ESPAÇO DE DISCUSSÃO 13 – QUESTÃO RACIAL

  

Artigo


Entre a criminalidade feminina e raça: diálogos entre a criminologia crítica e o feminismo decolonial [1]

Between female criminality and breed: dialogues between critical criminology and decolonial feminism

 Jéssica Santiago Cury[2]

Paulo César Corrêa Borges[3]

 Resumo:

Em junho de 2016, o DEPEN (Departamento Penitenciário Nacional) veiculou dados alarmantes sobre o encarceramento das mulheres. Conforme o relatório lançado houve um aumento de 567% da população carcerária feminina, nos anos de 2000 a 2014. Diante desse quadro, se fez cada vez mais urgente um debate crítico quanto a criminalização das mulheres e suas particularidades, principalmente quanto ao perfil da população feminina encarcerada, que é composta por mais de 50% de mulheres negras. Nesse ínterim, o presente trabalho busca por meio de um recorte bibliográfico, trazer os principais discursos feitos pela criminologia crítica quanto a temática do encarceramento feminino e demonstrar como tal ciência foi omissa quanto a questão de raça E a partir disso, tentar promover um diálogo entre a criminologia crítica e o feminismo decolonial, na tentativa de superar as lacunas existentes na criminologia e construir discursos condizente com a realidade vivenciada pelo Brasil.

Palavras-Chave: criminologia crítica; feminismo descolonial; raça; criminalidade feminina; cárcere.

Abstract: In June 2016, DEPEN (National Penitentiary Department) reported alarming data on the imprisonment of women. According to the report released, there was a 567% increase in the female prison population in the years 2000 to 2014. In the face of this situation, a critical debate about the criminalization of women and their particularities, especially regarding the female prisoner population profile, which is made up of more than 50% of black women, has becomes increasingly urgent. In the meantime, the present work seeks, through a bibliographic clipping, to bring the main discourses made by critical criminology regarding the subject of female imprisonment and to demonstrate how such science was silent about the issue of race. From this, it tries to promote a dialogue between critical criminology and decolonial feminism in an attempt to overcome the existing gaps in criminology and construct discourses consistent with the reality experienced by Brazil.

Keywords: critical criminology; decolonial feminism; breed; female criminality; prison.

1.      Introdução

 Em junho de 2016, o DEPEN (Departamento Penitenciário Nacional) veiculou dados alarmantes sobre o encarceramento da população brasileira. Conforme o relatório lançado foi demostrado que a taxa de encarceramento, entre os anos 2000 a 2016, aumentou 157%[4].

Em relação as mulheres presas, os dados são ainda mais graves, houve um crescimento de 567% de sua população, entre o período de 2000 a 2014, enquanto a população masculina cresceu significativos 220%. Quanto ao perfil da população feminina encarcerada, foi demostrado que 67% estão presas pelo crime de tráfico de drogas, 89% possuem entre 18 a 45 anos, 62% são negras e 84% possuem filhos[5].

 Diante desse quadro, se fez cada vez mais urgente um debate crítico quanto a criminalização das mulheres e suas particularidades, principalmente quanto ao perfil da população feminina encarcerada, que é composta por mais de 50% de mulheres negras. Nesse ínterim, o presente trabalho busca por meio de um recorte bibliográfico, trazer os principais discursos feitos pela criminologia crítica quanto a temática do encarceramento feminino.

Inicialmente, buscou compreender os principais conceitos e referenciais teóricos da criminologia crítica. Assim, tem-se por Criminologia Crítica, a ciência que promove a ruptura com o paradigma etiológico que estudava a criminalidade, para este ramo o importante não é compreender as causas da criminalidade e, sim, os processos de criminalização. Busca-se, por meio dela, analisar os conjuntos de agências de controle social informal e formal, como um caminho para entender os fenômenos do desvio.

Assim, após compreender o que seria a Criminologia Crítica e o que ela buscava, percebeu como esta ciência durante algum tempo foi omissa quanto as questões de gênero. Somente na década de 60, a partir dos avanços dos estudos e das conquistas feministas que iniciou no âmbito das ciências analisar a mulher enquanto sujeito. Foi verificado como os processos de criminalização dos corpos femininos são diferenciados, dotados de particularidades advindos das opressões sofridas por estar inserida em uma sociedade estruturalmente machista.

Porém, vários autores que pesquisaram esse tema pautaram-se em discursos veiculados a questões econômicas para analisar a criminalidade feminina, como por exemplo, a criação do termo “feminização da pobreza”.  Para esses autores, a pobreza tornou-se um problema feminino, pois a mulher encontra-se em posição desfavorecida economicamente, principalmente, aquelas que chefiam as famílias, e veem no crime uma forma de se sustentar.

Outros pesquisadores, compreende a criminalidade feminina como consequência da entrada da mulher na esfera pública, entre outras questões socioeconômicas. Porém, quando se fala sobre os corpos negros, e em especial, da mulher negra, esse discurso se torna parcialmente obsoleto, pois estas mulheres sempre ocuparam a esfera pública e seus corpos foram criminalizados de formas sistemática por causa de uma sociedade machista, racista e opressora.

Nesse sentido, percebeu que a criminologia crítica foi omissa quanto ao debate de raça no que tange a criminalização das mulheres. Assim, o presente trabalho busca promover um diálogo entre o feminismo decolonial e criminologia crítica como um meio de tentar superar tal lacuna e construir uma perspectiva pautada na realidade das mulheres negras brasileiras. .

Assim, tem-se por feminismo decolonal a perspectiva teórica criada por Maria Lugones, tendo como referência o movimento de origem de gênero das academias norte-americanas. Falando de modo mais específico, Lugones traz os trabalhos sobre gênero, raça e colonização, tendo como referência os trabalhos das mulheres negras dos EUA, como Kimberlé Crenshaw, os feminismos das mulheres do terceiro mundo e as versões das escolas de jurisprudência Lat Crit y Critical Race Theory, (LUGONES, 2008). Ademais, pauta-se na perspectiva da colonialidade do poder de Aníbal Quijano acerca da análise do padrão de poder global capitalista.

  Portanto o objetivo geral da pesquisa é promover de forma dialética um diálogo entre a criminologia crítica e o feminismo decolonial, como um meio de construir discursos pautados na realidade da mulher negra. Para isso, foram necessárias leituras de criminólogos como Alessandro Barrata, Vera Regina de Andrade, Zaffaroni, entre outros, e para compreender os discursos decoloniais foram usados como referenciais obras de Maria Lugones, Luciana Ballestrin e Rita Segato.

 

  1. Notas sobre Criminologia Crítica

Para melhor compreensão da análise que o presente trabalho propõe, será abarcado neste tópico os principais conceitos que compreende a criminologia crítica. Nesse sentido, entende-se por Criminologia Crítica uma corrente de pensamento contemporâneo, cujas bases se assentam na construção de uma teoria materialista do desvio, dos comportamentos negativos e dos processos de criminalização (BARATTA, 2002)

Corroborando a assertiva acima, Andrade (1994) refere-se a Criminologia Critica como um processo de interpretações materialista dos processos de criminalização nos países do capitalismo avançado, na qual baseia-se em duas premissas. Sendo a primeira o enfoque teórico aceca do fenômeno do desvio. Já a segunda, o foco recai sobre os instrumentos e mecanismos criados e usados para as definições de desvio e de criminalidade e realizados os processos de criminalização (ANDRADE,1994; BARATTA 2002).

  A Criminologia Crítica origina-se diretamente do labbeling approach (ANDRADE,1994), também conhecido como “paradigma da reação social”, na qual cria-se uma nova perspectiva para romper com o paradigma etiológico[6]. Por meio desse estudo, questiona-se quem tem o poder de etiquetar o outro como desviante da norma (ANITUA, 2208).

Assim, começa a analisar quem “cria” e “administra” a delinquência, passando os estudos para os processos de criminalização. Portanto, os conceitos e definições legais de criminalidade param de ser vistos como entidades naturais, deslocando-se para um novo enfoque:

Comprovava-se, assim, que diante de fatos similares poderia advir uma reação social de anormalidade ou não existir reação nenhuma. Apenas no primeiro caso, ocorreria o desvio. Portanto, parecia fundamental estudar, precisamente, essa reação que identifica o autor do fato como delinquente. Assim, parecia que nos anos 1960, estava-se produzindo uma ruptura com a criminologia anterior (ANITUA, 2008).

Nesse sentido, os fatos socais puníveis seriam conforme a reação da sociedade perante a eles do que a conduta em si, mostrando, portanto, como a imposição das regras e do etiquetamento é vista como uma questão de poderio político e econômico (BECKER, 2008).

Diante disso, a criminologia crítica busca ir além da reação social, compreendendo a dimensão do poder numa perspectiva materialista e macrossológica (FRANKLIN,2017). Tenta-se averiguar os fenômenos do desvio, por meio da análise das condições objetivas, estruturais e formais da sociedade capitalista, de acordo com a reação das condutas das classes subalternas ou das classes dominantes [7](FRANKLIN, 2017).

Portanto, para a Criminologia Crítica o sistema de justiça criminal não se reduz a norma penal, mas um conjunto de agências de controle social formal e informal. Assim, os processos de criminalização perpassam por vários mecanismos de controle sociais globais, como as instituições família, escola, trabalho, sistema penal e penitenciário.

  1. Criminologia Crítica e Gênero.

Como visto acima, o saber criminológico começa a focar sobre os processos de criminalização retirando do centro dos estudos as causas da criminalidade. Porém, sob o paradigma ainda da reação social a criminologia crítica pareceu se omitir nos aspectos de gênero e da dominação racial herdados historicamente no processo de colonização (FRANKLIN, 2017). Nesse sentido Zaffaroni (1992), afirma que toda omissão no discurso criminológico e jurídico é suspeita, pois uma omissão no discurso oculta uma das facetas da perversão do poder punitivo.

Com isso, cria consequências complexas a serem tratadas no presente trabalho, porém Franklin (2017) demarca duas de suma importância. A primeira é que o saber criminológico não é universal como proclamado em seus discursos, a segunda seria que esta ciência ao ignorar o quesito raça cria um saber com lócus insuficiente, pois eram nas categorias de raça que os primeiros estudos da criminologia positiva se pautavam. O presente artigo não fará um estudo profundado no que tange as questões raciais e a criminologia, mas buscará mostrar a compreensão de raça em certas teorias, como no feminismo decolonial.

Além da temática racial ter sido ignorada na construção do discurso criminológico, por muito tempo ignoraram também as questões de gênero. Somente na década de 1960, em que houve uma ruptura dos paradigmas vigentes e dos padrões sociais impostos, que repercutiu também nas esferas sociais e das ciências humanas. Assim iniciou-se, ainda que, de uma forma tímida os estudos quanto a criminalidade feminina com um viés crítico e pensado na realidade das mulheres.

Portanto, para o presente artigo será feito um recorde destes estudos em três abordagens, sendo elas: a teoria dos papeis sociais, o movimento da libertação das mulheres, a múltipla marginalização das mulheres.

Na primeira abordagem, afirma que o comportamento de qualquer pessoa está ligado as relações patriarcais inseridas em um contexto de uma sociedade machista e hierárquica. Sendo as questões de gênero tão importante quanto as condições econômicas, sociais e raciais.

Para tal teoria, a criminalidade feminina está ligada com sua formação social, uma vez que as mulheres foram criadas para enquadrarem em determinados padrões nas quais devem ser mais passivas e menos agressivas. Sendo tal afirmativa uma justificativa do baixo encarceramento das mulheres em relação aos homens. Além disso, acreditam que a historicidade e a contextualização da conduta da mulher, bem como sua formação e as circunstâncias a sua volta são as que deixam mais ou menos vulnerável para praticar certos fatos delituosos.

Porém, a autora Eileen Leonard (1982) crítica tais estudos pelo fato de ser “incompleta no que concerne a análise crítica da origem das desigualdades entre os sexos, permitindo que a análise seja interpretada como prova das características inerentes às mulheres e induzindo a discussão sobre os problemas individuais decorrentes da socialização inadequada, e não estruturais da sociedade”.

Em relação ao pensamento da libertação das mulheres, defendeu-se a ideia de que com o aumento da inserção das mulheres na vida social, sua inclusão no mercado de trabalho, a sua criminalidade também aumentaria. Segundo esse pensamento afirmou Lembruger (1983) “ à medida em que as disparidades sócio-econômico-estruturais entre os sexos diminuem, há um aumento reciproco da criminalidade feminina”.

Em complementação a esses estudos a autora Clarce Feinman (1994), afirma que não se pode reduzir o estudo da criminalidade quanto somente a libertação feminina, pois os índices criminais apontam que as mulheres que são encarceradas a causa está mais relacionada ao desemprego, o que sugere uma feminização da pobreza e não a sua libertação, sendo a tendência social de maior preponderância quanto ao estudo do encarceramento feminino.

Além disso, outras pesquisas apontam no que há uma existência de continuidade entre experiências de violências sofridas nas vidas das mulheres e sua inserção na criminalidade (SOARES; ILGENFRITZ, 2002). Os estudos afirmam que as diversas experiências de violência associada a pobreza, podem ser consideradas determinantes para inserção da mulher em situação de marginalização e risco, sendo mais vulneráveis perante a atuação do sistema de justiça.

Portanto, percebe-se como os estudos sobre a criminalização das mulheres sempre se pautaram em discursos universas sobre quem seriam as mulheres presas não seu pautando e questionando sobre os corpos negros que sempre sofrem de forma sistemática com o poder punitivo.

Os dados coletados pelo DEPEN (Departamento Penitenciário Nacional) em julho de 2014, corroboram com as afirmações feitas, ao formar um perfil preliminar das mulheres encarceradas no Brasil. A presente pesquisa informa que 50% das mulheres presas possuem de 18 a 29 anos, 68% são negras, 57% são solteiras, 50% possuem ensino fundamental incompleto (BRASIL, 2014).

Assim não temo como pensar em uma criminologia sob uma perspectiva de genêro sem questionarmos a questão da raça, e como os corpos das mulheres negras foram e ainda são criminalizados.

E para aprofundar um pouco mais nessa questão será abordado, como alternativa de construção de um conhecimento pautado na realidade brasileira e que promova visibilidade da mulher negra, os principais conceitos e as atuai discursos do feminismo decolonial.

  1. Feminismo Decolonial.

Como exposto acima, a criminologia crítica ao tratar de gênero e raça, acabou por construir discursos genéricos e homogêneos, tratando a mulher como uma categoria universal e se omitindo quantos as outras formas de ser feminino. Nesse sentido, pautando-se na categorização e no estigma das outras formas de se ver a mulher (colonialidade) que o feminismo decolonial surge como resposta a esses discursos.

Para essa teoria, o foco central é a colonialidade, como meio de compreender a naturalização da mulher como categoria universal, perspectiva aceita por tanto tempo pelas vertentes feministas. A colonialidade seria, então, um fenômeno histórico complexo que se estende até os dias atuais, e cria um padrão de saber, ser e poder que se instrumentaliza na naturalização das hierarquias territoriais, raciais, culturais e epistêmicas. Nesse sentido, a decolonialidade, tem como objetivo transcender o padrão colonial (RESTREPO; ROJAS,2010).

Assim, as teorias feministas decoloniais, trazem uma nova forma de se pensar sobre as categorias analíticas de gênero. Para elas, gênero seria um dos eixos do projeto colonial, seria um elemento estruturador da colonialidade de poder, ela seria mais um dos mecanismos usados para reprodução da assimetria de poder no mundo contemporâneo.

O feminismo decolonial, pensa na categoria gênero a partir do conceito da “colonialidade de gênero”, criado por Maria Lugones (2014). Para a autora, a colonização impõe ao colonizado e a colonizada o status de não humano, não sendo identificados como homens e mulheres, e sim, animais selvagens, bestiais sexuais e pecaminosos. Contudo, mesmo no mundo animal havia a diferenciação entre macho e fêmea, sendo o macho símbolo da pefeição e a fêmea a sua deformação. É nesse contexto, que o colonizador emprega aos colonizados e colonizadas as características de fêmeas de machos:

Os machos colonizados não humanos como julgados a partir da compreensão normativa do “homem”, o ser humano por excelência. Fêmeas eram julgadas do ponto de vista da compreensão normativa como “mulheres”, a inversão humana de homens. Desse ponto de vista, pessoas colonizadas tornaram-se machos e fêmeas, Machos tornaram-se não-humanos-por-não-homens, e fêmeas colonizadas tornaram-se não-humanas-por-não-mulheres. (LUGONES, 2014)

Assim, o gênero produziria o sexo na colonização e a racialização produziria a distinção entre humano e não humano. Sexo seria uma característica isolada para categorização dos colonizados, pois torna-los humanos não seria interessante ao empreendimento colonizador, uma vez que a normatividade colonial conectava o gênero a civilização (LUGONES, 2014). Nesse sentido, a colonizada era colocada como não mulher:

A consequência semântica da colonialidade do gênero é que “mulher colonizada” é uma categoria vazia: nenhuma mulher é colonizada; nenhuma fêmea colonizada é mulher. […] Como não há mulheres colonizadas enquanto ser, sugiro que enfoquemos nos seres que resistem à colonialidade do gênero a partir da “diferença colonial”. Tais seres são, como sugeri, só parcialmente compreendidos como oprimidos, já que construídos através da colonialidade de gênero (LUGONES, 2014).

Assim, para a autora, descolonizar o gênero seria criticar a opressão de gênero racializada, capitalista e heterossexualizada. Para tanto, seria necessária uma compreensão histórica das subjetividades e intersubjetividades da relação opressão/ resistência. Nesse sentido, o feminismo não fornece apenas uma narrativa da opressão de mulheres. Vai além da opressão ao fornecer materiais que permitem ás mulheres compreender sua situação sem sucumbir a ela (LUGONES, 2014).

Assim sua proposta é trabalhar rumo a um femismo descolonial, nele se aprende sobre todas as mulheres sem a hierarquização de uma sobre a outra. Assim:

A tarefe da feminista descolonial inicia-se com ela vendo a diferença colonial e enfaticamente resistindo ao seu próprio hábito epistemológico de apaga-la. Ao vê-la, ela vê o mundo renovado e então exige de si mesma largar seu encantamento com “mulher” o universal, para começar a apresentar sobre as outra que resistem à diferença colonial (LUGONES, 2014).

Portanto, por meio das considerações do feminismo decolonial percebe-se como a construção do saber e das categoriais de gêneros abarcadas por várias vertentes da ciência são carregadas de discursos eurocêntricos em que submetem as mulheres em uma posição universal, não compreendendo suas diversidades e individualidades. Assim, diante dessa breve análise, percebe-se essa teoria pode contribuir na construção de discursos criminológicos que saem da esfera universal e homogênea, compreendendo a historicidade da mulher e apresentando falas isentas de qualquer tipo de opressão.

 

Conclusão

A Criminologia Crítica como verificado acima é uma ciência que propõem em seu bojo uma ruptura epistemológica sobre a criminalidade, ao pensar o ser humano como um ser social reprodutor do que as agências de controle social impõem.  Nesse sentido, acaba por conferir para a ciência uma teoria mais condizente com a realidade.

Ao pensar o ser humano, fora da dualidade entre bom e ruim, volta a trata-lo como um sujeito que vive em contextos sociais diferentes, com historicidades diferentes. Porém, ao se omitir ou abarcar de forma rasa as questões de raça, gênero e classe, acaba por transformar em uma ciência em que o sujeito em que se estuda torna-se um indivíduo surdo, mudo, sem rosto e sem gravidade. Um ser que flutua pela universalidade sem ser determinado por nada nem ninguém, um ser neutro.

Nesse ínterim, urge para dentro de criminologia crítica a necessidade de construções de discurso e perspectivas de raça que abrange a realidade das mulheres negras e a criminalização de seus corpos. É por compreender, a importância da criminologia crítica no tocante a criminalidade que a proposta desse trabalho vem com a intuito de atrelar os conceitos e postulado abarcados por essa ciência com as concepções decolonias, como o feminismo descolonial.

O feminismo decolonial ao pensar gênero como uma imposição da colonialidade, assim como a colonialidade do poder, busca construir uma nova episteme feminista que promove a visibilidades das mulheres de cor que sofrem de forma agressiva e sistémica opressões de uma sociedade racista e patriarcalista.  Procura criar um novo horizonte feminista, que possua como características pensamentos não-hierárquicos, mestiços e transidentitários.

Porém, vale ressaltar, que assim como não há uma criminologia, também não há um conceito de gênero e raça. Ou seja, existem várias criminologias e conceitos de gênero e raça. Nesse sentido, as teorias usadas devem ser aquelas que possuem um teor crítico com perspectivas anti-hegemônicas e que lute contra qualquer forma de opressão ou exploração.  O presente trabalho trouxe como uma proposta o uso do feminismo descolonial como um meio de construir conceitos e discursos isentos de opressão e que de visibilidade e voz para as mulheres. Entretanto, o intuito da pesquisa não é esgotar as discussões no tocante a temática e, sim, abrir um espaço para discussão e promover novas formas de se pensar.

 

Referências

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O Negro na ordem jurídica brasileira: objeto ou sujeito de direitos?[8]

The Black in the Brazilian legal order: object or subject of rights?

 Cristiane da Rosa Elias[9]

Grazielle Vasconcellos Ozorio[10]

Resumo: Pensar o negro na sociedade é pensar a diáspora africana e o mundo, a partir de uma perspectiva da história dos povos negros no Brasil colônia, pretende-se analisar o tratamento jurídico dado ao negro desde esse momento histórico até a atualidade. Para isso, será necessário compreender a reprodução sócio jurídica do capitalismo, através da sociologia crítica do direito, do conceito de repetição do processo de acumulação primitiva e a teoria da expropriação capitalista do espaço. Assim, a hipótese que se vislumbra é a de que, devido ao racismo antinegro que é estrutural e estruturante da nossa sociedade, o Direito tende a ser mais violento e nocivo à população negra do que em relação à população branca no Brasil.

Palavras-Chave: 1 Escravidão negra; 2 racismo antinegro;  3 acumulação primitiva; 4 teoria da expropriação do espaço;

Abstract: To think about the black in society is to think about the African diaspora and the world, from a perspective of the history of the black people in Brazil colony, we intend to analyze the legal treatment given to the black from this historical moment until the present time. For this, it will be necessary to understand the legal and social reproduction of capitalism, through the critical sociology of law, the concept of repetition of the process of primitive accumulation and the theory of capitalist expropriation of space. Thus, the hypothesis is that, due to the anti-Black racism that is structural and structuring of our society, the law tends to be more violent and harmful to the black population than to the white population in Brazil.

Keywords: 1 Black slavery; 2 black ant racism; 3 primitive accumulation; 4 theory of the expropriation of space;

Introdução

Temos com a história a interpretação de interpretações e com isso precisamos lidar com as interações entre cultura e poder presente nas relações humanas e assim tentar compreender a partir dos vestígios deixados pelas antigas interpretações a continuidade e a ruptura de determinados modos, fatos, vivência na vida em sociedade. Mediante isso, veremos no decorrer no texto como o monopólio da força pelo Estado está “redigida por poucos e imposto a uma maioria” mesmo passando por uma série de mudanças ao longo da história. (PIRES, 2015:48)

O presente artigo possui como objeto a análise política e social acerca do tratamento jurídico dado ao povo negro desde a transmigração forçada para o que hoje conhecemos como Brasil até os dias atuais. Para tanto pretendemos fazer um breve apanhado histórico pensando o negro dentro do sistema jurídico brasileiro.

Para isso dividiremos o regime jurídico dado ao negro no Brasil em dois momentos: a) de 1530 a 1888, em que a ordem jurídica brasileira classificava o negro somente como objeto de direito, integrando a categoria dos bens móveis estando, portanto, sujeito à hipoteca, condomínio e ao acervo hereditário; e b) de 1888 até os dias de hoje, onde o negro passou a ser tratado formalmente como sujeito de direitos, dotado de personalidade jurídica. Compreendendo que dentro dessa divisão existiram rupturas e continuidades em relação à condição de escravizados que persistem até hoje de forma naturalizada.

Nesse sentido, nos utilizaremos de uma análise qualitativa de documentos como: Ordenações Manuelinas, Filipinas, e após 1822 das leis de natureza civil-comercial e Códigos Criminais em diálogo com o contexto histórico presente nesses períodos para melhor compreender as regras e leis postas. Desse modo, tentaremos responder alguns questionamentos, tais como: o porquê de o Direito significar a prevalência da promoção

e defesa de garantias individuais para uma elite branca? E, em contrapartida, para a população negra, predominar enquanto a prescrição da desigualdade e violência jurídica explícita (GONÇALVES, Guilherme, 2017).

Autores como Clóvis Moura, Eric Williams, Eunice Prudente, Thula Pires,  Guilherme Gonçalves e Silvia Lara, nos ajudam na compreensão e proximidade com os momentos históricos jurídicos presentes na formação da sociedade brasileira que atendera às exigências da modernização europeia. Pretendemos com isso perceber as diferenças, problemas e violências construídos e organizados através do sistema jurídico em nossa sociedade, acirrando assim as desigualdades entre brancos e negros.

Fazendo um breve apresentação alguns panoramas históricos para compreender algumas características dessa sociedade nascente que se tornara o Brasil contemporâneo. Silvia Lara em seu trabalho lançado em 2007 nos apresenta a sociedade setecentista a partir de suas divisões hierárquicas e as relações estabelecidas com os africanos e seus descentes, dentro do sistema escravista, que crescia[11] cada vez mais.

Na passagem de introdução de sua obra a autora apresenta uma carta do conde de Resende de 1796 ao secretário dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, Luís Pinto de Souza Coutinho. Nela o conde descreve situações de descontrole dos senhores de escravos sobre seus escravizados que causavam prejuízos aos senhores e à Coroa, que poderiam ser remediados. A multidão de escravos era um grande problema para as autoridades, entretanto, não tinha como intervir sobre o domínio dos senhores sobre suas posses, já que como posses o Estado não tinha o direito de arbitrar. Sendo assim, pouco tinha a se fazer em relação aos escravizados, mas quanto aos libertos as coisas podiam ser diferentes. Com isso, foram apresentadas medidas para conter esses negros e negras libertos que dominavam as ruas e que causavam grade medo entre os brancos.

Ponderando sobre temas que deveriam sensibilizar Souza Coutinho, como a grande desproporção entre “esta qualidade de gente [liberta] e a força militar” da cidade e o perigo de ter tantos soldados arruinados pelas doenças contraídas com as libertas entregues à prostituição, ele propôs um conjunto de medidas. (LARA, 2007:15)

            O conde de Resende primeiramente recomendou que fosse feita uma “relação de todos os mulatos, crioulos e pretos forros, da qual constassem as suas idades, ocupações e estado” como também o registro de todas as cartas de liberdade dos mesmos. Depois desse procedimento eles iriam avaliar quais deveriam continuar a viver dentro da cidade.

os que não tivessem ofício, fossem solteiros e de idade competente seriam recolhidos em uma casa de correção, onde residiriam, aprenderiam um ofício e trabalhariam para seu próprio sustento; os vadios e viciados seriam remetidos para o continente do Rio Grande, Santa Catarina e Cantagalo, para serem empregados na agricultura e na criação de gado  (LARA, 2007:16).

            Os casados também seriam empregados fora da cidade. As mulheres seriam igualmente registradas e as que fossem entendidas com honradas e tivessem ligadas a uma família poderiam permanecer como estava. As que viviam fora desse patrão seriam enviadas para outras casas de correção para aprenderem coisas relacionadas ao seu sexo e poderiam casar com aqueles formados em instituições semelhantes, podendo permanecer na cidade ou indo para as regiões do sul. (LARA, 2007:18)

            A partir dessa visão podemos perceber que esses elementos negros depois de libertos se tornavam um problema, pois já não estavam mais sujeitos a seus senhores, sendo assim, precisavam de outro domínio, de outra forma de controle de seus corpos e para isso esses foram registrados e classificados segundo o interesse ainda de uma elite escravista para se tornarem socialmente aceitos.

            Através dessa apresentação podemos transformar palpável a visão existente sobre essa massa de negros forros no período colonial, sendo esses passados de objeto desumanizado para objeto problema, mas ainda como objeto do mundo colonial branco.    Além disso, podemos expor alguns exemplos colhidos na legislação penal por Lara para demostrar como a pena variava conforme o réu isso tendo como réus os brancos da sociedade e assim podemos começar a compreender onde esses africanos e descendentes se encaixariam dentro desses sistemas penais sabendo que não era o mesmo sistema para eles.

Assim o adultério era punido com a morte, mas, se o adúltero fosse de condição maior que a do marido (um fidalgo e o outro escudeiro), a sentença deveria ser confirmada antes de executada. As Ordenações permitiam ao homem casado que achasse sua mulher nos braços de outro matar os dois amantes; a regra não se aplicava, entretanto, se o marido fosse um peão e o adúltero um fidalgo ou “pessoa de maior qualidade”. … No caso de sedução de mulher virgem, se o sedutor fosse fidalgo ou “pessoa posta em dignidade ou honra grande” e o pai da moça “pessoa plebéia e de baixa maneira ou oficial, assim como alfaiate, sapateiro ou outro semelhante”, a pena era de degredo para a África. Mas, se fosse de menor condição que isso, pagava seu crime com a morte. (LARA, 2007:85)

            Com base na citação apresentada acima podemos perceber a variação de tratamento existente juridicamente para os grupos sociais existente na colônia portuguesa que tinha como base a relação de poder que dessas pessoas dispunha na sociedade. Já quando pensamos a massa escravizada e liberta iremos ter outras medidas criadas pra eles como mecanismos de controle social que (re) produz hierarquizações morais. (PIRES, 2015:49). Ressalta-se que estamos falando de um sistema econômico escravagista, mas que não era o único sistema que regia a vida de homens e mulheres dessa sociedade.

Assim, para compreender o porquê de o ordenamento jurídico ora prevalecer como violência jurídica explícita e ora como defesa e promoção de garantias individuais é necessário compreender também a reprodução sócio jurídica do capitalismo, através da sociologia crítica do direito e do conceito de repetição do processo acumulação primitiva e a teoria da expropriação capitalista do espaço.

Segundo o autor Klaus Dörre o capitalismo é uma engrenagem que produz permanentemente autolimitações, sendo necessária sua expansão para terrenos não-mercantilizados com o fim de gerar um novo ciclo de estabilidade (DÖRRE, 2012 apud. GONÇALVES, 2017). A partir de Rosa Luxemburgo (LUXEMBURG, 1975 apud GONÇALVES, 2017), David Harvey denomina de “acumulação por despossessão” a acumulação baseada na violência para a tomada de novos espaços e que não se trata de uma “etapa originária” e sim de um processo permanente no curso do capitalismo (HARVEY, 2009 apud GONÇALVES, 2017). Nesse diapasão, Dörre sustenta o argumento de que o modelo de acumulação capitalista exige, para sua perpetuação, novos territórios não capitalistas que poderão prover novos recursos, matérias-primas e mercados de trabalho (DÖRRE, 2012 apud GONÇALVES, 2017).

