ESPAÇO DE DISCUSSÃO 2: DIREITO E MARXISMO

  

Artigo


A contribuição do direito na construção da ideologia do amor livre: uma análise crítica dos discursos jurídicos acerca da poliafetividade[1]

The contribution of law in the construction of the ideology of free love: critical analysis of legal discourses on polyactivity

 

Camila Saran Vezzani[2]

Danilo Saran Vezzani[3]

 

 Resumo: O trabalho pretende tratar da contribuição que o campo jurídico presta para a manutenção e reprodução da “ideologia do amor livre”. Para tal intento utiliza também como base teórica as análises de outras duas ideologias, que presentes no campo jurídico, são os sustentáculos do universo discursivo deste campo. A metodologia utilizada consiste no uso da abordagem metodológica indutiva, na qual parte de casos particulares para chegar a uma verdade geral ou universal. Para isso, serão utilizados três métodos de pesquisa: a) bibliográfico (a partir de material já publicado, como livros, artigos, periódicos, etc); b) jurisprudencial que foi feita no sítio do Superior Tribunal de Justiça; c) análise da série documentário “Amores Livres” produzida pelo Canal GNT.

Palavras-Chave: Ideologia do Amor Livre; Poliafetivida; Família; Forma jurídica; Forma Mercadoria.

Abstract: The work intends to deal with the importance of the field for the maintenance and reproduction of the ideology of free love. For more information on how the analyzes of two other ideologies, which are not present in the field, are the sustainers of the discursive universe of this field. By the way, there is no problem of opinion. For this, three research methods were used: a) bibliographical (from already published materials such as books, articles, periodicals, etc); b) jurisprudential that was done in the place of the Superior Court of Justice; c) analysis of the documentary series “Amores Livres” carried out by the GNT Channel.

Keywords: Free Love Ideology; Polyacetate; Family; Legal form; orm Merchandise.

 

Introdução

O trabalho pretende tratar da contribuição que o campo jurídico presta para a manutenção e reprodução da “ideologia do amor livre”. Para tal intento utiliza também como base teórica as análises de outras duas ideologias, que presentes no campo jurídico, são os sustentáculos do universo discursivo deste campo: a ideologia da forma-mercadoria (cf. PACHUKANIS, 2017) e a da verdade (cf. FOUCAULT, 2012).

A referida consulta, torna-se essencial na medida em que se a “Ideologia do Amor Livre” é propagada por certos discursos jurídicos – como estão convencidos os autores deste resumo – de que a forma jurídica não é mero invólucro, mas condição de expressão necessária que deve se submeter para estar presente no supracitado universo discursivo. Como isso em mente, pretende-se nesse artigo conceituar a “Ideologia do amor Livre”, para analisar a sua repercussão no universo jurídico.

Embora não se negue que “Ideologia do Amor Livre” enfrente resistências no campo jurídico e seja obrigada a se submeter as suas normas, é por ele que tenta colocar-se como universal e rebaixar todas as outras ideologias concorrentes a posição de políticas e retrógadas.

A metodologia utilizada consiste no uso da abordagem metodológica indutiva, na qual parte de casos particulares para chegar a uma verdade geral ou universal. Para isso, serão utilizados três métodos de pesquisa: a) bibliográfico (a partir de material já publicado, como livros, artigos, periódicos, etc); b) jurisprudencial que foi feita no sítio do Superior Tribunal de Justiça; c) análise da série documentário “Amores Livres” produzida pelo Canal GNT.

Considerando que o artigo pretenderá trazer à tona leis e aspectos sociais que se relacionam à “Ideologia do Amor Livre”, a abordagem da problemática levantada se dará pelo método quali-quantitativo, já que mistura elementos quantitativos com explicações qualitativas dos fenômenos acaba sendo o ideal para a pesquisa explicativa. Assim, espera-se que esse artigo possa contribuir com a temática, e provocar novas discussões e novas pesquisas.

1. O que é ideologia e o que é ideologia amor-livre?

Por mais que seja tentador e de certo modo prudente – devido a crítica, por vezes verdadeira, de que nas ciências sociais impera a prolixidade – iniciar o artigo explicitando o que se entende por “ideologia amor-livre”; faz-se necessário, previamente, abordar o que se ‘entende por ideologia. Tal necessidade advém do notório fato de que o conceito de “ideologia”, assim como diversos outros das humanidades (filosofias e ciências sociais), é usado por variados autores de maneiras distintas, bem como, caiu nas graças do senso comum, sendo que neste é usado de modo pouco criterioso. Essa polivalência do conceito, que é em parte consequência do problema de que em questões sociais todos os agentes se acham capazes de opinar, torna imperativa uma definição precisa do mesmo se se pretende algum grau de cientificidade. Dito isso, convém antes de encerrar esse parágrafo expor a divisão que será feita neste capítulo: a) definir-se-á o que se entende por ideologia; b) expor-se-á de maneira resumida e em linhas gerais o que é o uso burguês da “ideologia amor-livre”.

1.1 Do conceito de ideologia

Uma das maneiras de precisar o conceito de “ideologia” é partir de seus usos mais comuns e aperfeiçoá-los. Para tanto, sem pretender esgotar ou hierarquizar exatamente os usos, utilizar-se-á um bastante comum: (a) ideologia como algo irreal ou ilusório. Para cumprir com a proposta desta seção é interessante, em um primeiro momento, desenraizar o exemplo escolhido; ou seja, imaginar que ele está sendo usado por agentes sociais estranhos uns aos outros e em situações atípicas. Tal interesse, justifica-se na medida em que permite evitar tanto os momentos em que o uso da definição (a) poderia ser correto – por exemplo, quando um cientista social debate com seus pares[4] –, bem como, aqueles momentos em que perguntar pela precisão de uma definição (seu grau de verdade) incutiria no discurso um problema que ele se coloca apenas de maneira tácita – por exemplo, quando se estaria inclinado a explicar a ocorrência de uma conversa com o uso da expressão “jogar conversar fora” – o que levaria a propagação da “ideologia da ideologia”[5].

Valendo-se, portanto, de uma situação atípica, onde a comunicação encontrará com mais facilidade uma ou mais dificuldades, não é improvável que um dos agentes tenha problemas em aceitar a definição (a). Afinal, as palavras “irreal” e “ilusório” não são usadas das mesmas formas por atores sociais tão díspares como os que estão sendo propostos nesse exemplo – para ilustrar basta que se perceba a distância que pode existir entre aquilo que um padre entende por uma dessas palavras com aquilo que um filósofo ou um cientista entendem. Em que pese as diferenças de usos, seria possível, em teoria, que os agentes sociais após meticuloso debate[6] chegassem a um significado mais universal (racional) dos termos em questão; isto pois, como os linguistas e antropólogos já há muito mostraram de uma perspectiva bastante empírica (cf. WAGNER, 2015), as linguagens não são fechadas em si mesmas (cf. WITTGENSTEIN, 1999) e, por conseguinte, todas podem buscar a maior racionalidade possível (cf. QUINE, 2011). Neste caso, as definições falhas que surgissem ao longo do debate poderiam ser corretamente chamadas de ideológicas no sentido de (a).

Todavia, o caso acima proposto é bastante difícil de acontecer já que uma das consequências da busca pela definição mais racional de ideologia é passar a regulação de seu uso para o âmbito científico. Para aclarar tal dificuldade é possível, reutilizando os personagens supracitados, pensar que a atividade conjunta dos agentes, caso ocorresse, beneficiaria politicamente o cientista em prejuízo dos demais, o qual passaria a contar com mais capitais simbólicos[7] para dizer o que é verdade tanto em matéria religiosa quanto em matéria filosófica. Dessa forma, seria mais provável que um ou todos os agentes, buscando preservar seus próprios capitais[8], laçassem mão de algum tipo de ideologia; isto é tratassem como universal uma definição que é particular[9]. Tem-se nesta atitude hipotética dos agentes o primeiro aperfeiçoamento para precisar a definição (a): o problema dela não é ela em si, mas sim os usos que se podem fazer dela. Em outros termos, a definição (a) pode ser precisa ou aparentar precisão, sendo que é justamente a busca por aparentar precisão que define o grau ideológico de uma definição.

  O próximo passo para aperfeiçoar a definição (a) é responder: como ela pode ser precisar ou aparentar precisão? Ela será universal se cumprir os requisitos da epistemologia e da metodologia científica; de outra forma, ela será universal quando estiver relacionada (emaranhadas) com as demais teorias científicas, sendo tanto mais precisa quanto mais teorias se relacionarem com elas (cf QUINE, 2011, p. 11-35). Tal encadeamento teórico não precisa ser perfeito já que não existe nenhuma teoria que se garanta por si só, mas deve ser realizado priorizando o relacionamento com aquelas teorias que mais gozam de comprovações indiretas (dentre elas a lógica e a matemática) (cf. QUINE, 2010). De outro lado, ela será ideológica quando for usada como verdadeira em si ou buscar um suporte em alguma teoria ou método pretensamente verdadeiro e imutável.

  Para facilitar a compreensão do que viria a ser um uso ideológico de (a) convém se valer de um exemplo. Este exemplo, que por se ligar com um produto cultural tradicionalmente ocidental (cf. MAUSS, 2015, p. 181-312) acaba sendo bastante recorrente, é aquele que liga a definição (a) à ontologia do sujeito cognoscente. Tal ontologia que encontra seu apogeu, segundo muitos autores (cf. BASTOS e CANDIOTTO, 2008, p. 21), na obra kantiana, divide o mundo entre sujeito e objetos; sendo que nela o primeiro pode conhecer os segundos, inicialmente, por meio da experiência a qual apreendida por “categorias sintético a priori” – que condicionam e limitam universalmente o conhecimento dos objetos (o conhecimento da coisa em seria impossível) – transforma-se em conhecimento quando, por meio do pensamento privado, é ligada as verdades em si (conhecimentos analíticos) (cf. KANT, 1989). Nesse sentido, a definição (a) poderia ser explicada da seguinte forma: todo o juízo que desrespeita a divisão entre conhecimentos sintéticos e analíticos ou quer ir além do que as categorias transcendentais permitem é ideológico no sentido (a).

Uma das primeiras críticas ao caráter ideológico da “ontologia do sujeito cognoscente” em sua vertente kantiana foi feita por Hegel, o qual sustentou que ela não seria universal, mas sim fruto de um momento histórico (cf. SALGADO, 1996). Entretanto, tal crítica foi feita tendo por base a ideologia de que o pensamento, por ser capaz de propor a coisa em si para além do objeto, era absoluto (cf. HEGEL, 2008). Por conseguinte, pode-se dizer que a primeira crítica consistente a esta tradição ocidental, em matéria de ciências sociais, foi feita por Marx e Engels. Tal crítica atacou tanto o caráter “passivo” e pretensamente universal da ontologia kantiana (ENGELS, 2015, p. 40) quanto a inconsequência da ideia hegeliana do pensamento como algo primário e absoluto – o que é bem retratado na sátira feita por Marx da condição “maçanica” das maçãs (cf. ENGELS, MARX; 2014).

Contudo, para superar essas ideologias, faz-se necessário dar um passo além; isto é, impende reconhecer que não se cabe perguntar por uma realidade para além da linguagem (cf. WITTGENSTEIN, 1999). A consequência desse reconhecimento é que não existem linguagens ideológicas, apenas usos ideológicos. De outro modo, a inexistência de conhecimentos puramente analíticos ou puramente sintéticos, bem como, a descaracterização do pensamento como uma pré-linguagem e o reconhecimento de que ele é apenas mais uma linguagem; implica no reconhecimento de que não existem ideologias apenas usos ideológicos de teorias, conceitos e ideias (cf. QUINE, 2010) – sendo ideológico todo o uso de um dado “jogo de linguagem” como se ele fosse universal (cf. WITTGENSTEIN, 1999).

Com base no exemplo de um uso ideológico e de sua crítica é possível agora fazer os últimos aperfeiçoamentos na definição (a) e passar para a próxima seção: ‘Ideológico é todo o uso de um jogo de linguagem que, sem cumprir os requisitos epistemológicos e metodológicos do discurso racional, é tratado como universal. Neste sentido, tendo em vista o discurso racional, é possível tratá-lo apenas como algo irreal ou ilusório. Contudo, tal tratamento não o desvalida enquanto produto cultural concreto possivelmente capaz de produzir efeitos; apenas põem em descrença sua capacidade de explicar esses efeitos e o desabilita enquanto jogada possível no jogo de linguagem da ciência’.

1.2 Do conceito de ideologia amor-livre

 A primeira coisa que se deve ter em mente para entender o conceito de ideologia amor-livre é que ela é um subgênero da ideologia do gosto (cf. BOURDIEU, 2011), bem como, a ideologia do gosto é um subproduto da ideologia do “homo economicus”, a qual por sua vez é prima do “homo juridicus” em razão do ascendente em comum que é a ideologia da “alma” (cf. SUPIOT, XXXX). Assim, ainda que a ideologia do amor- livre se apresente como algo que sempre existiu seu nascimento pode ser bem datado com “A Fábula das Abelhas” de Mandeville (cf. MAUSS, 2015, p. 181-312). Em segundo lugar, como consequência de sua origem histórica, ela não surgiu em um vácuo de crenças, mas sim cercada de outras ideologias com as quais competiu e compete. Em terceiro lugar, como foi estabelecido na seção anterior, não existem funções anteriores aos “jogos de linguagem”; portanto, diferentemente de uma teoria científica que não conviveria bem com uma oposta, os usos ideológicos são maleáveis o suficiente para conviver em harmonia, mesmo sendo contraditórios entre si. Em último lugar, como consequência da consideração anterior é tanto inviável, quanto desnecessário, pretender descrever todas as “n” formas diferentes que a “Ideologia do Amor Livre” pode assumir.

