos históricos!

Referências

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NOTAS:

[1] Trabalho apresentado ao Espaço de Discussão 12- Direitos, memória e justiça de transição do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[2]Doutoranda e Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Membro do Grupo de Pesquisa “Invisibilidade Social e Energias Emancipatórias em Direitos Humanos” da Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Advogada. E-mail: [email protected].

[3]Doutorando em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Mestre e Doutorando em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Pós-Graduado em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Membro do Grupo de Pesquisa Direito, Sociedade e Cultura (FDV). Professor Universitário. E-mail: [email protected].

[4]Trabalho apresentado ao Espaço de Discussão 12- Direitos, memória e justiça de transição do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[5]Graduado em Relações Internacionais e mestre em Políticas Públicas em Direitos Humanos, ambas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

[6]Neste caso, a redundância proposital se dá por um uso diferenciado de cada incidência da palavra “própria”. A “própria política” aponta para o fato de que as violências perpetradas pelo Estado não só estão incluídas no grupo de ferramentas do Estado, como em muitas vezes resumem a ação estatal frente à parte de sua população; a “política própria” aponta para o fato de o Estado e seus agentes serem os únicos que, por definição, são capazes de usar de suas violências sob um véu de legitimidade simbólica acompanhada de impunidade prática.

[7]Esta definição, inclusive, remete ao conceito da física de “força”, no qual esta não existe por si só, mas somente quando é aplicada. Em termos simplistas, nada “tem” força, mas somente a “exerce”. Também assim se dá com o Estado: em si, o poder, ou “força”, do Estado, tanto na forma simbólica quanto na forma física, só existe quando aplicado por seus agentes, estando, na ausência desta aplicação, em uma forma “potencial” circunscrita em seu conceito e legitimada por seu “reconhecimento”, como definido acima.

[8]Doravante “violências estatais”.

[9]Como no “estado da matéria”, dentro da semiótica da física.

[10]O Patriot Act, ainda em vigor, inclui a autorização para invadir casas sem mandatos expedidos por juízes, como manda a forma da lei estadunidense, ante a presunção de ações terroristas, e a cessão de habeas corpus conforme os líderes militares creem ser necessário – este último exatamente como Lincoln fizera em 1862 (vide AGAMBEN, 2004, p.35-36; ESTADOS UNIDOS, 2001).

[11]Aliada a isso se coloca a mídia que, posicionando-se como ator no campo do Estado, seleciona um tema que sirva tanto aos seus interesses quanto aos dos agentes estatais na estruturação da verdade construída, de forma que “esse tema é orquestrado com toda a força da mídia e torna-se uma força social real com a qual somos obrigados a contar” (BOURDIEU, localização 6618-6619). Sendo assim, a mídia se coloca como uma das principais ferramentas do Estado como agente para estabelecer conceitos que sirvam aos seus interesses.

[12]JORNAL NACIONAL (Rio de Janeiro). Violência no Rio não dá trégua nem com reforço de tropas federais: Caminhoneiro ficou refém de ladrões de carga na Avenida Brasil. Linha Vermelha tem dois arrastões e policial ficou ferido. 2017. Disponível em: <http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2017/08/violencia-do-rio-nao-da-tregua-nem-com-reforco-de-tropas-federais.html>. Acesso em: 8 ago. 2017.

[13]Trabalho apresentado ao Espaço de Discussão Direitos, Memória e Justiça de Transição do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[14]Mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia. Professora Auxiliar do Departamento de Ciências Humanas do Campus IV da Universidade do Estado da Bahia – UNEB.

[15](…) esse autêntico instante que interrompe o contínuo da história, que lhe parece visivelmente inspirado em um “amálgama” entre experiências surrealistas e temas da mística judaica. (LOWY, 2005, p. 15).

[16]Disponível em: http://www.penhook.org/angelusnovus.htm. Acessado em 15 fev. 2018.

[17]A palavra epistemicídio fora cunhada na seara acadêmica pelo sociólogo Boaventura de Sousa Santos, correspondendo às formas de conhecimento alijadas nos modelos filosóficos.

[18]Para a filosofia nietzschiana, o sentido de “verdade” ganhou definição antropomórfica, por ser desprovida de qualquer coisa que seja verdade em si, real e universal, independendo do ser humano, já que a verdade só faz sentido para ele (SAMPAIO; ALMEIDA, 2009, p. 249).

[19]“À sua maneira, Nuremberg confirmou o provérbio recordado pelo personagem de Maquiavel: a guerra faz os ladrões, e a paz os enforca” (BATISTA, 2014, p. 11).

[20]“[…] os mitos justificam os papéis e atributos dos orixás, explicam a ocorrência de fatos do dia-a-dia e legitimam as práticas rituais, desde as fórmulas iniciáticas, oraculares e artificiais até a coreografia das danas sagradas, definindo cores, objetos, etc” ( PRANDI, 2001, p. 32).

[21]Consoante asseveram Barbosa e Vannuchi, constitui estratégia da ditatura a produção da supressão da memória através de pactos de silêncios e de subvenções mútuas que acomodam os sobreviventes do conflito, conservando ilesa a chance de acerto de contas com o passado e a ignorância de seus fatos, especialmente entre as gerações mais novas (2009, p. 58).

[22] 49. Um dos aspectos menos conhecidos do horror exercitado pela ditadura militar transparece nos relatos de crianças e adolescentes que, mesmo sem oferecer nenhum risco a dita “segurança nacional”, foram monitorados, perseguidos, presenciaram os pais sendo baleados, cresceram dentro de uma prisão ou foram surpreendidos com ações violentas dentro da própria casa em que viviam – caso de Jose Wlademir Benevenuto […] (CNV, 2014, p. 427)

[23] 29. Nesse sentido, dentre as recomendações da CNV (2014, p. 969), estão “o abolir, com o reforço de expresso mandamento legal, os procedimentos vexatórios e humilhantes pelos quais passam crianças, idosos, mulheres e homens ao visitarem seus familiares encarcerados. Não se pode mais obrigar todos os visitantes a ficar completamente nus e a ter seus órgãos genitais inspecionados. Essa pratica deve ser proibida em todo o território nacional”.

[24]