Seguindo essa construção teórica, tem-se que nesse momento de expansão do capitalismo para a tomada de espaços não-mercantilizados a forma jurídica se comporta como prescrição expressa da desigualdade e violência jurídica explícita; já na fase de estabilização do sistema, a forma jurídica se manifesta através da prescrição e defesa de garantias individuais, com base nos princípios jurídicos de sujeito de direito, liberdade jurídica e igualdade formal, pois o homem necessita ser livre para vender sua força de trabalho e realizar as trocas de mercadorias (GONÇALVES, 2017). Vejamos:

Nesse estágio expropriador da acumulação capitalista, o direito não possui as mesmas características que ele desenvolve na etapa de estabilização do sistema. Como afirma Rosa Luxemburgo (1975: 397), no reino puro da troca de equivalentes [estabilização do sistema], “domina a paz, a propriedade e a igualdade como formas”, o que significa que “a apropriação da propriedade alheia transforma-se em direito de propriedade; a exploração, em troca de mercadorias; e a dominação de classes, em igualdade”. Já no momento de expropriação dos espaços não capitalistas, os métodos empregados não são formas sociais de dissimulação. Segundo a autora: “aqui dominam a política colonial, o sistema de empréstimos internacionais, a política de interesses privados e a guerra. Aqui se evidencia, de maneira completamente explícita e aberta, a violência, a fraude, a opressão e a pilhagem“ (Luxemburg 1975: 397). (GONÇALVES, 2017: 22)

Apesar da dificuldade de se proceder à análise da sociedade brasileira com a lógica das metodologias acadêmicas eurocêntricas e ocidentais, assume-se aqui tal desafio tendo como base a literatura exposta, sendo assim, é possível interpretar que a escravização dos povos africanos se tratou de um ato de repetição permanente da acumulação primitiva de capital, ou seja, uma fase de expansão do sistema capitalista para a tomada de um espaço não mercantilizado a fim de gerar um novo ciclo de estabilidade (troca de equivalentes), neste caso, o espaço não mercantilizado a ser expropriado foi continente americano. Assim, tem-se que tal processo era de extrema importância para a expansão do capitalismo que necessitava de acumulação de capital para promover a industrialização europeia.

Para fundamentar a hipótese de que a escravidão negra se tratou de um processo de repetição de acumulação primitiva de capital, faz-se necessária a identificação de características próprias desse momento expansionista do sistema. Dessa forma, observa-se na escravização dos povos africanos a presença de violência explícita: o tráfico de pessoas, o roubo de terras, em outras palavras, a separação do homem dos meios de produção (dos recursos necessários para sua própria subsistência) forçando-o ao trabalho escravo. Além disso, verifica-se a presença de um recurso linguístico-discursivo – othering[12] – para caracterizar o africano enquanto um ser destituído de humanidade, buscando fundamentar tal barbárie com base na religião cristã e nas teorias científicas eugenistas, o que resultou na coisificação do africano enquanto escravo.

Clóvis Moura interpreta tal momento histórico de maneira parecida, identificando a presença de: a) violência extraeconômica para com os africanos que se manifestava através da coerção física; b) presença da ferramenta linguístico-discursiva para explicar a racionalidade do sistema – neste trabalho chamado de othering –; c) ausência de uma relação de trabalho “livre” e assalariado. Nesse sentido, Moura considerava o sistema escravista um modo de produção diferente do capitalista, fazendo uma comparação entre as condições de trabalhos na França por volta de 1664 e as condições do escravizado no Brasil, o autor enfatiza que:

À primeira vista essa situação [dos trabalhadores franceses] é exatamente igual a dos escravos no Brasil e, ao se analisar apenas formalmente as duas situações chega-se à conclusão que os dois tipos de sistema de trabalho se equivalem. No entanto, se aparentemente são iguais – pelo nível de exploração em horas de trabalho e mesmo o uso de aparelhos de suplício – as situações não se podem comparar. Na primeira o trabalhador estava sujeito a normas contratuais, isto é, teoricamente voluntárias, e, ao mesmo tempo, participante do mercado e suas flutuações através das oscilações dos salários, do preço de sua força de trabalho e da aquisição de bens de consumo. Ele, mesmo sendo submetido a formas abusivas de coerção, tinha o direito de mudar voluntariamente de patrão, deixar de trabalhar ou exigir melhor pagamento. (MOURA, 1994: 25)

Nota-se, portanto, que Moura identifica o fetichismo criado através da abstração da forma jurídica, que se manifesta por meio da liberdade formal conferida ao trabalhador assalariado e branco, para mascarar o processo de exploração que o mesmo passou para a extração de mais-valia, logo, verifica-se mais uma vez que no momento de estabilização do sistema capitalista a forma jurídica opera sob a lógica da liberdade formal, da igualdade jurídica e do conceito de sujeito de direitos, veja-se:

Era, por isto mesmo, malgrado as condições opressivas a que estava submetido, um ser livre, isto é, um ser que não era dono apenas da sua interioridade (o corpo do escravo pertencia ao senhor), mas dispunha livremente do seu corpo para locomover-se e atuar como agende produtor. Essa regras, mesmo nas condições odiosas expostas acima, tinham de ser respeitadas porque o mercado não podia ser criado independentemente dele, mesmo com a existência de exército industrial de reserva. (MOURA, 1994: 25)

Em contrapartida, no caso da escravidão negra brasileira e nos demais processos de repetição da acumulação primitiva, a forma jurídica não opera com base no fetichismo para mascarar a exploração da força de trabalho, a violência é explícita, sua essência violenta não é mascarada. Moura também identifica tal característica no caso brasileiro:

Já o escravo circulava como mercadoria, idêntica àquela a qual ele próprio produzia. E é nesse nível de relações econômicas que o escravo é socialmente coisificado.

Isso porque para ele não havia nenhum contrato, mas a posse absoluta do seu corpo como propriedade pessoal. Todo o trabalho produzido por ele durante o decurso da sua vida não lhe pertencia. (MOURA, 1994: 26)

Verificada, assim, a presença das principais características típicas de processos de repetição de acumulação primitiva no caso da escravidão brasileira, passa-se à caracterização de sua fase sucessora, qual seja, o momento de estabilização do sistema capitalista – onde as relações sociais se dão pela lógica da troca de equivalentes.

Nessa acepção, logo após o desenvolvimento industrial europeu, teve-se a necessidade de se fazer fluir o excedente produzido, então, as colônias americanas sofreram forte pressão externa para a abolição da escravatura, baseando-se em ideais iluministas de igualdade, liberdade e valorização da razão humana, os países europeus escondiam seus interesses econômicos por novos espaços consumidores para seus produtos. Gonçalves descreve a construção teórica utilizada para a interpretação desse processo nos termos:

Segundo essa perspectiva, o desenvolvimento do capitalismo é analisado como um processo permanente de superação dos obstáculos e limites à acumulação por meio da mercantilizarão de espaços ainda não mercantilizados (Dörre 2012: 39ff.). Esse processo supõe a impossibilidade de realização completa da mais-valia em seu lugar de produção e a pressão da sobreacumulação, que exigem a expropriação de um Fora não-capitalista para realizar parte relativa da mais-valia existente e amortizar investimentos (Luxemburg 1975: 315ff.)

Essa dinâmica destruidora do capitalismo e uma condição permanente para a troca de equivalentes. Na medida em que ela proporciona a expropriação de um espaço (ainda não gerador de valor), realiza as condições necessárias para a respectiva troca, quais sejam, a tomada da terra pertencente ao camponês, a separação entre os produtores e os meios de produção e a exploração intensiva dos recursos naturais (MEW 23: 741-744). Isso, por sua vez, permite a abertura de um novo ciclo de acumulação e de novos mercados. Note-se, portanto, que esses processos de expropriação do espaço desenvolvem-se paralelamente a troca de equivalentes, mas não correspondem a ela. (GONÇALVES, 2017: 1048-1049)

Portanto, havia a necessidade de realização da mais valia em outro espaço que não o de sua produção, logo, sociedades baseadas na troca de equivalentes, com trabalhadores livres para venderem sua força de trabalho e comprarem o necessário para sua subsistência, eram pressupostos para o desenvolvimento do capitalismo, portanto, as sociedades escravocratas deixaram de ser interessante nessa fase sistêmica. Clóvis Moura também identifica essa relação dialética entre capitalismo mundial com a escravidão brasileira, afirmando que:

seria ingênuo supor-se, no Brasil, um modo de produção que se auto-satisfizesse na área de circulação e do consumo; fosse um escravismo patriarcal, fechado, e se regulasse apenas e tão-somente pelas relações sociais estabelecidas internamente. Seria também ingênuo supor-se que esse escravismo, por estar ligado ao capitalismo mercantil das nações consumidoras dos seus produtos tivesse internamente, regulando-o, as leis de mercado interno daquelas nações. O modo escravista de produção que se instalou no Brasil era uma unidade econômica que somente poderia sobreviver com e para o mercado mundial, mas, por outro lado, esse mercado somente podia dinamizar o seu papel de comprador e acumulador de capitais se aqui existisse, como condição indispensável, o modo de produção escravista. Um era dependente do outro e se completavam (MOURA, 1994: 38).

Trazendo essa ótica para a interpretação do caso brasileiro, seria possível afirmar que a funcionalidade de se ter uma massa de ex-escravizados livres para essa fase de estabilização do sistema capitalista estava na criação de uma nova classe trabalhadora a ser superexplorada com as piores condições de trabalho, além da composição de um exército industrial de reserva para manter os baixos salários da classe trabalhadora branca que estava se formando com a importação de trabalhadores europeus (MOURA, 1994: 52-53).

Observa-se, portanto, que no momento de estabilização do sistema capitalista a forma jurídica opera de maneira fetichizada, escondendo sua essência exploradora pela abstração jurídica do conceito de sujeito de direitos, igualdade e liberdade jurídica. Todavia, mesmo nesse momento do sistema capitalista, há uma contradição encoberta pela forma jurídica, qual seja, embora o homem seja livre, essa liberdade só se dá pela necessidade de o mesmo vender sua força de trabalho (GONÇALVES, 2017: 1053).

Nesse sentido, insta salientar que, a forma jurídica é fundamental para o desenvolvimento do capitalismo, além disso, como as desigualdades são pressupostos desse sistema, o direito acaba por tratar o homem como sujeito e como objeto de forma permanente e simultânea: sujeito para poder contratar e realizar as trocas comerciais e objeto para vender a si mesmo no mercado de trabalho. Portanto, fazendo o uso de tal literatura para analisar o tratamento jurídico dado ao negro no Brasil, a hipótese que se vislumbra para fundamentar a afirmação de que o Direito tem prevalecido como violência jurídica para a população negra – embora o seja para toda a sociedade, oscilando entre a dualidade já exposta –, é a de que o racismo antinegro é componente fundamental para a manutenção de toda essa estrutura.

Dessa forma, considerando o racismo antinegro como consequência da escravização de povos africanos (WILLIAMS, 2012: 34) e como uma engrenagem fundamental na estrutura social brasileira – tendo em vista que as relações sociais se estabeleceram sob a ótica da inferiorização e desumanização do negro –, ainda que juridicamente seja sujeito de direito, o corpo negro está mais vulnerável e exposto às violências jurídicas. Sobre essa formação histórico racial da sociedade brasileira, Clóvis Moura (1983) destaca que:

Formada essa sociedade poli-étnica no Brasil estabelece-se um gradiente racial simbólico, dando-se valores específicos a cada uma dessas etnias e das suas cores respectivas. Os pontos extremos são: superior = a Branco. Inferior = a Negro. O negro é colocado na base do sistema de exploração econômica e transformado no símbolo negativo desse tipo de sociedade (MOURA, 1983: 134).

O Direito, parte estruturante do sistema capitalista e já devidamente realizado nas estruturas de desigualdades da sociedade, também reproduz o racismo antinegro. No que diz respeito à legislação penal, a violência jurídica destinada aos negros é mais evidente, tanto que autores ligados à criminologia crítica já desempenharam o papel de teorizar academicamente o que já havia sendo objeto de denúncia pela resistência negra (PIRES, 2015: 52), qual seja, a racialização do sistema penal.

Todavia, a violência reproduzida pela forma jurídica se estende a todo o ordenamento jurídico, por conta disso temos que, num breve levantamento de dados: a) até 2016, apenas 165 (9,7%) das comunidades quilombolas receberam título de posse, outras 1.525 ainda estão em processo de regularização pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária; b) o crescente aumento das remoções em favela, principalmente após a promoção de grandes eventos internacionais como Copa do Mundo e Olimpíadas; c) segundo Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), em 2016, dos 622 mil brasileiros privados de liberdade, (61,6%) são pretos e pardos.

No campo mais empírico, tem-se que os operadores do direito – “profissionais” socialmente construídos, isto é, também reprodutores de violências sistêmicas – ao aplicarem a norma jurídica, o fazem de forma igualmente racista, uma vez que o princípio jurídico da imparcialidade do juiz não passa de mera abstração para encobrir o fato de que os operadores do direito possuem suas formações ideológicas que, somadas à ambiguidade proposital presente nos textos normativos, resultam na aplicação do direito de forma parcial, reproduzindo as violências e opressões estruturais do capitalismo.

Por conta disso, para Rafael Braga (negro e pobre) que supostamente portava 0,6g de maconha, a forma jurídica representará a condenação a 11 anos e três meses de prisão; todavia, para Pedro Novaes (branco, filho dos atores Letícia Spiller e Marcello Novaes) que foi detido com duas trouxinhas de maconha, o Direito representará apenas um processo por posse e uso de entorpecentes; – nota-se que os casos expostos são bastantes semelhantes, julgados com base no mesmo ordenamento jurídico (presumindo-se, portanto, a igualdade entre todos), tendo como única diferença a raça e a classe social dos envolvidos, o que influenciou nos resultados completamente diferentes.

Em outras palavras, verifica-se que, enquanto violência jurídica explícita, a forma jurídica não se materializa de maneira autônoma na sociedade, ela e as demais engrenagens da estrutura capitalista necessitam ser reproduzidas pelos atores socais. Assim, faz-se necessário o uso da dimensão linguístico-discursiva da expropriação capitalista para justificar toda essa violência[13] – desde a escravização até as recentes remoções ocorridas em favelas –, qual seja, o othering que, através de discursos ditos avançados, busca criar o imaginário do outro: aquele que é atrasado, inferior, incivilizado, sem moral, no nosso caso, o negro. Dessa forma, consegue-se justificar as mais terríveis atrocidades do homem para com o homem, como foi a escravização do dos povos africanos. Nessa linha, para Williams (2012), o racismo antinegro seria, então, a consequência da escravização dos povos africanos, e não a escravização a consequência do racismo, dando-se caráter racial ao que é basicamente um fenômeno econômico.

Diante do exposto, considerando que o racismo é estrutural e estruturante na sociedade capitalista, o presente artigo pretendeu expor que, assim como as demais violências (re) produzidas pelo capitalismo, a forma jurídica tende a ser mais violenta e nociva à população negra no Brasil, prevalecendo enquanto prescrição expressa da desigualdade, através de arranjos jurídico-institucionais que se manifestam na criminalização do corpo negro e na privatização de espaços coletivos e discursos de othering (GONÇALVES, 2017).

Referências

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ISTOÉ. Filho de Letícia Spiller e Marcelo Novaes é detido com droga no Rio. In: Isto É. 07 de abril de 2018. Disponível em: < https://istoe.com.br/filho-de-leticia-spiller-e-marcello-novaes-e-detido-com-droga-no-rio/>

LARA, Silvia Hunold. Fragmentos setecentistas: escravidão, cultura e poder na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

MOURA, CLÓVIS. Dialética radical do Brasil Negro. São Paulo: Editora Anita, 1994.

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OLIVEIRA, Tory. Seis estatísticas que mostram o abismo racial no Brasil. In: Carta Capital. 20 de novembro de 2017. Disponível em: < https://www.cartacapital.com.br/sociedade/seis-estatisticas-que-mostram-o-abismo-racial-no-brasil>

PRUDENTE, Eunice Aparecida de Jesus. O negro na ordem jurídica brasileira. Revista da Faculdade de Direito. Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 83, n.jan-dez, p. 135-149, 1988.

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ZOCCHIO, Guilherme. Menos de 1 em 10 terras quilombolas no Brasil recebeu título de posse. In: Folha de São Paulo. São Paulo, 20 de novembro de 2016. Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/11/1833844-menos-de-1-em-10-terras-quilombolas-no-brasil-recebeu-titulo-de-posse.shtml>

 



O genocídio negro nas periferias brasileiras e a fábrica de cadáveres chamada Brasil

Black people’s genocide in Brazilian peripheries and the corpse’s factory called Brazil

Uebert Vinicius das Neves Ramos[14]

Olha quem morre

Então veja você quem mata

Recebe o mérito, a farda

Que pratica o mal

 Me ver

Pobre, preso ou morto

Já é cultural

(Negro Drama, Racionais MC’s)

Resumo: Busca-se neste artigo discutir sobre a política de extermínio moral e letal praticada contra negros, pobres e periféricos, sujeitos estigmatizados pela polícia, pelo Estado genocida, pelo Judiciário, pela mídia e ainda pela própria sociedade, pretendendo investigar a criminalização seletiva destes, seus pilares jurídicos e as estatísticas dos homicídios em um país extremamente marcado pela desigualdade sócio-racial e pela lava de sangue que percorre toda a historiografia nacional. Usamos como sustentação o rap e seu discurso marginal, bem como perspectiva crítica de autores e autoras como Eduardo Taddeo, um “autodidata em morticínio”, Alex Caldas e sua análise do Estado Democrático de Direito para quê e para quem, e os estudos de Gabriella Barbosa sobre a presentificação do passado. Ao examinar a sociedade colonial, o papel do Estado nessas mortes, as rotulações contra determinados indivíduos e grupos, e a comparação entre os números de assassinatos de brancos e negros, compreendemos a necessidade de escrever e refletir sobre o tema e a caracterização do Brasil como uma fábrica de cadáver que produz uma ordem macabra e sangrenta contra aquelas pessoas assoladas pelo racismo, pela fome, pela discriminação, pela exclusão e, sobretudo, pelos tiros.

Palavras-chave: Extermínio moral e letal. Estado genocida. Sujeitos estigmatizados. Fábrica de cadáver.

Abstract: This article aims to discuss the policy of moral and lethal extermination practiced against blacks, poor and peripheral, subjects stigmatized by the police, the genocidal state, the judiciary, the media and even society itself, with the intention of investigating the selective criminalization of these , it’s legal pillars and the statistics of homicides in a country extremely marked by socio-racial inequality and the bloodshed that runs through all national historiography. We use rap and it’s marginal discourse, as well as a critical perspective of authors such as Eduardo Taddeo, a “self-taught in self-sacrifice”, Alex Caldas and his analysis of the Democratic State of Law for what and for whom, and Gabriella Barbosa’s studies on the presentification of the past. In examining colonial society, the role of the state in these deaths, labeling against particular individuals and groups, and the comparison of numbers of murders of whites and blacks, we understand the need to write and reflect on the theme and characterization of Brazil as a factory of corpses that produces a macabre and bloody order against those people ravaged by racism, hunger, discrimination, exclusion and, above all, gunfire.

Keywords: Moral and lethal extermination. Genocidal State. Stigmatized subjects. Corpse factory.

 

  1. INTRODUÇÃO

 

Para ligar o passado colonial ao presente da imolação[15], relacionaremos as raízes históricas do genocídio[16] negro ao trecho do rap supracitado. Trata-se de um gênero musical e cultural, de um educador social e de “um discurso jurídico-político” (Caldas, 2015, p. 11) que chega às pessoas menos favorecidas, enquanto instrumento que dispõe a periferia para expressar suas necessidades de classe excluída, oferecendo aos habitantes das favelas a chance de existência social. Um som que analisa, critica e contesta, apesar da insistência da mídia brasileira em associar o movimento à violência e ao crime. Constitui um degrau alcançado pela população pobre e revoltada do país, que fez de seu lazer uma forma de insurgência e protesto.

Como afirmou o rapper Renan do grupo musical Inquérito (2010), “se a história é nossa, deixa que nóis escreve” (sic), pois, “cada criança, adolescente ou adulto desinteressado sobre a sua própria história, representa um ponto a mais para os opressores” (Taddeo, 2012, p.). Nada mais legítimo, portanto, do que um negro, pobre e periférico (mais uma vítima do sistema opressor) escrever sobre as tragédias que devastam seus semelhantes, pois são poucos os que conhecem as engrenagens que movem a sociedade brasileira, que se insurgem e tentam impedir os massacres cotidianos. Por que a vida de uns parece valer mais do que a de outros? Por que a morte de um branco incomoda e a de um negro é tida sempre como acidental e sem importância? Por qual razão impera no país o silêncio sobre o genocídio praticado contra o povo negro? Essas são questões (des) norteadoras da presente reflexão que encontraram no rap e na vida cotidiana a sua maior inspiração.

Destarte, este trabalho não se fundamenta apenas na análise de juristas, criminalistas, sociólogos e filósofos, mas também na visão de dentro do ambiente estudado, a periferia, e em autores que vivenciam a realidade tratada e sobrevivem no interior do campo de ação da carnificina brasileira. Para tanto, extraímos a perspectiva crítica de Eduardo Taddeo, analisando a guerra não declarada, por ele descrita ao longo de sua trajetória no bairro Grajaú, São Paulo, no rap e, posteriormente, também por meio da literatura, e a perversa engenharia estrutural e estruturante do poder político estatal somado ao poderio econômico da classe burguesa que legitima a mortífera atuação dos batalhões do Estado, configurando como um extermínio sócio-racial que conduz pobres e negros aos caixões doados e lacrados.

No mesmo contexto, usamos como sustentação para esse estudo as contribuições dos grupos musicais de rap, Inquérito e Racionais, além de Cahegi. Utilizamos o pensamento de Alex Caldas e o discurso marginal, presente também nos autores supracitados, relatando o Estado Democrático de Direito como um privilégio de poucos para manter a ordem e a imposição numa sociedade extremamente verticalizada, restando aos moradores das sub-pátrias, das zonas de exclusão, apenas o martelo sangrento de outro Estado: o Penal.

Para analisar a presentificação do passado e o legado do autoritarismo dos crimes praticados pelo Estado e por suas forças de segurança na eliminação dos corpos indesejados, usamos os estudos de Gabriella Barbosa sobre a temática, em que descreve a assepsia social utilizada por aqueles, que elenca os indivíduos pela cor de pele, a qual perpassa pela colonização, transita pela ditadura civil-militar e se perpetua na “democracia” brasileira!

A metodologia da pesquisa utilizada é de natureza bibliográfica, analítica e comparativa. Foi de grande importância a análise de dados do Atlas da Violência 2017, da Organização das Nações Unidas (ONU), dos Mapas da Violência de 2011 e 2014, e do Iraq Body Count (IBC), que apontaram o quão é maquiavélico e desumano o genocídio brasileiro. Desse modo, o objetivo deste trabalho é descrever o estado de guerra não oficializado que vive o Brasil, ultrapassando nações que vivem em guerras declaradas, e como essas estatísticas banhadas em sangue demonstram a seletividade das mortes, composta majoritariamente por um perfil: jovem, negro, pobre e morador da periferia.

É, portanto, descrever as raízes do morticínio que cresceram ao longo do tempo e se consolidaram na imolação presente nas veias abertas da escravidão moderna e os antecedentes criminais do Brasil. Dessa forma, na identificação do Estado enquanto ente jurídico-político, que detém o controle sobre a vida e a morte, tornando materialmente inútil os preceitos constitucionais, as leis que versam sobre o racismo e o genocídio, e a “proteção” e respeito ao indivíduo, deram lugar à “Lei do Abate”, tornando o Direito como instrumento de barbárie.

Quanto ao estigma da cor negra, descrevemos o caráter neolombrosiano em que está alicerçada a política de segurança pública nacional, na qual tem como perfil do criminoso aqueles que têm determinados tons de pele, falta de condições financeiras e o território como parâmetros para a rotulação de negros e pobres, bem como estabelecemos a crítica a esse sistema de “justiça” e essas teorias racistas excludentes. E, posteriormente, procuramos analisar a realidade do derramamento de sangue e os números deste macabro sistema de pena de morte, fazendo uma análise comparativa com o Sudão e com o Iraque.

O Brasil é o território “pacífico” que mais se mata no planeta. São estatísticas sangrentas do país abençoado pela natureza e amaldiçoado pela ganância que carrega o número vergonhoso de 59.080 mortes anuais, totalizando 1 cadáver a cada 11 minutos, segundo estatísticas do Atlas da Violência 2017, alicerçadas nas análises de dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) e do Ministério da Saúde. Logo, o contingente anormal de falecidos é maior que em países que sofrem com guerras civis, étnicas, religiosas e com as sequelas mortíferas da indiferença humana. É uma dizimação arquitetada pelo Estado e sua aliança com a burguesia, na qual o sangue e a cor dos negros coagulam no solo de preconceito cultivado pela excludente máquina governamental.

Desse modo, a hecatombe[17] atual está conexa a uma ininterrupta e abominável guerra contra (determinadas) pessoas, desde o ancoramento da primeira caravela na antiga Ilha de Vera Cruz, tornando seres humanos vítimas dos tiros e da exclusão social, desovados em covas e presídios, refletindo, claramente, o processo de produção e exploração do sistema capitalista sustentado no próprio Estado. O misto de ódio, materialismo, escravidão, preconceito, egolatria e avareza constituíram as bases do imperialismo sobre as terras brasileiras e das sementes do extermínio que faz jorrar o sangue daqueles que não compõem o perfil esbranquiçado e burguês dos sujeitos socialmente aceitos.

Assim, a imagem do nosso “país pacífico” diariamente é rasurada e perfurada por balas de estanho, que transformam a efervescente guerra nacional contra os negros em paz sangrenta, ou, como denuncia Eduardo Taddeo (2012, p. 74), “no Brasil a pomba branca tem dois tiros de Fal no peito!”. Portanto, que sentido pode ser atribuído a uma legislação discriminatória há séculos no Brasil, especialmente na seara do direito punitivo do Estado, que classifica os sujeitos da norma pela cor da pele e pela condição social, destinando a cada qual uma aplicação explicitamente diferenciada do Direito? Sendo assim, como encontrar “justiça” na legislação se a injustiça parece inerente ao próprio ordenamento jurídico que defende com unhas e dentes (lei, polícia e sentença) a propriedade da classe dominante, ao mesmo tempo em que pratica e autoriza o morticínio nas periferias brasileiras?

Nesse sentido, o presente artigo trilha caminhos críticos em torno de fenômenos jurídicos, raciais, políticos, econômicos, culturais e sociais que afetam a realidade das zonas de exclusão, chamada periferia, discutindo sobre a seletividade das mortes causadas pelo Estado genocida e suas tropas homicidas, que elegeu o negro como suspeito principal de qualquer ato criminoso, revelando o racismo institucional[18] e a política de extermínio por meio da fabricação de chacinas cotidianas, tornadas práticas comuns nas favelas tupiniquins. Dessa forma, a Guerra Não Declarada[19] reflete os privilégios e interesses do Estado burguês, proprietário desta fantástica fábrica de cadáveres[20] chamada Brasil. É um crime hediondo contra nós mesmos não voltar o olhar para esse problema.

  1. ANTECENDENTES CRIMINAIS DO BRASIL

 

Ao visitar o passado colonial e contextualizar no presente esses antecedentes criminais do Brasil, observa-se que existe um nexo entre as hecatombes cometidas no pretérito mercantilista com a história contemporânea. O legado de horror presente nas embarcações, senzalas, engenhos e nos pelourinhos, bem como a miséria, a marginalização, o preconceito, o ódio e a não distribuição de renda também foram repassados pela via temporal. Dessa forma, por intermédio da barbárie, o processo sócio-histórico brasileiro institucionalizou a violência e gerou um sangrento massacre de classe.

Em tempos de tiros, como o que vivemos neste instante, os delineadores do perímetro separatista dos campos de extermínio carbonizam histórias, esquartejam existências e guerreiam contra todos aqueles que não compõem o fenótipo esbranquiçado burguês. Essa é a regra da cadeia alimentar do sistema capitalista, pois este sustenta os pilares do Estado e é alicerçado no laço frio do interesse, movimentando um ciclo histórico e racista que faz lotar os cemitérios e os lugares de desova com cadáveres de vítimas da faxina étnica, social e racial orquestrada pela ganância da política estatal seletiva e autoritária, desde a invasão do país.

A violência como mecanismo de dominação e o poder enquanto doença indigesta da (in) evolução humana forma a abominável aberração burguesa, que perpetua as raízes de nossa tragédia social, pois é fruto do ciclo colonial ocorrido no Brasil, o período mais manchado, vergonhoso e sofrido da história nacional. O estado de sujeição e de dizimação dos indígenas locais e dos negros advindos de vários países do continente africano repassou, por meio do cordão umbilical sangrento, a sanha da morte contemporânea. Cada crime cometido atualmente tem causa e consequência do grande extermínio adorado e propagado pelo antigo regime e seus interesses racistas e elitistas do período imperial:

Foi passado de tropa em tropa, até chegar às mãos dos componentes das novas ramificações da velha guarda. Foi passado de tropa em tropa, até chegar às mãos dos matadores de indomesticáveis, camuflados por siglas legitimadoras do uso da violência desproporcional, conhecidas por: GOE, GATE, DEIC, Depatri, COE, ROTAM, RONE, BME, CME, GOTE, BOPE, ROTA, GRT, CIOE, etc. (TADDEO, 2012, p. 115).

Destarte, a estrutura desigual foi mantida, modificando apenas o período e a nomenclatura. Os senhores de engenho de outrora ainda ditam o modelo de escravidão predatória, a solidificação da injustiça social e a mortandade, para que seus descendentes burgueses apliquem aos flagelados a miséria profunda, destinadas aos escravos, que são os mesmos pobres e negros moradores da senzala atualizada: a favela. Os capitães do mato foram transformados nos integrantes da polícia[21] (o braço armado da burguesia). Inúmeros são os casos de pessoas aniquiladas pelas metralhadoras estatais da exclusão social que atiram munições de descaso e de estanho na população menos favorecida. Tantos litros de sangue humano escorrendo pelo ralo da morte rumo às valas dos cemitérios traduzem a materialização da vontade do sistema opressor, que articula essa política de imolação criminosa pondo-a em vigor para as suas tropas.