Após essas considerações, passar-se-á as descrições das características mais gerais da “Ideologia do Amor Livre”, a primeira é que como subproduto do homo economicus esta tem como átomo de suas análises o “bicho” humano guiado pelos seus impulsos e pré-disposições naturais. Dentro dessa visão, os homens, bem como, suas famílias são elementos anteriores à constituição da sociedade, de modo que toda interferência da sociedade e do estado na determinação natural dos indivíduos é vista de maneira negativa. Contudo, diferindo do argumento puramente econômico que defende a autonomia do capital frente a sociedade e ao Estado para a evitação de crises econômicas, a “Ideologia do Amor Livre” apela para uma argumentação ora moral – os indivíduos deveriam ter o direito de buscar seus interesses naturais – ora psicológica – os indivíduos sofrem quando são obstruídos de realizarem seus desejos naturais. Não é difícil perceber que  a “Ideologia do Amor Livre”, busca romper as relações que família e Estado tiveram na baixa Idade Média e no Renascimento (cf. POLANYI, 2012), ademais, o uso de argumentos não econômicos é feito para não legitimar o caráter nobiliárquico que as  famílias burguesas ainda carregam.

Uma segunda característica sobre a “Ideologia do Amor Livre” é que assim como a ideologia do gosto ela é uma resposta “revolucionadora” contra a distinção hierárquica da nobreza feita pelo “sangue azul”. Com a ética burguesa torna-se inaceitável que existam distinções puramente hierárquicas. Assim, as únicas distinções que podem ser feitas entre indivíduos são aquelas derivadas dos dons e preferências naturais (cf. LE GOFF, 2014). Assim como,  a ideologia educacional permite o branqueamento de capitais materiais em capitais simbólicos no mercado profissional, a “Ideologia do Amor Livre” realiza o branqueamento dos capitais no mercado matrimonial (cf. BOURDIEU, 2011).

Uma terceira característica é que a “Ideologia do Amor Livre” constitui um “ethos” de fundo da burguesia. Desta forma, as brigas de reprodução no interior da classe burguesa podem ser realizadas por meio do grupo que se propõe realizar de maneira mais plena a “Ideologia do Amor Livre” (cf. BOURDIEU, 2012).

Esboçadas as linhas gerais da “Ideologia do Amor Livre” torna-se possível passar para o próximo capítulo. Todavia, para sanar possíveis dificuldades que o leitor possa vir a ter convém uma ressalva, referente àquilo que foi estabelecido no primeiro parágrafo dessa seção; ou seja, ainda que seja difícil pensar na ocorrência “pura” da “Ideologia do Amor Livre”, isto não a invalida enquanto capaz de produzir efeitos, pelo contrário, pode ser justamente sua ação conjunta e concorrente com outra ideologia a condição de seu sucesso.

  1. Síntese crítica do material encontrado

 2.1 Do discurso dos trabalhos jurídicos

 Foram analisados 9 trabalhos acadêmicos sobre a temática. Nestes trabalhos duas coisas se destacam: a primeira, é que a sua aparente cientificidade garante o convencimento dos próprios juristas como do público não especializado; a segunda, embora a argumentação seja feita com base no princípio da afetividade e nesse sentido seja muito semelhante as características gerais da “Ideologia do Amor Livre” há em todos os trabalhos uma preocupação em encontrar nas normas já estabelecidas as possibilidades legais das famílias constituídas pelas inclinações naturais dos agentes.

Tal visão incute nos juristas que são predominantemente pertencentes aos quadros burgueses, primeiro, o sentimento de que o modelo correto de família é aquele proposto na “Ideologia do Amor Livre”; em segundo lugar, a ideia de que as normas jurídicas já permitiriam a concretização desses modelos, convidando as tentativas de famílias não ortodoxas a buscarem uma solução jurídica o que desabona outras possibilidade políticas; em terceiro lugar a inaplicação da “Ideologia do Amor Livre” na mesma medida que barbariza àqueles contrários ao “ethos” burguês garantem a lenta acomodação das elites locais ao “ethos” do capital ao mesmo tempo que encerra as condições materiais e simbólicas de acesso a esse “ethos” dentro da própria classe burguesa.

 2.2 Síntese da Série Amores Livres

 Em 2015, o canal GNT (vinculado ao Grupo Globo) exibiu em sua programação a série-documental intitulada de “Amores Livres”, dirigida por João Jardim. A série pretende apresentar ao público, ao longo de dez episódios, por meio de 16 histórias de indivíduos, que possuem como semelhança entre si, a sua inadequação com relações classificadas por eles como monogâmicas, e na visão deles, o rompimento da ideia de “amor romântico”.

Primeiramente, antes de iniciar qualquer apontamento sobre a série é necessário apontar que os pesquisadores escritores desse trabalho não estão inseridos em relacionamentos poliafetivos, de maneira que as suas percepções, poderiam ser diferentes. Também não se pretende menosprezar qualquer discurso, tampouco desqualificar a voz desses indivíduos dentro desse núcleo. Igualmente, ao fazer a análise da série, até em decorrência das limitações dessa pesquisa, limites páginas, não foi possível verificar juntamente a pessoas que se classificam como pertencentes ao grupo de poliafetividade como se sentiram diante da exposição alcançada pela série, tampouco se o apresentado por ela de fato reflete a vida desses indivíduos, e se de alguma forma pelo surgimento da série houve algum resultado político que tenha atingido diretamente essas pessoas.

Ainda, esclarece-se que também não foi possível ampliar e averiguar os dados apresentados pela série, até mesmo no sentido de obter maiores informações sobre os indivíduos ali retratados fora dos limites dos 10 episódios gravados. Assim, todas as percepções sobre os assuntos, pessoas e argumentos aqui apresentados foram retirados exclusivamente daquilo que foi transmitido pela série. Feitas essas ressalvas, prossegue-se com a discussão. A série documentário diz tentar, também, romper com a ideia de que o modelo de família tradicional, formado por um homem, uma mulher e filhos, já não mais se mostra adequado para comportar os inúmeros sentimentos, sensações e desejos que os verdadeiros motivadores para a manutenção de um relacionamento. Assim, por meio da narração de sua história tentam transmitir ao telespectador que aquela estrutura de relacionamento é a ideal, vez que por ela torna-se possível vivenciar um relacionamento sem amarras e sem culpa, onde o objetivo máximo é o da felicidade.

As pessoas entrevistadas residem em capitais de estados brasileiros, especificamente naquelas das regiões Sul e Sudeste do país, além disso, preferiu-se entrevistar pessoas com idade entre 20 a 30 anos, com escolaridade mínima de ao menos nível universitário. Em geral, os entrevistados tem em comum o fato, portanto, de serem jovens, estarem inseridos economicamente dentro da classe média, com raça predominantemente branca, e todos apresentando uma experiência monogâmica desagradável, opressiva, de maneira que por meio dessas relações vislumbram estarem inseridos dentro de um relacionamento livre, espontâneo.

Dos episódios produzidos, é importante destacar o quarto episódio, vez que este revela a estrutura familiar e relacionamento existente entre Audhrey (Ká), Eustáquio e Ricota. Esse núcleo foge a regra etária, vez que todos possuem mais de 40 anos de idade e mantém o relacionamento a mais de 8 anos. Ao narrarem sua história contam que Ká e Eustáquio eram casados, e que desde relacionamento adveio um filho, no entanto, em decorrência de uma insuportabilidade de vida em comum, romperam o vínculo matrimonial. Com a separação Eustáquio conheceu Ricota, que também se casaram, porém narraram que sentimentos permaneciam mal resolvidos em relação à Ká. Após idas e vindas, e várias tentativas, que não são objeto de exploração por parte do entrevistador do documentário, os três chegaram ao consenso de constituir uma família, tendo a sua união reconhecida em cartório.

O programa faz a sua narrativa por meio de entrevistas formuladas aos indivíduos sobre a sua história, a sua adequação ao universo do amor livre. O documentário busca registrar nos episódios semanais supostas cenas do cotidiano entre famílias plurais e as famílias de origem, e a rotina dos solteiros adeptos a essas relações não monogâmicas. O programa tenta transmitir a imagem de que a força motriz dessas relações está na afetividade, cuidado e respeito entre os envolvidos. A série documentário tem como foco, portanto, as dinâmicas amorosas das relações.

2.3 Análise crítica da série

 Primeiramente, vale apontar que há uma dificuldade inerente em pesquisas que tratam sobre relações afetivas dentro das ciências sociais. Isso porque tem-se a dificuldade de encontrar meios válidos e adequados para estudar o objeto, como também, é uma tarefa complexa policiar o observador para que este se mantenha isento, e não se deixe ser influenciado pelas suas pré-noções. Numa temática como essa, em que o objeto de estudo recai sobre relacionamentos poliafetivos, evidentemente que essa situação se potencializa. Dessa forma, em decorrência do exposto, e pela limitação dos materiais encontrados sobre essa temática, esses pesquisadores restringiram sua fonte de análise, sendo a primeira delas a relacionada a trabalhos publicados sobre o tema, a segunda o documentário da GNT exposto anteriormente, e a análise do posicionamento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre a matéria (que será apresentada no próximo capítulo).

As referidas fontes provavelmente seriam caixas de ressonância dos pensamentos de dois tipos de elite: a primeira de uma elite imperialista e muito influente no âmbito teórico do direito e a segunda de uma elite nacional muito presente no âmbito prático do direito. Feita essa rápida consideração, a série-documentário “Amores Livre”, como esperado por estes autores, representa, em verdade, um pensamento ultraliberal (ainda que assim não se reconheça, vez que os entrevistados sentem-se como rompedores de paradigmas), que tradicionalmente faz sucesso com as elites simbólicas, as quais, por sua vez, tendem a estar em relação de oposição/superação com as elites materiais.

Para justificar esse ponto de vista apontado, convém expor, ainda que de maneira resumida (em decorrência das limitações formais para exposição do tema) alguns recortes analíticos, sendo que um deles, e talvez o mais importante, refere-se a própria estrutura em que a série foi desenvolvida. Cada um dos dez episódios apresenta 16 histórias, ou seja, conta com a participação de um ou mais grupos poliafetivos, que podem às vezes possuírem um vínculo entre si, e permite que estes indivíduos passem a falar sobre o seu relacionamento. Ocorre que o discurso empregado para narrar essas relações é direcionado para apenas um aspecto, qual seja, o da exploração e conhecimento das questões sexuais que envolvem esses relacionamentos.

O espectador não é conduzido para conhecer as dificuldade sociais para manutenção dessa relação, não lhe apresentado, tampouco, aspectos financeiros que envolvem esses relacionamentos, não lhe é exposto qualquer informação sobre formação cultural de cada um dos agentes envolvidos, nem mesmo sobre a história vivida por cada um, até alcançarem esse relacionamento poliamoroso. Quando, eventualmente, alguma dessas questões ousam ser divulgadas em decorrência da narrativa do indivíduo que está participando da entrevista, elas são rapidamente suprimidas, como por exemplo, quando tem-se o relato de algum desentendimento com a família de origem. É difícil conhecer as questões de ordem financeira ou questões de emprego, outros contatos sociais com indivíduos que se identificam ou menosprezam esse tipo de relacionamento poliamoroso.

Essas questões sociais, quando aparecem, servem para ocupar, evidentemente, uma posição de mera ilustração, de simples enfeite, para garantir o tom divulgado da missão humanitária e progressista da série, mas nada em excesso. Em alguns momentos, quando se percebe que o relato iria para um caminho que respondesse esses questionamentos de ordem social dessa relações, a entrevista é editada, de maneira que a fala é substituída por algumas lágrimas do indivíduo que está sendo entrevistado, o que pode ser interpretada como um símbolo universal da dor, que ao mesmo tempo, é fácil de ser manipulada em frente de câmeras, e de um bom aparato tecnológico que envolve o Grupo Globo.

A série evidencia que a ideia de poliamor, para se afirmar, questiona não só a ética das relações monogâmicas como a ética de qualquer outro relacionamento aberto. A série não se preza a responder qual é o problema existente na monogamia, nem tampouco como poliamor pode ser a melhor alternativa para solucionar as dinâmicas do amor, como se fosse uma forma de desconstrução da ideologia do amor romântico.

Acontece que justamente pela análise e relato dos indivíduos no documentário, torna-se possível entender que a ideia de poliamor ainda está presa à concepção da centralidade do amor e de que não há igualdade nas relações monogâmicas, o discurso de liberdade e rompimento da opressão, na verdade esconde a sua real forma. Isso porque ao longo dos 10 episódios, tem-se a narração que o poliamor defende a liberdade, a comunicação, a negociação, a honestidade dentro do relacionamento, para se atingir a essa meta (e que certamente não explorada na série) é necessária desconstrução e trabalho da relação, já que para manter essa meta da ideologia poliamorosa, os limites individuais começam a se confundir. Quando o poliamor pede para amar mais e sem limite, e os entrevistados bradam isso como um hino, e o documentário propaga essa ideia, na realidade esconde a energia que é dispendida e a instabilidade emocional que essas relações demandam.

Dessa forma, não resta dúvidas, que a mensagem que o programa pretende encaminhar o telespectador ao assistir aos seus 10 episódios (mais uma vez pela análise exclusiva do documentário), é o de conhecer e naturalizar as relações sexuais, como informações de frequência e parceiros. E justamente por a relação poliafetiva não conter uma restrição como a relação monogâmica, são vistas como mais permissivas e liberais, já que há o entendimento de que nessas relações não há desejos forçosamente contidos, há todo um permissivo sexual. Ainda o documentário, por meio de suas entrevistas, separa sexo do amor, de maneira a descaracterizar a mercantilização do sexo, e ainda caracteriza os relacionamento monogâmico como relacionamentos contratuais. Nessa linha, é válido pontuar, que em quase todas as 16 histórias narradas, os entrevistados são inquiridos sobre a existência de algum tipo de regramento para reger o seu relacionamento.

 A resposta frequentemente apresentada é de que as regras não são interessantes para esses relacionamentos, vez que também oprimem o relacionamento, assim, mesmo aqueles núcleos de indivíduos entrevistados, que em algum momento da relação resolveram estipular regras, narram que igualmente elas não funcionaram e não se mostraram adequadas, de maneira que, diante da sua inutilidade, deixaram-nas de lado. Este é possivelmente o ápice do anacronismo histórico, pois os relacionamentos monogâmicos não tiveram o seu nascimento vinculado a moderna ideia de contrato[10], a sua “contratualidade” (por assim dizer), é uma criação elaborada pela burguesia com o visível objetivo de favorecer e garantir os interesses do capitalista na perpetuidade de seus bens.