O Movimento Mães de Maio[22] (2011), um dos grupos mais resistente, revolucionário, sofrido e militante do século XXI, na qual as mães saem às ruas em meio às intempéries do cotidiano e às barreiras simbólicas, jurídicas e políticas para buscar, lutar por justiça social e protestar pela violação do direito à vida, à memória, à verdade e à justiça de seus filhos assassinados pelo maquinário estatal, descreve e denuncia:

A impunidade histórica é tamanha, e a licença para matar é tão escancarada que os Capitães do Mato da atualidade acharam que poderiam matar mais de 500 jovens pobres e negros num curtíssimo espaço de tempo, especialmente nas periferias de São Paulo, em Guarulhos e na Baixada Santista, e que todo mundo iria ficar quieto e aceitar a versão oficial deles, da elite, de que todos os mortos teriam merecido morrer pois eram “suspeitos”, “bandidos”, “do PCC”. Logo o Estado, que é o Crime Organizado em Pessoa, vem taxar os nossos filhos de “suspeitos” ou “bandidos” e, além do mais, decretar sumariamente a “pena de morte”, em flagrante contradição com as suas próprias leis?! (Movimento Mães de Maio, 2011, p. 13-14).

Logo, a temporalidade do genocídio não se enquadra em nenhuma época específica, não está apenas no passado, nem somente no presente, e sim transita pela dor de um pretérito que se materializa e cresce no presente, perpetuando o lamaçal de sangue que percorre toda a historiografia nacional. Nesse sentido, as tragédias da contemporaneidade fazem encarnar no tempo as páginas de uma história sangrenta, de aproximação da morte com a vida, a vida de milhares de pessoas que foram, são e serão ceifadas pelo Estado de repressão sustentado nos pilares jurídicos e (i) morais.

Portanto, Eduardo Taddeo (2016) aponta que existe no Brasil um regime para cada bolso, um regime para cada tom de pele. O assassinato em massa de pessoas com o mesmo tom de pele desemboca na proposital dizimação da cor negra do território nacional. Aqueles que fabricam quantidades a mais de melanina são reféns de um processo histórico racista, capturados e jogados nos porões sangrentos dos navios negreiros (hoje, as viaturas policiais). São mantidos em cárcere privado, atrás dos muros invisíveis, sentenciados a morrer na mesma condição de seus antepassados. Para os pretos e periféricos, não há proteção de nenhuma lei, Carta Magna, Anistia Internacional ou Organização das Nações Unidas. Há apenas a assistência de tiros pelos órgãos de repressão, a desassistência da justiça pelo Código Penal[23] e a indiferença do poder público.

  1. LEI DO ABATE

Com a desagregação do sistema feudal e a consolidação da sociedade capitalista, causada pela Revolução Industrial e Francesa (ambas burguesas), ao tomar o poder, a burguesia investiu vertiginosamente na construção de um Estado que assegurasse sua autonomia e privilégios e que protegesse e incentivasse a propriedade privada. Assim, Roberto Lyra (1982) descreve que a burguesia utilizou o direito natural para chegar ao poder e, após isso, adotou a bandeira ideológica do positivismo jurídico, sendo válido apenas o poder proveniente desse sistema de leis. Essa ideologia modificou e constituiu valores, costumes e normas advindas dos interesses capitalistas.

Nesta relação entre poder e lei, Foucault (1987) explica que:

Seria hipocrisia ou ingenuidade acreditar que a lei é feita para todo mundo, em nome de todo mundo; é mais prudente reconhecer que ela é feita para alguns e se aplica a outros; que em principio ela obriga a todos os cidadãos, mas ela se dirige principalmente às classes mais numerosas e menos esclarecidas, que nos tribunais não é uma sociedade inteira que julga um de seus membros, mas uma categoria social encarregada da ordem sanciona outra fadada à desordem.

Na estrutura jurídico-política, representada pelo Estado e pelo direito, Marx (1983) afirma que a relação de exploração de classe no nível econômico repercute na relação de dominação política, porque o Estado e as leis estão a serviço da classe dominante. Portanto, a lei é aplicada através da soberania estatal para assegurar todas as formas possíveis de espoliação executada por uma pequena classe ou grupo de indivíduos em detrimento de outra maioria, tornando-se um Estado para poucos dominantes e muitos dominados.

Nesse sentido, quando ministros de “justiça”, desembargadores, juízes, promotores, procuradores ou advogados descrevem que “a lei é clara”, há uma concordância intrínseca nesta afirmação, pois ela (a lei) é esbranquiçada e tem uma aversão exacerbada a todos os negros e pobres, pois não constituem o fenótipo dos bem nascidos. Já que o texto moribundo e materialmente inútil da Constituição Federal de 1988 é protegido por um verniz de mentira burguesa, nas “quebradas” do Brasil a dignidade da pessoa humana, princípio norteador do sistema constitucional do país e capitulada no artigo 1º, III, e a igualdade de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3°, IV, da CF/88), são substituídas pela “Lei do Abate”[24], na qual constam dois irrisórios artigos:

Art. 1º Negros, pobres e favelados são considerados suspeitos principais, mesmo que se prove ao contrário. Por conseguinte, serão sentenciados a morrer nos campos de extermínio brasileiros, na qual este nome será ocultado para dar lugar à nomenclatura de periferia, prevalecendo o “direito” à morte e ao genocídio, colocando-os em duas linhas, a da pobreza e a de tiros, nas quais a fantástica fábrica de cadáveres chamada Brasil se perpetuará por meio do Código Penal e das chacinas, que manterá acelerado o ritmo de mortandade, conforme previsto na lei do mais forte, vigente desde o século XV.

Art. 2º Revogam-se as disposições em contrário.

Infelizmente, a “Lei do Abate” é um crime cometido sob os olhos da “divindade” grega, símbolo da “justiça”, a Themis[25], detentora de olhos vendados (e vendidos) que se recusa a enxergar o massacre do povo negro e pobre dos “guetos”. A balança que carrega, em tese, representa o equilíbrio, mas, na concretude do mundo real, tem dois pesos e duas medidas diferentes. E, por fim, a espada que não defende o Direito Alternativo[26], e sim os interesses emanados da classe dominante aninhada com o Estado, aquele que deve (ria) ser regido pela Constituição Federal. No entanto, no próprio preâmbulo do texto já se percebe o caráter contraditório, ilusório e fracassado da proposta:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL (1988).

Assim, aduz uma agressiva contradição, pois o Estado é submetido à Constituição Federal, mas como é ele que a controla desde a sua criação até a aplicação, a manipula, tornando-a instrumento para a manutenção do capitalismo que financia a estrutura da soberania estatal. A caneta que assina, ratifica e promulga a legislação é a mesma que autoriza chacinas para camuflar seu pacto com a burguesia segregacionista. Para Marx (1973, p. 69), “[…] o poder político do Estado representativo moderno nada mais é do que um comitê para administrar os negócios comuns de toda a classe burguesa”. Desse modo, os órfãos da pátria mãe gentil[27], os não contemplados com a Carta Magna, filhos abortados da função paternalista do Estado, são penalizados social e juridicamente. Logo, esse “Estado Democrático” descrito na Carta Maior, é convertido em Estado Penal, ou Estado da criminalidade.

O comportamento humano é delimitado pelo ordenamento jurídico. E a própria estrutura estatal define as leis e os crimes, pois detém o monopólio do sistema punitivo e da correção de condutas, tentando impedir práticas “delituosas”. Esta concepção “romântica” é aplicável somente no mundo das ideias, no plano da realidade esta ideologia é profundamente afetada pela interferência da classe dominante e é pintada com sangue dos cadáveres assassinados pelos agentes da lei da “democracia” brasileira.

Por conseguinte, o aparelho repressivo, policial e sanguinário do Estado, o sistema penal, serve de disciplinador e fabricante da morte da massa marginalizada. Ele propaga a ideia de ser o inimigo da criminalidade, porém, ele mesmo a cria através da sua aliança com os membros do topo da pirâmide, deixando essas áreas de exclusão desprovidas de serviços públicos essenciais, como moradia de qualidade, educação, saúde e segurança. Assim sendo, optou-se por não atuar no quesito assistencial, tão festejado pela Constituição como direitos e garantias fundamentais. Logo, a população periférica constitui uma nação sem pátria, pois são filhos renegados e mortos diariamente no solo do “país carnavalesco”.

Dessa forma, em sua obra A guerra não declarada na visão de um favelado, Eduardo Taddeo (2012, p. 311) descreve que:

A guerra quente, na qual guerreamos em total desvantagem, deu luz em inúmeros pontos das grandes cidades, a verdadeiros territórios sem Estado. Deu luz às ‘sub pátrias’! Deus luz às pátrias que nascem e vivem sem o amparo estatal. Deu luz aos mini estados falidos que não fazem parte dos mapas tradicionais das cidades; dos programas sociais; dos planos de civilização e cidadania; dos planos de urbanização ou dos planos de saneamento básico. Por fim, deu luz aos perímetros devastados, que apenas formam os contrastes nas paisagens paradisíacas.

As favelas nacionais são pequenos países embargados por seu continente mãe, povoados por milhares de rejeitados sociais, nivelados a pragas e maldições pela sociedade branca.

Portanto, torna-se o Estado um amigo íntimo, um genitor da criminalidade que utiliza todos os meios imorais para que não morra, pois é a maquiagem do verdadeiro sistema criminoso que ele mesmo chefia, cria e recria. Tem-se o universo estatal como gestor da vida (Foucault, 1987) e administrador da morte. O Estado domina para que o capitalismo explore. Destarte, ambos dependem da divisão de classes.

  1. O ESTIGMA DA MORTE

 Arcadas dentárias salientes, mandíbulas, queixo grande e reentrado, orelhas, sobrancelhas e caixa craniana de dimensões anormais eram caracteres que rotulavam os indivíduos propensos ao crime e os diferenciavam dos demais cidadãos. Parece absurdo, mas esta foi uma teoria criada no século XIX pelo médico psiquiatra Cesare Lombroso, o fundador da antropologia criminal. A teoria lombrosiana[28], utilizada por grande parte da “intelectualidade brasileira”, descrevia que era perfeitamente possível identificar um “criminoso” nato e antecipar seus atos ilegais (Lombroso, 2007). Dessa forma, a delinquência estava na biologia do ser humano e não no meio social em que ele estivesse inserido.

Embora esse estudo ainda persista nas relações sociais, foi reformulado e ampliado para um novo perfil de “criminoso”, não apenas relacionado às características físicas e à pré-disposição genética ao banditismo, mas também na cor de pele e no patamar social, alimentando o fosso que há entre os dominadores e os historicamente discriminados e dominados para, assim, manter o controle social e a “paz” da classe dominante (a paz sangrenta).

A estigmatização das pessoas assegura a manutenção do Estado repressor, pois o pobre marginalizado e o negro são personagens favoritos e unânimes do sistema punitivo brasileiro, rasgando à bala o texto do inciso XLII do artigo 5° da Carta Magna, que expressa que “a prática de racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”, e o inciso VIII do artigo 4°, que repudia o terrorismo e o racismo, além da Lei n° 7.716[29], mais conhecida como Lei Caó.

Nesse sentido, as chacinas diárias são a consolidação macabra dos dois mais diabólicos tipos de racismo: o científico e o institucional. O primeiro é a abordagem científica de que a herança genética é parâmetro para hierarquizar as raças, compreendendo o processo de mestiçagem como degeneração da sociedade e símbolo de involução para enaltecer a “raça pura” e estabelecer diferença biológica entre elas. Já o racismo institucional, caracteriza-se como um sistema de desigualdade que se baseia em raça, na qual esta é tratada de formas distintas e preconceituosas em instituições econômicas, políticas e sociais, órgãos públicos governamentais, corporações privadas e universidades públicas e particulares. Assim, ambos os conceitos estão interligados na ciência[30] e nas relações sociais e difundidos, também, na mídia fascista nacional.

Hitler e os soldados da tropa de elite nazista, a SS[31], torturaram e dizimaram aproximadamente 6 milhões de pessoas. Estima-se que, entre maio de 1940 e janeiro de 1945, cerca de 1,1 milhões de indivíduos morreram no campo de concentração de Auschwitz[32], através de um programa sistemático de extermínio étnico. O nazismo tinha o objetivo de consolidar a “raça ariana”, tida como superior, e extinguir as “raças inferiores”. Essa teoria foi um exemplo do eugenismo[33] (no qual a hierarquia racial prevalecia sobre a hierarquia social), o que resultou no holocausto durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

A temática racista da eugenia que dividia as pessoas em raças hierarquizadas está presente nas ações da polícia, na atuação do Estado, do Judiciário e na criminalização da cor preta, tida por eles como indigesta. Tanto que na terceira Constituição brasileira, em 1934, o artigo 138 descrevia que era de responsabilidade da União, dos Estados e Municípios estimular e aplicar a educação eugênica, principalmente aos filhos da classe trabalhadora e empobrecida da época[34]. Assim, essa prática foi passada pelos trilhos da história até alcançar o atual ordenamento jurídico brasileiro, o autoritarismo estatal e de seus aliados contra setores e pessoas específicas da sociedade. Temos o “mais mortífero sistema político baseado em diferenças biológicas que se tem notícia: a ‘democracia racial brasileira’”, descreve Eduardo Taddeo (2016, p. 131).

Assim sendo, o regime autoritário nacional apresenta a burguesia como partido único nos poderes constituídos que se sustenta na legislação penal. A manutenção da ordem é regida pela polícia opressora e militarizada e o terror é inerente ao controle do país nas mãos de um grupo de empresários e legisladores capitalistas e sanguinários. Logo, como a cor de pele mais escura é atributo e característica que não se enquadra nos moldes da classe e cor dos dominantes, é discriminada de formas jurídica, social, econômica, cultural, religiosa e intelectual[35]. São maneiras de inferiorização e invisibilização causadas pela construção de estereótipos sobre a pele negra. Como afirma Alex Caldas (2015, p. 23), “o racismo não deixou cicatrizes na nossa sociedade. Ele ainda abre feridas e impede a cicatrização”.

Os processos discriminatórios, tão fortes desde o nascimento da sociedade tupiniquim, são frutos da estrutura social excludente construída sob uma perspectiva eurocêntrica. Predominaram durante séculos (e ainda predominam) discursos e teorias que, com base na ciência, foram e são usadas como ferramenta de legitimação de pensamentos e atitudes que operavam e operam para a perpetuação e rotulação dos negros tidos como “criminosos”. Essas teorias reproduzem práticas cotidianas na ação dos esquadrões da morte (“caveirões”) e viaturas da polícia.

A mídia exerce massiva influência no dia-a-dia das pessoas, em que, muitas vezes, essa é a única maneira pela qual elas têm acesso a informações num mundo tão globalizado como o atual. Assim, como no capitalismo tudo gira em torno do lucro, os veículos de comunicação têm intrínsecas alianças com poderes econômicos, políticos, religiosos e ainda jurídicos. A notícia é, portanto, uma mercadoria. O universo midiático é uma das mais importantes ferramentas da classe dominante que, por meio de sua divulgação ideológica e materialista, propaga o racismo, a homofobia, o machismo, a misoginia, o consumismo, etc. Desse modo, revela seu papel na elaboração de estigmas, criminalização da pobreza e discriminação de pessoas e grupos, promovendo a favela e os moradores dela como gêneses da violência e dos crimes. Logo, a mídia é sensacionalista e possui profundo caráter alienador, parcial, preconceituoso, acusatório, vingativo e, sobretudo, elitista.

Nesse contexto, as mortes violentas contra os negros, repercutidas na imprensa nacional[36], representam poucos casos que ganham notoriedade dentre os 59.080 cadáveres anuais da máquina colonial, repressora e genocida que tritura os corpos dos indivíduos de cor preta.

Em julho de 2013, uma operação batizada de “Paz Armada” prendeu suspeitos sem passagem pela polícia, mobilizando 300 policiais na Favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, onde 30 pessoas foram presas, entre elas Amarildo Dias de Souza, ajudante de pedreiro que foi detido em um bar após voltar de uma pescaria e conduzido à Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) para prestar esclarecimentos. Amarildo foi torturado, executado e teve seu corpo ocultado[37].

Outro exemplo é o massacre de Costa Barros[38], bairro pobre da zona norte do Rio de Janeiro, ocorrido na noite do dia 28 de novembro de 2015, em que cinco jovens negros foram assassinados por 4 policiais militares. Segundo familiares, os jovens foram comemorar o primeiro salário de um deles como jovem aprendiz no Atacadão da Avenida Brasil, no Rio de Janeiro. Estavam em um carro, desarmados, motorista habilitado e documentos em dia, porém foram disparados 111 tiros no veículo onde estavam. Os policias foram “presos” por homicídio doloso e fraude processual. No entanto, no dia 21 de junho de 2016, tiveram liberdade concedida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Seria uma intensa contradição para o Estado e o Poder Judiciário deixarem encarceradas as suas tropas homicidas. Portanto, essa também é a cor (branca) e classe (burguesa) da “justiça” brasileira. Assim, é nítido que os homicídios provocados pelos aparatos estatais têm caráter seletivo.

Nesse sentido, numa sociedade de relações hegemônicas, como a brasileira, que define padrões dominantes, valores, vestimentas, costumes, cultura, ideologias e, sobretudo a cor, quem não se enquadra nesse padrão hegemônico de preceitos é inferiorizado e rotulado, pois não há estigma quanto àqueles que são da classe dominante.

Destarte, a história depende do tempo e o capitalismo depende de sangue. No cemitério de vidas, no jardim dos mortos, nas gavetas dos rabecões, nos porões, presídios, nas memórias, nas torturas ou nas ruas, o processo de discriminação temporal e territorial se entrecruza. Trata-se de uma rede sanguinária de cooperação que tem no âmbito policial, nas Forças Armadas e na estrutura do Poder Judiciário, o legado sangrento do autoritarismo presente no processo de colonização e no regime civil-militar[39]. Onde estão e quem são os mortos? Basta seguir o sangue, ele está evaporando nas favelas. Basta seguir o rastro dos corpos que tem suas vidas rompidas por causa de sua cor e padrão econômico.

  1. AS VOZES DAS ESTATÍSTICAS NO CAMPO MINADO BRASILEIRO

 Genocídio[40] é considerado crime contra a humanidade, imprescritível e inafiançável, e, segundo o artigo 1° da lei 2889/1956[41], consiste na intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, ou cometer contra ele qualquer dos atos seguintes: matar seus membros; causar lesão à integridade física ou mental; submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial; adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo.

O cataclismo social arquitetado pela atuação corrosiva, estrutural e gananciosa do Estado genocida e suas tropas homicidas, produz massacres de seres humanos em larga escala, nos quais os alvos dos tiros são os moradores das zonas de exclusão. Portanto, as alarmantes taxas de carnificina são resultado de várias outras violências provocadas pelo Estado, que elegeu o negro como suspeito principal de qualquer ato criminoso, revelando, assim, o racismo institucional e científico, presente na prática tão comum nas periferias brasileiras: fabricar a morte de pessoas através de chacinas e extermínios cotidianos. É um estado de guerra não oficializado, a guerra civil brasileira.

Segundo o Mapa da Violência no Brasil[42], divulgado em 2011 pelo Ministério da Justiça, entre os anos de 1988 a 2008, 521.822 pessoas foram vítimas de homicídios no Brasil, quantitativo que excede o número de mortes de país em guerra declarada e com as sequelas mortíferas da indiferença. Dados do Atlas da Violência 2017 revelam que, em 2015, o Brasil registrou 59.080 assassinatos anuais, 28,9 por 100 mil habitantes. Estatísticas que colocam o país no topo do ranking mundial em números absolutos de mortes dessa natureza. De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), estes índices brasileiros representam 11,4 dos homicídios ocorridos no mundo. Isto é, a cada 100 homicídios cometidos no planeta, no mínimo 11 deles ocorrem no Brasil. De cada 100 pessoas que sofrem homicídio no Brasil, 71 são negras. Em 2014, foi registrado que negros e pardos possuíam 147% a mais de chances de serem executados em relação a indivíduos brancos e orientais.

Ou seja, a quantidade de vagas reservadas nas covas dos cemitérios das execuções é de 147% a mais para as pessoas negras. Em vez de ações afirmativas, tomam lugar às ações de carnificina nos becos, vielas e ruas das discriminadas e sofridas favelas, na qual os corpos sepultados com lágrimas e os restos mortais das vítimas do genocídio negro em escala sistemática são reduzidos a algarismos de uma matemática macabra.

Os negros respondem por 78,9% dos indivíduos pertencentes ao grupo dos 10% com mais chances de serem vítimas fatais. Entre 2005 e 2015, a diferença entre as taxas de homicídios praticadas contra negros aumentou 34,7% em relação aos não-negros, sendo que, neste período, observou-se o crescimento de 331,8% das mortes contra negros no estado do Rio Grande do Norte, segundo análises quantitativas e qualitativas de Cerqueira e Filho apud Daniel Cerqueira e col. (2017).

Esses números expressam o gráfico revestido de sangue da desigualdade nos padrões de mortalidade entre as cores. De acordo o Mapa da Violência 2014, a taxa de homicídios entre jovens negros é quase 4 vezes a verificada entre os brancos (36,9 a cada 100 mil habitantes, contra 9,6)[43]. No Nordeste, esse perigo 5 vezes maior[44]. Foram assassinados entre 2005 e 2015, 318.000 mil jovens entre 15 e 29 anos, sendo 31.264 mil deles apenas em 2015, correspondendo, portanto, a 47,8% do total de óbitos anuais (e 53,8% se considerarmos apenas os homens entre 15 a 19 anos, sendo 2,6 vezes a mais o risco de um jovem de cor preta ser assassinado em relação aos jovens brancos. Nesse contexto, revela um programa cadavérico de aniquilação sistemática e uma “máquina de moer gente”, movida pelo Estado, pela polícia e grupos de extermínio ligados a ela.

Conforme o Atlas da Violência de 2017, com base nos dados trazidos pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública, indica que ao menos 358 policiais civis e militares constam das estatísticas de homicídio do país em 2015, sendo, muitas vezes, protagonista das letalidades, juntamente a outras instituições como o Judiciário, por exemplo, e vítima dessa guerra não declarada que eterniza a exclusão, a verticalidade e a carnificina.

Para se ter uma ideia desses dados alarmantes, Darfur, região do Sudão, que hospeda oficialmente a maior crise humanitária do planeta desde 2003, contabiliza mais de 300 mil pessoas mortas[45], segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), totalizando aproximadamente 23.100 a cada 365 dias. O Brasil necessita de apenas 5 anos e 1 mês para alcançar as 300 mil mortes ocorridas em 14 anos de guerra civil sudanesa, e de menos de 5 meses para superar a sua média anual de assassinatos.

A “Guerra do Iraque” contabilizou, em 2013, pelo menos 174 mil assassinatos nos últimos 10 anos[46], desde a invasão do país pelas forças internacionais lideradas pelos norte-americanos. São necessários apenas 3 anos para a terra brasilis ultrapassar essa vergonhosa estatística. “Matamos mais do que os países em guerra civil/ Ainda morremos de fome no seio da mãe gentil”, afirma Giovanni Cahegi (2016).

Por conseguinte, Eduardo Taddeo (2012, p. 409) revela e descreve essa guerra não declarada administrada pela burguesia e a realidade do derramamento de sangue nacional, ao afirmar que:

Em sua busca mesquinha por paz e qualidade de vida para os membros de seu habitat, apenas logrou-se com êxito a solidificação do quadro de injustiça social mais vergonhoso do mundo e a deflagração da luta armada de classes mais sanguinária e duradoura de todos os tempos. A luta de classes que nem Karl Marx foi capaz de prever!

Tal estruturação se faz através da segurança pública elitista que camufla e põe em ação grupos de extermínios fardados nos campos de concentração do Brasil. O sangue que está pendurado na árvore da imolação continua escorrendo nas veias abertas da escravidão moderna. Os mortos não falam, mas a cápsula da bala grita, ao separar o corpo da alma e uma vida de uma história.

Um exemplo (dentre os vários) dessa hecatombe é a Chacina do Cabula[47], ocorrida no dia 6 de fevereiro de 2015, quando policiais militares das Rondas Especiais da Bahia (Rondesp) cercaram 18 jovens negros na Vila Moisés, bairro do Cabula, em Salvador (BA), a mais negra metrópole brasileira, e os fizeram correr para um campo de futebol. Encurralados, pelo menos 12 deles foram executados sumariamente e 6 destes jovens conseguiram escapar fingindo-se de mortos. Foram deflagrados 88 tiros contra as vítimas. O Ministério Público, em sua denúncia, detalhou que todos os laudos cadavéricos indicavam execuções, considerando que as vítimas estavam em plano inferior aos seus agressores (de joelho e deitados) e com perfurações nas palmas das mãos, braços e antebraços, o que indicava que estavam em posição de defesa. Nesse contexto, Gabriella Barbosa (2015, p. 144) afirma que “o que se vê no Brasil é o extermínio em massa da melanina não desejada”.

Deste modo, o país que respira a corporeidade negra é o mesmo que inala o odor dos corpos aniquilados nos corredores nacionais da morte. Tendo isso em conta, o livro Elite da Tropa (2006, p. 04), que deu origem ao filme Tropa de Elite, expõe o ritmo do “abatedouro” que ocorre nos “morros” e os cantos diários durante a prática dos exercícios: “Homens de preto, qual é sua missão? / É invadir a favela e deixar corpo no chão”. “Se perguntas de onde venho/E qual é minha missão/Trago a morte e o desespero/E a total destruição”. Assim, a periferia é vista como um lugar a ser extirpado. É a Auschwitz[48] do Brasil, o campo de concentração onde, diariamente, as pessoas são chacinadas pela SS nacional: a polícia militar.

Desse modo, a nação “onde bosques têm mais vida” estampa o número fúnebre de 59.080 homicídios anuais. Logo, utilizando a calculadora indigesta do holocausto, produz a cifra de 4.923 baixas por mês, 164 por dia, aproximadamente 7 assassinatos a cada hora, totalizando, assim, 1 óbito a cada 11 minutos.

Tantos litros de sangue humano derramado nas ruas brasileiras formam o “Mar Vermelho” nacional, o nosso “Memorial do Genocídio”, causado pelos conflitos sanguinolentos da cartografia burguesa na geografia da miséria. Portanto, temos um sistema oculto de pena de morte fundado na perspectiva branca, colonial e opressora. Desse modo, no extermínio estatal e seu sistema segregacionista, os habitantes da pátria inglória ouvem apenas o eco da própria voz no silêncio.

  1. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho buscou analisar a perpetuação da imolação que vigora nas periferias brasileiras, fruto da política eliminacionista do sistema capitalista e do Estado, sendo posta em vigor pela violência metódica de seus agentes. Foram usados como referências principais o discurso do rap e a literatura marginal, fazendo análises da história para compreender a gênese da carnificina nacional e a criminalização da melanina e da pobreza, além da utilização de dados estatísticos e de instrumentos normativos. A organização sócio-racial tupiniquim vem excluindo e executando, há séculos, determinadas pessoas, resultando em um número de cadáveres que tornam o país como o mais violento do mundo.

Há uma guerra, uma guerra não declarada, histórica e genocida. O Estado, enquanto ente jurídico e político, apesar de atender a escusos interesses financeiros, representa a instância máxima da sociedade. Assim, detém o monopólio da “justiça” e da imolação em massa, atuando como agência seletiva de agentes alvos das mortes, utilizando o tentáculo armado da burguesia, a polícia.

Dessa forma, há no Brasil dois países diferentes coexistindo sob a mesma bandeira do lema positivista “ordem e progresso”: a pátria da fome, de escravos e senzalas e a pátria da riqueza, dos senhores e das casas grande.

No país da carnificina e “justiça” seletivas, o estado de massacre não advém apenas do tiro assassino dos policiais, mas também de todo sistema excludente e podre do Poder Judiciário racista, classista e machista. As execuções sumárias, arbitrárias e extra-judiciais continuam e se multiplicam na equação do holocausto dos negros nos guetos do país, onde o resultado é sempre a hecatombe das pessoas marginalizadas.

Logo, a criminalização da miséria e daqueles historicamente discriminados é a forma que o Estado utiliza para manter o sistema penal sanguinário em constante atuação e, assim, garantir ganhos econômicos e políticos por meio da distribuição dos indivíduos em classes sociais separadas, modificando a roleta do destino dos pobres, negros e moradores das favelas, visto que estes são transformados em matéria-prima da fábrica de cadáver chamada Brasil.

Portanto, é cruelmente doloroso e desumano assistir a multiplicação dos cadáveres e não lutar pelo fim do genocídio histórico que habita o cotidiano das áreas de exclusão, alicerçado sobre o eugenismo da política de segurança pública, negando a uma maioria da população a sua própria humanidade. Nesse sentido, espera-se que esses sejam tratados e sentidos como sujeitos de direito, de dignidade e de identidade (enquanto instrumento de autoafirmação). O papel do sistema de “justiça”, da segurança pública, do Direito, do Estado e de seu braço armado precisa ser ressignificado e repugnado para que o quadro da barbárie histórica seja substituído pela afirmação do ser humano e de sua dignidade, independentemente do seu cabelo, da quantidade de dinheiro, de onde habite e da cor de sua pele.

E que esses escritos sirvam de/para reflexão, conscientização e, sobretudo, resistência! Que a periferia, os negros e os pobres ganhem vez, ganhem vozes (e não tiros) e vidas, e não mais respirem a brisa morta do Brasil!

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O MOVIMENTO NEGRO NA CONSTITUINTE (1987-88)

As Disputas no Campo Normativo e os Deslocamentos da Nação (Imaginada) Brasileira

THE BLACK MOVEMENT IN THE CONSTITUENT (1987-88)

The Disputes in the Normative Field and the Displacements of the Brazilian (Imagined) Nation

Cinthia de Cassia Catoia[49]

Ana Luiza Ferreira Martins Silva[50]

Resumo: O trabalho tem por objetivo analisar as estratégias políticas mobilizadas pelo Movimento Negro Contemporâneo, nas décadas de 1970-80, em especial a partir de sua participação no processo constituinte de 1987-88. O trabalho propõe, ainda, refletir sobre como a disputa no campo normativo, ao problematizar o mito de democracia racial, tensionou os sentidos da nação (imaginada) brasileira. Para a elaboração do trabalho, privilegiamos a revisão da literatura sobre a atuação política do movimento negro contemporâneo e a análise documental dos Anais da Constituinte de 1987-88. O movimento negro contemporâneo tensionou nossa compreensão sobre a nação brasileira, construída discursivamente como uma nação mestiça em que cidadãos iguais vivenciariam uma experiência democrática. Ao evidenciar os mecanismos racistas de tal discurso, o movimento negro permitiu a problematização dessa narrativa nacional, possibilitando-nos a reflexão sobre a nação a partir de novos sujeitos e de sua história de descontinuidade e conflitos.

Palavras-chaves: Movimento Negro. Racismo. Mito de Democracia Racial. Assembleia Nacional Constituinte 1987-88.

Abstract: The paper aims to analyze the political strategies mobilized by the Black Contemporary Movement in the 1970s and 1980s, in particular to highlight their participation in the constitutional process of 1987-88. The paper also proposes to reflect on how the dispute in the normative field, when problematizing the myth of racial democracy, tensioned the senses of the Brazilian (imagined) nation. For the elaboration of the paper, we privileged the revision of the literature on the political action of the contemporary black movement and the documentary analysis of the Annals of the Constituent of 1987-88. The contemporary black movement tensioned our understanding of the Brazilian nation, constructed discursively as a mestizo nation in which equal citizens would be living a democratic experience. By highlighting the racist mechanisms of such ideology, the black movement allowed the problematization of this national narrative, providing us to reflect on the nation from new individuals and from its history of discontinuity and conflicts.Keywords: Black Movement. Racism. Racial Democracy. National Constituent Assembly 1987-88.

  1. Introdução

As décadas de 1970 e 1980, de intensa movimentação política, significaram um importante período de reorganização do movimento negro contemporâneo. Com destaques para a criação do Movimento Negro Unificado (1978), para a organização autônoma do movimento de mulheres negras, para a participação destes no processo constituinte e nas renúncias às comemorações do Centenário da Abolição (1988), o período de 1970/80 marcou um momento de crítica ao racismo que atravessava (e ainda atravessa) as instituições sociais e políticas brasileiras, bem como ao mito de democracia racial, um dos sustentáculos desse racismo.

No processo de luta política, o movimento negro problematizou no campo normativo o lugar social (e simbólico) do sujeito negro, ao mesmo tempo em que disputou um novo projeto de sociedade bem como os sentidos da nação brasileira. Tal luta política, ao evidenciar os mecanismos racistas do mito de democracia racial, permitiu a problematização dessa narrativa nacional e possibilitou a reflexão sobre a nação a partir de suas margens, descontinuidades e conflitos e sobre a construção de uma real democracia racial.

A partir das reflexões de Domingues (2007), Rufino (1994) e de Gonzalez (1982) compreendemos, aqui, o movimento negro como sendo um movimento social organizado por homens negros e mulheres negras, que ao longo de todo o século XX, lutaram, por meio de diversas estratégias, contra o racismo. Nesse sentido, como sujeito político, o movimento negro, nas décadas de 1970 e 1980, produziu/deslocou discursos e articulou os sujeitos negros, possibilitando que estes se reconhecessem a partir de novos lugares (GOMES, 2011).

Diante do exposto, este trabalho tem por objetivo analisar as estratégias políticas mobilizadas pelo Movimento Negro, nas décadas de 1970/80, em especial a partir de sua participação no processo constituinte de 1987/88. O trabalho propõe refletir sobre como a disputa no campo normativo, ao problematizar o mito de democracia racial, tensionou os sentidos da nação (imaginada) brasileira. Busca-se assim contribuir, ainda que minimamente, para a necessidade apontada por Queiroz (2017) de reconstituir e denunciar o caráter racial das categorias jurídicas, perquirindo “como a raça se inscreveu na construção das estruturas e práticas do direito moderno, mesmo quando elas se apresentaram como não racializadas” (p. 14). Pretendeu-se, ainda, e nas palavras do mesmo autor, “desencobrir outras narrativas possíveis sobre o Brasil” (p. 15), evidenciando-se como a participação política de negras e negros na formulação política e legislativa do país foi capaz de desconstruir discursos, deslocar sentidos e questionar lugares.

Para a elaboração do trabalho, privilegiamos a revisão da literatura sobre a atuação política do movimento negro nas décadas de 1970 e 1980 e a análise documental dos Anais da Constituinte de 1987/88.

  1. O Movimento Negro (1970/80)

 Na década de 1970 o Movimento Negro Contemporâneo foi gestado na rede de mobilização social contra o regime ditatorial, num momento em que contestar a ideologia de Estado baseada na democracia racial era visto como ameaça política. Ou seja, momento em que produções culturais, reuniões e manifestações contra o racismo e a desigualdade racial poderiam ser interpretadas como subversivas ou como atentados à segurança nacional. Naquele contexto, a organização e ação do movimento negro estavam sujeitas a se configurarem como atos de subversão ou de incitação ao ódio[51]. Por isso, a questão racial era debatida no interior de restritos círculos políticos de oposição ao regime até o período de maior abertura política e de reinício dos protestos estudantis e sindicais, já nos fins dos anos setenta (RIOS, 2014; PEREIRA, 2010). Tal situação de sufocamento de demandas de movimentos sociais, imposta pelo regime ditatorial começou a se alterar no final dos anos setenta e novas entidades e coletivos surgiram, entre eles, o movimento Negro Unificado (MNU)[52], criado em 1978, na cidade de São Paulo.

O MNU propunha ser um movimento nacional unificado, no entanto, com as diferentes visões em relação à luta contra o racismo existentes na militância negra, o MNU tornou-se uma entidade com ramificações em diferentes regiões do país, que visavam ampliar e popularizar o debate e a iniciativa do movimento, com intuito, inclusive, de amplitude nacional. Ao mesmo tempo em que se tinha em vista incorporar questões tidas como específicas do dilema racial ao debate corrente mais abrangente sobre a democratização da sociedade brasileira, sem perder a disposição maior à crítica de caráter político em tons mais radicais, que pautariam essa fase do movimento negro (DOMINGUES, 2007).  Na carta de princípios podemos observar os objetivos e propostas do movimento:

Nós, membros da população negra brasileira – entendendo como negro todo aquele que possui na cor da pele, no rosto ou nos cabelos, sinais característicos dessa raça – reunidos em Assembleia Nacional, convencidos da existência de discriminação racial, marginalização racial, (…) mito da democracia racial, resolvemos juntar nossas forças e lutar pela defesa do povo negro em todos os aspectos (…); por melhores oportunidades de emprego; melhor assistência à saúde, à educação, à habitação; pela reavaliação do papel do negro na história do Brasil; valorização da cultura negra (…); extinção de todas as formas de perseguição (…) e, considerando enfim que nossa luta de libertação deve ser somente dirigida por nós, queremos uma nova sociedade onde todos realmente participem (…) nos solidarizamos com toda e qualquer luta reivindicatória dos setores populares da sociedade brasileira (…) e com a luta internacional contra o racismo. Por uma autêntica democracia racial […] (MNU, 1988 apud PEREIRA, 2010, p. 99).

A partir do exposto, observa-se na rearticulação do movimento negro a proposta de luta contra o racismo e a discussão em torno da construção de uma real democracia racial. A demanda por uma nova sociedade, explicitada na Carta, a qual, além de evidenciar a ideia de transformação social, também marcava um importante deslocamento na luta política do movimento negro, em relação aos coletivos negros organizados em períodos anteriores, que reivindicavam a integração da população negra na sociedade brasileira, tal como ela se apresentava. Construía-se, assim, na militância negra, um discurso de transformação das relações raciais como pressuposto de transformação social como um todo. Essa posição evidenciava “a guinada de visão política e a consequente aproximação com qualquer luta reivindicativa dos setores populares da sociedade brasileira e grupos de esquerda, que se opunham ao regime vigente” (PEREIRA, 2010, p.103).  Nesse sentido, é possível apontar uma mudança de postura do movimento negro contemporâneo, que então deixando de atuar “dentro da ordem”, passava nos anos 1970, a ser mais radical em suas denúncias e proposições. Ao mesmo tempo em que se apresentava como importante interlocutor para a construção de um novo arranjo político e social no Brasil.

Outros importantes coletivos surgiram no contexto das décadas de 1970 e 1980: o Grupo Palmares (1971), no Rio Grande do Sul; o Centro de Cultura e Arte Negra e o grupo de teatro Evolução (1972), em São Paulo; o bloco afro Ilê Aiyê (1974) e o Núcleo Afrobrasileiro (1976), em Salvador; o Instituto de Pesquisas das culturas Negras (1975), no Rio de Janeiro, entre outras. Aquele momento foi marcado, ainda, por importante luta política do movimento de mulheres negras, que vinha se consolidando desde os anos de 1950, quando da criação do Conselho de Mulheres Negras no Rio de Janeiro (primeiro registro de organização autônoma de mulheres negras).

A organização do movimento de mulheres negras teve também dois outros importantes resultados, quais sejam: a criação do Coletivo de Mulheres Negras de São Paulo e a nomeação de duas mulheres negras, Thereza Santos e Vera Saraiva, para compor o Conselho Estadual da Condição Feminina (CECF), primeiro conselho governamental dos direitos das mulheres, criado em São Paulo, e composto, na época, apenas por mulheres brancas.

Entre as estratégias de ação política do movimento negro contemporâneo estava o renascimento da imprensa negra, importante desde o início do século XX para a luta e organização do movimento negro. A partir dos anos de 1970, sobretudo, depois da abertura política, surgiram novos periódicos. Inicialmente, esta produção tinha referência geográfica restrita: São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Porto Alegre. No entanto, com o fim da ditadura militar, houve um expressivo aumento da imprensa negra pelo país. Ao longo da década de 1980 já havia mais de 16 jornais negros, em diferentes estados brasileiros. Na perspectiva de Rios (2014), o aumento do número de periódicos negros autônomos revelava a “descentralização, expansão e o enraizamento da luta antirracista” (p. 141).

 Além da imprensa negra, importantes eventos e manifestações foram organizados no intuito de discutir o racismo. O Coletivo de Mulheres Negras de São Paulo organizou, em 1984, o 1º Encontro Estadual de Mulheres Negras, ao qual compareceram em torno de 450 pessoas. Além de mulheres negras, também participaram desse encontro mulheres brancas e homens negros. Entre os temas tratados, Roland (2000) destaca a discussão sobre as relações de gênero, saúde, violência, participação política, estética, mercado de trabalho. A discussão observou as diferenças de renda e educação entre homens brancos, homens negros, mulheres brancas e mulheres negras, a fim de problematizar os efeitos da intersecção da desigualdade de gênero e raça, em especial sobre mulheres negras. O encontro chamou a atenção, portanto, para a importância da articulação política autônoma de mulheres negras, como forma de tornarem visíveis as suas experiências.

Outra importante atuação do movimento negro foi a organização de protestos em decorrência do centenário da abolição da escravidão. Momento considerado por muitos militantes como o ideal para provocar a discussão sobre o racismo e a subalternização da população negra na sociedade brasileira. Em um dos principais protestos, a chamada “Marcha contra a farsa da Abolição”, realizada em 11 dede 1988, no Rio de Janeiro, o cartaz de divulgação tinha como título “Nada Mudou – Vamos mudar”, o qual já explicitava o questionamento do movimento negro à perspectiva oficial do governo de comemoração e de celebração da “harmonia racial no país” (PEREIRA, 2010).

Outra estratégia de atuação do movimento negro – em especial a partir das eleições diretas para os governos estaduais, em 1982, e com consequente vitória de candidatos de oposição ao regime militar em diferentes estados – foi a construção de espaços de interlocução com os poderes públicos (Executivo e Legislativo). Momento em que foram criados os primeiros órgãos governamentais com o objetivo de pensar políticas relacionadas à população negra. Além disso, com o fim do bipartidarismo, militantes negros(as) participaram do processo de criação de novos partidos políticos, como do Partido dos Trabalhadores (PT) e do Partido Democrático Trabalhista (PDT) (PEREIRA, 2010), o que influenciou, mesmo que de forma, por vezes, limitada, a inserção de demandas étnico-raciais no debate da esquerda, que estava se (re)construindo no momento do processo de redemocratização.

A luta política do movimento negro e do movimento de mulheres negras apresentou-se, então, no cenário político e público, pontuando a inadequação de políticas públicas de caráter universal, demonstrando que a desigualdade social, assentada na questão étnico-racial, necessitaria de políticas públicas distintas. Assim, por meio de diferentes ações e estratégias como protestos políticos, organização de congressos, participação em partidos políticos e em órgãos governamentais, as reivindicações do movimento negro demandavam do Estado o reconhecimento do racismo nas esferas sociais e institucionais e a construção de políticas públicas específicas que levassem a desigualdade étnico-racial em consideração.

  1. O Debate Político do Movimento Negro na Assembleia Nacional Constituinte (1987/88)

3.1 A Articulação do Movimento Negro para a ANC

 O processo constituinte de 1987/88 foi um momento privilegiado para que os movimentos sociais disputassem o projeto constitucional que deveria observar suas demandas e propostas. O Movimento Negro esteve atento às articulações em torno da convocação e formato da Assembleia Nacional da Constituinte (ANC). Desde 1985, organizações do movimento negro já vinham se preparando para a participação na constituinte, organizando encontros municipais e estaduais. Uma das atividades que marcou essa preparação foi o Primeiro Encontro Estadual O Negro e a Constituinte, que contou com a participação de diversas entidades negras, realizado em julho de 1985, na Assembleia Legislativa de Minas Gerais e que culminou na entrega de um documento ao então presidente da república, José Sarney e ao presidente da Assembleia Nacional Constituinte, o deputado Ulysses Guimarães (RODRIGUES, 2005).

No ano de 1986 duas representantes da questão racial com assento no Conselho Nacional dos Direitos da Mulher – Benedita da Silva e Lélia Gonzalez – participam do Encontro Nacional Mulher e Constituinte. Nesse encontro participaram duas mil mulheres que se dividiram em doze grupos de trabalho (GTs), denominados de comissões, organizados por temas para sistematizar, discutir e deliberar as propostas a serem encaminhadas à Assembleia Constituinte.

Na Comissão Discriminação Racial, Benedita da Silva e Lélia Gonzalez inscreveram importantes demandas das mulheres negras relacionadas à educação, trabalho e saúde, com ênfase na igualdade de gênero e de raça e no combate à discriminação racial. A partir do encontro, foi elaborado o documento intitulado Mulher Negra: dossiê sobre discriminação racial.  O dossiê tinha como objetivo demonstrar que, ao contrário do que afirmava o discurso da democracia racial, em que a atitude racista era percebida como esporádica e não costumeira na vida nacional, o racismo e a discriminação racial compunham uma estratégia ampla de controle sobre a população negra, que atingia particularmente a mulher negra em todos os setores da vida social, acarretando aos negros, em geral, e às mulheres negras, em particular, os piores lugares da hierarquia social, tendo como consequência o privilegiamento (sic) do segmento social branco (SANTOS, 2015). O dossiê foi enviado, na forma de sugestão, à Assembleia Nacional Constituinte, em 1987.

Em agosto de 1986, o Centro de Cultura Negra (CCN), do estado do Maranhão promoveu o Primeiro Encontro de Comunidades Negras Rurais do Maranhão, com o tema O Negro e a Constituição Brasileira, quando foi discutida a necessidade da regulação das chamadas “terras de preto”, terras de quilombolas que vinham sendo objeto de estudo de uma das principais referências do movimento negro do Maranhão, desde a década de 1970 (PEREIRA, 2010). Ainda em 1986, o MNU organizou a Convenção Nacional O Negro e a Constituinte, que ocorreu em Brasília. Hédio Silva observa que neste encontro duas demandas eram consensuais entre militantes que participavam do evento: a criminalização do racismo e a regularização das terras quilombolas.  Hédio Silva aponta, ainda, a importância das organizações negras das regiões norte e nordeste para que a segunda demanda entrasse como pauta de discussão da constituinte.

A década de 1980 marcou, ainda, o início das disputas pela configuração da ANC e de seu regimento interno. Assim, se até meados de 1986 a sociedade civil organizava-se a fim de garantir a convocação de uma ANC, a partir de finais 1986 até março de 1987 as mobilizações teriam como principal objetivo a luta por uma ANC livre, soberana, exclusiva e mais do que isso, uma ANC que garantisse a participação popular. Ao longo do ano de 1986, mobilizações no sentido de garantir a participação popular no processo intensificaram-se e se somaram à militância partidária (apoio a candidatos que defendessem interesse de determinados grupos). Nesse contexto, surgiram novas iniciativas: alertar a população sobre a importância do voto e elaborar de um programa mínimo de propostas à Constituinte visando o compromisso de candidatos. (SANTOS, 2015). Lideranças negras articularam-se a fim de garantir a participação de Hélio Santos na Comissão Provisória de Estudos Constitucionais (Comissão dos Notáveis ou Comissão Afonso Arinos). Sua participação era descrita como estratégia fundamental para a militância negra dar maior atenção à ANC.

 

3.2 A participação do Movimento Negro na ANC

 O processo constituinte iniciou-se no ano de 1987 com a garantia da participação de movimentos sociais. De acordo com o regimento interno, o processo constituinte se iniciaria de modo descentralizado e sem textos bases. Nesse sentido, foram formadas oito Comissões Temáticas, compostas, cada uma delas, por 63 membros titulares e igual número de suplentes, cada comissão era composta ainda por três subcomissões. Entre estas, o debate étnico-racial foi, prioritariamente, tematizado na Comissão da Ordem Social (Comissão VII) e na Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias.

No primeiro encontro da Subcomissão, seu presidente, Ivo Lech, afirmou que, à Subcomissão se impunha o grande desafio do resgate da dívida social que o Brasil possuía, não somente para com as pessoas com deficiência, mas também para com os negros, indígenas e demais minorias.  Afirmou, ainda, que a Subcomissão trabalharia, não com o intuito de segregar tais grupos em um capítulo à parte do texto constitucional, mas sim, com o de garantir seus direitos em cada capítulo do texto constitucional.  Neste mesmo sentido, Hélio Santos argumentou que o objetivo da Comissão era o de “criar legislação, para que as minorias do país deixassem de ser apenas um instrumento da nossa sociedade e passassem a ser, agora, parte dela” (SANTOS, 2015, p. 65).

Nas audiências públicas, destacaram-se as intervenções de Lélia Gonzalez e Helena Theodoro, que pontuavam o processo de constituição da sociedade brasileira, evidenciando a marginalização social e cultural da população negra. Para elas, a construção da nação ou da cidadania deste grupo populacional seria possível apenas por meio do conhecimento da história do Brasil, a partir da desconstrução do eurocentrismo e do mito da democracia racial. Em uma de suas falas, Lélia Gonzalez observava que

colocar a questão do negro numa sociedade como a nossa é falar de um período histórico de construção de uma sociedade, construção essa que resultou em um grande país como o nosso e que, em última instância, resultou, também, para os construtores deste país, num processo de marginalização e discriminação. Invocamos aqui, as palavras de Joaquim Nabuco, ao afirmar que o africano e o afro-brasileiro trabalham para os outros, ou seja, construíram uma sociedade para a classe e a raça dominante. E falar de sociedade brasileira; falar de um processo histórico e de um processo social é falar justamente da contribuição que o negro traz para esta sociedade, por outro lado é falar de um silêncio e de uma marginalização de mecanismos que são desenvolvidos no interior desta sociedade, para que ela se veja si própria como uma sociedade branca, continental e masculina, diga-se de passagem (ANAIS DA CONSTITUINTE, 1987-88; Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias; 28/04/1987).

Na visão de Helena Theodor, a elaboração de uma constituição era um momento em que se lançava um país novo. A militante inicia sua intervenção com a constatação de que, no Brasil, a população negra sofre uma violência simbólica: a violência como um estado latente, a violência que agride só com o olhar, a violência da discriminação e do racismo, difícil de ser detectada objetivamente. Em sua fala, a militante trouxe importante observação com relação à maneira como o país lidou historicamente com a diferença:

na realidade, é muito importante ver o outro como outro, como ele é, mas no Brasil o outro sempre foi colocado no espelho a nossa semelhança. O que significa o outro? O outro não existe, o Brasil tem tido toda uma tradição de homogeneizar, de fazer com que se escamoteiem as diferenças, mas não há violência maior do que não querer ver as diferenças. Muito se tem falado sobre diferenças, aqui, mas como lidar com elas? A tradição brasileira estabelece uma forma de lidar com diferenças expurgando os diferentes (ANAIS DA CONSTITUINTE, 1987-88; Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias; 28/04/1987).

A militante pontuou que Constituição Federal de 1988 deveria ter sido responsável por garantir um ensino que respeitasse as diferenças e reconhecesse em seu currículo a história de africanos e afro-brasileiros, ou seja, a CF/88 deveria ter destacado a importância da subversão de um ensino, tradicionalmente eurocentrado e branco.  No mesmo sentido, Lauro Lima dos Santos apontou as dificuldades de as pessoas negras assumirem uma identidade étnico-racial num contexto de apagamento da história, repressão das manifestações culturais negras e ausência de referências positivas nos livros didáticos. Tendo em vista tal quadro, ele sugeriu, no âmbito da Constituinte, a inclusão do Zumbi dos Palmares no Panteão de heróis nacionais e a fixação do dia 20 de novembro como feriado nacional: Dia da Consciência Negra (SANTOS, 2015).

A criminalização do racismo, tema que atravessou a luta política do movimento negro desde as décadas de 1940/50, também foi ponto central na discussão da ANC. Carlos Alberto Caó propôs a Emenda nº ES-30.678/2, a qual previa a criminalização da discriminação racial, compreendida pelo movimento negro como um ato que viola direitos e liberdades fundamentais, justificando, portanto, a sua previsão expressa no texto constitucional. Na justificativa da Emenda, Alberto Caó observa que,

embora a população brasileira seja constituída por negros(as), ainda impera no país “cem anos após a Abolição”, a discriminação racial contra a população negra, seja esta ostensiva ou velada. O deputado apontou, ainda, a punição do racismo, desde a chamada Lei Afonso Arinos, [que] se mostrava insuficiente para tutela da garantia constitucional. Assim, era urgente tornar o crime do racismo inafiançável, para evitar a impunidade de seus autores (ANAIS DA CONSTITUINTE DE 1987- 88, p. 932).

Em síntese, as propostas encaminhadas pela Subcomissão dos Negros, Populações indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias ressaltaram, a partir das intervenções de Lélia Gonzalez e Helena Theodoro, dos constituintes, Hélio Costa e Carlos Alberto Caó, entre outros, a importância da formulação de dispositivos constitucionais que garantissem a  construção de uma legislação antirracismo em três dimensões: promocional com recorte étnico-racial (as políticas de ações afirmativas) no campo da educação, saúde e mercado de trabalho; b) educativo-pedagógica, que visasse à desconstrução de preconceitos e estereótipos raciais presentes no imaginário social dos sujeitos, tendo destaque o campo educacional e cultural; c) coercitiva,  normas proibitivas que visassem coibir ou punir condutas e práticas de discriminação racial e racismo.

As demandas de caráter promocional justificaram-se com base na afirmação de que a prescrição da igualdade jurídico-formal seria insuficiente para garantir uma igualdade social e étnicoracial concreta entre os sujeitos e grupos sociais e, portanto, a igualdade substancial, no plano material-econômico, seria fundamental. Aqui, a especificidade racial e de gênero no mercado de trabalho foi observada, ao se considerar o lugar social das mulheres negras, que se encontravam (e ainda se encontram) na base da pirâmide social brasileira. (ANAIS DA CONSTITUINTE, 1987-88).

O caminho didático-pedagógico, que teve ênfase na luta política do movimento de mulheres negras, era percebido como uma estratégia política fundamental para desconstruir preconceitos e impedir práticas de discriminação racial. Os processos educativos (formal e informal) ganharam centralidade no debate político do movimento negro na constituinte. Para justificar as demandas de caráter coercitivo, o movimento negro argumentou que nada justificaria o impedimento de uma pessoa para a realização da cidadania plena e que tal impedimento deve ser compreendido como crime uma vez que tolhia a humanidade do indivíduo que se vê “coisificado”, na medida em que não se podia realizar como ser livre pensante e dotado de livre-arbítrio. Cabe observar que, na perspectiva do movimento negro, a criminalização do racismo significaria uma crítica à Lei Afonso Arinos, que caracterizava o preconceito racial como contravenção penal, e uma forma de denúncia às diferentes facetas do racismo.

  1. Na Crítica ao Mito de Democracia Racial os Deslocamentos do Sentido da Nação

 O fim do sistema escravista, em fins do século XIX, suscitou para a reflexão dos pensadores brasileiros uma questão crucial: “a construção de uma nação e de uma identidade nacional” (MUNANGA, 1999, p. 51). Nesse período, no Brasil, a pluralidade racial, característica de todas as ex-colônias na América, era vista com temor pela elite brasileira, sentimento que se reforçou com o desenvolvimento das teorias racistas na Europa (MUNANGA, 1999). A busca de uma identidade étnica única para o país e a questão da definição do brasileiro como povo e do Brasil como nação, tornaram-se objetos de estudo de diversos pesquisadores a partir da primeira República[53]. Munanga (1999) evidencia que, salvo algumas exceções, as postulações desenvolvidas por esses pesquisadores tiveram como traço em comum a crença na inferioridade das raças não brancas, sobretudo a negra, pressuposto fortemente embasado no determinismo biológico do fim do século XIX[54].

Na década de 1920 passou a ser traçada uma “nova atitude de otimismo” em relação à questão racial no país, o que, para a Flauzina (2008), era apenas o indício “de uma nova estratégia formulada a partir dos interesses brancos” (p. 38). Gilberto Freyre é o pensador que, a partir de década de 1930, marcou uma virada nas formulações acerca das relações raciais no Brasil, que deveriam vir a tornar obsoletas as teorias racialistas do século XIX (MUNANGA, 1999). Em sua obra Casa Grande e Senzala, o autor inventou “o mito originário da sociedade brasileira configurada num triângulo cujos vértices são a raça negra, branca e índia” (MUNANGA, 1999, p. 79).

Cabe acionar, aqui, as reflexões de Anderson (2008) e Hall (2003) sobre a invenção do ideal de nação nos Estados ocidentais modernos. Na perspectiva desses pensadores, a nação não é apenas uma entidade política, mas um sistema de representação cultural que produz sentidos e que gera um sentimento de identidade entre os sujeitos que compartilham o sentimento de pertença. Como construção discursiva, a nação é imaginada, por meio da literatura, da mídia, da cultura popular, dos mitos, entre outros, de modo a adquirir continuidade, atemporalidade e características de tradição, inventada a partir da ideia de unificação cultural.  Esse processo é, por vezes, violento e forçado, bem diferente do discurso de ‘consenso‘ (da integração e unidade), que pode transparecer na ideia de identidade nacional.

Hall (2003) observa que um dos aspectos de constituição da identidade das nações modernas é o mito fundacional, uma estratégia que visa situar as origens de um povo através de narrativas sobre a cultura nacional, que agem como mitos fundadores que constroem sentidos para as identidades nacionais. Hall (2003) também destaca o discurso nacional como dispositivo discursivo que representa a diferença como unidade ou identidade. Segundo o autor uma forma de unificar a nação tem sido a de representá-las como expressão da cultura subjacente de um único povo, o que é um mito visto que todas as nações modernas são híbridos culturais.

A nação imaginada por Gilberto Freyre (1933) construiu-se por meio “mestiçagem biológica”, promovida pelo encontro colonial, a qual originou outra mestiçagem, de cunho cultural. O encontro relativamente pacífico entre “as três raças”, bem como a construção romantizada do processo de miscigenação, desenvolvidos por Freyre (1933; 1936) fizeram surgir e consolidar o chamado mito da democracia racial. Segundo esse mito, o Brasil é uma democracia porque a mestiçagem gerou um povo sem barreira e sem preconceitos. Nesse sentido:

O mito da democracia racial baseado na dupla mestiçagem biológica e cultural entre as três raças originárias tem uma penetração muito profunda na sociedade brasileira: exalta a ideia de convivência harmoniosa entre os indivíduos de todas as camadas sociais e grupos étnicos, permitindo às elites dominantes dissimular as desigualdades e impedindo os membros de comunidades não brancas de terem consciência de suas características culturais, que teriam contribuído para a construção e expressão de uma identidade própria. Essas características são “expropriadas”, “dominadas” e convertidas em símbolos nacionais pelas elites dirigentes (MUNANGA, 1999, p. 80).

Munanga (1999) explora de que forma as relações raciais e a mestiçagem constituíram uma trama da história em toda a América Latina. De fato, não faltaram equivalentes ao mito da democracia racial em outros países do continente, como exemplo, a “Teoria da Mestiçagem tri-étnica na Colômbia”[55]. O Brasil, como muitos desses países, e a exemplos do modelo de Estado-Nação construído no Ocidente e caracterizado pela unidade étnica e cultural, buscou construir a ideia de uma “identidade mestiça” (MUNANGA, 1999).

A partir das críticas formuladas por Munanga (1999), o que se observa é que Gilberto Freyre não privilegiou, em suas análises, as assimetrias existentes nas relações de poder entre os senhores e os escravizados. Sua formulação, em realidade, serviu para reforçar o ideal de branqueamento. Segundo Munanga (1999), a elite “pensante” do Brasil, na qual se inseria Gilberto Freyre, estava consciente da funcionalidade da miscigenação como um mecanismo de anulação da superioridade numérica do segmento negro na sociedade nacional. Esse processo, aliado à alienação dos descendentes mestiços, por meio da ideologia do branqueamento, deveria servir para evitar os prováveis conflitos raciais conhecidos em outros países, bem como para garantir o comando do país a seu seguimento branco, evitando o processo de haitinização[56] (MUNANGA, 1999). Assim, os defensores do branqueamento progressivo da população brasileira viam a mestiçagem como o primeiro grau nessa escala e conjuravam, a partir dela, um país livre da ameaça social representada pelos negros (MUNANGA, 1999).

Cabe obervar que o mito de democracia racial foi historicamente reiterado e (re)atualizado em diferentes momentos políticos, entre eles, no processo constituinte de 1987/88. Podemos destacar, como exemplo, os momentos de deliberação da Emenda Popular n. 04 sobre ensino religioso nas escolas públicas brasileiras.

Quero dizer também que a Bahia não é como disse o eminente colega e amigo, nobre Deputado Haroldo Lima, um Estado que adota a religião somente dos negros, dos umbandistas. Todos os negros da Bahia têm, realmente, esse sincretismo religioso, de que Jorge Amado, aliás, fala tão bem nos seus livros. Nós somos um misto, um pouco de católico, um pouco de cristão, um pouco também de umbandista. De sorte que essa é a Bahia, que é a fusão, essa mistura racial, essa situação plurissocial que a Bahia tem e que dá uma demonstração, portanto, diferente e não pode servir como parâmetro (Anais da Constituinte, 1988, p. 248).

Destaca-se ainda a proposta de emenda do constituinte José Lourenço, que garantiria aos portugueses os mesmos direitos dos brasileiros natos. Na defesa da referida emenda, ao mesmo tempo, em que o constituinte reconheceu o Brasil como uma nação multirracial, reafirmou a noção de uma nação, resultado do encontro harmonioso de diferentes povos, e, onde prevalecia uma única cultura – uma cultura luso-afro-brasileira:

Somos uma Nação multirracial, mas somos todos uma Nação em que povos que vieram das mais diversas origens, das mais diversas culturas, todos aqui, transformando-se num só cadinho, fizeram prevalecer esta cultura que é hoje a cultura luso-afro-brasileira, não existe uma cultura em separado; não existe uma cultura em paralelo; não existe uma vocação de grandeza que não seja a vocação do fundador desta grande Nação. Conseguimos manter ao longo da nossa história as fronteiras que nos foram legadas, conseguimos ampliar o espírito de fraternidade que prevaleceu no encontro entre Pedro Álvares Cabral e os índios, nas praias da Bahia (Anais da Constituinte, 1988, p. 1361).