Por sua vez, o discurso adotado pelos indivíduos poliamorosos ao longo da série, excetuando-se o relacionamento apresentado no quarto episódio (Eustáquio, Ká e Ricota) que como já apontado é um episódio diferencial frente ao discurso ao longo dos 9 episódios, tem-se que em verdade a liberdade negativa amplamente defendida por esses indivíduos, de não violar os direitos universais e de restringir a presença deles em contratos, corolário da ideia passada acerca das relações poliafetivas, nada mais é que um contrato negativo, ou seja, embora não haja um contrato jurídico, as relações poliafetivas exigem que as partes inseridas nela assumam uma obrigação de não ofender a liberdade do outro de viver o amor em sua potencialidade. O que se quer dizer é que a existência ou falta de um contrato formal sejam aptos para garantir que o consentimento dado por indivíduo, estando numa relação monogâmica ou poliafetiva, vez que não é uma preocupação da lei ou dos juristas, verificar o que se passa por trás dos bastidores jurídicos, naquilo em  que ocorre a vida real, e nem de que maneira foi dado esse consentimento de livre vontade (ENGELS, 2012, p. 73).

  1. Análise da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça

 Como explanado anteriormente, para atingir verificar a hipótese lançada nesse artigo, buscou-se realizar uma análise das decisões jurisprudenciais proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) que versam sobre relações poliamorosas. Utilizou-se para o levantamento as decisões proferidas pelo STJ, pois representa uma das últimas instâncias de análise de aplicabilidade do direito, e que tende a permitir uma maior gama de matéria de direito, se comparado aos assuntos que podem ser discutidos em nível de Supremo Tribunal de Justiça (STF). Esclarece-se que para seleção da jurisprudência e garantia de que o artigo conseguisse abarcar o maior número de variáveis sobre a tema em nível jurisprudencial, e também comprovar a extensão dada, a pesquisa seguiu alguns rigores metodológicos, adotando-se o seguinte roteiro: a) delimitação temporal: a pesquisa jurisprudencial possui uma demarcação temporal, vez que analisou-se decisões proferidas pelo STJ a partir da vigência do Código Civil até o mês de outubro de 2017, por motivos de atualidade das decisões e ao menos proximidade com valores previsto em nível constitucional; b) exclusividade de pesquisa pelo portal eletrônico do STJ (http://www.stj.jus.br/portal/site/STJ); c) criação de marcadores (palavras-chaves) para a pesquisa, advindas da leitura realizada pelos artigo correlatos ao tema, tais como “famílias simultâneas”, “concubinato”, “relações múltiplas”, “poliafetividade”, “famílias poliamorosas”, “relações paralelas”, “relações plúrimas” e variações dessas palavras; d) criação de banco de dados que foi filtrado pelos julgados repetidos e que fugiam da abordagem ao objeto estudado. Diante disso, torna-se necessário explicar como se deu a interpretação do material coletado e especificar as principais linhas de argumentação encontradas nos julgados.

Para melhor instrumentalizar a pesquisa de jurisprudência de acordo com a noção exposta brevemente por Salo de Carvalho (2013), utilizou-se da estrutura explicada por “recortes jurisprudenciais”, divididos em  eixo de temas, tempo e processo, que tratam da delimitação do objeto de estudo desse artigo pelas palavras-chave encontradas com a utilização de operadores booleanos e escolha do período já apontado; b) “composição da amostra” e sua apresentação, que refere-se a análise de apenas uma parcela (amostra) dos acórdãos selecionados pelo recorte jurisprudencial daqueles resultantes da pesquisa em site do STJ, para analisar o objeto ou, ainda, caso parte dos julgados seja impertinente; c) “variáveis de pesquisa”, que se trata de “todo o elemento que será analisado nela”; d) análise da amostra e apresentação dos resultados, a qual envolve a interpretação das fundamentações utilizadas pelos Ministros e a redução a uma corrente jurisprudencial dominante no STJ. O conjunto de julgados foi obtido pela pesquisa realizada no dia 21 de outubro de 2.017, acessados das 18h às 23h, a partir de cada combinação dos marcadores utilizados e operadores booleanos, foram encontradas algumas informações que deram origem a três tabelas. A primeira delas segue a seguir:

 Tabela 1. Jurisprudências do STJ sobre a temática envolvida.

Acórdãos Decisões monocráticas
Julgados Objetos da Pesquisa 36 69
Julgados Sem Pertinência ao tema 18 8
Total de Julgados 54 77

Fonte: elaborada pelos autores

Como se verifica na tabela ao todo foram encontradas 128 julgados pela aplicação dos marcadores expostos anteriormente. Assim, desses julgados foi verificado que 54 deles correspondiam a acórdãos decorrentes da análise de recursos especiais e 77 referiam-se a decisões monocráticas. Dos julgados encontrados, 18 acórdãos e 8 decisões monocráticas foram descartados por não se adequarem ao tema ventilado nesse artigo. De maneira que, a amostra analisada corresponde a 36 acórdãos e 69 decisões monocráticas. Feito esse levantamento prévio, da amostra coletada, verificou-se os pleitos dos envolvidos que  estavam sob análise dos Ministros do STJ, fato esse que deu margem a segunda tabela exposta abaixo:

Tabela 2. Visão geral sobre os pedidos dentro dos julgados utilizados como objetos da pesquisa.

Dos Pedidos Encontrados Número de Julgados Encontrados nessas condições.
Reconhecimento/Não Reconhecimento de União Estável 71
Pensão por Morte 46
Divisão/Partilha de bens 20

Fonte: elaborada pelos autores

Pela leitura da referida tabela, os pedidos que parecem na amostra utilizada para verificação do objeto dessa pesquisa refere-se ao reconhecimento de uma união estável, ao pedido de pensão por morte e de divisão/partilha de bens. Verificou-se que em todos os pedidos elaborados pelas partes que compõem a amostra dos julgados, pretendia que uma determinada união fosse validada, sendo que todos os julgados recolhidos como amostra, os Ministros entenderam como essencial para avaliação dessa questão, a verificação de concomitância de vinculo marital. A partir disso, especificou-se a amostra. A análise dos julgados do banco de dados estabeleceu o direcionamento que o STJ possui sobre o objeto de pesquisa e os discursos utilizados para a fundamentação jurídica, o que deu origem a terceira tabela transcrita em sequência:

Tabela 3. Das teses que resumem as informações encontradas dentro dos julgados objetos da pesquisa (englobando Acórdãos e Decisões Monocráticas)

Das Teses Números de Julgados Encontrados com a Tese
Súmula 7 do STJ 65
Súmula 284 15
Legislação Civil sobre a Temática 45
Voto do Ministro Marco Aurélio RE n.º 397.762 BA 12
Voto da Ministra Nancy Andrighi REsp n.º 1157273 RN 15
Decisão tradicional em respeito à monogamia.

 

71

Fonte: elaborada pelos autores

Pela tabela acima, nota-se principalmente um uso já comum e conhecido praticado pelos Ministros que é a utilização da Súmula n.º 7. A referida súmula permite que um determinado recurso seja improvido ou tenha o seu seguimento negado sob o argumento de que o direito invocado pela parte Recorrente obrigará o STJ a reanalisar a matéria fática. Em seguida, invocam ainda com frequência a Súmula n.º 284, que versa sobre a inadmissibilidade do recurso quando da falta de fundamentação apta a permitir a compreensão da controvérsia. Utilizam-se dessa súmula para tentar afastar o direito invocado sob a argumentação que nem todos os elementos controvertidos foram apresentados no recurso especial, como também na hipótese de não estar claro qual foi o dispositivo jurídico invocado para verificação da ofensa ao direito exercida pelo tribunal de origem.

Não é o escopo do presente artigo verificar propriamente a validade ou não desses dispositivos legais, o que se pretende é apresentar a argumentação utilizada pelos Ministros ao proferirem as suas decisões dentro da amostragem apontada. Logo, superada a questão da súmula, vez que muitas vezes, ainda que invocadas, os Ministros do STJ acabam fazendo outros comentários e levantando outras teses para justificar o seu posicionamento diante ao fato concreto e no que se refere ao objeto de análise desse artigo.

Pelo apurado outra fonte de tese decorre da própria interpretação dada a lei civil no que toca aos temas de casamento, divórcio, separação e união estável. O argumento dado geralmente correlaciona todos esses conceitos, no sentido de comprovar que havendo a existência de um casamento, ainda que o vínculo conjugal na realidade não mais existe, caso este não seja regularmente dissolvido, o reconhecimento ou comprovação de qualquer outra união fica prejudicado, de maneira que por consequência aquele indivíduo envolvido em um relacionamento simultâneo a um casamento verá negado seus direitos a regular divisão de bens e até mesmo da obtenção da pensão por morte.

Em prol de dar efetividade desse pensamento as decisões frequentemente buscam embasamento em decisões jurisprudenciais emblemáticas, sendo verificado a prevalência de duas em especial, quais sejam, os votos dos Ministro Marco Aurélio quando do julgamento do Recurso Extraordinário (RE) n.º 397.762 BA e o da Ministra Nancy Andrighi quando do julgamento do Recurso Especial (REsp) 1.157.273 RN. Válido pontuar que ainda que um determinado julgado não se referia expressamente a esses votos, as jurisprudências que elenca como paradigmas, por sua vez, em algum momento remetem a desses julgamentos. Dessa forma, entende-se que o votos dos Ministros em questão são emblemáticos, de maneira que torna-se necessários fazer alguns comentários sobre eles. O Recurso Extraordinário n.º 397.762 BA foi proposto pelo Estado da Bahia em face de Joana da Paixão Luz, sendo que esta pretende obter o recebimento da pensão por morte de seu companheiro, que a época de seu óbito era casado e vivia maritalmente com sua esposa, sendo dado então acolhimento ao recurso interposto. No julgamento desse recurso o Ministro Marco Aurélio foi o relator e trouxe os seguintes apontamentos:

“Realmente, para ter-se como configurada a união estável, não há imposição da monogamia, muito embora ela seja aconselhável, objetivando a paz entre o casal. Todavia a união estável protegida pela Constituição pressupõe prática harmônica com o ordenamento jurídico em vigo. Tanto é assim, que no artigo 226 da Carta da República, tem-se como objetivo maior a proteção do casamento. (…) A manutenção da relação com a autora se fez à margem e diria mesmo mediante discrepância do casamento existente e da ordem jurídico constitucional. (…) A rega é fruo de texto constitucional e, portanto, não se pode olvidar que, ao falecer, o varão encontrava-se na chefia da família oficial, vivendo com a mulher. Percebe-se que houve um envolvimento forte – de Valdemar do Amor Divino dos Santos e Joana da Paixão Luz -, projetado no tempo – 37 anos -, dele surgindo prole numerosa – nove filhos -, mas que não surte efeitos jurídicos ante a ilegitimidade, ante ao fato de haver sido mantido o casamento com quem Valdemar contraíra núpcias (…). No caso, vislumbrou-se união estável, quando, na verdade, verificado simples concubinato, conforme pedagogicamente previsto no art. 1.727 do Código Civil (,,.). O concubinato não se iguala à união estável referida no texto constitucional, no que esta acaba fazendo as vezes, em termos de consequências, do casamento. Gera, quando muito, a denominada sociedade de fato. (BRASIL, 2008, p. 6-8)”

Nesse julgamento o Ministro Carlos Britto foi voto vencido, e ele por sua vez utilizou-se de argumentação que é divulgada pela doutrina de direito de família, e foi exposta pela leitura dos artigos relacionados ao tema da poliafetividade, ocorre que o voto do Ministro Marco Aurélio traz o entendimento da maioria não só do STF, como a da sociedade, no sentido de que a ideológica ideia de amor livre é aceita até o momento em que esta conflita com questões patrimoniais, como por exemplo, a pensão por morte, já que não se pode abandonar “o campo jurídico constitucional para decidir a partir do amor (…) esta Corte é responsável pela guarda da Constituição Federal, pela guarda de princípios caros à vida gregária” (BRASIL, 2008, p. 41), de maneira prega-se como inadmissível que qualquer relacionamento seja validado como igual quando comparado ao casamento.

Ainda, como dito tem-se o voto da Ministra Nancy Andrighi quando do julgamento do Recurso Especial (REsp) 1.157.273 RN, sendo este voto frequentemente referenciado. Antes de entrar numa rápida análise do recurso, vale lembrar que para os operadores do direito a Ministra Nancy é visto como defensora do direito de família, e da vertente da afetividade, de maneira que seu voto revela-se no mínimo curioso. O REsp. 1.157.273 RN versa sobre o reconhecimento de duas uniões estáveis simultâneas, tendo o companheiro falecido, e deixado a sua companheira, e sua ex-esposa, que mesmo após o divórcio, manteve a relação afetiva e conjugal com esta.  A Ministra Nancy aponta que aquela sua Turma, em outras oportunidades já havia decidido que não há como ser conferido status de união estável a relação afetiva paralela a casamento válido, em concordância com o Recurso Extraordinário anteriormente citado. Em relação a este caso, a Ministra, na qualidade de relatora, assim pontuou, considerando até mesmo a sua vertente em prol da afetividade:

 (…) As uniões afetivas plúrimas, múltiplas, simultâneas e paralelas têm ornado o cenário fático dos processos de família, com os mais inusitados arranjos, entre eles, aqueles em que um sujeito direciona seu afeto para um, dois, ou mais outros sujeitos, formando núcleos distintos e concomitantes, muitas vezes colidentes em seus interesses. (BRASIL, 2010, p. 13).

A Ministra pontua que não considerar os desdobramentos familiares em suas infinitas incursões e seus núcleos de afeto, dentro das relações simultâneas, seria equivalente a deixar de julgar diante da ausência de lei específica, porém mesmo com todo esse discurso que leva a crer que daria o reconhecimento as duas uniões. Porém, em verdade a sua decisão de relatoria aponta que considerando que a sociedade vigente tem como elemento estrutural a monogamia, conceitos como o dever de fidelidade e lealdade não poderiam ser atenuados em prol das relações afetivas paralelas, de maneira que entende que o julgador ao se deparar com um caso como esse, embora deve considerar valores como a felicidade e afetividade, deve ter redobrada atenção à monogamia, e fidelidade e eticidade. Conclui, portanto, que:

Emprestar aos novos arranjos familiares, de uma forma linear, os efeitos jurídicos inerentes à união estável implicaria julgar contra o que dispõe a lei. (…) Considerada a imutabilidade, na via especial, da base fática tal como estabelecida no acórdão recorrido, em que consta, expressamente, o paralelismo das relações mantidas pelo falecido com a recorrente e a ex-mulher, deve ser reformado o julgado, para que se mantenha apenas o reconhecimento da união estável havida entre M. da C. G. com D. A. de O., desde 1994 até o seu óbito. (BRASIL, 2010, p. 15).