 

 Daí a importância da participação do movimento negro no processo constituinte. Ao mesmo tempo em que Lélia Gonzalez apontou a importância da população negra para a constituição da sociedade brasileira, destacou a situação de subalternização a que essa população era submetida. Cabe ressaltar que, o tempo todo, a militante negra discorreu sobre sociedade e em nenhum momento sobre nação. Na perspectiva de Lélia Gonzalez, isso significava a compreensão de que o projeto de nação brasileira ainda era um projeto de uma minoria dominante, projeto do qual a população, o povo, o conjunto dos cidadãos não participavam e neste conjunto, 60% eram negros. Lélia Gonzalez apontou também a necessidade de se denunciarem, num espaço como o da ANC, as injustiças da sociedade brasileira, que ironicamente se autodenomina uma democracia racial e negava a existência de hierarquias com base racial e do racismo, por meio da afirmação de um mito, que além de servir como justificativa “para a inação do país frente às desigualdades contribuiu ainda para a desmobilização política inclusive das esquerdas” (SANTOS, 2005, p.83).

Lélia Gonzalez chamou a atenção, ainda, para o processo de alienação da sociedade brasileira, que contribuiu tanto para a política de branqueamento quanto para a reprodução da dimensão subjetiva do racismo[57], por meio do fortalecimento de uma ideologia que privilegiou a história, cultura e identidade ocidental (branca), na mídia, na ciência e nas práticas pedagógicas da escola. Essa visão alienada ensejou nosso desconhecimento da história e da cultura da América pré-colombiana e Africana e gerou a estratificação da sociedade brasileira em termos raciais. Nos termos de Lélia Gonzalez:

É interessante percebermos que no nosso país, cultura, por exemplo, segundo essa perspectiva da classe e da raça dominante e do sexo, é importante dizer, a cultura é tudo aquilo que diz respeito à produção cultural ocidental. Já a produção cultural indígena, ou africana ou afro-brasileira é vista segundo a perspectiva do folclore, seja como produção menor, ou produção artesanal, mais ou menos nesta produção entre arte e artesanato (ANAIS DA CONSTITUINTE, 1987-88; Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias; 28/04/1987).

Nesse mesmo sentido, Flauzina (2008) observa que a ideologia de uma identidade mestiça, resultado de uma suposta convivência pacífica entre as “três raças” , não decorreu da anulação do racismo, nem tampouco da anulação de qualquer um de seus mecanismos responsáveis por manter o segmento negro na base da pirâmide social brasileira. Tais mecanismos permitiram que as contribuições tecnológicas, políticas e culturais dos africanos e de seus descendentes fossem apagadas da historiografia nacional e transformadas no resultado de um “hibridismo cultural” pacífico e simétrico. Daí a luta do movimento negro na constituinte, que apontou que a obrigatoriedade do ensino da história das populações negras do Brasil inseria-se em um projeto amplo de resgate e valorização da história e cultura africana e afro-brasileira e de conhecimento dos processos de resistência das populações escravizadas no Brasil, como estratégia de deslocamento da “ótica hegemônica da homogeneidade cultural brasileira” (RODRIGUES, 2005, p.55).

Hasenbalg (2008) nos chama a atenção para outro efeito desse mito, também tencionado pelas denúncias do movimento negro na constituinte de 1987/88, qual seja: ao recorrer ao ideal de harmonia e integração e, portanto, a uma negação dos processos de hierarquização racial, o mito acabou por atribuir aos próprios negros a responsabilidade pelo lugar de subalternização ocupado. No plano discursivo, tal operação tem representado um aparente paradoxo: ou não se reconhece a população negra, quando se pretende negar a existência de desigualdade racial no país ou, quando a reconhece, é para atribuir aos(às) próprios(as) negros(as) a sua condição de subalternidade, negando, assim, o valor do racismo  na alocação de posições-chave na sociedade brasileira e banalizando o preconceito e a discriminação racial, recorrentes no cotidiano dessa sociedade.

 

Considerações Finais

 A luta política do movimento negro, nas décadas de 1970/80, ao problematizar as desigualdades entre os grupos étnico-raciais, com nítidas e profundas desvantagens para a população negra, ampliou a percepção teórica e política sobre as desigualdades sociais, que não deveriam ser reduzias apenas a fatores econômicos (ou de classe), mas sim, compreendidas como resultante de distintos processos de desumanização, entre eles, o racismo. Nesse sentido, sua luta política buscou (e ainda busca) deslocar o lugar de subalternização da população negra, afirmando sua história, cultura e cidadania.

Nesse processo, ao evidenciar as relações étnico-raciais brasileiras, marcadas, de um lado, pelo racismo, em suas dimensões social e institucional, e de outro, pelo mito de democracia racial, o movimento negro deslocou e ampliou a concepção de racismo, entendido como um processo político, econômico e social de desumanização, o qual impõe barreiras (ou impossibilita) o acesso de significativa parcela da população negra a bens e direitos como a educação, saúde, trabalho e poder político.

Além disso, por meio de diferentes estratégias como a criação de uma imprensa negra, organização de manifestações e congressos, participação em conselhos, entre outras, o movimento negro questionou as limitações de políticas públicas universalistas como estratégia de concretização do ideal de igualdade substancial entre os sujeitos e reivindicou no campo normativo a produção de uma ampla legislação antirracismo. O artigo buscou destacar, em especial a importância da participação do movimento negro na constituinte de 1987-88, momento em que militantes do movimento disputaram um novo projeto de sociedade.  Assim, por meio dessa atuação, o que se observa é que o movimento negro acabou por tensionar a própria compreensão sobre a nação brasileira, como uma nação cultural e racialmente mestiça, na qual cidadãos iguais vivenciariam uma experiência democrática, possibilitando-nos, a partir disso, construir uma real democracia.

Referências

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Descriminalização do aborto e mulheres negras: uma abordagem interseccional a partir da ADPF 442

Ana Paula Sciammarella[58]

Thauany Vigar[59]

Lia Manso[60]

Luís Alves de Lima Neto[61]

Resumo: A crescente visibilidade social e o protagonismo dos tribunais vêm despertando a ampliação dos estudos sobre o Judiciário. Tal panorama aponta para a crescente politização do sistema de justiça e sua influência nas relações sociais. Dentro de um cenário político-institucional marcado pelo conservadorismo, buscamos relatar como a mobilização do direito através de diferentes organizações e grupos, envolvidos na ADPF nº 442, viu na litigância estratégica no STF uma via alternativa para o reconhecimento – ou não – dos direitos reprodutivos das mulheres negras e, por conseguinte, a reparação de injustiças reprodutivas, sociais e históricas. A origem do conceito de direitos reprodutivos é predominantemente atribuída à luta pelo aborto e à contracepção, contudo, de uma perspectiva interseccional, o processo político em prol dos direitos reprodutivos não se resume à contracepção. Assim, ao apresentarmos o processo de elaboração da petição de amicus curiae de Criola, e suas repercussões nesse cenário institucional, buscamos evidenciar o papel das instituições em razão da perversa combinação entre desigualdade racial e social.  Diante do debate iniciado com a apresentação da ADPF 442, e a possibilidade de propositura do amicus curiae, chegamos à conclusão que a pauta das mulheres negras não era/é simplesmente o acesso à interrupção voluntária da gravidez de forma legal e segura, mas sim a possibilidade de ter filhos, o direito das mulheres negras à escolha e à maternidade.

Palavras-Chave: Aborto; Racismo Institucional; Gênero-raça; Mobilização do direito; Litigância estratégica.

  1. INTRODUÇÃO

O percurso das estratégias político-jurídicas do movimento feminista para traduzir a pauta da autonomia reprodutiva remonta aos debates da Constituinte, quando da elaboração da “Carta das Mulheres aos Constituintes”. O documento defendia o direito das mulheres decidirem sobre o seu próprio corpo – e tinha como referência o famoso slogan dos anos 70 “nosso corpo nos pertence”. Nos anos 90, deu-se início aos debates sobre esterilização forçada com a aprovação da Lei 9.263/96 (Lei do Planejamento Familiar). Enquanto isso, nas conferências internacionais de Cairo e Beijing, o direito de escolha ao aborto passa a ser tratado não apenas como uma perspectiva individual, mas como um problema de saúde pública.

As ações dos movimentos feministas estavam inicialmente concentradas nos campos legislativo e executivo. Incluíam a apresentação de projetos de lei e o assessoramento do executivo para a edição de normas, políticas públicas e serviços na área da saúde da mulher. A incidência junto ao judiciário estava focada nos casos individuais que, em geral, buscavam a autorização para interrupção da gravidez nos casos de anencefalia.

Mais recentemente, o Poder Judiciário tornou-se uma importante arena de disputa para os movimentos feministas, em ações de caráter coletivo, na medida em que outros canais político-institucionais passaram a ser herméticos às suas reivindicações. Estratégias de legal mobilization, ou seja, a mobilização do direito como recurso de interação social, política e como mecanismo para o avanço de direitos, contribuíram para que três importantes demandas colocassem em pauta no Supremo Tribunal Federal o tema dos direitos reprodutivos: a ADPF nº 54 (2004), que debateu e autorizou da “antecipação terapêutica do parto” em casos de gravidez de fetos anencefálicos; a ADI nº 5.097 (2014), que discute a constitucionalidade do artigo da lei de planejamento familiar que determina os requisitos para realização de esterilização voluntária que condiciona, na vigência da sociedade conjugal, o consentimento expresso do cônjuge; e a recente ADI nº 5.581 (2016), ajuizada para questionar a constitucionalidade da legislação que dispõe sobre políticas públicas de saúde e assistência para mulheres infectadas pelos vírus da zika (e que tenham tido sua gestação comprometida), entre elas a possibilidade de interrupção voluntária da gestação para mulheres infectadas pelo vírus. Estes exemplos mostram como os tribunais são um canal recente para as demandas dos movimentos sociais e de onde emerge a pauta dos direitos reprodutivos.

No dia 08 de março de 2017, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) propôs perante o Supremo Tribunal Federal (STF), uma demanda mais ampla e polêmica: a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 442, com o objetivo de obter a declaração de não recepção dos artigos 124 e 126 do Código Penal pela Constituição Federal de 1988. A ação argumenta que os referidos artigos são manifestamente inconstitucionais por criminalizarem a interrupção voluntária da gestação quando realizada em suas primeiras 12 semanas. O principal argumento da petição afirma que o Código Penal viola os marcos da dignidade, cidadania e equidade de gênero expressos na Constituição. Além disso, argumenta que a criminalização atenta contra a dignidade da pessoa humana, contra a cidadania das mulheres e a promoção da não discriminação.

Esse debate da descriminalização do aborto ganhou um ponto de inflexão quando conectado à luta pelos direitos reprodutivos das mulheres negras. Dados mostram que essas mulheres são as que mais morrem em decorrência da prática de abortos inseguros e que são elas as majoritariamente criminalizadas por esta prática. Isso parece indicar que o racismo institucional é fundante de uma série de mazelas nas áreas da saúde e da justiça, como veremos adiante.

Por isso, nos parece importante destacar que quando está em jogo o debate sobre a descriminalização do aborto, a perspectiva das mulheres negras não pode ficar de fora. Neste sentido, a organização Criola através da assessoria jurídica do Núcleo de Prática Jurídica da UNIRIO, solicitou seu ingresso nos debates do processo, requerendo sua habilitação como amicus curiae. Tal figura processual permite que uma organização representativa de algum grupo da sociedade civil intervenha e se manifeste em processos de grande importância para a sociedade, contribuindo com teses sobre o assunto. Essa intervenção permite adicionar não apenas questões jurídicas, mas colocar a relevância social, política e científica sobre matéria controversa que será avaliada e julgada pelo Supremo.

Para tanto, este artigo pretende apresentar e analisar o processo de incidência de diferentes organizações nos debates na ADPF nº 442. Busca-se, assim, analisar como campo jurídico vem se ampliando como arena política para reivindicações dos direitos das mulheres e como se dá a abertura dos espaços de incidência dos movimentos sociais (FANTI, 2016). Além disso, o artigo pretende explorar o sentido e o significado da inserção da perspectiva racial neste caso. Para isso, abordaremos registros históricos sobre os direitos reprodutivos das mulheres negras no Brasil (WERNECK, 2016) e fora dele (DAVIS, 2016). Em seguida, analisaremos sob a perspectiva interseccional as violações aos direitos reprodutivos as quais as mulheres negras vêm sendo submetidas.

  1.  UMA ADPF SOBRE ABORTO NO SUPREMO: O CENÁRIO

Uma consulta ao site do Supremo Tribunal Federal (STF), em dezoito de abril deste ano, nos permitiu identificar que, após a distribuição da ação, foram apresentadas quarenta petições de amici curiae para intervenção na ADPF 442. São pedidos de organizações da sociedade civil, instituições públicas e partidos políticos que, litigando estrategicamente, ou seja, em nome de uma coletividade, apresentam argumentos visando contribuir para o julgamento da ADPF, seja pela procedência ou pela improcedência.

Dos quarenta pedidos de habilitação na modalidade de amigo da corte, vinte e nove deles, ou seja, aproximadamente 70%, reforçam o pedido da petição inicial para descriminalização do aborto. Dez dos pedidos fazem um processo de contramobilização e defendem que o poder judiciário não é a arena competente para este tipo de decisão.  O estado de Sergipe, que é contrário ao pleito, ainda não apresentou memorial e em sua habilitação não questionou a competência da Suprema Corte.

Da mesma forma que o instituto do amicus curiae permite a representação judicial do interesse dos movimentos sociais, ele também permite a manifestação de setores conservadores, subjetividades coletivas que moldam comportamentos e interesses objetivos que impedem o avanço de ideais mais progressistas.

De forma geral os amici que endossam o pedido são principalmente representados por entidades da sociedade civil e científicas, ao passo que os contra são majoritariamente entidades religiosas e políticas. Entre aqueles que são contrários ao pedido da ADPF, observamos associações de juristas evangélicos, católicos, bispos e partidos políticos que em sua maioria são organizações ligadas à Igreja, como o Partido Social Cristão – PSC, a União dos Juristas Católicos de São Paulo – UJUCASP, a Associação Nacional de Juristas Evangélicos – ANAJURE, a Frente Parlamentar em Defesa da Família e Apoio à Vida, a Conferência Nacional dos Bispos do  Brasil e a União de Juristas Católicos do Rio de Janeiro – UJUCARJ. Percebe-se uma incidência de organizações com uma pauta ligada à religião com o intuito de impedir o avanço no judiciário de pautas mais progressistas. Os valores e o ethos religioso sobre a pessoa humana e sobre o mundo têm tornado cada vez mais tênue a linha que separa as esferas do público e do privado.

O principal argumento das petições refere-se a defesa do artigo 5º da Carta Magna que garante o direito à vida. Para os grupos pró-escolha, que defendem a legalização do aborto, este argumento está ligado ao direito à vida da mulher. Enquanto que para os contrários à descriminalização, o pedido da ADPF é um atentado ao direito à vida do embrião, caracterizado por alguns como bebê[62].

O teor de argumentos religiosos está claramente presente, em diversos amici. Na petição da Associação Nacional de Juristas Evangélicos se lê que “toda e qualquer religião tem como baluarte a vida e a interromper gera ofensa direta à liberdade religiosa, baluarte de nosso sistema de laicidade”, citando diferentes vertentes religiosas que seguem esta orientação. A frente parlamentar em defesa e apoio a vida e a família[63] afirmou em sua petição que:

A história da humanidade sempre foi marcada pelo egoísmo, avareza, presunção, arrogância, blasfêmia, desobediência aos pais, ingratidão, impiedade, ausência de amor à família, irreconciliação, calúnia, falta de domínio próprio, crueldade, inimizade do bem (não se trata apenas de maldade), traição, precipitação, soberba, mais amor aos prazeres e total insubmissão a Deus, sempre com aparência de piedade, mas negando o seu poder. Portanto, a guerra, a biopolítica, sempre foram a regra.

Além da controvérsia sobre o direito à vida, outro fato que chama atenção é o caso da da Associação Nacional da Cidadania pela Vida – ADIRA, representante do Movimento Nacional da Cidadania pela Vida – Brasil Sem Aborto, que se denomina uma instituição de cunho ético, suprapartidária e supra religiosa.  Essa associação traz como um dos argumentos principais os “aspectos psíquicos ligados ao aborto”.  Interessante que sob estes aspectos também se pronunciam três conselhos de psicologia (dois regionais e um federal)[64] que solicitaram participação como amicus curiae, manifestando-se favoráveis à descriminalização.  O Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, por exemplo, ressalta os reflexos de se negar a interrupção da gravidez para mulheres que assim desejam:

Negar às mulheres o direito de interromper uma gestação representa sofrimento psíquico intenso e pode colocar em risco sua saúde mental, considerando-se também a séria possibilidade de gerar condições de vulnerabilidade social e psíquica pelo resto de suas vidas. Tal contexto traz semelhanças com os impactos das situações de tortura na subjetividade, pois coloca a grávida em permanente risco de desestruturação física e psíquica e, forçosamente, a coloca em posição de impossibilidade de tomar decisões sobre seu corpo e sua vida com autonomia. (grifo nosso) (Página 05, petição  37772/2017, CRP-SP).

Ainda não existem muitos estudos sobre ação dos grupos religiosos no judiciário. No legislativo, Emmerick (2013) identificou e categorizou a atuação destes grupos no parlamento:

(i) Buscam a naturalização e ressocialização dos direitos humanos, principalmente do direito humano à vida; (ii) Disputam o significado e o conteúdo dos referidos direitos, objetivando a preservação da moralidade religiosa como base para pensar e discutir as temáticas da sexualidade, da reprodução, da família etc.; (iii) Se opõem de forma radical ao avanço e a garantia dos direitos das minorias sexuais, em especial dos direitos sexuais e reprodutivos- já reconhecidos internacionalmente pela maioria dos países -, uma vez que, supostamente, tais direitos contrariariam as moralidades religiosas dos grupos cristãos e espíritas. (EMMERICK, 2013, p. 89)

            Até o momento apenas três amici curiae foram deferidos[65] e todos eles são contrários ao mérito pleiteado pelo PSOL. No entanto, observa-se que o critério usado pela relatora para deferi-los foi cronológico. As habilitações deferidas, deste modo, fora as primeiras a serem apresentadas. Tendo em vista que o aborto é um tema jurídico sensível e delicado, e o grande número de pedidos de participação, a ministra Rosa Weber convocou uma audiência pública e na decisão de convocação[66] informou que os demais pedidos serão analisados após a realização da mesma.

Outras manifestações contrárias ao pleito já apresentadas são as do poder executivo e o legislativo. Haja vista, os argumentos proferidos pela Presidência da República, pelo Senado Federal e pela Câmara dos Deputados em resposta à requisição de informações[67] para audiência pública realizada pela Ministra relatora Rosa Weber, sob os termos do art. 5º, § 2º, da Lei 9.882/1999. Que intimou, ainda, a Advocacia-Geral da União e Procuradoria-Geral da República, como técnica de instaurar o debate constitucional e o alcance do problema jurídico.

A saber, em resposta, à Presidência da República se manifestou contrária ao mérito da ADPF, afirmando que esse tema deve ser debatido e decidido no legislativo, uma vez que não existe um “consenso mínimo acerca das concepções morais, filosóficas e mesmo religiosas sobre a matéria” e a arena competente para deliberar sobre o tema seria o legislativo. A Advocacia-Geral da União, em sua manifestação, defendeu a tese da validade constitucional das normas questionadas, sob o argumento que o aborto não foi diretamente disciplinado pela Carta Magna, não sendo possível inferir do seu texto a existência de suposto direito constitucional.  Quanto ao mérito, a Câmara dos Deputados afirma que a prática do aborto implica o atentado contra a vida humana, direito fundamental inviolável, conforme o art. 5º, caput, da CRFB. O Senado Federal, por sua vez, cita os direitos do nascituro como viáveis, segundo a aprovação pelo Legislativo do art. 2º do Código Civil de 2002 e afirma que a casa está promovendo discussões pertinentes sobre o tema.

No entanto, o Legislativo reiteradamente se esquiva de decidir a matéria postergando a indefinição. Exemplo disso é que nem mesmo o conceito do início da vida é bem definido no Congresso, havendo diversos projetos em tramitação versando sobre a proteção da vida desde a concepção, tais como a Proposta de Emenda à Constituição – PEC n. 164/2012 (que estabelece a inviolabilidade do direito à vida desde a concepção); o Projeto de Lei da Câmara – PL n. 8.116/2004, (que dispõe sobre a proteção ao nascituro); o PL n. 478/2007 (que dispõe sobre o Estatuto do Nascituro e dá outras providências), entre outras. Tramitam, também, ainda que em número menor, projetos que descriminalizam o aborto, como, por exemplo, o PL n. 4.403/2004[68] (que acrescenta inciso ao art. 128 do Decreto-Lei n. 2.848, de 07 de dezembro de 1940 – Código Penal); e o Projeto de Lei n. 882/2015[69] (que estabelece as políticas públicas no âmbito da vida sexual e dos direitos reprodutivos e dá outras providências).

Identificamos também que o único estado da federação a se manifestar na ação foi Sergipe, através da Procuradoria Geral do Estado. Seu posicionamento não foi baseado em qualquer tipo de contrapartida da população, de modo que, apesar de até o dia 17 de abril de 2018 não haver protocolado memoriais, visa a manutenção do status quo. Já a AGU, que deveria teoricamente se manifestar em qualquer caso de controle concentrado[70], atua na posição de amicus curiae, situação anormal.

            Observamos que nem todos os argumentos contrários são exclusivamente de cunho religioso, mas continuam ignorando o contexto social e econômico para debater o tema. A inserção dos recortes de classe, raça e gênero indispensáveis para a análise dos efeitos da criminalização são trazidos de maneira reiterada pelos peticionários favoráveis ao pedido de descriminalização. Por esta razão é de extrema relevância a participação de instituições e indivíduos que sejam aptos a promover o debate desses recortes, mostrando as perspectivas de diversas parcelas da sociedade que sofrem desigualmente seus efeitos práticos.

CRIOLA, associação da sociedade civil anti-racista, que destacamos neste artigo, por exemplo, em seu memorial traz contribuições para o julgamento apontando aspectos materiais dos preceitos fundamentais violados em relação aos direitos fundamentais das mulheres negras, com explicaremos a seguir.

  1. Pesquisar advogando, advogar pesquisando: da pesquisa para a ação, da ação para a pesquisa

A elaboração deste artigo tem como base a relação estabelecida entre o Núcleo de Prática Jurídica da UNIRIO e a organização Criola. Ao atender a organização da sociedade civil[71], fundada em 1992, e, desde então, conduzida por mulheres negras, entramos em contato com a realidade da defesa e promoção dos direitos sexuais e reprodutivos dessas mulheres.  Em nossa primeira conversa foram apresentados os termos da ação em trâmite no Supremo Tribunal Federal, e as possibilidades de intervenção e apresentação de Criola como um amigo da corte. Para poder ingressar com este tipo de medida é preciso, antes de tudo, demonstrar a chamada “pertinência temática” da instituição interessada. Ou seja, porque, quais os motivos, qual a relação entre o tema que está sendo debatido e o trabalho realizado pela instituição parceira. Enfim, como que, de fato, ela pode contribuir para o debate.

Essa afinidade temática foi debatida pelos alunos, guiados pelas informações fornecidas por uma das advogadas da organização. Dentre as questões que delineavam o interesse e a relação de Criola com tema, estavam a alta taxa de mortalidade materna e de criminalização por aborto das mulheres negras. A organização é uma associação feminista de e para mulheres negras, que se faz presente em diversas áreas de atuação social, como na saúde, educação, e na geração de novas tecnologias. A proposta de elaboração da petição deveria permitir que a perspectiva racial fosse levada ao Supremo Tribunal Federal.  Para isso, era necessário que os alunos da Prática Jurídica, que seriam responsáveis pela elaboração da peça compreendessem mais sobre o histórico de lutas pelos direitos reprodutivos das mulheres negras.

A partir daí, começou-se a debater a estratégia que iria ser adotada na petição, como por exemplo, a data em que petição seria apresentada, se isso seria feito separadamente ou em conjunto com outras organizações e quais aspectos deveríamos abordar na peça. Houve uma longa discussão sobre os temas que tangenciam e atravessam o tema principal, como fontes de pesquisa, autoras, além de debates científicos e da análise do cotidiano social, sempre fazendo a intersecção gênero-raça-classe. Nas conversas com Criola e com base nas leituras dos textos indicados por suas integrantes, uma série de fatores históricos estudados demonstraram o quanto estas questões estavam diretamente relacionadas com o atual estágio de racismo institucional em que vivemos no Brasil. Recordamos e aprendemos através das leituras sobre a banalização do estupro de mulheres negras escravas; sobre as políticas eugenistas de embranquecimento da população brasileira, sobre a política americana nos EUA contra a liberdade individual das mães negras, enfim. Tudo isso nos deu escopo para a elaboração de nossa tese, já que estava evidente que todas essas práticas e situações interferiam diretamente sobre os direitos reprodutivos das mulheres negras não somente quando se diz respeito ao seu corpo e autonomia, mas também no que diz respeito ao seu direito ao exercício da maternidade. Neste sentido, entendemos que a petição deveria abarcar dimensões mais amplas, não apenas no direito negativo do aborto, mas também a assistência e o amparo positivo estatal, nas situações de abortamento e de opção pela maternidade.

É sobre este processo de assessoria, construção de argumentos e pesquisa que versa este artigo. Buscando uma alternativa metodológica, diferente das convencionais realizadas nos estudos sobre Direito, optamos por, desde uma perspectiva sociológica, olhar o direito de fora da caixinha do juridicamente definido, recorrendo às ciências sociais e seus pressupostos teóricos e epistemológicos (OLIVEIRA, 2004) a fim de aproximar direito e contexto, investigação e ação, pesquisador e pesquisado.

A metodologia utilizada para a elaboração da petição e para a elaboração deste artigo busca afastar-se das convencionais técnicas que predispõem uma forma de conhecimento codificado de acordo com as regras do mundo universitário sem retorno em direção ao povo. Assim, lançamos mão da Pesquisa-Ação (PA), acreditando na importância desta enquanto centrada na questão do agir. Como afirma Thiollent (1982)

O fato dos pesquisadores participarem nas situações observadas não é uma condição suficiente para se falar em PA. Pois, além da participação dos investigadores, a PA supõe uma participação dos interessados na própria pesquisa organizada em torno de uma determinada ação. Que tipo de ação? Em geral, trata-se de uma ação planejada, de uma intervenção com mudanças dentro da situação investigada. (BRANDÃO, 1999)

Em nosso caso de estudo, sob uma concepção crítica da PA, o que se busca é aliar conhecimento prático de mundo, entendendo as demandas do grupo atendido/pesquisado, ao conhecimento formal produzido nas universidades e nos tribunais, cujo objetivo maior é a promoção de uma conscientização sociopolítica, cidadã, capaz de promover mudanças efetivas. Reconhecendo, assim, a importância da educação jurídica popular e o trabalho realizado pelos diversos núcleos de extensão e assessoria jurídica universitária, como locais de promoção da democratização do acesso à justiça, cujo retorno vai em direção ao povo. O que nos dá a sensação de “estar fora dos muros”, saindo do plano teórico para o plano prático. Forjando o tripé basilar, ensino, pesquisa e extensão, para a ampliação da educação jurídica.

Como método, a PA faz parte de um projeto de ação social – que seja a expressão da comunidade, do sentimento de solidariedade, da autodefesa, de empatia -, ou seja, da resolução de problemas coletivos, em que se supõem o apoio, em termos relativos, do movimento, da organização social, cultural, educacional, sindical ou política na qual está centrada (THIOLLENT, 1982).

Partimos, portanto, do pressuposto que a categoria gênero, apesar de necessária, não é suficiente para dar conta da polivalência do sujeito mulher. O ser “mulher” demanda exercício de análise interseccional das categorias identitárias, dentre as quais compreendemos como necessária e fundante a raça/cor. Isto é, o sujeito “mulher”, é inescapavelmente construído também pelas experiências raciais. Como resta demonstrado pelas distintas experiências de direitos reprodutivos, vivenciadas pelas mulheres negras e brancas. Neste sentido, Jurema Werneck (2004) expõe que, ao contrário dos discursos recorrentes no ocidente, o racismo, mais que o sexismo, tem sido o fator determinante na definição dos limites ou das possibilidades de vivência livre dos chamados direitos reprodutivos pela maioria das mulheres do mundo.

Diante do debate iniciado com a apresentação da ADPF 442, e a possibilidade de propositura do amicus curiae, chegamos a conclusão que a pauta dessas mulheres não era simplesmente o acesso à interrupção voluntária da gravidez de forma legal e segura, mas também a possibilidade de ter filhos, e  tê-los em condições adequadas. Ou seja, esse contato nos fez perceber que, mais do que angariar o direito de escolha, é preciso se discutir a implementação de políticas públicas que atinjam de forma concreta a realidade dessas mulheres. Com isso, o processo de assessoria e pesquisa se convertem em: (i) um instrumento de conhecimento da realidade dessas mulheres representadas por Criola; (ii)  uma base para a articulação de uma petição; (iii) um instrumento de denúncia pública ao trazer à tona questões de direito à saúde e planejamento familiar; (iv) e, num material para grupos que, como nós, pretendam diminuir as barreiras que separam academia e sociedade.

Daí, uma nova perspectiva de atuação dos pesquisadores e de aplicação do direito foi necessária para entender o jogo entre investigação e ação – e as condições de execução desta – dentro de uma dada situação. Mas, como se dá a participação dos pesquisadores em uma ação planejada, numa intervenção com mudanças sociais concretas? (THIOLLENT apud BRANDÃO, 1999). Com esse compromisso de envolvimento com a pauta abriu-se um caminho para a participação das militantes na produção do seu próprio conhecimento através da pesquisa,

Tratava-se de descobrir como pensar, programar e realizar pesquisas compatíveis com a prática político-cultural popular, o que é diferente de convocar sujeitos do povo a virem participar e pesquisas sobre ele próprio e seu mundo… (Idem)

Num segundo momento, nossa reflexão recaiu sobre como a nossa prática estava incidindo sobre o que aconteceria com Criola, dependendo da resposta proferida pelo STF. Não se tratava, portanto, de pesquisar condições de vida, ou a situação das mulheres negras no Brasil que precisam do aborto legal e seguro ou que precisam de acesso a direitos como saúde e educação para ter e criarem seus filhos de forma digna. Há um trabalho nosso, há situações de vidas diferentes, mulheres, famílias; há diferentes demandas e respostas populares. E é exatamente esse conjunto de fatos da dinâmica da vida política que interferem no foco da pesquisa (Idem).

  1. Mobilização em direitos reprodutivos: novas estratégias, antigos pleitos…

Nos últimos anos o que se verificou foi que “o poder judiciário se tornou uma arena de disputa política bastante importante para o movimento feminista na questão do aborto, uma vez que o Poder legislativo e o Poder Executivo mostravam-se bloqueados por conservadores” (FANTI, 2016).

A constatação foi que tal cenário, no aniversário de 30 anos da constituição cidadã, permanece o mesmo. Logo, faz-se necessário refletir sobre os impactos da mobilização do direito nos casos de ações sociais, entendendo por mobilização do direito “qualquer tipo de processo por meio do qual indivíduos ou atores coletivos invocam normas, discursos ou símbolos jurídicos para influenciar políticas públicas ou comportamentos” (VANHALA apud FANTI, 2016, p.5). Dentro de um estado político-institucional marcado pela deturpação das pautas pró direito de escolha, levantar a bandeira da igualdade de gênero e da liberdade sexual das mulheres utilizando os próprios mecanismos técnicos desse Estado e o apoio dos movimentos sociais, mídia e sociedade civil organizada se faz necessário.

        Na mobilização do direito buscamos a promoção de novos direitos, bem como a ampliação daqueles já existentes, uma vez que “a mobilização de leis e tribunais permite aos ativistas dramatizar publicamente problemas sociais, bem como angariar posição e influência política” (MACIEL, 2015). No entanto, vale lembrar que a litigação, como tática de mobilização do direito, tem um alto risco de insucesso prático e político, o que leva os ativistas a utilizá-la de forma estratégica, associando a pauta em questão com apoio político partidário, campanhas midiáticas, entre outros.

É importante ressaltar a grande participação de advogados nesse fenômeno, intitulado como advocacia de causa (Idem, 2011). Esta se opõe completamente a advocacia tradicional baseada em casos de clientes específicos. Trata-se do exercício advocatício engajado em pautas sociais, que começou a tomar forma ainda nos anos 1960 nos Estados Unidos a partir do nascimento de instituições especializadas na defesa de direitos civis.

Também vale destacar a difusão internacional dos repertórios de defesa dos direitos humanos perante as Cortes supranacionais, como consequência do fenômeno da globalização, que facilitou a disseminação dos mais diversos movimentos sociais e suas pautas judiciais.

Em suma, a mobilização do direito vem se fortalecendo no contexto global por meio da utilização do direito internacional comparado e dos tribunais internacionais, como forma de fortalecimento às reivindicações e pautas em questão, sob a roupagem de diversas táticas como: 1) Litigação (denúncias e ações judiciais propostas diretamente por instituições – sejam nacionais ou internacionais); 2) Amigos da Corte (também conhecido como amicus curiae); 3) Produção e disseminação de conhecimento por meio de debates jurídicos; 4) Capacitação legal direcionada a comunidades e agentes do Estado; 5) Campanhas públicas para a promoção de mudanças ou implementação de normas legais; e, 6) Assessoria jurídica (Idem, 2011).

No entanto, não podemos deixar de levar em consideração a limitada capacidade sistêmica de se enfrentar diretamente a maioria das violações de direitos perante as cortes supranacionais, como por exemplo, a Corte Interamericana, responsável por deliberar em casos de violações de direitos humanos no continente.

No nosso caso em questão, não avaliaremos o papel de uma Corte supranacional, mas nos restringiremos à atuação e importância do Superior Tribunal Federal do Brasil, como um espaço de debate constitucional, onde há judicialização da política pela via da litigância estratégica. Entendendo esta última como via destinada à promoção de uma determinada agenda de direitos humanos em parceria com “a mobilização de movimentos sociais, sociedade civil e mídia quando desenvolvam campanhas que objetivem promover justiça social. ” (CAVALLARO e BREWER, 2008).

Ao enquadrar os direitos reprodutivos no conjunto mais amplo dos direitos humanos estamos vinculando-os aos direitos civis e políticos – pois cuidam da liberdade individual, liberdade de expressão, direito de ir e vir – e aos direitos econômicos, sociais e culturais – já que dizem respeito a um ambiente favorável ao exercício da autonomia sexual e reprodutiva. Seu reconhecimento representou uma conquista do final do século XX, no sentido de se garantir, em todos os aspectos, o valor da dignidade inerente ao indivíduo, proibindo qualquer discriminação que tenha por base a raça, a etnia, a nacionalidade, a religião, o gênero, a geração, a orientação sexual etc.

O estudo de caso se trata de um desacordo moral razoável sobre a questão da descriminalização do aborto diante da ausência de um consenso mínimo sobre a matéria. O que, na teoria, resignaria ao Poder Legislativo a tarefa de promover a discussão e o processo da tomada de decisão política, vinculante para todos os integrantes da sociedade.

Isso porque, o Parlamento é – ou deveria ser – o espaço democrático, dentro da estrutura procedimental do Estado de Direito, responsável por tutelar o pluralismo político, premissa para a legitimidade das decisões políticas majoritárias. Todavia, o que observamos, como destacou Fanti (2016), foi uma onda de contramobilizações nesses espaços institucionais.

Por esses e outros motivos, se faz necessário refletir a importância da litigância estratégica.

Muitos, senão, a maioria dos advogados de direitos humanos, já reconheceram que a litigância possui maior potencial de impacto quando ocorre em conjunto com a mobilização promovida pelos movimentos sociais, com cobertura pela mídia e com outras formas de pressão doméstica e internacional. (CALLAVARO e BREWER, 2008)

Isto é, pensar o papel da litigância estratégica nos casos de violações a princípios fundamentais garantidos pela Carta Magna é pensar em estratégias de atuação em pautas que têm influenciado e definido a vida de muitas pessoas (leia-se, mulheres) numa dimensão colossal. Assim,

Afirmamos que qualquer estratégia de litigância que não vise a produzir ou, ao menos, que não encoraje a produção de efeitos para além da esfera individual dos litigantes está fadada, no melhor cenário possível, à ineficácia e, no pior, ao erro. (Idem)

Aqui, estamos falando da saúde física e psíquica de uma parcela das mulheres que têm seus destinos traçados pela letra fria da lei – que tem falhado com sua função social – descontextualizada e presa a dogmas religiosos que vão da esfera privada para pública num piscar de olhos, ou melhor, numa decisão vinculante, responsável por engendrar todo um ethos jurisprudencial.

A argumentação que sustenta a ADPF 442 é de que as razões jurídicas que inspiraram a criminalização do aborto não mais existem no contexto atual, uma vez que o Brasil é um Estado laico e não deve reger leis com base em concepções religiosas. Ademais, tal tipificação fere o princípio da dignidade humana e acentua as desigualdades brasileiras, uma vez que a parcela da população que mais sofre com a criminalização são mulheres pobres, negras e indígenas, todas de baixa escolaridade e em geral, residentes de regiões interioranas.

 Assim, toda essa mobilização do direito reverberou na maneira como a Academia e o próprio Direito lidam com essas questões tanto do ponto de vista teórico, quanto do prático.  Ou seja, como a Academia, como lugar de pesquisa empírica e crítica, tem se posicionado do lado de movimentos sociais e organizações civis frente à um Poder Judiciário conservador vinculado às elites.

Avaliar até que ponto esse Poder está disposto a dialogar com todo o contexto social e político que envolve e define as demandas por reconhecimento e promoção de direitos humanos será nossa tarefa. Haja vista, a análise das ações constitucionais em discussão, seus propositores e suas consequências.

         Refletir sobre os impactos dessa estratégia de amicus curiae, sua tática, as decisões que a sucederam e os seus atos efetivos nos revelará como instituições públicas se posicionam sobre o tema e como o ativismo judicial atua nesse contexto de movimentos sociais dotados de autonomia.

  1. Direto ao aborto como justiça reprodutiva para mulheres negras

Para embasar a petição[72] de CRIOLA, buscamos argumentos que fugissem um pouco da temática tradicional que trata o aborto apenas como um direito da mulher por se tratar de um direito à sua autonomia e liberdade. Toda a literatura e os depoimentos que encontramos em outras pesquisas realizadas, nos remetem ao que disse Davis:

Quando números tão grandes de mulheres negras e latinas recorrem a abortos, as histórias que relatam não são tanto sobre o desejo de ficar livres da gravidez, mas sobre as condições sociais miseráveis que as levam a desistir de trazer novas vidas ao mundo. (DAVIS, 2016)

Aqui destacamos a relevância da pesquisa[73] realizada pela Coordenadoria de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, responsável pelo levantamento de dados a partir da consulta aos processos de aborto em trâmite no estado do Rio de Janeiro. O objetivo foi traçar o perfil das mulheres que são criminalizadas por essa conduta no Estado, do que ficou evidente, com base nas estatísticas, a urgência da campanha pela legalização do aborto como pauta do movimento feminista no que diz respeito às mulheres negras. Uma vez que, o andamento disponível na página do TJRJ não se mostrou suficiente para esclarecer informações pessoais, como a cor, escolaridade, ocupação e estado civil, fazendo-se necessário o acesso aos processos, especialmente às peças do inquérito policial, como as declarações prestadas na delegacia e a folha de antecedentes.

Mas, como afirmou Angela Davis, a verdade está escondida nas bases ideológicas do próprio movimento pelo controle de natalidade. Fica fácil perceber o porquê da maioria das mulheres que foram processadas ou respondem a processo criminal serem pretas ou pardas, ter entre 22 e 25 anos, já ser mãe, viver na capital ou na Baixada Fluminense e não ter antecedentes criminais. Visto que, essas mulheres estão “muito mais familiarizadas do que suas irmãs brancas com os bisturis mortalmente desastrados de pessoas inaptas que [buscam] lucro na ilegalidade” (DAVIS, 2016). O que nos leva a outra consequência desse racismo institucional, a aparente tolerância do aborto da mulher branca.

A origem do conceito de direitos reprodutivos é predominantemente atribuída à luta pelo aborto e à contracepção, contudo, de uma perspectiva interseccional, o processo político em prol dos direitos reprodutivos não se resume à contracepção. As reivindicações das feministas negras sublinhavam/sublinham questões relacionadas também à concepção. Reivindicações, portanto, mais amplas e mais bem esclarecidas como, por exemplo, pelo conceito de “justiça reprodutiva”, de Loretta Ross – que engloba: o direito de ter seu filho; o direito de não ter seu filho; o direito de criar o filho quando o tiver, controlando suas as opções de parto -, vem sendo elaboradas.

Desta forma, falar em justiça reprodutiva não se resume a opção pelo aborto, mas sim em ter um domínio sobre o próprio corpo, que assegure opção pelo aborto – se assim desejar. Sob estes parâmetros, a opção pela concepção e pela maternidade, deverá assegurar à mulher a eleição sobre como e onde o parto será realizado e a garantia de uma vida digna à criança nascida.

  1. Conclusões

Historicamente, a mulher negra vivenciou as mais variadas espécies de violação em seu corpo, o que só se difundiu com o tempo sob diferentes roupagens e técnicas. Com isso, o corpo, nossa primeira forma de identificação e, portanto, o lugar onde se inscrevem os elementos culturais presentes nas experiências humanas, passou a ser o locus do exercício do poder (SAYÃO, 2003). Assim, entender as construções de gênero-raça que esses ambientes jurídicos têm empreendido em seu cotidiano e as formas como incorporam as políticas e resistências é fundamental para entender o seu papel na construção de entendimentos e decisões que fomentarão a promoção de direitos sociais e políticas públicas.

Através da mobilização do direito, é notória a mudança de estratégia dos movimentos sociais buscando a efetivação, na esfera judicial, dos direitos renegados politicamente as minorias, migrando do legislativo para a judiciário. Esse processo que é impulsionado, como fora supramencionado neste artigo, pelo avanço do conservadorismo.  Com base nos ensinamentos de Rulian Emmrick, é possível notar que os religiosos estão, num processo de contramobilização, atentando contra a luta feminista também nesta outra arena. Uma vez que é possível notar que partidos políticos e grupo sociais que impedem os avanços progressistas no legislativo, são os mesmo que estão litigando contra a ADPF 442 no Judiciário. Nota-se, portanto, que o setor conservador que tem êxito no legislativo, percebendo que há possibilidade de efetivar direitos que são por ele reprimidos, está migrando também para a arena judicial a fim de angariar decisões condizentes com sua postura em determinados temas.

Assim, sob o recorte gênero-raça traçamos algumas reflexões essenciais que nos ajudam a entender a nova onda ofensiva de contramobilizações do direito ao aborto. Falar das mulheres negras e a sua relação com o aborto é falar da escravidão, das esterilizações involuntárias, do racismo institucional na saúde, da seletividade penal, enfim, de todas as consequências que permeiam a criminalização do aborto. A falta de publicações e comunicações sobre o tema é um indicativo alarmante da pouca atenção que é dada ao assunto. Como afirmou Jurema Werneck (2016), tais ausências indicam a não consolidação da saúde da população negra e da saúde da mulher negra, que não penetraram nas instituições de pesquisa, nem nos debates sobre o racismo institucional.

  1. Referências Bibliográficas

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Povos ciganos e democracia no Brasil: a luta por direitos de um povo em movimento[74]

Gypsy people and democracy in Brasil: the struggle for rights of the people on the move

 

Phillipe Cupertino Salloum e Silva[75]

 

Resumo: Propomos, neste artigo, resgatar e relatar a luta por direitos protagonizadas pelas lideranças ciganas brasileiras, especialmente, a referência calin, do rancho de Condado, município do sertão paraibano. A partir de relatos e da trajetória de vida, especialmente, dessas referências, tentamos refletir qual o papel desempenhado pela promulgação da Constituição Federal de 1988 no processo de identificação e reconhecimento da questão cigana no âmbito das políticas públicas e do estímulo à auto-organização dos povos ciganos. Além disso, busca-se discutir a existência de outros elementos que também podem influenciado na aproximação das lutas ciganas com os espaços institucionais. Do ponto de vista metodológico, intercalamos a obsevação participante do pesquisador, que se utilizou de recursos da etnografia, à analise de documentos e uma revisão de bibliografia voltada para a compreensão da realidade brasileira conjuntamente com a questão cigana, com o objetivo de compartilhar e refletir as estratégias assumidas pela liderança calin de Condado, e também de outros ciganos, na batalha por direitos para o seu povo.

Palavras-Chave: Política para igualdade racial; Constitucionalismo brasileiro; Relações raciais; Povos ciganos.

Abstract: We propose, in this article, to rescue the struggle for rights carried out by the Brazilian gypsy leaderships, especially the calin reference, of the Condado side, city of the Sertão da Paraíba. From the reports and the life trajectory, especially from these references, we try to reflect on the role played by the promulgation of the 1988 Federal Constitution in the process of identifying and recognizing the gypsy issue in the context of public policies and encouraging the self-organization of gypsy people. In addition, it seeks to discuss the existence of other elements that may also influence the approach of gypsy struggles with institutional spaces. From the methodological point of view, we inserted the participant’s observation, using the resources of ethnography, the analysis of documents and a bibliography review aimed at understanding the Brazilian reality together with the gypsy question, with the purpose of sharing and reflecting the strategies taken by the calin Condado’s leadership, and also of other gypsies, in the battle for rights for the your people.

Keywords: Race equality policy; Brazilian constitucionalism; Race relations; Gypsy people.

1. Introdução

            A ausência de alteridade, de ações concretas e de valorização da vida do outro carecterizam a condição dos povos ciganos na sociedade brasileira. A luta pela sobrevivência e pela dignidade, por sua vez, é um exercício diário dos povos calons e calins, kaldareshs, sintis, roms e outros, chamados por nós de ciganos e de ciganas[76]. Muitos ainda recorrem à ancestralidade, à constante movimentação pelos territórios, à força divina e, também, à auto-organização para poder resistir ao preconceito, à persiguição, à miséria e ainda buscar a sua felicidade. A continuação das classificações raciais, no século XXI, que reduz uma variedade de pessoas e de cosmologias a uma única identidade, convive, ao mesmo tempo, com a tentativa de negação da condição de povos e comunidades tradicionais de certos grupos culturalmente diferenciados. Diante desse cenário, lutar pelo reconhecimento da questão cigana e romper com a sua invisibilidade na sociedade, em geral, representam um dos primeiros passos em direção à construção de um projeto de sociedade e de direitos humanos intercultural, emancipatório e contra-hegemônico que também inclua os povos ciganos.

            Propomos, neste artigo, resgatar e relatar a luta por direitos protagonizadas pelas lideranças ciganas brasileiras, especialmente, referência calin[77] do rancho de Condado, município do sertão paraibano. A partir de relatos e da trajetória de vida dessa liderança, pretendemos refletir qual o papel desempenhado pela promulgação da Constituição Federal de 1988 no processo de identificação e reconhecimento da questão cigana no âmbito das políticas públicas e do estímulo à auto-organização dos povos ciganos. Ou seja, questionamos, como problema de pesquisa, a possibilidade de delimitar a Constituição Cidadã como um marco temporal e político para a luta por direitos travada pelos povos ciganos no Brasil. Nos últimos anos, a participação de referências ciganas em conselhos e conferências (no âmbito federal, estadual e municipal), assim como de outras lideranças pertencentes às populações tradicionais, constitui um fator determinante na tentativa de conformação da democracia brasileira, que deve ser levado em consideração quando pensamos o Estado e o constitucionalismo no Brasil.

            Para construir esse trabalho científico, levamos em conta, sobretudo, a participação de Maria Jane Soares Targino Cavalcante[78], presidenta da Associação Comunitária dos Ciganos de Condado (ASCOCIC), nas reuniões do Conselho Estadual de Promoção de Igualdade Racial da Paraíba (CEPIR), entre os anos de 2016 e 2017, na IV Conferência Nacional da Igualdade Racial (CONAPIR) e a sessão especial no Senado Federal, estes dois eventos ocorridos no final de maio de 2018[79]. Do ponto de vista metodológico, intercalamos a obsevação participante do pesquisador, que se utilizou de recursos da etnografia, à analise de documentos e uma revisão de bibliografia voltada para a compreensão da realidade brasileira conjuntamente com a questão cigana, com o objetivo de compartilhar e refletir as estratégias assumidas pela liderança calin de Condado, e também de outros ciganos, na luta por direitos para o povo cigano.

            O texto final é composto por várias vozes, rompendo com o mito da autoridade do pesquisador (CLIFFORD, 2008). Pois, ao notar que a veracidade do texto etnográfico estava totalmente associada à presença do pesquisador em campo, passei a questionar a relação sujeito-objeto na pesquisa de campo, bem como o próprio fazer antropológico enquanto método de compreensão mútua, e não apenas de interpretação do outro. Aqui as culturas, os saberes são pensados enquanto conjuntos textuais devendo assim ser interpretadas.

2. “Já não quero parar”[80]: uma pauta em construção

            “Desde o ano de 2010, venho desenvolvendo atividades oficiais dentro da comunidade e publicando nas ferramentas de comunicação, sendo assim oito anos. Mas, no geral, a atividade de mestra no povo cigano é de nascença, ou seja, alguns de nós nasce com esse dom” (28 de maio de 2018). Responde Maria Jane ao ser perguntada há quanto tempo atua como mestra popular, desenvolvendo atividades culturais e de militância.

            Maria Jane Soares é reconhecida, internamente em seu rancho, assim como em outros territórios como uma liderança referência da luta cigana no estado da Paraíba, mas, que desempenha sua  para além das fronteiras do seu estado natal. Trouxe para a cidade de Sousa-PB, e participou da organização do I Encontro dos Ciganos do Nordeste, promovido pelo governo do estado da Paraíba, em parceria com a Secretaria de Desenvolvimento Humano e Secretaria de Meio Ambiente de Pernambuco, no ano de 2015. Movimenta-se, especialmente, em diversos estados nordestino, seja a trabalho, como também acompanhnado outros ranchos ciganos onde também colabora para o desenvolvimento de lutas. Atualmente se forja, também, como liderança “forte e atuante”, nas suas próprias palavras, dentro das conferências nacionais e participações em reuniões instituicionais com diferentes órgãos estatais em Brasília, inclusive na participação da criação do Estatuto Cigano, que tramita no Senado Federal. Foi eleita a primeira cigana calon dentro do Conselho Nacional de Política Cultural, CNPC, no Colegiado Setorial para Culturas Populares, e reconhecida como detentora de seus conhecimentos, foi intitulada mestra dos saberes.

            Em meados de outubro de 2017, Maria Jane, liderança do rancho cigano do município de Condado-PB, entrou em contato comigo a fim de que eu pudesse substituí-la em uma reunião do CEPIR, tendo em vista que ela não poderia estar presente nessa ocasião, em João Pessoa, e teria uma pauta importante para ser incluída e decidida pelo conselho. O CEPIR é um espaço que possui caráter, formalmente, deliberativo, integrado ao Governo do Estado, por meio da Secretaria de Estado da Mulher e da Diversidade Humana. Faz parte de suas atribuições participar de elaboração, fiscalização e controle das políticas públicas ligadas à questão racial, visando assegurar os direitos da população negra, indígena, cigana, quilombola e das religiões de matriz africana. A liderança do rancho de Condado é suplente nesse Conselho, no biênio 2016/2017, e essa condição foi a pauta que me foi solicitada para conversar com os demais conselheiros.

            Cada conselheiro ou conselheira é eleito para exercer um mandato de dois anos, em cumprimento da lei estadual n° 8981/2009, regulamentado pelo decreto n.31.187 de 13 de abril de 2010. O pleito, convocado por edital, elege vinte e quatro conselheiros representantes da sociedade civil, sendo doze titulares e doze suplentes, eleitos por suas respectivas entidades/organizações, movimentos, os quais serão nomeados por ato do Governador do Estado, na seguinte forma: cinco representantes das Entidades Negras do Estado da Paraíba; um representante da Comunidade Tradicional Cigana; c) dois representantes da Comunidade Tradicional Quilombola; d) um representante dos Povos Indígenas; e) dois representantes das Comunidades Tradicionais de Terreiro; e um representante dos Capoeiristas. O conselheiro titular da representação cigana é chefe de um dos quatros ranchos existentes no município de Sousa, onde há uma das maiores comunidades calon do Brasil, aproximadamente três mil pessoas habitando quatro bairros da cidade.

            Até então, nunca tinha participado de nenhuma reunião do CEPIR, sozinho, e já me deparei com uma difícil reivindicação da Maria Jane, isto é, pautar que ela seja considerada a titular da representação da comunidade tradicional cigana, ao passo que o conselheiro titular, embora seja convocado, não participou de nenhuma reunião do conselho, enquanto a suplente esteve presente em todos os últimos encontros. A inclusão dessa reinvidicação, entre as pautas da reunião, foi objeto de muita resistência dos demais conselheiros que julgavam não ser necessário a retirada, formal, de uma pessoa da titularidade da representação, na medida que a liderança calin de Condado já exercia na prática a função de titular, embora fosse suplente. Nesse momento, não estava representando minhas concepções sobre representatividade, mas a pretensão de Maria Jane, que alegava, com base no próprio texto de lei estadual, que regulamenta as atividades do CEPIR, que o representante titular que faltasse duas reuniões seguidas, sem justificativa, seria substituído definitivamente pela representação suplente.

            Os conselheiros do CEPIR alegaram que já consideravam a Maria Jane uma legítima representante da causa cigana, tendo em vista que ela esteve presente em quase todas as reuniões, ao contrário do titular que não participou de nenhuma reunião. Aduziram ainda que faltavam apenas dois meses para o fim do mandato dos conselheiros eleitos no biênio 2016/2017 e que por isso não haveria sentido – prático – reconhecer a titularidade da representação de Maria Jane. Mas, para a presidenta da ASCOCIC, esse reconhecimento informal não era suficiente, ela exigia a formalização da sua condição de titular, mesmo que essa titularidade formal seja exercida apenas na última reunião do conselho, em dezembro de 2017. Tentei, assim, insistir na inclusão e discussão dessa pauta na reunião em que estava presente. Por sua vez, o presidente do CEPIR, embora defendesse o reconhecimento fático/informal da titularidade de Maria Jane, após minha insistência, passou a exigir um pedido formal – por escrito – da representante suplente sobre a sua pretensão e que pelo fato de eu não ser conselheiro não poderia pleiteá-lo.

            Diante dessa disputa, entre o formal e o infomal para a defesa de um determinado interesse, o que me restou foi pedir para que a Maria Jane escrevesse, a mão, uma carta solicitando o reconhecimento da sua titularidade, tirasse uma foto e enviasse pelo próprio whatsapp para que eu pudesse imprimir e entregar ao presidente do CEPIR antes que a reunião terminasse. Enfim, após alguns desgastes com os demais integrantes da reunião, conseguimos pautar e discutir essa reivindicação. Essa situação me fez refletir sobre um elemento pouco discutido nos estudos sobre direitos humanos no Brasil, democracia e legitimidade. Especialmente quando estamos diante de uma determinada minoria social que, nos últimos anos, conquistou um relativo espaço nas instâncias instituicionais, mas que ainda precisa disputar entre si as poucas vagas que lhe são reservadas para participar, por exemplo, dos conselhos municipais, estaduais ou das conferências nacionais, com direito de voz e voto. Esse episódio, que acompanhei, me ensinou que para nós, jurons, pode até não fazer muita diferença ser titular ou suplente, o registro formalizado da titularidade da representação em um conselho. Entretanto, para sujeitos que historicamente foram negados esses espaços, como os povos calons, que precisou sobreviver e circular na informalidade, reivindicar o formalismo, em contextos estratégicos, pode fazer toda diferença.

            Nesse sentido, ao longo desse artigo, questionamos e buscamos refletir se a participação nos conselhos temáticos, gerenciado por secretarias ou ministérios específicos, é a única forma de participação direta dos povos calons, na construção da democracia, em sentido formal, no Brasil, nas tomadas de decisões, na construção das políticas públicas etc? É possível ir mais a fundo nessa reflexão ao problematizar de que modo e em qual a intensidade os ciganos, assim como outras minorias políticas (população negra, quilombolas, indígenas, mulheres e LGBTs), participaram do poder constituinte que levou a promulgação Constituição Federal de 1988, principal documento do sistema jurídico brasileiro, ou, se estão participando, atualmente, dos espaços de poderes ( no âmbito do legislativo, do judiciário ou do executivo.

            Florestan Fernandes (2014), ao discorrer sobre o poder constiuinte de 1986/88, aponta que a Constituinte não rompeu com os atores políticos que foram ativos na ditadura militar, não havendo uma convocação exclusiva para a elaboração da nova Constituição. Pelo contrário, os processos constituintes foram compostas por pessoas eleitas para exercer o mandato de deputados e senadores no pleito eleitoral de 1984, regido pela carta política outorgada pelos militares em 1967.

            Gargarella (2014), ao fazer uma análise geral das constituições, na América Latina, compreendeu que as constituintes tenderam a deixar intocada a “sala de máquinas” da Constituição, isto é, a área da Constituição que se define como vai ser o processo de tomada de decisões democráticas. É como se a organização do poder continuasse diretamente vinculado aos grupos mais próximos com o poder dominante. O novo modelo constitucional, do final do século XX, foi caracterizado por extensas declarações de direitos e uma organização de poder, todavia, altamente concentrada, sobretudo, no Brasil[81].

            A Constituição de 1988 não faz referência direta aos ciganos brasileiros, diferentemente em relação aos povos indígenas (art. 129, inciso V; art. 210, § 2º; art. 215, § 1º; Título VIII, Capítulo VIII – Dos Indíos) e às comunidades quilombolas (art. 216, § 5º e art. 68, ADCT). Não significa que não existesse, no contexto anterior ao processo constituinte, luta dos povos ciganos por direitos, que, por outro lado, não deve ser reduzida ao âmbito institucional. Entendemos que a existência dos povos ciganos e sua persistência de se afirmar como tal na modernidade, por si só, deve ser visto como sinônimo de luta pela vida e por dignidade. Mesmo em meio às persiguições, expulsões, campos de concentração, tentativa de aniquilamento cultural e genocídio, os ciganos de diferentes grupos étnicos atravessaram os séculos e continuam presentes na sociedade, demarcando sua identidade e contribuindo para os processos culturais de diferentes países, ainda que não reivindicasse uma nação própria para si, isto é, pretensões separatistas.

            Se, na década de 1980, as pautas reivindicativas, sobretudo, por reconhecimento, dos povos ciganos não alcançaram repercussão no processo constituinte, a carta política brasileira ao incluir os direitos indígenas, assim como os direitos culturais e coletivos, de certa forma, pode ter influenciado no surgimento de uma série de organizações civis, ciganas e não-ciganas, empenhadas em lutar e dar visibilidade as reivindicações deste grupo étnico (CUNHA et al, 2014).

            Os povos indígenas, assim como os ciganos e os quilombolas, são considerados uma população ou uma comunidade tradicional, pois guardam entre si, nos seus respectivos grupos, uma história comum, (na maioria das vezes de dor por causa da perseguição, genocídio, escravidão, expulsões, entre outras dificuldades), memória coletiva, tradições, cosmologias que os diferenciam dos demais membros de outros grupos da sociedade majoritária[82]. Gargarella (2014) considera que a Constituição de Nicaráguas, do Brasil, assim como a Conveção nº 169 da OIT foram pioneiras no tema do direito indígena. Segundo Raquel Fajardo (2011), houve três ciclos de reformas constitucionais que ocorreram nas últimas três décadas na América Latina (1980-2010), no que diz respeito ao reconhecimento da diversidade cultural e dos direitos dos povos indígenas. O primeiro ciclo[83], de 1982 a 1988, que o Brasil faz parte, introduzem o conceito de diversidade cultural, o reconhecimento do direito – individual e coletivo – à identidade cultural e alguns direitos específicos, contudo, não chegam a fazer um reconhecimento explícito do pluralismo jurídico e, ao mesmo tempo, não altera a estrutura do estado.

            A afirmação de um rol extenso de direitos, que carecteriza o nuevo constitucionalismo no Brasil e em outras nações do continente, não é suficiente para promover a transformação social, na medida que a formulação e execução de políticas públicas voltados para o cumprimento dos compromissos assumidos no texto constituicional perpassa pelos poderes, sobretudo, os governos eleitos, ou seja, pelo projeto político assumido pelas forças que atuam diretamente na tomada de decisões. Gargarella (2014) destaca que os países latinoamericanos têm governos bastante diferentes, do ponto de vista político-ideológico, convivendo com Constituições cada vez mais generosas em materia de direito, o que permite afirmar que a maquinaria do poder pode recepcionar, sem maiores problemas, as diferentes mudanças que ocorrem na sessão das declarações de direitos. Esse cenário nos permite perceber, portanto, a indiferença dos poderes políticos em materia de direitos, por mais que esse reconhecimento seja de extrema importância para os movimentos sociais e grupos populacionais historicamente oprimidos.