Dessa forma, com essa análise foi possível verificar os argumentos e conceitos jurídicos utilizados nos votos dos Ministros e nas decisões com as correntes doutrinárias e com os próprios julgados à procura de divergências teóricas, que na verdade revelou que primeiramente a jurisprudência, embora busque acompanhar processos que se desenvolvem em nível diariamente, com a criação de figuras como o princípio da felicidade e da afinidade, escondem em verdade que “as práticas e os discursos jurídicos são produto do funcionamento de um campo” que está duplamente vinculado “pelas relações de forças específicas que lhe conferem a sua estrutura” e “pela lógica interna das obras jurídicas que delimitam em cada momento o espaço dos possíveis e, deste modo, o universo das soluções propriamente jurídicas” (BOURDIEU, 2009, p. 211).

Conclusão

 Diante do discorrido, tem-se que é possível, ao menos a título de hipótese (o que é suficiente para as pretensões de um artigo), explicar o papel que o campo jurídico presta a “Ideologia do Amor Livre”. Como foi visto, na primeira e segunda partes desse artigo, não é possível igualar a “Ideologia do Amor Livre” à forma jurídica. Enquanto a primeira enxerga o homem como um “bicho” com predileções naturais, a segunda o encara como um sujeito capaz de cumprir e estabelecer contratos, bem como, conta necessariamente com uma estrutura de poder (Estado) pretensamente capaz de garantir o sujeito.

Contudo essa oposição não é em geral negativa para os quadros que compõem a classe burguesa. Isto pois: embora a produção discursiva jurídica encontrada sobre a temática sustente que as relações familiares devem ser regidas pelo princípio da afetividade e da liberalidade, na hora da aplicação do direito, os juristas mesmo constrangidos não reconhecem os mesmos direitos a modelos familiares que difiram do padrão tradicionalmente reconhecido; dificultando assim que agentes sociais oriundos de modelos familiares não tradicionais tenham acesso ao “ethos” burguês, bem como, um acesso mais democrático ao campo jurídico. Mas tal inefetividade da ideologia do amor-livre não é iniqua, pois ao ir formatando o “ethos” burguês ela vai acomodando os interesses das elites locais com o grande capital ao mesmo tempo em que tomando seu modelo de família como o único correto e racional ela barbariza aqueles que defendem outros tipos, transformando em culpa ou ignorância individual diversas ideologias que são em verdade reflexo de estruturas sociais bastante concretas; bem como, convida aqueles agentes sociais que, tendo condições simbólicas e econômicas, a tentarem resolver seus problemas pela via jurídica.

Nesse sentido, entre a “Ideologia do Amor Livre” e a forma jurídica existe uma relação similar a existente entre a forma jurídica e a forma mercadoria. Enquanto a forma mercadoria serve para autonomizar o capital das demais estruturas sociais, a forma jurídica é um mal menor, que ao manter o Estado e um certo nível de envolvimento das elites locais com ele, como também com a economia, impede-se que as elites locais realizem o cálculo sobre o cálculo, isto é, que haja um conchavo político que dificulte em grande medida o imperialismo do grande capital. Ademais, a atuação conjunta da forma jurídica e da forma mercadoria permitem que confrontos de classe sejam vistos como dramas de pessoas que não conseguem cumprir com a palavra dada, ou que são inimigos da civilização.

Referências

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POLÍTICAS PÚBLICAS DE EDUCAÇÃO PROFISSIONAL NO BRASIL: PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES PARA A UTILIZAÇÃO DO MATERIALISMO HISTÓRICO DIALÉTICO[11]

 PUBLIC POLICIES FOR PROFESSIONAL EDUCATION IN BRAZIL: FIRST APPROACHES TOWARDS UTILIZING THE HISTORICAL AND DIALETICAL MATERIALISM

 

Matheus Silveira de Souza[12]

Stefano Avila Pavan[13]

 Resumo: O presente artigo tem como um dos objetivos realizar uma abordagem do método de Marx – o materialismo histórico dialético (MHD) – atentando-se, em um primeiro momento, à semântica e ao contexto epistemológico de cada um dos termos que nomeiam o referido método.  Após abordar as premissas conceituais necessárias para a compreensão do MHD, os autores buscam apontar um referencial teórico que possibilite uma aproximação desse método para a análise de políticas públicas de educação profissional, tendo como base o pensamento de Dermeval Saviani e a sua construção da pedagogia histórico crítica. Nesse sentido, discute-se os limites da construção de uma educação emancipatória em uma estrutura burguesa, que possui como lógica necessária de funcionamento a exploração de muitos em favor de poucos. Por fim, realiza-se uma breve análise histórica da educação profissional no Brasil com o objetivo de demonstrar a existência de diferentes tipos de educação para distintas classes sociais.

Palavras-chaves: Políticas públicas; materialismo histórico dialético; educação profissional

Abstract: The presente article has as one of its goals approaching Marx’s method – historical dialectical materialism (HDM) – focusing, in a first moment, to the semantics and the epistemological contexto of each of the terms that appoint the referred method. After approaching the necessary conceptual premises for comprehending the HDM, the author search to indicate a theoretical reference that makes an approximation of such method possible to the analysis of public policies in professional education, having as its foundation the thought of Dermeval Saviani and his construction of critical historical pedagogy. In this sense, the limits of na emancipatory education are discussed inside a bourgeois structure, which possesses as its necessary functioning logic the exploration of many in favor of a few. In conclusion, a brief historical analysis of professional education in Brasil is made with the goal of demonstrating the existence of different types of education for distinct social classes.

Keywords: Public policies. professional education. historical dialetical materialism.

 

1 – MÉTODO MATERIALISMO HISTÓRICO DIALÉTICO: PRIMEIRAS CONSIDERAÇÕES

Antes de adentrar às reflexões sobre a utilização do método de Marx na minha própria pesquisa, algumas considerações devem ser feitas sobre o que vem a ser o próprio materialismo histórico dialético. Assim, é possível atentar-se à semântica de cada palavra que nomeia o método e o seu significado no contexto histórico e epistemológico que se insere.

Dessa forma, o termo “histórico” pode ser entendido como a perspectiva histórica que Marx utiliza durante todo seu pensamento para descrever a realidade. Isto porque, é através da análise dos processos sociais, econômicos e políticos encontrados na história que se torna possível a construção de um pensamento crítico, de modo que o passado histórico emite reflexos diretos para o presente contexto político. Isso pode ser encontrado em diversos pontos da obra de Marx, como por exemplo no início do Manifesto do Partido Comunista, em que o autor remonta a luta de classes entre patrícios e plebeus, homens livres e escravos, entre outros, para explicar suas afirmações. Na obra O 18 de Brumário de Luís Bonaparte essa perspectiva também pode ser encontrada, tendo em vista que além de fazer repetidas referências à revolução de 1848 – recém acontecida na época em que escreveu o livro – o autor parte de outras revoluções, golpes e acontecimentos encontrados na história para fazer um paralelo ao golpe de Estado perpetuado por Bonaparte.

O significado de materialismo pode ser entendido como uma contraposição ao desenvolvimento de um pensamento metafísico difundido em parte da filosofia, que partia de ideias abstratas e formulações lógicas para explicar a realidade, mesmo que tais formulações não tivessem relação direta com o contexto real da sociedade. Assim, Marx não parte de ideias abstratas e um pensamento preconcebido para explicar a realidade, mas ao contrário, parte da própria realidade e de seus acontecimentos para formar seu pensamento. Não é o pensamento que forma a realidade, mas sim, a realidade que forma o pensamento[14]. Dessa forma, pode-se utilizar de um trocadilho para dizer que o imperativo “penso, logo existo” seria substituído pela afirmação “existo, logo penso”, visando a retratar que o olhar para a realidade que é a premissa para a construção do pensamento, e não o seu oposto. Em outras palavras, parte-se da realidade para a formação do pensamento abstrato, e não do pensamento abstrato para a formação da realidade. Nas palavras de Marx: “Não é a consciência que determina a vida, e sim a vida que determina a consciência”. Essa dimensão da obra de Marx dialoga com sua frequente preocupação em construir um pensamento que não seja estanque, mas ao contrário, seja dinâmico e produza um diálogo direto com a mundo fático, com o fim último de transformar a realidade em que está inserido. Assim, o objetivo de transformação é uma marca importante a ser considerada, relembrada por Karl Marx quando este afirma que os filósofos não devem apenas compreender a realidade, mas sim, transformá-la.

A visão materialista, então, busca ir além das leis por detrás dos fenômenos sociais, pretendendo analisar na verdade como estes fenômenos se modificam, se desenvolvem a partir da práxis[15].

Por fim, o termo dialético, presente na nomeação do método pode ser explicado, ainda que de forma superficial, como a necessidade de contraposição de ideias para a extração de uma síntese conclusiva. Dessa forma, a tese é contraposta a uma antítese, visando extrair uma síntese. Marx incorpora a ideia inicial de dialética presente em Hegel e a aprimora, dando maior sofisticação epistemológica ao seu método. Assim, acrescenta a noção de singular- particular – universal, bem como a ideia de historicidade, mediação e contradição na análise do movimento histórico do real. Vale apontar que a ideia de dialética, materialismo e histórico presente em Marx é muito mais complexa do que descrito acima, todavia, busca-se apenas fazer apontamento iniciais, com o intuito de estabelecer o contorno conceitual mínimo dos termos frequentemente referidos na obra de Karl Marx

2 – BREVE CRÍTICA AO POSITIVISMO JURÍDICO

Algumas considerações devem ser feitas a respeito da pesquisa no direito e o seu objeto de estudo. Assim, aponta-se que com o advento do positivismo e com a grande valorização que a ciência ganhou perante a sociedade, as diversas áreas do conhecimento procuraram adotar uma rigorosidade metodológica e estabelecer um objeto de estudo específico. Isto porque, a ciência começa a preencher parte do espaço antes ocupado por Deus e pela religião, tanto no Estado como nas explicações da realidade e dos fenômenos naturais. Como exemplo, cita-se a transição do Estado Teocrático para o Estado de Direito, em que a justificação do governo não está mais na representação divina, mas sim na razão do homem. Isso explica, em parte, a necessidade de outras áreas do conhecimento procurarem vestir o manto da ciência. Dessa forma, o direito foi uma das áreas que estabeleceu essa empreitada, ao tentar purificar seu método e, principalmente, seu objeto de estudo, visando a ganhar o rótulo de ciência.

Nesse sentido, abordando o tema de forma sintética, tendo em vista não ser esse o objetivo principal do artigo, o positivismo jurídico estabelece como objeto de estudo do direito a norma, utilizando-se da metáfora kelsiana do quadro. Assim, tudo o que estiver dentro do quadrante normativo é objeto de estudo do direito, o que não estiver será preocupação de análise de outras áreas do conhecimento. Partindo dessa premissa, há uma imbricação entre direito e Estado, de modo que tudo o que é direito é Estado, assim como tudo o que é Estado também está no âmbito do direito. Entretanto, nas palavras de Alysson Mascaro[16], essa visão desconsidera que o direito, em verdade, só aparece para revestir de uma forma jurídica relações sociais que já ocorriam no âmbito da sociedade. Em outras palavras, é um instrumento de legitimação das relações sociais burguesas que o antecedem.

Uma das críticas a serem traçadas sobre essa purificação metodológica é em relação a uma visão quase míope adotada por parte das ciências jurídicas no estudo e na pesquisa. Isto porque, as análises jurídicas partem da norma como realidade final e dogma intelectual, não se perguntando sobre o contexto político em que tal norma foi criada, as motivações ideológicas que sustentaram essa criação, bem como o humor nacional do país quando da produção normativa. Enfim, parte-se da norma como verdade absoluta e não se considera as diversas variáveis que permeiam a própria lei. Nessa perspectiva, afirma-se que o processo de purificação metodológico foi tão grande que acabou convertendo-se em processo de alienação.

Nessa trilha, vale fazermos um contraponto e destacar a importância da rigidez metodológica e da definição precisa de um objeto de estudo em toda e qualquer ciência. Assim, entende-se o grande mérito de Kelsen em estabelecer a norma como objeto de estudo do Direito. Todavia, uma má interpretação da obra de Kelsen e uma propagação ideológica do Direito, que encontra na lei seu dogma divino, acabou limitando intensamente a produção de uma pesquisa jurídica que leve em conta perspectivas para além do campo jurídico na sua análise.

Não se ignora, aqui, a necessidade de delimitação exata de um objeto de estudo na institucionalização de uma ciência. Todavia, ainda que o direito estabeleça a norma como seu objeto de análise, é possível que se atente para outros fatores que influenciam na criação e eficácia da norma, construindo, dessa maneira, uma visão mais ampla e sólida sobre a realidade jurídica, tendo em vista a imbricação desta com a realidade social.

3 – PROPOSIÇÕES PARA A CONSTRUÇÃO DE UMA OLHAR PARA ALÉM DO JURÍDICO: APROXIMAÇÕES DO MATERIALISMO HISTÓRICO DIALÉTICO

Com efeito, almejando realizar uma análise que alcance um horizonte além do estritamente jurídico, uma primeira tentativa de aproximação com o método MHD seria historicizar a evolução da educação profissional no Brasil. Assim, a partir da análise histórica do ensino técnico empregado no país em suas diversas épocas, considerando o contexto político e econômico que o permeava e as mudanças substâncias na educação profissional extraídas por meio da legislação, poderemos começar a construir uma visão mais completa do objeto de estudo que proponho analisar.

Ressalta-se que essa perspectiva contém harmonia com uma das dimensões do método materialismo histórico dialético, tendo em vista a relevância da dimensão histórica nessa metodologia. Tal perspectiva tem, ainda, o objetivo de captar características do passado que ainda emitem reflexos no contexto educacional presente e, por isso, podem ajudar a responder questões atuais. A importância dessa dimensão histórica no pensamento de Marx pode ser visualizada ao observamos que o autor alemão, com frequência, não compara um fato a uma ideia, mas sim, a um outro fato, buscando realizar uma análise minuciosa dos processos históricos que se desenvolveram ao longo do tempo e, a partir destes, jogar luz para os processos históricos da atualidade.[17]

De início, não se pode prescindir de uma análise crítica qualquer estudo que tenha por objeto a formação da educação profissional brasileira, eis que, conforme Ausani e Pommer[18] :

 

(…)a implantação do ensino técnico no Brasil resultou de uma política meramente assistencialista que tinha como objetivo a preparação de mão de obra para a indústria, agricultura e serviços sem, entretanto, preocupar-se na superação da dicotomia entre o trabalho manual e o trabalho intelectual, mantendo os privilégios de classes.

Dessa forma, a análise histórica do ensino profissional e tecnológico (EPT) no Brasil evidencia, claramente, a existência de uma educação dual, sendo que o ensino propedêutico e clássico era voltado para as classes dirigentes, que ocupariam cargos de destaque na hierarquia social, enquanto o ensino profissional era destinado aos filhos dos operários, para exercerem funções manuais, muitas vezes desvinculando esse ensino da transmissão de uma cultura geral[19]. É possível encontrar essa mensagem na exposição de motivos do decreto 7566 de 1909 para a criação de 19 escolas técnicas – Escolas de Aprendizes e Artífices – por Nilo Peçanha, durante a República Velha:

Considerando: que o aumento constante da população das cidades exige que se facilite às classes proletárias os meios de vencer as dificuldades sempre crescentes da luta pela existência: que para isso se torna necessário, não só habilitar os filhos dos desfavorecidos da fortuna com o indispensável preparo technico e intelectual, como faze-los adquirir hábitos de trabalho profícuo, que os afastara da ociosidade ignorante, escola do vicio e do crime; que é um dos primeiros deveres do Governo da Republica formar cidadãos uteis à Nação

O discurso é claro em fixar as classes proletárias como destinatárias do ensino técnico e identifica-los como “os filhos dos desfavorecidos da fortuna”, apresentando a aprendizagem de ofícios manuais como forma de afastá-los de uma possível inclinação para a “ociosidade ignorante, escola do vício e do crime”. A própria ideia de “cidadãos úteis à Nação” parece explicitar o anseio do Estado em qualificar a força de trabalho para dar conta das demandas produtivas do país. Deve-se esclarecer que a propagação de uma educação profissional, que transmita conhecimentos práticos e manuais aos indivíduos, não é algo negativo, tendo em vista a utilidade prática desse conhecimento ao percebermos que fazer também é saber. O que queremos criticar, em verdade, é o objetivo do Estado em concretizar uma educação aligeirada, que não se preocupa com a formação cidadã e humana do sujeito, mas sim, tão somente com a qualificação de uma mão de obra barata para dar conta das demandas da indústrias.

Essa mesma ideologia pode ser identificada na Constituição do Estado Novo, em 1937, outorgada por Getúlio Vargas:

 Art. 129. (…) O ensino pré-vocacional profissional destinado às classes menos favorecidas é em matéria de educação o primeiro dever de Estado. Cumpre-lhe dar execução a esse dever, fundando institutos de ensino profissional e subsidiando os de iniciativa dos Estados, dos Municípios e dos indivíduos ou associações particulares e profissionais.

Como se vê, a hipótese de que havia diferentes tipos de educação para distintas classes sociais é confirmada a partir da historicização da educação profissional, buscando desvelar no movimento histórico do real as contradições presentes na concretização do EPT.

Em relação ao nosso objeto de estudo, políticas públicas de educação profissional no Brasil, destaca-se que boa parte da pesquisa, no início, consistia em analisar os documentos expedidos pelo Governo, por meio do Ministério de Educação e Cultura e da Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica, para verificar a efetividade de tais políticas, através de dados sobre o crescimento das matrículas em cada ano, as oportunidades de profissionalização que os cursos ofereceram e etc. Todavia, não me parece que essa análise, por si só, seria capaz de atingir a essência do material, pois a investigação apenas dos dados cria a impressão de uma realidade estática. Entretanto, sabemos que a realidade social é um todo caótico e dinâmico, não sendo possível observá-la de maneira estática se quisermos superar a aparência e alcançar a essência.

Nessa linha de raciocínio, buscarei analisar os dados considerando a estrutura social em que estes são produzidos, na tentativa de olhar não só a parte mas o todo. Ou melhor dizendo, de olhar a parte inserida no todo. Dessa forma, torna-se relevante observar a organização social que se engendra a partir da infraestrutura capitalista e, em consequência, conforma a superestrutura. Assim, considera-se a dinâmica econômica que o país enfrentava nos anos analisados, o partido que estava no poder quando da publicação dos dados, o arranjo institucional que insula as tomadas de decisão, entre outros fatores.

Outra possibilidade de ampliar o olhar sobre a educação profissional seria a investigação dos grupos de interesse que estavam fazendo lobby no Congresso Nacional[20] para a aprovação de um tipo específico de ensino técnico. Assim, a partir das audiências públicas realizadas na Câmara dos Deputados e no Senado, bem como por meio do acesso às publicações desses grupos de interesse, é possível clarificar as intenções e ideologias por trás da aprovação da lei, bem como a sua recepção posterior. Nessa esteira, uma das alternativas é pesquisar o lobby de grupos ligados às indústrias e comércio no Brasil e que possuem intensa atuação no Congresso Nacional, como Fiesp e CNI.

Para dialogar com essas reflexões, aponta-se que há dois tipos de educação profissional em constante disputa na sociedade. A primeira, de caráter mais tecnicista, seria a educação profissional desenvolvida principalmente para a formação de mão de obra para o mercado de trabalho, a formação de uma pessoa que dê conta de atender aos anseios produtivos, independentemente de qualquer outro desenvolvimento crítico desses conhecimentos. Em sentido oposto, a educação politecnista visa a formação integral do ser humano, transmitindo-lhe os conhecimentos necessários para o processo produtivo, mas não ignorando a necessidade de transmissão paralela de saberes que lhe projetem no mundo enquanto sujeitos. Nesse sentido, pode-se apontar que os críticos da educação fragmentada, voltada exclusivamente ao mercado de trabalho, apontam que o ensino técnico concomitante e subsequente, sem a possibilidade da modalidade integrada, contribuiria para a difusão dessa educação fragmentada. Em outra margem, garantir a alternativa da educação técnica integrada ao ensino médio contribuiria para a construção de uma educação mais completa, que leva em conta a integralidade do ser humano e suas várias dimensões.

Nesse ponto, é relevante destacar que grupos de interesse como Fiesp e CNI realizaram lobby no Congresso Nacional para a aprovação e fortalecimento desse primeiro tipo de educação técnica, ou seja, a educação que visa a suprir a demanda do mercado de trabalho e dos anseios produtivos, com pouca preocupação em relação à formação integral dos trabalhadores.

Fazendo um paralelo dessa discussão com as leis que regulamentaram o ensino técnico nas últimas duas décadas, ressalta-se o Decreto nº 2.208/97, do período FHC, que impunha a formação técnica apenas de forma concomitante e subsequente ao Ensino Médio, extinguindo a possibilidade de formação integrada. Desse modo, esse decreto está vinculado a um ensino mais tecnicista e menos crítico, voltado para a satisfação dos anseios produtivos e a rápida inserção do indivíduo no mercado de trabalho[21]. Em outro sentido, a publicação do Decreto nº 5.154/04, na era Lula, trouxe de volta a possibilidade de educação técnica integrada – ao lado da forma concomitante e subsequente – caminhando em direção a uma educação técnica vinculada à ampla formação humana.

Como se vê, a análise não só da norma pronta e acabada, mas também do seu processo de formação, as nuances que envolveram sua elaboração, bem como os grupos de interesse envolvidos – e a ideologia desses grupos – que exerceram pressão na política para aprovação da lei com certas características ajudam a desvelar olhares mais completos do problema investigado.

4 – EDUCAÇÃO COMO INSTRUMENTO DE EMANCIPAÇÃO: LIMITES E POSSIBILIDADES A PARTIR DA TEORIA MARXISTA

Um dos grandes objetivos da dissertação de mestrado é verificar a possibilidade da educação profissional e tecnológica (EPT) servir como instrumento de emancipação do ser humano. Assim, o contato com uma educação emancipatória daria ao indivíduo um maior engajamento político, consciência social e percepção dele mesmo enquanto sujeito histórico, que participa do mundo e da sua construção, e não de objeto da história, que se amolda às contingências sociais e nada pode fazer para alterá-las[22]. Todavia, o aprofundamento nos estudos marxistas e o contato com argumentos estruturalistas mostraram-me a limitação desse objetivo.

Isto porque, levando em conta o conceito de infraestrutura e superestrutura, e considerando que a infraestrutura burguesa vai condicionar nossa ideologia, valores, artes, educação, entre outras áreas, percebe-se a problemática desse objetivo. Assim, a estrutura burguesa condiciona seus produtos – materiais e imateriais – de acordo com sua ideologia, de modo que um instrumento de conscientização que seja produzido pelo próprio Estado burguês não teria interesse em realizar transformações, mas sim em justificar as desigualdades sociais, com o fim último de preservar o status quo. Em outras palavras, é possível construir uma educação pública libertadora, contra a lógica do capitalismo, dentro de uma estrutura que reproduz os valores do capitalismo a todo instante?

Mais reflexões ainda podem ser colocadas do ponto de vista marxista. Desse modo, como uma educação técnica seria libertadora se, após o indivíduo usuário dessa modalidade educacional conseguir um emprego, boa parte do fruto de seu trabalho seria expropriado por seu patrão, tornando seu trabalho alienado? Como emancipar um ser humano que sabemos que, posteriormente, será explorado pela própria estrutura capitalista, que gastará boa parte de seu tempo de vida para produzir riqueza para um terceiro?

As reflexões e perguntas colocadas acima, que atualmente ocupam parte significativa do meu tempo, antes de terem uma resposta definitiva, são provocações a serem enfrentadas e reflexionadas, com o objetivo de alcançar caminhos mais sólidos, que não deixem à margem questões tão relevantes. Nesse sentido, ainda que saibamos do limite conferido pela estrutura burguesa, acreditamos que a educação pode passar por evoluções, alcançando patamares que, ainda que limitados, possam aprimorar a troca recíproca de conhecimentos entre alunos e professores.

Nessa linha de raciocínio, utiliza-se da noção da pedagogia histórico crítica proposta por Dermeval Saviani[23]. Para explorar esse conceito, torna-se necessário ter como premissa algumas considerações sobre a abordagem marxista de singular – particular – universal. Dessa forma, afirma-se que a nossa condição enquanto sujeito (singular), inserido em um determinado contexto político e social (particular), não esgota todas as possibilidades de organização social que o homem pode construir (universal). Assim, ainda que a atual estrutura social seja permeada pela lógica da desigualdade e exploração, não podemos tomar o particular pelo universal, e acharmos que a realidade atual encerra todas as possibilidades de estruturas sociais e modos de produção possíveis.

Tendo feito uma breve abordagem do conceito de singular-particular-universal e considerando que o particular serve de mediação para o contato do singular com o universal, afirma-se que Marx propõe a humanização do homem a partir de sua objetivação, sendo que essa objetivação se dá por meio do trabalho[24]. Dessa forma, considerando a universalidade como todo o desenvolvimento cultural, social e intelectual construído pelo ser humano desde o seu surgimento enquanto espécie, essa objetivação seria a possibilidade de todos os homens e mulheres poderem ter acesso a essa produção humana. Em outras palavras, que todo ser humano vivo tem o direito de entrar em contato com a herança epistemológica e cultural da humanidade, como forma de se humanizar.

É nesse ponto que entra o pensamento de Saviani, pois este considera que o objetivo da educação é justamente garantir ao ser humano o acesso à universalidade humana, a toda produção cultural e intelectual desenvolvida pelo ser humano durante sua existência enquanto espécie. Aqui, vale destacar trecho da obra de Dermeval Saviani[25]:

 

Para a pedagogia histórico- crítica, educação é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens

Em outra margem, partindo da dissertação de mestrado de Sandra Braga, infere-se que a dialética da função ensino-aprendizagem se daria por meio da atividade de ensino do professor de educação profissional e a de estudo incumbida aos alunos, mediadas pelos conhecimentos teóricos e práticos inerentes ao EPT[26]. Essa relação dialética coloca os estudantes e professores em contato com a mesma linguagem, símbolos e significados, engendrando em ambos a necessidade similar de apropriação e transmissão recíproca dos conhecimentos.

Nesse sentido, tendo em vista que a educação profissional está vinculada diretamente a dois direitos fundamentais, a saber, educação e trabalho, alguns apontamentos podem ser feitos. Para exemplificar a importância e proximidade da atual discussão, basta o leitor (a) olhar em sua volta e perceber quais dos objetos que está utilizando que são fruto do trabalho humano. Dessa forma, a cadeira em que está sentado, a mesa em que o computador ou tablet está apoiado, o próprio computador ou tablet, as roupas que está vestindo, o sapato que calça, o edifício que adentra, enfim, são todos frutos do trabalho humano. Com efeito, a fruição de tais objetos só é possível devido à conjugação da educação e do trabalho, tendo em vista que enquanto a educação é um meio de transformação interna do ser humano, o trabalho é um meio de transformação externa do mundo em que o ser humano está inserido. Dessa forma, a educação profissional, ao vincular o ensino e o trabalho, constitui um objeto de análise de elevada importância para o desenvolvimento da sociedade civil.

Como se vê, a adoção da pedagogia histórico crítica na análise da educação profissional permite uma aproximação com o método de Marx, tendo em vista que o materialismo histórico serve de base para a construção desta pedagogia, como observa Saviani[27]:

Portanto, a concepção pressuposta nesta visão da pedagogia histórico-crítica é o materialismo histórico, ou seja, a compreensão da história a partir do desenvolvimento material, da determinação das condições materiais da existência humana. No Brasil, esta corrente pedagógica firma-se, fundamentalmente, a partir de 1979.