            Por isso, é fundamental levarmos em consideração, ao pensarmos a questão cigana no Brasil,  a correlação de forças no cenário político, sobretudo, a partir da década de 2000, contexto em que a América do Sul vive uma espécie de primavera de governos progressistas, reconhecidos como de centro-esquerda ou, propriamente dito, de esquerda. É um grande equívoco vislumbrar o direito desassociado da política, assim como essas duas categorias da luta de classes.

            O ano de 2003 pode ser considerado mais um marco político no que se refere a adoção de políticas e desenhos institucionais brasileiro voltados para a questão racial, diversidade cultural e aos direitos humanos em geral. A chegada de Lula, um ex-operário e sindicalista, ao cargo máximo do Poder Executivo, com a vitória do PT nas eleições presidenciais de 2002, possibilitou a incorporação de agendas reivindicativas de grupos minoritários, no aspecto sociopolítico e inclusivo, na agenda institucional. Foram criados, por exemplo, o Ministério de Políticas para as Mulheres, Ministério de Direitos Humanos e a Secretaria de Promoção de Políticas de Igualdade Racial. A criação de novos e a consolidação dos conselhos já existente, a partir de 2003, pode ser compreendido também como uma importante conquista da sociedade civil, especialmente dos movimentos sociais, na estrutura do Estado e na democracia brasileira. São nesses espaços, em âmbito nacional, estudual e municipal, que são reunidas pessoas de diferentes setores, não só do governo, para dialogar com a burocracia estatal com o objetivo de apresentar propostas a serem incorporadas na agenda institucional, nas políticas públicas.

            Embora sejam importantes e inéditos espaços de diálogos, incorporado temáticas das minorias no primeiro escalão do governo federal, os recursos destinados a essas pautas foram restritos, senão insuficientes, para executar políticas publicas específicas voltados para a inclusão  dos grupos social e historicamente vulneráveis, como é o caso dos povos ciganos. Pedro Pontual ressalta que o poder delibarativo atribuído aos conselhos nos principais sistemas, participativos e delibarativos de políticas sociais, criados a partir da Constituição de 1988 foi objeto de questionamento por parte de governos de diferentes orientações político-ideológicas, havendo tentativas de governos conservadores de retirar tal poder dos conselhos existentes, mas, por outro lado, também reconhece esforços do próprio governo federal, iniciado em 2003, com um discurso participacionistas e ações de diálogo social[84], ao criar novos conselhos que assumiram, contudo, poderes apenas consultivos, assim como assumiu a indicação de representantes da sociedade civil em diversos casos (2008, p. 14-15).

            As mais frequentes críticas ao conselho e às conferências dizem respeito à não efetividade das decisões, ou seja, apontam que os espaços de participação seriam apenas consultivos e que as questões seriam definidas em outras instâncias sem a presença da sociedade (SOUZA, 2011). Por outro lado, Louise Silva (2012) defende que os conselhos, sobretudo entre os anos de 2003 e 2010 e levando em conta a pauta das mulheres, possibilitaram que setores historicamente subalternizados passassem a romper com a invisibilidade perante ao estado, a qual estavam acometidos, e, ao mesmo tempo, utilizassem esses espaços para fortalecimento das lideranças, articulação com outros sujeitos do mesmo grupo ou de diferente origens/pautas e, sobretudo, pressionar os governos, o estado em geral para o atendimento de algumas demandas[85], conforme abordado no próximo tópico.

            No caso da questão cigana, só alguns anos depois do começo do governo Lula, a partir de 2006, que se iniciou a realizar espaços específicos para discutir e apontar reivindicações desse grupo étnico que se encontra, no Brasil, desde o século XVI. Um atraso significativo, se pensarmos no marco político-jurídico da Constituição promulgada em 1988.  Dessa forma, arriscamos em afirmar que a decreto de 25 de maio de 2006, que reconhece 24 de maio como o dia nacional do cigano, representa um marco divisor, em termos institucionais e de reconhecimento de direitos, na relação entre os mais diversos povos ciganos brasileiros e o Estado. No Brasil, como afirma Maria Jane, “tinha um dia para tudo nesse país, menos um dia para nós, ciganos. Nunca na história desse país nosso nome teve um sentido positivo. E não foi JK, que era filho de cigano, que deu esse primeiro reconhecimento, mas sim Lula, o primeiro presidente que nos olhou como gente”. Esse decreto não inaugura a relação com o estado, até porque a política de controle social em face dos ciganos, em termo mais amplos, por meio da segurança pública, por exemplo, é o modus operandi até os dias de hoje. Ainda assim Maria Jane que esse decreto representa “um reconhecimento, uma justiça para o nosso povo que tanto sofreu”.

            São nos conselhos, reuniões com orgãos estatais, participação de plenárias, que Maria Jane vem se fortalecendo, enquanto sujeito político, protagonista da sua própria história, e batalhando para que as políticas publicas, não apenas as universais, cheguem ao seu povo calon, que ela considera que são “os mais pobres e necessitados entre os ciganos, em que muitos ainda vivem em barracas, a maioria analfabeta ou com pouco estudo e sem uma renda fixa”. O fato de Jane fazer questão de ser declarada como titular da representação cigana no estado da Paraíba, e não como suplente, é por acreditar que ela pode se movimentar por espaços, antes negados, e lutar pelos direitos dos povos calons, como a IV Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial, que ocorreu entre os dias 28 e 30 de maio de 2018, que falaremos a seguir no próximo tópico.

            O segundo mandato da presidenta Dilma, que já se inicou em crise política, com pressões da oposição, simultaneamente, ao mercado financeiro, foi marcado pela adoção de políticas de austeridade como forma de atender as expectativas e interesses das camadas sociais que foram derrotadas nas eleições de 2014 (GUILHERME, 2017). As políticas e diretizes adotados no curto período de tempo do governo Dilma, fortaleciam uma concepção de estado mínimo, pautado por valores neoliberais. Estes foram influenciados, sobretudo, pelo monopólio das comunicações, que constroem e fortalencem consensos, e, especialmente, pelo poder judiciário, que garante a ordem, do suposto império das leis, e uso da coerção quando necessário. Ambos (o oligopólio midiático e o judiciário) foram fortes colaboradores na formação de hegemonia, em termos gramscianos, conjuntamente com outros setores da sociedade civil e política[86], que constrói um senso comum inclinado a concepções conservadoras, anti-democráticas e individualistas da política e da sociedade em geral.

            No ano de 2015, por exemplo, conforme ressaltou Carmela Zigone, assessora do Instituto de Estudos Socioeconômico (Inesc), os cortes no orçamento da União, no montante de quase 70 bilhões de reais, o que corresponde a 12% do total, penalizou desproporcionalmente ógãos que executam políticas públicas essenciais para garantir a redução sustentada das desigualdades no Brasil, chegando a percentuais de duas a três vezes superiores à média do corte. Em 2015, o governo cortou 56,3% dos recursos da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), que teve que contar com apenas 28,7 milhões de reais para cumprir sua atribuição em coordenar, articular e avaliar políticas afirmativas de promoção da igualdade racial, além de executar ações como a de Fomento ao Desenvolvimento Local para comunidades remanescentes de quilombola e outros povos tradicionais. Deve-se levar em consideração que o orçamento da Seppir representa menos de 0,1% do orçamento geral da União (ZIGONE, 2015).

            Ainda que o governo Dilma cedesse as pressões dos setores mais conservadores da socieda, não se impediu a concretização do impeachment[87], comandando pelos próprios integrantes do governo, mais especificadamente seu vice “decorativo”[88]. Em uma das suas primeiras medidas na reforma ministerial, o presidente interino Michel Temer extingue, por meio da medida provisória n° 726, de 12 de maio de 2016, o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, cujas competências foram transferidas para o recém criado Ministério da Justiça e Cidadania. As políticas, implatadas pelo governo Temer, de autesridade foram ainda mais aprofundadas, na chamada “Ponte para o Futuro”, plataforma muito parecida com o projeto derrotado nas urnas em 2014[89]. Como em qualquer contexto de crise, os primeiros que são penalizados,seja pelo aparelho repressor, seja pela a ausência do estado, de políticas públicas quando é necessário, são os setores historicamente subalternizados na sociedade, as mulheres, os negros, os indigénas, assim como os ciganos.

            Segundo o portal de notícias Rede Brasil Atual, em 2016, o total de recursos federais destinados a políticas para mulheres, igualdade racial, LGBTs e direitos humanos caiu 35% em 2016 em relação ao ano anterior. Como uma das consequências da queda, em 2016, não foi firmado nenhum novo convênio novo voltado a esses segmentos (antor, 2017).  Nesse ano, por exemplo, no municipio de Condado, rancho de Maria Jane, no interior da Paraíba, não houve continuidade das turmas do programa “Brasil Alfabetizado”, que tinha como proposta formar turmas com professores oriundos das comunidades tradicionais. Segundo a liderança, que também era coordenadora do projeto na microrregião, fato que também pude constatar e já relatei em outro artigo (SILVA; MEDEIROS FILHO, 2017), não houve a liberação de recursos federais para a execução desse projeto em 2016. Nas palavras da liderança calin, “além dos alunos calons e jurons terem perdido a chance de continuarem tentando aprender a ler e escrever, nós, calons, que éramos os professores voluntários perdemos uma oportunidade de sustento, 450 reais fazem diferença”.

            A Seppir, ao perder status de ministério e ser reduzido a uma condição de sub-secretarias (terceiro escalão), assim como a incorporação de um novo regime fiscal, mediante a emenda constitucional conhecida como a Projeto de Emenda Constitucional, que propõe o congelamento dos gastos, um novo regime fiscal[90], o que diminuirá mais ainda os recursos que poderiam ser destinados para a questão cigana. De acordo com o Inesc, em 2016, foram autorizados R$ 39 milhões para o Programa da Igualdade Racial e Superação do Racismo, e gastos R$ 32 milhões; em 2017, foram autorizados apenas R$ 24 milhões. A redução orçamentária, contudo, ocorre de forma seletiva, havendo aumento nas pastas relacionadas ao agronegócio, à mineração, e, redução drástica para políticas sociais[91]. Pode-se afirmar que está incurso um projeto de sociedade, neoliberal antipopular (no sentido de contrário ao povo), antinacional, anti-diversidade, anti-vida e assim por diante. Projeto que corre o risco de ser confirmado a depender dos resultados das eleições de 2018, ameaçando as condições de vida e as lutas por direitos pautados pelas mulheres, negros, indígenas, LGBTs ciganos e demais comunidades tradicionais.

            O processo de impeachment, que prefiro chamar de golpe, trouxe repercussões significativas nas políticas voltadas para inclusão social e promoção da igualdade racial, fato que confirma a citação realizada acima ao pesquisador Gargarella (2014), que aponta a existência, na América Latina, de governos indiferentes mesmo havendo constituições com um roll extensivo/generoso de direitos.   Contudo, mesmo que esteja em curso, no Brasil, um projeto de esvaziamento do aparato estatal à disposição das políticas sociais, algumas estruturas e espaços foram mantidos pelo governo interino (2016-2018), como é caso das conferências nacionais, que não teria continuado existindo sem a resistência dos movimentos sociais, organizações políticas e setores progressitas da sociedade. Dialogando com a canção “Travessia”, de Milton Nascimento, o povo brasileiro, os ciganos, indígenas, os negros, mulheres já querem “parar”, mesmo que o “o caminho” seja “de pedra”. As formas de lutas, conquistas de direitos não estão atreladas, condicionadas ao Estado, vêm, como diz Mascaro (2016), de fora dele. Por mais que exista retrocessos, há legados que não são facilmente desfeitos. No próximo tópico, pretendo compartilhar parte do meu relato de campo resultado da prática etnográfica, atrelada a minha participação observante, que realizei durante a IV Conferência de Promoção da Igualdade Racial, na audiência pública da PGR e a sessão especial ocorrida no Senado Federal.

2 – “O meu país é meu lugar de fala”[92]: o caminho do reconhecimento

            Quando cheguei ao Centro de Conferência para participar da IV Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial, acompanhado de Maria Jane, o primeiro estranhamento que tive foi com as cores, uma quantidade imensa de estampas, chapéus, lenços, saias, turbantes, acessórios, bandeiras dos mais variados. Como nunca tinha participado de uma conferência temática organizada pelo governo federal, minha referência de comparação, que gerou esse primeiro estranhamento, são os congressos acadêmicos ou da advocacia, que, predominam uma certa padronização nas vestimentas, ternos, blaser, sobretudo, cores mórbidas, em tons escuros, que Warat associa ao processo de pinguinização pelo qual o jurista passa em seu processo de formação profissional[93]. As roupas formais, que se tornam o fardamento do profissional do direito ou do burocrata estatal, é apenas um reflexo desse processo, e foi por meio das vestimentas que eu tentei distinguir as pessoas dos movimentos sociais, dos povos e comunidades tradicionais dos membros do governo, servidores públicos, pesquisadores, educadores etc. O público e as simbologias presentes no IV CONAPIR era majoritariamente não-branco e negro, diferentemnte dos espaços de poder, como o legislativo, executivo e o judiciário, composto por pessoas brancas e/ou ligadas às classes dominantes. Assim que entrei no salão da entrada da conferência, tentei avistar/idenficiar outras pessoas, além de Jane, que são ciganas, o que demorou uns 10 minutos até encontrarmos Estrela e Lua[94]. Em mar de pessoas, de coloridos, predominavam aquelas ligadas ao movimento negro, às religões de matrizes africanas e aos grupos étnicos indígenas. As representações ciganas eram, claramente, minoria nesse ambiente, o que não deixa de ser um reflexo de como a questão cigana e os movimentos ciganos ainda estão em um processo inicial de organização e participação em espaços formais como o CONAPIR.

            “Olha, deixa te apresentar uma cigana sinti que tu disse que tem curiosidade de conhecer”, disse Jane ao reconhecer a Rose Winter, única representante cigana do estado do Rio Grande do Sul[95]. O grupo que se formou na Conferência era composto 14 pessoas que diziam ser ciganas, embora nem todos fossem delegadas, com direito de voto durante a conferência. Além de mim, que estava ali acompanhando Jane, e Solange[96], servidora da educação do Rio Grande do Norte e integrante da Pastoral Nômade. Sempre, ao me apresentar, afirmava ser um “juron parceiro da luta cigana lá no sertão da Paraíba”, um código que acionava, intencionalmente, para que os demais ciganos, além de Jane, também possam sentir confiança por mim e ao mesmo tempo não pensar que eu estivesse naquele espaço para me passar por cigano ou tomar o lugar de fala dessas pessoas que estavam tendo, ali, a oportunidade de ser representante de um seguimento, de uma causa. Por sua vez, Jane sempre me apresentou e se referiu a mim como “nosso amigo”[97].

            Desde que comecei a acompanhar a comunidade calon de Condado, aprendi que há uma grande preocupação em se reconhecer um “cigano de verdade”, com o objetivo de impedir que os “falsos ciganos”[98] usem a “nossa cultura” para levar “vantagem”. Quando faço questão de falar que sou “juron parceiro”, tento demarcar que estava ali (na conferência, assim como outros espaços) por carregar comigo o valor da solidariedade[99] e da ternura[100], ao mesmo tempo, a possibilidade de se fazer uma opção de classe, de estar ao lado deles, mesmo sendo um “não cigano”. Também é uma forma de manifestar respeito, sobretudo, pela a normativa de que aprendi com Maria Jane de que “é cigano apenas se for filho de pai e/ou mãe cigano, ter sangue cigano”.

            Durante a conferência, em Brasília, embora em algum momento a normativa “ser cigano de verdade” fosse levantada e reivindicada por Maria Jane, como uma forma de demarcação do lugar de fala, o que gerou alguns constrangimentos para os/as que eram acusados de “falsos ciganos”, em geral, buscou-se manter uma convivência coletiva e harmônica. A própria Jane admitiu, em particular pra mim, que ela estava incomodada com algumas pessoas naquele espaço, mas, como se tratava da Conferência do governo federal em que muitas questões seriam discutidas e votadas, influenciando as políticas públicas, os “falsos ciganos” poderiam de alguma forma “somar”, contribuir, e, nesse caso, “toda ajuda é bem-vinda”. E de fato faria diferença, em vista da pequena presença de ciganos, menos de 10 delegados (em meio a mais de 400 delegados de todo país), sendo que desses, nem todos tinham experiência em espaços de militância em ambientes institucionais, o que poderia dificultar a inserção das pautas no debate e espaços de deliberação.

            Outro estranhamento que tive na Conferência foi com relação à heterogeneidade de aparência física entre o grupo de ciganos, embora, em relação as vestimentas das mulheres, houvessem uma maior semelhança entre elas. Obviamente que, por ser um espaço de militância, voltado para a pauta da igualdade racial, as pessoas que assumem a identidade cigana sentiam-se mais a vontade e seguros para adotarem as vestimentas que tradicionalmente são associadas a cultura cigana. Eu ouvi mais de uma vez afirmações como a do Senhor Roberto[101] que confessou que muitas vezes não tem coragem de se pronunciar, de falar, de sorrir ou simplesmente “abrir a boca, porque não as pessoas irão perceber que sou cigano quando olhar meus dentes de prata” (28 de maio de 2018) ou de muitas mulheres ciganas que têm medo de usar algumas roupas com receio de serem discriminadas[102], exceto por Raji[103], que declarou que “Graças a Deus, em Florianópolis, as calin não sofrem preconceito nas ruas” (28 de maio de 2018). Não pude deixar de notar e, ao mesmo tempo, estranhar essa afirmação de Raji[104] e que, não por acaso, era, entre as delegadas ciganas, a que tinha mais traços físicos associados às pessoas da Europa. Mais uma vez demonstro o quanto estou contaminado pelo sistema de classificação racial, ligado ao tom da pele, que promove a diferenciação/distinção das pessoas. Por outro lado, tanto em minhas vivências, quanto em minhas leituras, eu observo que o preconceito vivido pelos ciganos, por serem ciganos e quando reconhecidos como tais pela sociedade majoritária, é um fio condutor unificador, que atinge, em algum ou na maioria do tempo, os ciganos em geral, independentemente de seu grupo étnico ou tom da pele. Por isso que estranhei a fala de Raji, mas em nenhum momeno me cabe julgá-la, se uma determinada pessoas era de fato cigana por não ter a pele mais escura ou qualquer outro fenótipo que se associam aos ciganos, até porque, eu tive apenas experiências com os calons do Nordeste (Bahia, Pernambuco e Paraíba), o que é muito pouco se levarmos em consideração que há pessoas ciganas no mundo inteiro e de diferentes aparências. E essa tentativa de classificar as pessoas pela sua ‘suposta’ raça, cor da pele é um problema próprio da modernidade eurocentrada, segundo Quijano (2000), que para se forjar, se fortalecer e se tornar hegemônica, criou a sua primeira categoria social, isto é, a raça, a fim de promover a classificação das pessoas, justificando a colonização e a escravidão, por exemplo. Por mais que eu tente adotar uma conduta, um olhar “descolonizado”, é díficil nao reproduzir alguns valores, apegando-se a esteriótipos. Desde que me aproximei da luta cigana, sou, constantemente questionado por colegas e conhecidos, “como saber se uma pessoa é de fato cigana?”, “tem algum traço, característica física específica?” “ainda existe cigano nômade ou que mora em barraca?”. Participar do IV CONAPIR me possibilitou ver de perto e confirmar que as “pessoas ciganas” nao são homogêneas, não só na aparência, mas também em relação à política[105], à cultura, a condição de classe, uns mais privilegiados, outros com mais restrições financeiras, acesso à educação eetc. Acontece que o tom da pele e a própria reivindicação da condição cigana como uma população tradicional que passa por situações de racismo são levantadas e questionadas por outros militantes e delegados presentes no CONAPIR, especialmente do movimento negro.

            “Você deveria ir embora desse espaço – em referência ao III Conferência de Promoção de Igualdade Racial-, é só você tirar essa roupa colorida, essa fantasia que deixará de ser cigana, de sofrer algum preconceito” ou “você não deveria estar aqui, você é branca”, são falas resgastadas por Estrela que ocorreram no último encontro. Estrela é militante cigana, da etnia romani e mora num acampamento cigano do município do interior de São Paulo; já foi várias vezes questionada quanto a possibilidade de ser vítima de racismo, já que tem a pele clara. De fato, na realidade brasileiro, não podemos desprezar que quanto mais escuro o tom da pele, mais distante de traços físicos associados ao padrão europeu e/ou, mais próximo de características associada ao povo negro, essas pessoas, em algum ou diversos momento da sua vida, enfrentará de situações de preconceito, passará por restrições ou algum constragimento[106]. Por isso, a(s) realidade(s) das pessoas ciganas, no Brasil  pode nos ajudar a repensar sobre o racismo ou se o termo racismo é o único termo para descrever ou é a melhor forma para descrever a vivência dos ciganos na sociedade e nos espaços majoritários. Há diferentes motivações que levam um determinado grupo ou pessoa a ser inferiorizada, reduzida, discriminada. Os ciganos, no Brasil, e, provavelmente, em outras partes do mundo, são vistos e classificados como trapaceiros, violentos e perigosos, no caso dos homens, feiticeiras, sensuais e por isso imorais, no caso das mulheres (GOLDFARB, 2010). Ou seja, no imaginário social, os ciganos são tudo aquilo que nós, “os outros”, não devemos ser (CUNHA et al., 2014).

            Buscou-se reivindicar, portanto, nas votações dos artigos que fariam parte do texto final da Conferência a inclusão do termo “ciganofobia”, em todos os dispositivos em que se abordasse o combate ao racismo. Em um dos grupos de trabalho que acompanhei, alguns delegados questionaram que o termo “racismo” e “xenofobia” já contemplaria o termo “ciganofobia”, e a sua inclusão seria reduntante. Estrela insistiu que “incluir ciganofobia nos textos não tira ou exclui o direito nínguem, apenas acrescenta, que muitas pessoas quando falam de racismo não associa aos ciganos, inclusive o nosso povo não se sente contemplado nem com o termo racismo, nem com termo xenofobia”. Ao ser mais uma vez questionada, argumento que “pouco importa ser repetitivo, o que queremos é dar visibilidade, como todos vocês, a nossa causa” (29 de maio de 2018). Estabeleceu-se, também, que em todo artigo que fazer referência, expressamente, aos quilombolas e indígenas, deve ser pedido destaque e incluir o termo cigano e que quando não houvesse referência direta a esses dois grupos, mas de forma genérica “povos e comunidades tradicionais”, não seria necessário incluir o termo cigano. Em outras palavras, busca-se conquistar um consenso, pelo menos ali que é um espaço institucional criado para pensar formas de influenciar e ditar as políticas públicas, universais ou específicas, que combata o racismo, a “ciganofobia” e que, ao mesmo tempo, promova a inclusão social.

            A falta de compreensão, acerca da diferença entre cultura e identidade, esclarecido por autores como Barth[107], não é o único, mas um importante impasse no reconhecimento dos ciganos enquanto povo tradicional. Essa negação tem um próposito: negar direitos, que o Estado adote politicas públicas específicas e que a sociedade em geral respeite certas normativas que são próprias dos grupos ciganos. Ao serem associados a elementos relacionados à cultura ocidental, como, por exemplo, o fato de alguns ciganos estarem sedentarizados, morarem em casas de alvinaria ou pelo simples fatos de muitos não mais usarem roupas que o imaginário social, preso à dogmas, associam aos ciganos, ignora-se que os processos de formação de identidades não são delimitados no isolamento, mas sim na troca, na interação com outros grupos. A absorção de elementos culturais dos jurons, por exemplo, não anula a continuidade da identidade cigana calon, por exemplo. Da mesma forma que se questiona a condição de indígena daqueles que possuem celular, carro etc.

            Para Maria Jane, “a questão do nomadismo é muito mal compreendida e isso gera uma dificuldade muito grande de estratégias e diálogos entre gestores e população”. Em primeiro lugar, é importante compreender que tanto o entedimento de “nomadismo”, como de “sedentário”, são categorias nossas, digo, juron. Os ciganos, simplesmente, se movimentam, por diferentes territórios em busca de trabalho, fazer negócios, trocas e vendas. Muito mais por uma questão de necessidade e não por ser uma condição inerente a sua natureza, por uma questão biológica. Da mesma forma que o fato de morar em tendas, barracas, em forma de acampamento, não é o que torna uma pessoa ou um grupo cigano. Muitos elementos da vida de pessoas ciganas foram ressignificadas, como o nomadismo, as formas de moradia etc. Ressaltei, em outro artigo, que “a itinerância não deixou de fazer parte do cotidiano dos ciganos de Condado, mesmo que estes tenham se fixado e constituído residência neste município nas últimas décadas” (2017, p. 100). Conforme esclarece Jamilly Rodrigues da Cunha (2015) em sua dissertação, o nomadismo foi ressignificado e agora consiste na ida e volta para “seu lugar”. Condado tornou-se, então, um lugar de referência para aqueles ciganos. Ocorre que as viagens em busca de trabalho e renda, que atendem aos anseios por sobrevivência, permanecem comuns entre os ciganos, diante da falta de oportunidades na própria região de Condado, que representa mais um ponto de apoio que uma referência espacial fixa para estas pessoas.

            Embora, hoje, muitos ciganos não vivenciem mais práticas de nomadismo no formato de antes, o passado nômade é um elemento que é levantado pela própria Maria Jane, em suas falas, quando se busca associar a vida e a trajetória do “ verdadeiro cigano” esteve condiciona ao sofrimento. Quando questionada, durante o CONAPIR, por Solange, se conhecia um cigano de Pernambuco e que ele estava acompanhado por um professor, “um senhor muito sabido que sabe mais dos ciganos que os próprios ciganos”, Maria Jane respondeu “se for seu Antônio, é uma pessoa que tem a alma muito boa, cigano de calon de pai e mãe e todos seu povo é cigano de barracas, de comboio de animais, sobrinho do pai de minha mãe, se deixa levar por treteiros, trapaceiros jurons de má fé”. A liderença calin completou, de forma enfática, que “nunca, nunca um juron (no caso o professor “muito sabido”) saberá de um cigano mais que um cigano” (28 de maio de 2018). Após a fala de Maria Jane, Roberta, outra lidenrança calin, do sul da Bahia, acrescenta “um juron nunca saberá o que é viver numa barraca furada e ter que dormir embaixo de uma mesa para se proteger da chuva. Eu, graças a Deus, vivo em casa, mas muitos dos nossos enfrentam muitas dificuldades. Somos, acima de tudo, brasileiros e temos direitos igual a qualquer cidadão! ” (28 de maio de 2018).

            O que esses grupos reivindicam, como afirma Paul Little, são seus direitos – como cidadãos e como povos – sem questionar a legitimidade do Estado brasileiro” (LITTLE, 2004, p. 279). O seu lugar de fala congrega várias identidades, no caso de Maria Jane, enquanto calin, nordestina, paraibana e, também, brasileira, todos esses elementos surgem e são reivindicados nas arenas de luta dos povos ciganos por direitos, por dignidade e inclusão. Por isso, é importante reconhecer desses povos, assim como dos indígenas e quilombolas, por exemplo, sua condição de povo originário, que compõem a matriz da nossa – no caso brasileira – formação cultural, social e econômica, e não como uma cultura diversa, complementar ou coadjuvante. O reconhecimento dessa condição é um passo importante, que não se limita a simples positivação nos documentos jurídicos. É necessário, acima de tudo, que os projetos de sociedade voltados para a transformação social, para ampliação da democracia participativa e popular olhem, respeitem e envolvam também as particulariedades e demandas dos povos ciganos, assim como de outras minorias. Pois, o nosso país, que não é homogêneo ou longe de ser um espetáculo das raças, é nosso lugar de fala, de luta e resistência.

Referências

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NOTAS:

[1] Trabalho apresentado ao Espaço de Discussão 13- Questão Racial e direito- do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[2] Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Franca, mestranda em Direito pela Universidade Estadual Paulista – UNESP. Bolsista pelo programa CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). E-mail: [email protected].

[3] Graduado em Direito pela UNESP (1990), mestre (1998) e doutor (2003) em Direito pela UNESP – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho.  Pós-doutor pela Universidade de Sevilla – Espanha (2012).  Professor Assistente-doutor de Direito Penal do Departamento de Direito Público da UNESP; Promotor de Justiça. E-mail: [email protected].

[4] Levantamento Nacional de Informação Penintenciária, junho 2016, realizado pelo Departamento Nacional Penintanciário (DEPEN). Disponível em: http://depen.gov.br/DEPEN/noticias-1/noticias/infopen-levantamento-nacional-de-informacoes-penitenciarias-2016/relatorio_2016_22111.pdf . Acesso: 01 março 2018.

[5] Levantamento Nacional de Informação Penintenciária, junho 2014, realizado pelo Departamento Nacional Penintenciário (DEPEN). Disponível em: http://www.justica.gov.br/news/estudo-traca-perfil-da-populacao-penitenciaria-feminina-no-brasil/relatorio-infopen-mulheres.pdf. Acesso: 01 março 2018.

[6] Pode-se considerar como paradigma etiológico, a introdução da Criminologia como ciência, desenvolvido na Europa no século XIX, sendo sua principal característica a busca pela causa da criminalidade, que seria pré-constituída (ANDRADADE, 1995).

[7] Entende-se como classe dominante, aquela que está interessada na contenção do desvio gerando a manutenção dos interesses hegemônicos, enquanto as classes subalternas seriam aquelas que lutam radicalmente contra os mecanismos de definição e seleção de comportamento (BARATTA, 2002).

[8]ED 13 – Questão racial e Direito do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[9]Graduanda de História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro; [email protected]; (21) 982881609

[10]Graduanda em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro; [email protected]; (21) 96970-9279.

[11] Na obra de Lara é apresentado um estimativa de que chegaram ao Brasil 50 mil africanos escravizados até 1600, 160 mil entre 1600 e 1640, 400 mil entre 1640 e 1700, 960 mil entre 1700 e 1760 e 726 mil entre 1760 e 1800.

[12] Gayatri Spivak  demonstra que o othering foi utilizado para a construção da imagem de uma Europa racional e moderna e, ao mesmo tempo, criou-se /um outro – as demais culturais do mundo, representadas como atrasadas –,  para, dessa forma, o europeu impor sua primazia sobre as colônias na escala civilizatória. (SPIVAK, 1985 apud GONÇALVES, 2017)

[13] Clóvis Moura afirma que, durante a escravização, tal violência é também extraeconômica, pois o sistema escravista utilizou de meios coercitivos e violência física para submeter os africanos ao trabalho forçado.

[14] Graduando no curso Bacharelado em Direito pela Universidade do Estado da Bahia – UNEB, Campus IV, Jacobina, email: [email protected], tel. (74) 9 91202970.

[15] Grande massacre; chacina, carnificina.

[16] Segundo o artigo 1° da lei 2889/1956, consiste na intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso.

[17] Massacre de um grande número de pessoas; carnificina; mortandade.

[18] Sistema de desigualdade que se baseia em raça, tratada de formas distintas e preconceituosas em instituições econômicas, políticas e sociais, órgãos públicos governamentais, corporações privadas e universidades públicas e particulares.