Nesse sentido, para alcançar uma visualização do problema de pesquisa em maior amplitude, é necessário utilizar-se do movimento dialético cíclico proposto por Marx. Dessa maneira, tendo em vista que o abstrato deve ser a transposição do real para o pensamento, o primeiro passo é olhar para a realidade e identificar os problemas aparentes que envolvem o objeto de estudo no mundo fático. Após essa fase, deve-se transpor a realidade observada para o pensamento, com o objetivo de formar um raciocínio abstrato sobre o objeto investigado. Por fim, após a realização das duas primeiras fases – análise do concreto e a abstração da realidade – é necessário voltar mais uma vez ao real para tentar alcançar a essência do problema analisado. Esse retorno permite o desvelamento de problemáticas antes não identificadas. Como se percebe, as idas e vindas do real ao abstrato (e o seu recíproco) são cíclicas, de modo que esse movimento permite uma observação mais precisa do movimento histórico e dinâmico da realidade.

A utilização desse método para a análise normativa e política da educação profissional permitiria, em suma, a identificação de alguns dos instrumentos propagadores de opressão, que objetivam a permanência do status quo. Dessa forma, após identificar esses mecanismos, deve-se ter como objetivo político a sua extinção, tendo em vista que não se pode reformar uma estrutura que mantém como lógica necessária de funcionamento a exploração de muitos em benefício de poucos. Nesse sentido, um dos pontos fundamentais para o materialismo histórico-dialético é o potencial transformador do conhecimento crítico, que confere sustentação teórica para a práxis que objetiva a transformação social.

Por fim, afirmamos que só após a destruição desses aparatos jurídicos e estatais é que se pode abrir caminho para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. O excesso de desigualdade social e injustiça política presentes na sociedade atual não deve sugar as esperanças de construção de um novo vir a ser social, pois o curso da história não acaba hoje. Em suma, a pesquisa aqui desenvolvida não tem a finalidade de ser neutra, mas pelo contrário, coloca-se como análise engajada do mundo, pois como já nos ensinou Marx, não devemos apenas interpretar a realidade, mas sim, transformá-la[28].

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APONTAMENTOS SOBRE A COMPLEXIDADE DA QUESTÃO DA VIOLAÇÃO EM TEORIA GERAL DO DIREITO E MARXISMO[29]

 

Notes on the complexity of the violation question in The General Theory of Law and Marxism

 

Guilherme Cavicchioli Uchimura[30]

 

 Resumo: O artigo aborda a questão da violação na obra Teoria geral do direito e marxismo (TGDM), de Evguiéni Pachukanis. Em um primeiro momento, situo as reflexões que serão esboçadas em relação à minha trajetória de estudos sobre o fenômeno da violação. Em um segundo momento, procuro localizar e contextualizar a problemática da violação em TGDM, ou seja, em que momento e de que forma Pachukanis realiza aproximações em relação ao fenômeno da violação na estrutura de exposição da obra. Em um terceiro momento, apresento o debate sobre a possibilidade de se realizar a crítica acerca da violação do direito em geral a partir dos elementos analisados no capítulo sétimo de TGDM (“Direito e violação do direito”). Por último, e aqui mais em caráter de ensaio, busco sistematizar apontamentos sobre o fenômeno da violação extraídos da análise de TGDM e, com isso, indicar possíveis caminhos para a continuidade da pesquisa sobre o fenômeno da violação, desde a unidade de seus momentos constitutivos até a análise de cada um deles.

Palavras-Chave: Crítica marxista ao direito; Evguiéni Pachukanis; Teoria geral do direito e marxismo; Violação do direito.

Abstract: This paper approaches the violation question in The General Theory of Law and Marxism (GTLM), of Evguiéni Pashukanis. At first, I situate the reflections here outlined in my trajectory of studies about the violation phenomenon. In a second moment, I try to situate the location of the problem of the violation in GTLM, that is, at what moment and in what way Pashukanis makes approximations concerning the violation phenomenon in the exposition structure of his work. In a third moment, I present the debate about the possibility of criticizing the law in general violation from the elements analyzed in the seventh chapter of GTLM (“Law and violation of law”). Finally, and here more like an essay, I aim to systematize notes on the violation phenomenon extracted from the GTLM analysis and, from this, to indicate of possible ways for the continuity of the research on the violation phenomenon, from the unity of its constitutive moments until the analysis of each of them.

Keywords: Marxist critical of law; Evguiéni Pashukanis; The General Theory of Law and Marxism; Law violation.

INTRODUÇÃO

Escreverei a presente exposição com o uso da primeira pessoa no singular (eu). Não descuido que a construção do conhecimento crítico é um processo sobretudo coletivo – o qual, quando realizado neste sentido, gramaticalmente merece a conjugação plural (nós). Entretanto, no contexto do móvel, rico e complexo acúmulo histórico do saber, a tarefa que proponho trilhar aqui não é tanto a de formulação, mas sobretudo de posicionar a pesquisa que venho desenvolvendo sobre a questão da violação no panorama dos estudos sobre a obra Teoria geral do direito e marxismo (doravante TGDM) de Evguiéni Pachukanis. Trata-se, assim, de uma reflexão de origem individual acerca de um grande acúmulo coletivo sintetizado na referida obra. Com isso, neste momento parece ser mais apropriada, e até mesmo franca, a realização da exposição a partir do eu. Que, com os debates daí decorrentes, oxalá a pesquisa caminhe passos para um autêntico nós.

O tema da pesquisa que, atualmente, desenvolvo em minha dissertação de mestrado é a questão da violação na crítica marxista ao direito. A monografia ora em processo de construção é desenvolvida no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Paraná na área de concentração Estado, Economia e Políticas Públicas. De forma geral, e isso pensando mais especificamente em voos mais altos após e a partir da conclusão da dissertação de mestrado em curso, tenho por projeto investigativo a observação, o estudo e a sistematização das generalidades do fenômeno da violação na construção da crítica marxista ao direito.

Neste trabalho, apresentarei os apontamentos aos quais, até aqui, cheguei acerca da posição desta problemática nos estudos da obra TGDM, bem como dos possíveis caminhos aos quais a pesquisa, em seu atual estado, aponta. O artigo, assim, tem caráter exploratório e aproximativo. Em termos de metodologia de exposição, o foco principal será a análise de elementos da obra máxima de Pachukanis nos quais pude identificar a tematização da questão da violação, contando para isso com o apoio de parte da literatura nacional constituída em torno da teoria marxista-pachukaniana. Assim, por brevidade e a fim de privilegiar o debate específico proposto, não apresentarei aqui os fundamentos elementares deste corpo teórico, assumindo como pressupostos as principais bases de TGDM.[31] O texto constitui, em síntese, uma proposta inicial de debate sobre elementos analisados em TGDM que possivelmente permitam compreender o fenômeno da violação em sua complexidade, em sua historicidade e em sua especificidade capitalista.

AINDA A TÍTULO DE INTRODUÇÃO: TRAJETÓRIA DA PESQUISA

A questão da violação, ainda que de forma inconsciente, é o tema a partir do qual, desde os primeiros anos da graduação, formou-se o meu interesse pela pesquisa crítica acerca do direito. Foi em 2012, quando exercia em Londrina/PR a profissão de oficial de justiça, que enfrentei pela primeira vez no plano investigativo a estranha relação observada entre os fenômenos da violação e do mercado – a qual a mim, com o tempo transcorrido, tornou-se não menos enigmática.

Em uma penitenciária, depois de realizar a intimação de um detento cujo nome já não me recordo, fui questionado por ele sobre quantos meses ainda faltariam para que terminasse de pagar a pena. Percebi, neste momento, que havia ouvido muitas vezes esta mesma expressão: “pagar a pena”. Era uma gíria comum entre a população carcerária. Por quê? Pergunta aparentemente simples. Porém, do exercício profissional à cadeira da graduação em direito da Universidade Estadual de Londrina, a busca pela explicação do sentido da gíria “pagar a pena” me levou, sob a generosa orientação informal da Professora Érika Dmitruk, ao estudo de obras de criminologia crítica e, pela primeira vez, à leitura de Pachukanis. Diante da totalidade, a simplicidade da pergunta logo se mostrou enganosa. Foi o primeiro passo em direção ao enfrentamento da complexidade da questão da violação.

Ainda que com muitos equívocos de compreensão teórica, à época tentei sistematizar e debater estes estudos iniciais na apresentação de trabalhos apresentados eventos acadêmicos (UCHIMURA, 2013a, 2013b) e na produção de dois artigos, um publicado na Revista Discenso (UCHIMURA, 2013d) e outro no periódico Crítica do Direito (UCHIMURA, 2014). O que eu conceituei nestes estudos iniciais como “mercadorização dos delitos”, porém, hoje precisa ser absolutamente revisto. A “mercadorização” é mera tautologia. O momento jurídico, sob a crítica marxista ao direito, é essencialmente mercantil apreensão fundamental que, inclusive, servirá de eixo condutor a toda a exposição seguinte.

Passaram-se cinco anos, e neste percurso deixei a profissão de oficial de justiça para advogar na área trabalhista em Curitiba/PR. Deparei-me, novamente, com o fenômeno da violação. Mas agora não mais pela população marginalizada encarcerada, mas sim pela prática de diversas organizações empresariais. A presença frequente de algumas delas na cadeira dos réus da Justiça do Trabalho, elevada ao escárnio com a noção de “preposto profissional”, me colocou frente à questão da violação em um ângulo rigorosamente distinto em comparação ao âmbito criminal.

A violação sistemática da legislação trabalhista tornou-se a minha principal preocupação de pesquisa. Em estudos a partir de Marx e Pachukanis, tentei compreender os limites da Justiça do Trabalho em relação à luta dos trabalhadores contra a exploração capitalista (UCHIMURA, 2016a, 2016b). Posso dizer hoje, porém, que os resultados não foram ainda satisfatórios em termos de rigor teórico, ainda que tenham me aproximado da noção de “uso eficiente da Justiça do Trabalho” como crítica promissora à gestão capitalista neoliberal das relações de trabalho.

Percebi, no período seguinte, ante a ausência de literatura crítica específica que desse conta da complexidade do fenômeno da violação em geral, que a sua compreensão não seria resultado apenas de aprofundamentos de estudos, tampouco mero exercício de exegético dos fundamentos da crítica marxista. A violação se apresenta como um objeto espinhoso ao conhecimento crítico. Basta observar a pluralidade de características entre as duas experiências que narrei, a vivenciada como oficial de justiça e a vivenciada como advogado trabalhista, para verificar-se que não é simples a tarefa de responder o que há de comum nesta grande diversidade, apenas muito parcialmente retratada por este par de situações.

No período mais recente, a releitura de algumas das principais obras da crítica marxista ao direito, sobretudo TGDM, o estudo coletivo, o debate com a comunidade acadêmica, as disciplinas cursadas, os processos de orientação e, sobretudo, o confronto entre as formulações esboçadas e a realidade culminaram em sucessivas retificações do que foi escrito, expressão de um permanente e necessário enfrentamento do pesquisador consigo mesmo. Passei a situar a investigação da questão da violação em um programa pessoal de pesquisa de maior alcance temporal, para o qual ainda não vislumbro uma conclusão próxima.

É evidente que, ainda assim, é necessário manter aceso o debate com a comunidade acadêmica sobre os pequenos passos já percorridos neste caminho. Eis o sentido desta exposição. Até para que, se necessário, percursos incorretos sejam percebidos e ajustados. É neste ponto da trajetória de pesquisa em curso que a revisão, os aprendizados e os acúmulos teóricos até aqui alcançados, em grau aproximativo e provisório, serão apresentados nos apontamentos a seguir.

TEORIA GERAL DO DIREITO E MARXISMO: A LOCALIZAÇÃO DA QUESTÃO DA VIOLAÇÃO NA ESTRUTURA DE EXPOSIÇÃO DA OBRA

Em 1926, ao prefaciar a segunda edição de TGDM, Pachukanis afirma: “A crítica marxista da teoria geral do direito está apenas começando” (PACHUKANIS, 2017a, p. 59). Desde sua primeira edição, em 1924, foram muitos os que se dedicaram a elaborar avanços teóricos, propor revisões e incorporar novos elementos ao que, com nosso autor, faz-se referência como “crítica marxista da teoria geral do direito”.

Dentro do quadro de possíveis pontos a serem desenvolvidos pela crítica marxista, tenho por hipótese de investigação que, no sétimo e último capítulo de TGDM, Pachukanis apresenta a base para o que poderia vir a ser uma teoria da violação do direito, abrangendo não apenas a esfera penal, mas o fenômeno jurídico como um todo. A primeira questão que se coloca, por outro lado, é: qual seria justificativa de fazê-lo? Ou seja, qual a relevância em teorizar a violação?

Em certa medida, podemos observar que, entre os movimentos sociais e populares, são cada vez mais comuns práticas de denúncia ou mobilização em decorrência de “violação de direitos”. Refiro-me, por exemplo, à já mencionada violação sistemática da legislação trabalhista e suas consequências práticas à relação capital-trabalho: a disputa econômica pelas proporções entre mais-valia e salário também se dá no plano da violabilidade da legislação trabalhista. Mas não só. Como compreender a massiva “violação de direitos” em megaprojetos? Ou a responsabilização de empresas pela emergência de danos a populações historicamente exploradas? E, aqui, a ruptura da barragem de Fundão na cidade de Mariana/MG, em 2015, aparece como o mais emblemático e eloquente caso na história brasileira recente.

Se compreendermos estas violações como fenômenos subordinados à totalidade capitalista, a questão que se coloca é descobrir quais são os seus fundamentos materiais. A formulação de respostas a estas perguntas coloca-se como necessidade premente à crítica marxista ao direito, não apenas em seu desenvolvimento teórico, mas sobretudo em seu engajamento na transformação do real. A investigação da questão da violação, portanto, tem aqui como ponto de partida político-epistemológico o compromisso com as lutas da classe trabalhadora e dos movimentos populares, mais precisamente, com a elevação do nível de consciência sobre as formas pelas quais o fenômeno jurídico acaba condicionando estas lutas.

Em segundo lugar, uma inevitável questão: por que buscar esta resposta na obra pachukaniana? TGDM já completa quase um século desde sua primeira publicação, em 1924. Neste período, a realidade social mundial, com sua dinamicidade histórica, passou por profundas alterações. Obviamente, não se trata do mesmo momento histórico que o vivenciado pelo nosso autor, cuja trajetória conta com a militância bolchevique no início do século passado, passando pela Revolução Russa de 1917 e pela participação ativa no processo da organização política soviética pós-revolucionária – primeiro como “juiz popular” e, depois, como membro do Comissariado do Povo (NAVES, 2017).

Entre o campo que se propõe a investigar o fenômeno jurídico a partir do marxismo, porém, a obra máxima de Pachukanis permanece sendo reconhecida como uma referência incontornável para o desenvolvimento teórico da crítica ao direito. TGDM permanece sendo amplamente reconhecida, seja como “o trabalho mais fecundo sobre uma aproximação e desenvolvimento de uma teoria marxista do direito” (SOARES, 2011, p. 18), seja como “a principal referência marxista no campo da filosofia do direito” (KASHIURA JÚNIOR; NAVES, 2011, p. 1). Mesmo para aqueles que sustentam a necessidade de um minucioso exercício de crítica a pontos centrais da obra pachukaniana, esta não deixa de ser identificada como “a referência máxima quando se trata da relação entre o direito e o marxismo (SARTORI, 2015). Trata-se, em suma, da obra máxima de um autor que representa, “ainda hoje, a mais importante sistematização de uma teoria marxista do direito” (PAZELLO, 2015, p. 134).

Com base nestas posições, a delimitação desta exposição tem os seus contornos no estudo da questão da violação em TGDM. Não se trata de, dogmaticamente, buscar qualquer tipo de resposta exegética nos escritos pachukanianos. O que se pretende é, assimilando a importância histórica e o peso teórico da obra – cuja capacidade explicativa se evidencia ainda mais com o aprofundamento da crise econômica e do golpe de estado vividos no período recente no Brasil –, tomá-la como ponto de partida para a aproximação do fenômeno da violação em sua generalidade.

Pois bem. Com base nestas posições, a partir daqui tratarei da localização da questão da violação na estrutura de exposição de TGDM. A obra, após uma introdução intitulada “Tarefas da teoria geral do direito”, divide-se em sete capítulos. Posteriormente foram incorporados o importante prefácio à segunda edição, de 1926, e o prefácio à terceira edição, de 1927.

É possível observar que a exposição propriamente dita da teoria marxista-pachukaniana se inicia apenas no quarto capítulo, intitulado “Mercadoria e sujeito”. É nele que em direção à “explicação da especificidade do direito […] Pachukanis verticaliza o embasamento de sua tese” (PAZELLO, 2015, p. 136). Podemos considerar que os capítulos anteriores, evidentemente não menos importantes, são em certa medida introdutórios, tratando mais propriamente de fundamentos de método, de epistemologia e da delimitação do problema enfrentado na obra.

Já no quarto capítulo, a partir de uma acurada leitura d’O Capital, com ênfase para o trecho inicial do segundo capítulo (“O processo de troca”), Pachukanis identifica o sujeito como o elemento mais simples do fenômeno jurídico, iniciando a partir dele a análise que leva à delimitação da especificidade do direito em relação às demais relações sociais burguesas. Em termos de método, como afirma Pachukanis, “devemos começar pela análise da forma jurídica em seu aspecto mais abstrato e puro e passar, depois, pelo caminho de uma gradual complexidade até a concretização histórica” (PACHUKANIS, 2017a, p. 86).

Passando pelos capítulos quinto (“Direito e Estado”) e sexto (“Direito e moral”), TGDM se encerra no capítulo sétimo (“Direito e violação do direito”), ao qual centralmente se dedicam as anotações do presente trabalho. Como o livro não tem uma seção destacada para conclusões e considerações finais, é este o capítulo que lhe serve de desfecho, com a conhecida posição sobre a tendência da extinção da forma jurídica: “[…] quando começarmos de fato, não apenas nas declarações, a eliminar esses conceitos e conseguirmos nos virar sem eles, esse será o sintoma de que, diante de nós, alargam-se os estreitos horizontes do direito burguês” (PACHUKANIS, 2017a, p. 183).

Aliás, se assumirmos que Pachukanis realiza a exposição de sua análise do simples ao complexo, chegaremos à conclusão de que nosso autor reserva à “violação do direito” a posição de um dos momentos de maior concretização histórica do fenômeno jurídico abordados em TGDM. Neste sentido, para além da análise da organização da obra, afirma diretamente o autor: “a relação jurídica adquire historicamente seu caráter específico antes de tudo em fatos de violação de direito” (PACHUKANIS, 2017a, p. 166). Tendo começado pela identificação do sujeito de direito como o elemento mais simples do fenômeno jurídico, Pachukanis chega aqui a um momento de maior complexidade, em que é necessária a mobilização articulada das categorias desveladas no curso da obra para o exercício da crítica.

ELEMENTOS EM TGDM ACERCA DE UMA POSSÍVEL ABORDAGEM GERAL DA QUESTÃO DA VIOLAÇÃO NA CRÍTICA MARXISTA AO DIREITO

Há uma forte tendência entre os estudiosos da obra pachukaniana a compreender o capítulo “Direito a violação do direito” como uma seção voltada inteiramente à questão do delito (e.g. VIANNA, 2010; SOUZA, 2017). Ricardo Pazello, neste sentido, afirma que “todo seu Capítulo VII” se dedica à “problemática do direito penal”, tratando-se de um “texto seminal para a criminologia crítica” (PAZELLO, 2015, p. 139).

Apesar de a indicação pazelliana estar objetivamente acertada, pretendo – como já o afirmei anteriormente – investigar a hipótese de que a análise realizada por Pachukanis no referido capítulo permite a extração de elementos não apenas para a compreensão crítica dos delitos, mas também para a compreensão do fenômeno da violação em sua generalidade. Na sequência, apresentarei elementos apreendidos na análise de TGDM com o objetivo de explorar a questão da violação sob este olhar até então pouco desenvolvido.

Escrevi recentemente sobre este tema, em conjunto com a professora Aldacy Rachid Coutinho, buscando trazer a categoria violação para a investigação das relações de trabalho. Em Pachukanis, Vaughan e a violação de normas jurídicas trabalhistas: a face obscura da gestão capitalista das relações de trabalho (UCHIMURA; COUTINHO, 2018), tratamos, na primeira seção do artigo, especificamente da problemática da “violação do direito como categoria da crítica marxista à forma jurídica”. É verdade que alguns dos pontos desenvolvidos neste artigo já se encontram, de nossa parte, em processo de revisão. Outros, por outro lado, serão retomados e sistematizado aqui na medida de sua pertinência para o debate.

Sabe-se que Pachukanis, em seus estudos na Alemanha, entre 1910 e 1914, preparou uma tese de doutorado sobre as “Estatística das violações das leis de segurança do trabalho”. Infelizmente, não se conhece o teor do trabalho ou, sequer, se este chegou a ser depositado (NAVES, 2017). Ainda assim, o interesse de nosso autor pelo tema, anos antes da elaboração e publicação de sua obra máxima, já indicava que a violação viria a ser um momento do fenômeno jurídico relevante para o desenvolvimento da crítica marxista da teoria geral do direito.

Em TGDM, no capítulo sétimo, Pachukanis trata inicialmente das formas da relação entre dano e reparação em estágios primitivos de desenvolvimento. Remontando o processo histórico em torno desta questão, a exposição culmina no momento em que a forma da troca equivalente, com o desenvolvimento capitalista, passa a caracterizar a condenação penal. Neste caminho, ao mesmo tempo em que a exposição é dedicada a uma reconstrução histórica do “direito penal”, é interessante observar com atenção a seguinte passagem localizada no início do capítulo (mais precisamente, em seu quinto parágrafo): “A lei e a pena por sua violação, em geral, estão intimamente associadas uma à outra e, dessa maneira, o direito penal como que assume o papel de representante do direito em geral, é a parte que substitui o todo” (PACHUKANIS, 2017a, p. 167). Já no final do texto, outra aproximação semelhante: “O direito penal, assim como o direito em geral, é uma forma de relação entre sujeitos egoístas isolados portadores de interesse privado autônomo ou entre proprietários ideais” (PACHUKANIS, 2017a p. 183).

Destacando a afirmação de que “o direito penal como que assume o papel de representante do direito em geral”, é possível sustentar que Pachukanis identifica o direito penal como um ramo metonímico do fenômeno jurídico, ou seja, uma parte que representa o todo. Coloca-se no mesmo sentido a identificação comum da “relação entre sujeitos” ou “proprietários ideais” entre o direito penal e o direito em geral, realizada pelo autor no segundo trecho citado. Seria, então, o objeto do capítulo sétimo de fato a problemática do direito penal ou, alternativamente, seria a questão da violação em sua generalidade?

A favor da segunda tese, podemos observar que, externamente à análise da obra TGDM, o interesse de Pachukanis pela violação para além da esfera penal foi ao menos indicada no título de sua tese de doutorado com a expressão “violações das leis de segurança do trabalho”. A possibilidade da lógica da metonímia, entretanto, é em grande medida vaga, vez que Pachukanis não retoma firmemente as alusões do “papel de representante do direito em geral” e da “parte que substitui o todo” no decorrer do texto, a não ser de passagem no segundo trecho citado. Até aqui, entendo que se trata de pergunta relevante, mas sem que a análise dos elementos da obra seja conclusiva para nos permitir respondê-la. Fica entreaberta, portanto, esta possibilidade de interpretação – a de que, em seu capítulo sétimo, TGDM trata metonimicamente da relação geral entre violação e fenômeno jurídico fazendo alusão do todo (direito) pela parte (direito penal).

Neste ponto da reflexão, vale observar que, na edição de TGDM lançada pela Editora Sundermann em 2017, com tradução de Lucas Simone, a tradução do título do capítulo sétimo adotada foi “Direito e delito” (PACHUKANIS, 2017b). Comparativamente com as outras edições brasileiras, incluindo a da Editora Boitempo lançada no mesmo ano, e com edições de outros países, trata-se da primeira vez que o termo “delito” foi utilizado para traduzir o título da seção. Tradicionalmente, a expressão empregada é “violação do direito” (e.g. PACHUKANIS, 1988) – em outras línguas, “violación del derecho” (PACHUKANIS, 1976) e “violation of law” (PACHUKANIS, 1980a).

O título que Pachukanis deu ao Capítulo VII nos escritos originais é Право и правонарушение (pravo i pravonaruchenie) (PACHUKANIS, 1980b). Em tradução literal, chega-se a direito (pravo) e violação – ou mesmo perturbação – do direito (pravo com naruchenie). A justaposição pravonaruchenie aparece em dicionários russos como ato que transgride o direito ou a lei e que vai contra as relações sociais normatizadas pelo direito, estando semanticamente ligada a uma gama de ideias: преступление (crime), нарушение (transgressão), проступок (falta, erro, contravenção), злодеяние (delito, malfeito), деликт (delito), нарушение закона (transgressão da lei). Destaca-se também que não se identifica pravonaruchenie como a palavra usualmente empregada em russo para definir crimes, que é преступление, presente em Crime e Castigo de Dostoevsky, ou mesmo na tradução da edição russa da clássica obra Dos Delitos e das Penas, de Beccaria.[32]

A conclusão que desta análise se pode tirar é que, de fato, a tradução mais adequada ao título do capítulo sétimo de TGDM é a consagrada “direito e violação do direito”, cabendo observar que a expressão pravonaruchenie não está ligada apenas a crime, mas também a falta, erro, contravenção, transgressão da lei. Por outro lado, é necessário dizer que, com as reflexões até aqui esboçadas, não se pretende divagar sobre qual foi a intenção do autor ao escrever o capítulo sétimo, tampouco definir o seu conteúdo de acordo com o seu título, mas sim pensar em que medida a construção teórica desta seção de TGDM pode contribuir para a elevação da compreensão da crítica marxista ao direito sobre a questão da violação. Essa possibilidade será melhor explorada com a análise do conteúdo do capítulo sétimo, tarefa trilhada no item a seguir.

A CARACTERIZAÇÃO DO FENÔMENO DA VIOLAÇÃO EM TGDM

Nas primeiras páginas do capítulo VII, além de “violação”, Pachukanis faz uso de distintas expressões semanticamente próximas, como “desvio de norma”, “injustiças”, “insubordinação à norma”, “ruptura com a forma normal das relações”, “ofensa” e “delito” (PACHUKANIS, 2017a, pp. 165-167). Além disso, em TGDM, a categoria violação tem como predicativo ora o direito[33], ora a norma[34], ora a lei[35], e até mesmo a “existência pacífica e tranquila”[36]. De passagem, Pachukanis também faz a distinção entre “uma violação do direito penal ou do direito civil” (PACHUKANIS, 2017a, p. 165). Estas variações indicam que, já a partir da leitura de TGDM, revela-se uma complexidade no fenômeno da violação por vezes não enfrentada e que merece alguma atenção da crítica marxista ao direito.

Para avançar em direção à organização desta complexidade no plano da análise, proponho que o debate sobre a categoria violação seja realizado a partir de dois elementos: (i) a sua especificidade jurídico-capitalista em relação ao fenômeno da violação em outros momentos históricos; e (ii) a diversidade de momentos ao mesmo tempo distintos e unitários entre si abrangidos pelo fenômeno da violação na sociedade capitalista. Dividirei esta última parte da exposição de acordo com estes possíveis debates. Na sequência, caminhando em direção ao desfecho deste trabalho, apresentarei um balanço final das reflexões então esboçadas.

A especificidade jurídico-capitalista da violação

A violação, como fato, não é observada exclusivamente na sociabilidade capitalista. A existência de fatos de “ruptura com a forma normal das relações” (PACHUKANIS, 2017a, p. 166) é facilmente observada em outras formações históricas, o que fica bastante nítido no início da exposição realizada no capítulo sétimo de TGDM.