[19] Termo extraído do livro “A guerra não declarada na visão de um favelado”, lançado pelo rapper Carlos Eduardo Taddeo, em 2012, com 616 páginas, em que defende que há uma guerra não declarada no território brasileiro, que aniquila um número de habitantes das periferias superior ao de países em guerra civil. Esse escritor, rapper, palestrante e revolucionário vivencia essa guerra dentro de suas trincheiras, ele está “no campo de concentração antes, durante e depois da matança”. No alto de sua 5º série, não concluída, do ensino público fundamental intitula-se como um “autodidata em morticínio” (sobre) vivendo na Era das Chacinas.

[20] Termo extraído do título do álbum duplo chamado “A fantástica fábrica de cadáver”, lançado em dezembro de 2014 pelo rapper Eduardo Taddeo, ex-integrante do grupo Facção Central.

[21] Impende ressaltar que a crítica que é feita aqui não diz respeito a todos os integrantes dela, haja vista que possuem exceções, mas sim à polícia militar enquanto instituição, criada como “Guarda Real da Polícia”, em 1809, para proteger os interesses da classe dominante e reprimir aqueles que atentem contra esta ou às suas propriedades.

[22] Movimento de mães que tiveram seus filhos executados durante o chamado “Crimes de Maio de 2006”. “[…] O acontecimento mais brutal e mais emblemático até aqui desta “nova era democrática”: mais de 500 pessoas assassinadas, em menos de 10 dias, somente no estado de São Paulo, por agentes policiais e grupos de extermínio em pronta ‘defesa da ordem’. O maior massacre da histórica contemporânea brasileira. Em pouco mais de uma semana, foram mais jovens pobres e negros assassinados do que durante os mais de 20 anos da terrível ditadura civil-militar assassinaram nas fileiras de seus opositores, em todo o país”, aponta Danilo Dara (2011, p. 92).

[23] O sistema penal do país foi criado para controlar, perseguir e aniquilar os herdeiros da escravidão histórica (pobres, negros e periféricos).

[24] Expressão construída a partir da reflexão que fizemos ao analisar o fenômeno do genocídio e o sistema de “justiça”.

[25] Themis é a representação da justiça na mitologia grega. De olhos vendados, com uma espada na mão e uma balança na outra.

[26] Roberto Lyra Filho (1986) aponta que o Direito Alternativo é aquele que vai de encontro à estrutura estatal-burocrática-autoritária de poder, pois desmistifica o Direito como código cifrado e defende o processo sociológico e de libertação do Direito, não se restringindo às leis emanadas do Estado. Portanto, descreve que “se o Direito é reduzido à pura legalidade, já representa a dominação ilegítima, por força desta mesma suposta identidade; e este ‘Direito’ passa, então, das normas estatais, castrado, morto e embalsamado, para o necrotério duma pseudociência, que os juristas conservadores, não à toa, chamam de ‘dogmática’. Uma ciência verdadeira, entretanto, não pode fundar-se em ‘dogmas’, que divinizam as normas do Estado, transformam essas práticas pseudocientíficas em tarefa de boys do imperialismo e da dominação e degradam a procura do saber numa ladainha de capangas inconscientes ou espertos” (Lyra Filho, 1986, p. 10-11).

[27] “A Pátria amada que guarda seus filhos sob seu solo, invisíveis na história e na indigência, sejam presos políticos ou vítimas de grupos de extermínio que praticam a assepsia social, não pode ser uma mãe gentil” (Gabriella Barbosa, 2015, p. 237).

[28] O médico baiano Nina Rodrigues foi um dos adeptos das ideias de Lombroso. Seus discípulos criaram a “escola Nina Rodrigues” e fundou-se a Medicina Legal no país.

[29] A Lei n°. 9.459 de 1997, alterou os arts. 1° e 20 da Lei n°. 7.716, de 5 de janeiro de 1989, mais conhecida como Lei Caó, e incluiu no artigo 1°, a punição pelos crimes resultantes de preconceito e discriminação envolvendo as questões de etnia, religião ou procedência nacional, além do artigo 20: “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.

[30] Ciência positivista, da classe dominante, portanto.

[31] “[…] A realização pessoal de Hitler se configuraria em torno de seu principal ideal, unir o homem perfeito de raça pura, na formação de uma nova Alemanha, possibilitando criar uma máquina de guerra poderosa, e ideologicamente forte, a Waffen-SS” (Costa, 2013, p. 19).

[32] Disponível em: <http://super.abril.com.br/historia/a-industria-da-morte/>. Acesso em: 06 jan. 2017.

[33] Maria Eunice (1999, p. 121) descreve que a eugenia, criada no século XIX por Francis Galton, “é um conjunto de idéias e práticas relativas a um ‘melhoramento da raça humana’ ou, como foi definida por um de seus seguidores, ao ‘aprimoramento da raça humana pela seleção dos genitores tendo como base o estudo da hereditariedade’”.

[34] A Constituição brasileira de 1934 era controvérsia. Se, por um lado, detinha “um perfil mais social e interventor do Estado” (Souza Neto; Sarmento, 2014, p. 117), de outro, pregava a ideologia de “pureza racial” presente na eugenia. Portanto, tão contraditória ao ponto de buscar promover igualdade material e utilizar teorias e técnicas de separação do ser humano.

[35] Os livros didáticos, as escolas e a ciência positivista ressaltam e priorizam a ideologia do branqueamento e raramente enfatizam os pintores, escritores, pensadores e revolucionários negros e a contribuição destes na construção da historiografia nacional. Dessa forma, o âmbito escolar e universitário revela-se como agentes potencializadores do sistema educacional excludente que propaga relações ideológicas de poder e saber, tornando-o seletivo.

[36] Refere-se aqui à mídia como instrumento ideológico a serviço do Estado burguês.

[37] Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/sociedade/matamos-amarildo-1601.html>. Acesso em: 21 out. 2016.

[38] Disponível em: <http://negrobelchior.cartacapital.com.br/pms-são-presos-por-fuzilamento–de-jovens-negros-no-rio>. Acesso em: 21 out. 2016.

[39] Segundo Gabriella Barbosa (2015, p. 33), “na narrativa em torno da história recente do Brasil, há que se evidenciar a relação estabelecida entre o governo militar e alguns setores da sociedade civil, apoiadoras do golpe. O estabelecimento desta relação foi uma das bases de sustentáculo do sistema ditatorial […]”.

[40] O crime de genocídio só teve “preocupação internacional” após o término da Segunda Guerra Mundial, na qual houve uma política de extermínio por parte dos nazistas voltada aos judeus, em sua maioria, além dos prisioneiros de guerra soviéticos, dissidentes políticos poloneses e ciganos.

[41] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/Ccivil_03/leis/L2889.htm. Acesso em: 04 jan. 2017.

[42] WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2011: os jovens no Brasil / Julio Jacobo Waiselfisz. — São Paulo: Instituto Sangari; Brasília, DF: Ministério da Justiça, 2011.

[43] Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/brasil-36461295>. Acesso em: 05 jan. 2017.

[44]Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/202785-jovem-negro-corre-5-vezes-o-risco-dobranco-de-ser-morto-no-nordeste.shtml>. Acesso em: 05 jan. 2017.

[45] Disponível em: https://nacoesunidas.org/cultura-toxica-generalizada-da-impunidade-para-crimes-de-guerra-em-darfur-esta-na-raiz-do-conflito/. Acesso em 05: jan. 2017.

[46] Disponível em: <http://memoriaebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2013-03-17/guerra-do-iraque-contabiliza-174-mil-mortes-em-dez-anos&ei=nDHzx9Fv&lc=pt-BR&s=1&m=8447host=www.google.com.br>. Acesso em: 21 out. 2016.

[47] Disponível em: <http://www.carosamigos.com.br/index.php/artigos-e-debates/5973-chacinadocabula-1ano-12-mortos-e-sentença-de-absolvição>. Acesso em: 21 out. 2016.

[48] Cerca de 1,1 milhão de pessoas foram mortas no campo de concentração de Auschwitz.

[49] Mestre em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (PPGS/UFSCar), Bacharel em Direitos pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade São Paulo (FDRP/USP) e Especialista em Direitos Humanos pela mesma universidade.

[50] Graduanda em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade São Paulo (FDRP/USP)

[51] Na década de 1970 havia um conjunto de leis que revelava a preocupação do governo militar em relação às lutas antirracistas e ao seu potencial de contestação política. Tal preocupação se expressava tanto na Lei de Imprensa, quanto na Lei de Segurança Nacional (LSN) de 1967. A primeira previa em seu art. 1º e parágrafo: não será tolerada a propaganda de guerra, de processos de subversão da ordem política e social ou de preconceitos de raça ou de classe.  A LSN em seu art. 33, item VI previa como crime a incitação ao ódio e discriminação racial‖ com agravamento de pena se o crime fosse praticado por meio da imprensa, panfleto ou escritos de qualquer natureza, radiofusão ou televisão. Além disso, o artigo 14 da referida lei previa como crime a propaganda adversa que consistia em: divulgar, por qualquer meio de publicidade, notícias falsas, tendenciosas ou deturpadas, de modo a pôr em perigo o bom nome, a autoridade, o crédito ou prestigio do Brasil.

[52]  No dia sete de julho de 1978, nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo foi realizado um ato público em protesto contra a morte de um operário negro em uma delegacia de São Paulo e contra a proibição da entrada de quatro jogadores de vôlei no Clube de Regatas Tiete por serem negros. O ato teve repercussão nacional e internacional e resultou na formação de novas organizações negras, entre estas, do Movimento Negro Unificado (inicialmente com o nome de Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial).

[53] Entre os autores citados por Munanga (1999) destacam-se Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Alberto Torres, Manuel Bonfim, Nina Rodrigues, João Batista Lacerda, Edgar Roquete Pinto, Oliveira Vianna e Gilberto Freyre.

[54] O século XIX foi marcado na ciência europeia pelo desenvolvimento das teorias raciais, do racismo biológico e da eugenia. Nas palavras de Munanga (1999): “Ao abordar a questão da mestiçagem do final do século XIX, os pensadores brasileiros se alimentaram sem dúvida do referencial teórico desenhado pelos cientistas ocidentais, isto é, europeus e americanos de sua época e da época anterior. A discussão travada por alguns iluministas a respeito do caráter ambivalente da mestiçagem, seja para explicar e confirmar a unidade da espécie humana (Buffon), seja para negá-la (Voltaire); a ideia da mestiçagem tida ora como um meio para estragar e degradar a boa raça, ora como um meio para reconduzir a espécie a seus traços originais; as ideias sobre a degenerescência da mestiçagem, etc., todo o arcabouço pseudocientífico engendrado pela especulação cerebral ocidental (…)” (p. 50).

[55] Nas palavras da intelectual afrocolombiana Claudia Mosquera “Para o caso colombiano é muito importante unir as reflexões sobre raça e ideologia da mestiçagem tri-étnica; essa última, andaime estruturante do processo republicano do século XIX, que fez difundir a ordem sociorracial se distanciado discursivamente das hierarquias da sociedade de castas colonial e proibindo, por meio de discursos público de poder como a Igreja, a escola, as universidades e os partidos políticos, que os novos cidadãos se referissem à raça, ao mesmo tempo em que favorecia certa mobilidade social àqueles que se mesclaram biologicamente, até apagar qualquer rastro da desgraça africana, e que adotaram as normas e os valores da sociedade branca-mestiça guardiã da brancura (…)” (ROSERO-LABBÉ, 2010, p. 18) (tradução nossa).

[56] A Revolução Haitiana, também conhecida por Revolta de São Domingos (17911804), foi o conflito que levou à eliminação da escravidão e à independência da ex-colônia de São Domingos, o Haiti. Em 1805, a ex-colônia foi reconhecida como o primeiro Estado independente formado por ex-escravizados e negros libertos. Nesse sentido, como aborda Marcos Lustrosa Queiroz (…) já no início do século XIX, o exemplo e o imaginário do Haiti permeavam as preocupações das elites brancas em relação ao numeroso contingente negro no Brasil. Com o objetivo de construção da nação, era necessária também a formação e a construção do ‘povo brasileiro’. Assim, antes mesmo do estabelecimento do discurso científico e do aprofundamento das fortes políticas imigrantistas de europeus na segunda metade do século XIX, ‘o povo brasileiro’ ia sendo tecido pelo ideal de embranquecimento e pela permanência de estruturas hierárquicas. Assim, “o ‘brasileiro’, como construção sócio-histórica, nasce atrelado a percepções racistas sobre os africanos e seus descendentes e tendo como pano de fundo o temor do Haiti e do Atlântico revolucionários. ” (QUEIROZ, 2017. p. 115). Para saber mais sobre a história da revolução dos negros na ex-colônia de São Domingo, ler: JAMES. C. L. R. Os jacobinos negros – Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos. Tradução Afonso Teixeira Filho. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.

[57] Para compreendermos a eficácia do ideal de branqueamento, inclusive no segmento negro cabe acionar as reflexões de Souza (1983) sobre a dimensão subjetiva do racismo. Na perspectiva da autora, a população negra, tendo que se livrar da concepção tradicionalista que o definia economicamente, política e socialmente como inferior e submisso, e não possuindo uma outra concepção positiva de si mesmo, viu-se obrigada a tomar o branco como modelo de identidade, ao estruturar e levar a cabo a estratégia de ascensão social. A sociedade escravista, ao transformar o africano em escravo, definiu o negro como raça, demarcou o seu lugar, a maneira de tratar e ser tratado, os padrões de interação com o branco e instituiu o paralelismo entre cor negra e posição social inferior (p. 19).

[58] Professora Assistente da UNIRIO e doutoranda do PPGSD/UFF

[59] Acadêmica de direito da UNIRIO

[60] Mestre em direitos humanos pela UFJF e advogada da Criola

[61] Acadêmico de direito da UNIRIO

[62] Como se verifica no trecho da petição do Instituto de Defesa da Vida e da Família: “A eliminação de bebês não é uma questão religiosa, embora muitos queiram levar o tema para esse caminho e não seja possível excluir a doutrina cristã desse assunto, conforme se verá no capítulo pertinente.” (grifo nosso)

[63] A Frente Parlamentar em Defesa da Família e Apoio à Vida que tem como presidente o senador e pastor evangélico Magno Malta. No dia do lançamento desta entidade, o senador presidente defendeu o projeto do “Estatuto da Família” e afirmou categoricamente que iria lutar contra campanhas pelo reconhecimento do casamento homossexual, da legalização do aborto e das drogas.

[64]  Conselho Federal de Psicologia; Conselho Regional de Psicologia – DF e o Conselho Regional de Psicologia de SP.

[65] Amici Curiae deferidos: (i) Partido Social Cristão (petição nº 13776/2017), (ii) União dos Juristas Católicos de São Paulo – UJUCASP (petição nº 15803/2017) e (iii) Instituto de Defesa da Vida e da Família (petição nº 17406/2017).

[66] http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/AudnciaPblicaADPF442.pdf. Acesso em: 23/03/18

[67] http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=373569. Acesso em: 26/03/18.

[68]  Aguardando Designação de Relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC).

[69] Apensado ao PL 313/2007.

[70] Art. 103, CF § 3º Quando o Supremo Tribunal Federal apreciar a inconstitucionalidade, em tese, de norma legal ou ato normativo, citará, previamente, o Advogado-Geral da União, que defenderá o ato ou texto impugnado.

Lei 9.882, § 2o O relator poderá ouvir os órgãos ou autoridades responsáveis pelo ato questionado, bem como o Advogado-Geral da União ou o Procurador-Geral da República, no prazo comum de cinco dias.

[71] http://criola.org.br/

[72] Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5144865

[73] Disponível em: http://www.defensoria.rj.def.br/uploads/arquivos/a144fd918d944afebc6fd61401e2e0e9.pdf

[74] Trabalho apresentado ao Espaço de Discussão Questão racial e o direito do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[75] Doutorando em Teoria Jurídica Contemporânea pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba. Advogado. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Santa Cruz

[76] Apesar de diversas denominações, “cigano” é um termo genérico que teria surgido na Europa do Século 15 (BORGES, 2007), que geralmente transmitem um significado depreciativo (GHEORGHE, 1991), sendo que “rom” ou “roma”, “calon” ou “calin” representam denominações mais aceitas pelos próprios ciganos. Hoje, no Brasil, costumam-se distinguir pelo menos três grandes grupos étnicos reconhecidos como ciganos: os rom; sinti e os calons. Especula-se haver em torno de meio milhão de pessoas, 291 acampamentos, localizados em 21 estados. Os Rom brasileiros pertencem, principalmente, aos subgrupos kalderash, machwaia e rudari, originários da Romênia; aos horahané, orinduos da Turquia e da Grécia, e aos Lovara, com forte presença na Europa central (Hungria, Polônia, Eslováquia, República Tcheca e Alemanha). Os calons possuem grande expressvidade no território brasileiro, são associados aos povos tradicionais que também vieram de Portugal e Espanha, desde o final do século XVI, quando foram em grande parte expulsos em direção às colônias. Os sinti chegaram em nosso país principalmente após a Primeira e Segunda Guerra Mundial, vindos da Alemanha e da França, onde foram massivamente perseguidos e submetididos aos campos de concentração (BRASIL, 2013).

[77] Calon e calin, na língua shib, significa, respectivamente, homem cigano e mulher cigana. Nessa linguagem, juron e jurin correspondem a homem não cigano e mulher não cigana, terminologias que serão adotadas no presente trabalho.

[78] A escolha por Maria Jane, como principal referência para esse artigo, dá-se pelo fato da minha experiência e parceria com a Associação Comunitária dos Ciganos de Condado, durante 3 anos em que fui coordenador do projeto de extensão de “Assessoria Jurídica Universitária Popular, Direitos Humanos e Comunidades Tradicionais” que atuou com e para a comunidade cigana do município de Condado, onde Maria Jane é a principal referênica interna e externa.

[79] Aproveitou-se que haveria a presença de referências ciganas de diferentes partes do Brasil em Brasília, na IV CONAPIR, com direito à ajuda de custo (deslocamento e diária) proporcionada pelos governos estaduais, para realizar espaços específicos para discutir a questão cigana na Procuradoria Geral da República, que passou a comemorar o “maio cigano”, a partir de 2018, assim como uma sessão especial no Congresso, onde tramita um projeto de lei intitulado “Estatuto do Cigano”, de autoria do senador Paulo Paim (Partido dos Trabalhadores).

[80] Referência à música “Travessia”, conhecida na voz de Milton Nascimento.

[81] Segundo Gargarella (2014), essas características estão relacionadas a dois fatos históricos mais significativo da época: a crise política e de direitos humanos decorrente das ditaduras e governos autoriários, e a a crise econômica relacionada a com a compilação de programas de ajuste fiscal, característica da década de 1990. Em linhas gerais, para o autor, as novas Constituições trouxeram os compromissos sociais dos documentos anteriores, porém, ao mesmo tempo, mantiveram a tradicional estrutura do poder verticalizado.

[82] Paul E. Little (2004) faz uma ressalva quanto ao conceito de povos tradicionais, pois, a partir de uma perspectiva etnográfica, por exemplo, as diferenças entre as sociedades indígenas, os quilombos, os caboclos, os caiçaras e outros grupos ditos tradicionais – além da heterogeneidade interna de cada uma dessas categorias – são tão grandes que não parece viável tratá-los na mesma classificação, o conceito de povos tradicionais contém tanto uma dimensão empírica quanto uma dimensão políticas, dimensões inseparáveis. O interesse do autor é situar o conceito no plano de reivindicações territoriais dos grupos sociais fundiariamente diferenciados frente ao Estado brasileiro. Para tanto, a opção pela palavra povos – em vez de grupos, comunidades, sociedades ou populações – coloca esse conceito nos debates sobre os direitos desses povos e esses direitos transformam-se em instrumento estratégico nas lutas por justiça social. O uso do conceito de povos tradicionais procura oferecer um mecanismo analítico capaz de juntar fatores como a existência de regimes de propriedade comum, o sentido de pertencimento a um lugar, a procura de autonomia cultural e práticas adaptativas sustentáveis que os variados grupos sociais aqui analisados mostram na atualidade.

[83] O segundo ciclo (1989-2005), que Raquel Fajardo (2011) chama de “constitucionalismo pluricultural”, são reconhecidas o direito (individual e coletivo) à identidade e à diversidade cultural, já introduzidas no primeiro ciclo, e desenvolvem ademais os conceitos de “nação multiétnica/multicultural” e de “Estado Pluricultural”, qualificando a natureza da população e avançando na redefinição do caráter do Estado. São os casos das Constituições da Colombia (1991), México e Paraguai (1992), Peru (1993), Bolívia e Argentina (1994), Equador (1996 e 1998) e Venezuela (1999). O terceiro ciclo, que a autora chama de “constitucionalismo plurinacional”,  é composto por dois processos constituintes: Bolívia (2006-2009) e Equador (2008), documentos que propõem uma refundação do Estado a partir do reconhecimento explícito das raízes milenares dos povos indígenas ignorados na primeira fundação da republicana e que, portanto, coloca o desafio histórico de pôr fim ao colonialismo.

[84] Parente ainda acrescenta que a limitação no que tange ao controle social do orçamento, no âmbito federal, frustrou as expectativas de que se realizariam iniciativas de controle social do orçamento federal, dado o acúmulo de experiências do PT e de outros partidos de esquerda, em governos municipais e até em alguns casos no plano estadual. Exceto o processo de consulta sobre o Plano Plurianual (PPA) realizado em 2003 em audiências públicas realizadas com a sociedade civil organizada em diversos estados do Brasil, não foram realizadas outras iniciativas relevantes no sentido de democratizar a discussão do orçamento público, nem sequer disponibilizando as informações completas sobre o mesmo (PARENTE, 2008, p. 17).

[85] Louise Silva (ano) reconhece que a capacidade que as conferências e mesmo outras instituições participativas têm em influir sobre as alternativas de políticas e as decisões públicas. As decisões públicas estão submetidas a uma imensa variedade de influências, sendo praticamente inviável determinar uma única fonte como determinante. Os governos são influenciados por seu programa de governo e compromissos eleitorais, por seu partido e coalizações de partidos que os sustentam, pela correlação de forças no parlamento e na sociedade, pela conjuntura econômica e internacional, e um sem número de variáveis objetivas e subjetivas, ou seja, não influenciado apenas pelas conferências e demais espaços de democracia participativa.

[86] A sociedade civil em Gramsci seria o espaço de representação de interesses de classe e palco de um pluralismo de sujeitos, chamados de “privados” (associações, sindicatos, partidos políticos ONGs, igreja, entre outros), se configura como um espaço de disputa dos sujetos coletivos, dos “aparelhos privados” pela hegemonia, caracterizando-se por uma dimensão absolutamente contraditória e de enfrentamento. Já a a sociedade política seria formada pelos aparelhos burocráticos, administrativos e repressivos (polícia, poder judiciário entre outros). Gramsci, atualizando o pensamento marxista, entendeu ser necessário identificar a sociedade civil não mais na infra-estrutura, mas sim super-estrutura, como parte que compõe este Estado ampliado juntamente com a sociedade política.

[87] Segundo Ivana Jinkings, “o golpe propriamente dito remonta a 29 de outubro de 2015, quando foi lançado, pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), copartícipe do governo e sigla do vice-presidente Michel Temer, o plano Uma ponte para o futuro; em 2 de dezembro o então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (um dos chefes do ardil, atualmente afastado do cargo e em vias de ter seu mandato cassado por corrupção) abriu o processo de impeachment contra a presidente, alegando crime de responsabilidade com respeito à lei orçamentária e à lei de improbidade administrativa – as decantadas “pedaladas fiscais” [2] ; em 29 de março de 2016 o PMDB se retirou do governo; no dia 17 de abril o plenário da Câmara aprovou o relatório favorável ao impedimento da presidente, numa sessão em que parlamentares indiciados por corrupção e réus em processos diversos dedicaram seu voto a Deus e à família, numa espetacularização execrável da política; em 12 de maio, o Senado Federal também aprovou a abertura do processo que culminou no afastamento de Dilma Rousseff da presidência” (2017, p. 12-13).

[88] Referência a carta que Michel Temer divulgou, publicamente, como uma forma de demarcar seu rompimento, mais explícito com a presidente Dilma.

[89] Para Murilo Cleto, “Temer usa a rejeição dos brasileiros à política para implementar uma agenda que jamais passaria pelo crivo das urnas e que nem o PSDB teve coragem de expor em seu programa de governo. É como se as medidas de austeridade, que envolvem cortes em programas sociais e a desvinculação constitucional de gastos mínimos com saúde e educação, estivessem acima da política, como o mal necessário da tal “ponte para o futuro”, como o PMDB batizou o documento decisivo para que o empresariado decidisse subsidiar a deposição de Dilma, que nos leva, na melhor das hipóteses, para os anos 1990” (2017, p. 39).

[90] A emenda constitucional nº55/2016, aprovada em dezembro de 2016, inseriu no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias um “Novo Regime Fiscal”, com o intuito de limitar as despesas nas áreas primárias, como saúde e educação.

[91] “O orçamento do Ministério de Minas e Energia aumentou em 75% (R$4,04 bilhões em 2017 para R$ 7,06 bilhões em 2018), enquanto houve redução para agricultura familiar (36,3%), igualdade racial (31,3%), indígenas (5,9%) e meio ambiente (12,2%), no mesmo período” (ZIGONI, 2017).

[92] Referência a música canta por Elza Soares, do album “Deus é mulher”.

[93] Esse evento representou uma possibilidde de vivenciar, de ser apresentado a uma série de conhecimentos, cosmologias dos povos e comunidades tradicionais brasileiras que são praticamente ignorados no processo de ensino das faculdades de direito, altamente fragmentado e embasado em “certezas” epistêmicas que fazem a universidades roubarem do futuro jurista a possibilidade de pensar alternativas para a sociedade, reforçando o véu da ignorância e a insensibilidade, impondo-lhe um pensamento único como válido e gerando uma postura autômata ante o Direito, a sociedade e os sujeitos. Diante dessa realidade, Warat cria um movimento que chama de “despinguinização dos estudantes e operadores do Direito”. Entende que precisamos de juristas que entendam de gente ao invés de entender apenas de normas. Assim, criou “a imagem do pingüim vermelho, um pingüim que simboliza o rompimento com a forma tradicional de ensinar e pensar o Direito, para despertar a sensibilidade do aluno na construção do homem para uma sociedade melhor”. Disponível em: <http://luisalbertowarat.blogspot.pt/2007/04/educao-pela-despinginizao.html>. Acesso em 24 jun. 2018.

[94] Adota-se psedônimos que não compromentem o desenvolvimento desse artigo.

[95] Jane sabia da minha curiosidade em conhecer ciganos e ciganas pertencentes a outras etnias, sendo que, até o momento (na conferência), havia tido contato apenas com a comunidade calon que habita o Nordeste brasileiro.

[96] Adota-se psedônimos que não compromentem o desenvolvimento desse artigo.

[97] A categoria “amigo” corresponde aos não ciganos que oferecem apoio e auxílio ao povo cigano.

[98] A categoria “cigano de verdade” ou, “cigano de pai e mãe” são categorias bastante usadas, assim como “falso cigano” para identificar e delimitar os atores que circulam em torno da questão cigana.

[99] Ao falar em solidariedade como um valor militante que adoto para minha vida, refiro-me ao fato de fazer uma opção de classe, de lutar para e com os povos ciganos. A solidariedade de classe é algo fundamental para que outras categorias, como eu, trabalhador da educação, professor universitário e pesquisador, se somem nas lutas pela defesa de direitos conquistados e a garantia do respeito à dignidade humana, em outras palavras, “buscar alternativas para elevar o ser humano a uma nova categoria, tanto na qualidade de vida quanto na qualidade de consciência e na construção de novos valores. Solidariedade é mais do que doar o que nos sobra, mas também o que nos pode fazer falta, por entendermos que o ser humano tem esta possibilidade de permitir que todos os povos tenham o direito de satisfazer suas necessidades mesmo que isto dependa da ajuda e da participação solidária de todos” (BOGO, 2009, p. 58-59).

[100] Nas palavras de Ademar Bogo, a “ternura significa reconhecimento. Reconhecer que há vida em tudo. […] A ternura como valor está na linha do aperfeiçoamento do comportamento político e humano de um lutador do povo na sua relação com a coletividade. ” (BOGO, 2009, p. 65-66).

[101] Adota-se um psedônimo que não comprometem o desevolvimento desse artigo.

[102] Nas audiências públicas realizadas pelo MPF em Patos, interior da Paraíba, mais de uma calin apresentou essa mesma queixa, de serem intimidas, até mesmo pela polícia, por estarem trabalhando com a leitura de mãos ou de cartas (SILVA; LIMA FILHO, 2018).

[103] Adota-se um psedônimo que não comprometem o desevolvimento desse artigo.

[104] Raji é uma das pessoas que foi acusa de não ser uma “cigana de verdade”.

[105] Nos espaços que aconteceram no auditório principal, onde todos seguimentos estariam reunidos, uma palavra de ordem (em forma de grito) e um cartaz ficaram, respectivamente, evidentes: Fora Temer e Lula Livre. O ministro dos Direitos Humanos, assim como demais representantes do governo, tiveram dificuldades para iniciar e desenvolver seus discursos diante de gritos de “golpistas”, mas, especialmente “Fora Temer”. Posso estar enganado, mas não me recordo de nenhum cigano se somar às manifestações. Ao mesmo tempo, a maioria, pelo menos, se mostrou indiferente aos protestos, exceto Dona Maura que afirmou que “isso (os gritos) é um erro”. Por sua vez, Maria Jane inicia sua fala durante a audiência no Senado Federal falando “Fora Temer, Lula livre”, assim como Lu Na declara, em sua oportunidade fala, que “não estaríamos aqui se não fosse o presidente Lula” (29 de maio de 2018).

[106] Como percebemos, o debate acerca do racismo não pode se esgotar no colorismo.

[107] Barth (2000), em seus estudos, aponta, como um equívoco, a perspectiva de alguns antropólogos em definir “isolados culturais”, o deixa clara a dificuldade dos autores em tratar teoricamente as complexas interações entre o social e o cultural, reificando esses dois níveis da realidade através da equação “uma sociedade – uma cultura”. Barth A contribuição de Barth (2000) na discussão dos processos de afirmação e/ou manutenção da identidade é bem conhecida. Seu conceito de grupo étnico leva em consideração o constante movimento de construção de “fronteiras” ou “limites” organizacionais, culturais e políticos a partir dos quais os grupos distinguem-se uns dos outros. Em grupos aparentemente isolados, seria possível delinear de forma relativamente simples os atributos utilizados para definir um grupo étnico. Entretanto, Barth já observava, na década de 1960, que não existem isolados naturais e que as zonas limítrofes são áreas de contato e interação ou “zonas de fronteiras” (HANNERZ, 1997, p. 16).