Logo no primeiro parágrafo da seção, podemos encontrar referências a três exemplos de códigos repressivos pré-capitalistas: (i) o Rússkaia Pravda, uma espécie de código com regras de conduta existente na Rússia entre os séculos IX e XIII (período kieviano), (ii) a Lei Sálica, código franco do século V atribuído a Clóvis I, e (iii) a Lei das XII Tábuas, código identificado ao antigo “direito romano”. O ponto ao qual Pachukanis chama a atenção com isso é que “a ruptura com a forma normal das relações e os conflitos daí decorrentes constituem o ponto de partida e o principal conteúdo da legislação arcaica” (PACHUKANIS, 2017a, p. 166).

Em seguida, o debate volta-se à produção de aproximações sobre a origem do “direito penal”. Mais especificamente, sobre como ela está “ligada historicamente ao costume da vingança de sangue” e como “geneticamente” estes fenômenos se relacionam (PACHUKANIS, 2017a, pp. 165-167). Com esta introdução ao capítulo, percebe-se logo que nele Pachukanis dará importância central à investigação histórica das relações que condicionam o fenômeno da violação em sua especificidade capitalista.

Em termos de método, é possível entender que o processo de apropriação teórica é um processo de “crítica, interpretação e avaliação de fatos” e, ainda, que os fatos são “a cifra da realidade”. A investigação se realiza com mediações entre os fatos e a totalidade, o que permite decifrá-los e construir conhecimento crítico (KOSIK, 1976, pp. 54-57). É precisamente este movimento que se observa no rico processo espiral construído na obra TGDM como um todo e, em especial, também dentro da estrutura de seu capítulo sétimo. Pachukanis, inclusive, aponta explicitamente um importante princípio do método ainda no início desta seção: “também aqui as etapas posteriores do desenvolvimento, como sempre se observa na história da humanidade, explicam os indícios que se observam nas formas antecessoras” (PACHUKANIS, 2017a, p. 167). É dizer: no texto aqui analisado, a totalidade funciona ao mesmo tempo como ponto de partida e de chegada na investigação histórica do fenômeno da violação.

Didaticamente, talvez seja possível compreender a violação em sua especificidade jurídica de modo semelhante à categoria trabalho abstrato em Marx ou, mais precisamente, ao movimento cognitivo do geral ao específico que a caracteriza. O trabalho concreto, como dispêndio de energia humana, é observado em outras formações históricas, sendo o trabalho abstrato uma forma histórica especificamente capitalista. A “violação do direito”, por sua vez, também encontra outras formas históricas a ela semelhantes. Pachukanis identifica a dimensão mais geral da violação como “um fato puramente biológico”, o que significa “nada além da luta pela existência” (PACHUKANIS, 2017a, p. 167). Em nossa analogia, dentro dos limites de uma aproximação didática, a oposição entre a noção de trabalho concreto (geral) em oposição à categoria trabalho abstrato (específico) corresponderia à oposição entre a noção de “fato puramente biológico” (geral) e a categoria “violação do direito” (específico).

Neste quadro, do mais geral (momento biológico) ao mais específico (momento relacional), Pachukanis demonstra que o “princípio da reparação equivalente”, ao contrário do que se costuma supor entre os teóricos tradicionais do direito penal, passou por um longo processo de desenvolvimento histórico. Na formação histórica russa, por exemplo, em épocas mais antigas a vingança não eliminava possibilidades de vinganças posteriores. Apoiando-se nos cadernos histórico-etnográficos de Maksim Kovaliévsky, Pachukanis observa certa retroalimentação entre os fenômenos da ofensa e da vingança em períodos passados na história russa, afirmando que “os conflitos entre as famílias passavam de geração em geração […] o ofendido e seus parentes tornavam-se ofensores, e assim seguia de uma geração a outra, muito frequentemente até o total extermínio das famílias rivais” (PACHUKANIS, 2017a, p. 167).

A relação entre ofensa e vingança ou autodefesa, lentamente, torna-se relação entre dano e reparação. Com o capitalismo, enfim, os fatos de violação passam a ser mediados pela forma da equivalência, assumindo o caráter de relação jurídica. Aqui, Pachukanis explicita esta tese: “A vingança como um fenômeno puramente biológico se torna uma instituição jurídica na medida em que opera em uma relação com a forma da troca de equivalentes baseada no valor” (PACHUKANIS, 2017a, p. 169). Neste processo histórico, fica evidente a presença simultânea de formas adjacentes e transitivas em relação ao fenômeno jurídico, como as próprias das esferas da moral, da religião e das atividades fiscais do Estado. Neste momento não tratarei desta complexidade, deixando indicada a necessidade de se realizar tal abordagem em outro espaço.

   O que interessa aqui, por enquanto, é observar a historicidade da violação reconstruída por Pachukanis. Existem pelo menos quatro fatores históricos transitivos – prossegue o autor – pelos quais “se constrói paulatinamente o amálgama complexo do direito penal contemporâneo”. São eles: (i) “a desintegração da economia natural”, (ii) “o aumento da exploração dos camponeses”, (iii) o desenvolvimento do comércio” e (iv) “a organização do Estado” (PACHUKANIS, 2017a, p. 171). Ao mesmo tempo, em grande medida, nota-se que as dimensões punitivas assumidas pela organização estatal, em seus interesses de classe, impulsionaram o desenvolvimento de uma forma específica de regulação da violação na formação capitalista russa.[37]

Aqui, Pachukanis vale-se da oposição entre forma e conteúdo para expressar uma ambivalência fundamental resultante deste processo histórico. Reproduzirei uma citação longa que, pela sua relevância neste sentido, merece maior atenção:

Se, devido a seu conteúdo e seu caráter, a prática penal do poder é um instrumento de defesa da dominação de classe, então, por sua forma, surge como elemento da superestrutura jurídica, integrando a ordem jurídica como um de seus ramos. Demonstramos aqui que a luta nua pela existência adquire forma jurídica com a introdução do princípio de equivalência. O ato de legítima defesa, dessa maneira, deixa de ser apenas um ato de autodefesa para se tornar uma forma de troca, um modo particular de circulação que ocupa seu lugar ao lado da circulação “normal”. Delito e pena são o que são, ou seja, adquirem sua natureza jurídica no solo das operações de transação. Enquanto essa forma se conserva, a luta de classes se realiza como jurisdição. Inversamente, o próprio termo “direito penal” perderia qualquer sentido, uma vez que dele evaporasse o princípio da relação de equivalência. Dessa maneira, o direito penal se torna parte integrante da superestrutura jurídica, uma vez que encarna uma variedade dessa forma fundamental, à qual a sociedade moderna está subordinada: a forma da troca de equivalentes com todas as suas consequências e implicações. A realização dessas relações de troca no direito penal é um dos lados da realização do Estado de direito como forma ideal de relação entre os produtores de mercadoria independentes e iguais que se defrontam no mercado. (PACHUKANIS, 2017a, pp. 173-174, itálicos no original).

Entre o momento puramente biológico da vingança e o momento capitalista da violação do direito, Pachukanis caracteriza a forma da troca de equivalente como a base do processo pelo qual “a luta nua pela existência adquire forma jurídica”. Enquanto o desenvolvimento capitalista ainda não havia consolidado o aparecimento da forma jurídica como forma social específica – o que se deu, basicamente, a partir da regularidade da relação de troca de mercadorias entre sujeitos de direito sob o movimento imperativo do processo de valorização do valor –, não era possível distinguir a violação entre o momento jurídico, o moral e o religioso.

Do trecho citado, também se pode extrair que a “forma da troca de equivalentes” não apenas subordina a sociedade moderna – colocação forte de Pachukanis e que merecerá maior atenção em outro momento –, mas também é uma “forma fundamental” da qual se encarna uma gama variedades, entre as quais o direito penal figura como espécie. O conteúdo repressivo apenas adquire caráter jurídico em função desta forma à qual se subordina. A “relação de equivalência”, assim, é condição para que o momento biológico se torne momento relacional e jurídico. Interessa pensar aqui em que medida este quadro explica não apenas a juridicidade do direito penal, mas também do fenômeno da violação em geral. Voltarei a esta questão mais adiante.

Prosseguindo a análise do trecho citado, o “Estado de direito” aparece em seguida como “forma ideal de relação entre os produtores de mercadoria independentes e iguais que se defrontam no mercado”. Como forma ideal, o terreno estatal é produto da abstração, originando-se historicamente das relações de troca fundantes da economia capitalista, principalmente a compra e venda da força de trabalho. Mas, ao mesmo tempo, trata-se de uma forma ideal que esconde forças reais as quais, no plano material, viabilizam que o direito penal se realize como um conjunto de relações de troca e, com isso, que a violação da legislação penal adquira juridicidade.

O trecho citado guarda, portanto, um dos segredos do direito. Na medida em que a forma legal imita a lógica da troca de mercadorias entre sujeitos de direito, baseando-se nas formas da subjetividade jurídica e da equivalência, esta aparece fenomenicamente como direito. É neste sentido que Pazello (2014), em sua tese de doutoramento, caracteriza a lei como forma aparente do direito, não se confundindo com a sua forma essencial – a relação de troca entre sujeitos de direito. Tratando da crítica ao normativismo, no capítulo III (“Relação e norma”), Pachukanis coloca a questão da seguinte forma: a norma “dada na forma de uma lei do Estado, representa apenas um sintoma por meio do qual é possível prever com certa probabilidade o surgimento em um futuro próximo das relações correspondentes” (PACHUKANIS, 2017a, pp. 98-99).

Mas, se a legislação não se confunde com o direito, onde poderíamos encontrar o direito na esfera penal? Em relação à legislação penal, “as relações correspondentes” podem ser apenas de duas ordens: ou a conduta em conformidade com as prescrições legais, ou a aplicação das penas previstas em decorrência de sua violação. No primeiro caso, não estamos diante de relações jurídicas no sentido estrito. Até poderíamos dizer que a efetividade da prescrição do crime de roubo, por exemplo, opera no plano da garantia da manutenção e da circulação da propriedade privada. Este tipo de garantia, porém, apesar de estruturalmente imbricado ao fenômeno jurídico, não está no plano de seu momento genético.

O que se sugere da interpretação do trecho citado, ao revés, é que o direito está justamente na segunda ordem de relações correspondentes, ou seja, na aplicação das penas previstas. A violação da lei penal, portanto, comporta uma inversão fundamental no caminho da aparência à essência: aparece como negação do direito, mas é justamente onde a forma essencial do direito se encontra (ou se esconde) com maior peso na esfera do “direito penal”. Sob esta lógica, a violação torna-se um momento fundamental para a compreensão da juridicidade penal e, por extensão, da juridicidade em outras esferas análogas.

Na sociedade moderna, com a subordinação do momento biológico (violência ou autodefesa) à forma jurídica, criam-se relações jurídico-mercantis de um tipo próprio. Em certo momento, Pachukanis refere-se a esta situação como “relação decorrente”[38]. Empregando doravante esta terminologia, pode-se dizer que o delito adquire juridicidade com a violação da legislação e, mais do que isso, no momento da instauração da relação decorrente. É necessário ressalvar que essa juridicidade não corresponde diretamente à relação fundante do direito, ou seja, a troca de mercadorias entre sujeitos de direito. Mas a lógica que se imprime nas “relações decorrentes” é fundamentalmente mercantil e, consequentemente, jurídica. Esta é a chave para se compreender outra passagem emblemática de TGDM: “[o] delito pode ser considerado uma variante particular de circulação, na qual a relação de troca, ou seja, contratual é estabelecida post factum, ou seja, depois de uma ação arbitrária de uma das partes” (PACHUKANIS, 2017, p. 167).

A partir daqui, cabe questionar em que medida estas colocações podem ser apropriadas para a construção da crítica do fenômeno da violação em geral. Se tomarmos o delito como um tipo de fato de violação, do particular ao geral, pode-se delimitar como hipótese que a violação em geral consiste em uma forma (variante particular de circulação) que abrange unitariamente um fato (ação arbitrária de uma das partes) e uma relação decorrente (relação de troca-contratual estabelecida após o fato).

O principal ponto desta análise talvez seja este: a concepção da violação como uma unidade oculta de relações. A caracterização do delito assim realizada por Pachukanis mostra-se promissora para a análise de fatos de violação observados em outras esferas do direito (trabalhista, civil, administrativa etc.). Considerando isso, buscando elevar a análise realizada até aqui em direção ao concreto, o próximo item será dedicado a buscar, ainda na interpretação do capítulo sétimo de TGDM, elementos que permitam compreender o fenômeno da violação em sua historicidade capitalista com maior atenção a esta unidade de momentos diversos.

A unidade e os momentos da violação: em direção às generalidades do fenômeno

Começarei aqui pela reprodução de mais um trecho central do texto em análise:

A insubordinação à norma, a violação desta, a ruptura com a forma normal das relações e os conflitos daí decorrentes constituem o ponto de partida e o principal conteúdo da legislação arcaica. O normal, ao contrário, não se fixa como tal desde o início: ele simplesmente existe. A necessidade de se fixar e definir com precisão a extensão e o conteúdo dos direitos e das obrigações mútuas surge no momento em que a existência pacífica e tranquila é violada. A partir desse ponto de vista, Benthan está correto quando diz que a lei cria o direito ao criar o delito. A relação jurídica adquire historicamente seu caráter específico antes de tudo em fatos de violação do direito. (PACHUKANIS, 2017a, p. 166).

Na análise desta citação, é necessário observar que a expressão “a partir desse ponto de vista” não é mero recurso estilístico, mas constitui uma severa ressalva à colocação atribuída a Benthan. O antinormativismo pachukaniano de modo algum permitiria conceber, por si, que “a lei cria o direito”, posição enfaticamente rechaçada no terceiro capítulo da obra (“Relação e norma”). Evidentemente não é apenas isso que se está afirmando nesta passagem. A forma legal, como já visto, é no máximo um “sintoma” de realidade jurídica. É forma aparente do direito (PAZELLO, 2014), sendo a “norma jurídica”, em uma expressão com relevante força didática, nada mais que “direito morto” (KASHIURA JÚNIOR, 2009, p. 70).

A criação do direito pela lei se dá – aí o necessário complemento de Pachukanis – com a criação do delito e, o mais importante, “em fatos de violação do direito”. A relação jurídica, em essência, é factual. O caráter historicamente específico da relação jurídica é a forma da troca de mercadorias entre sujeitos de direito. O delito criado pela lei, portanto, é no máximo “sintoma” esperando tornar-se “direito realmente existente”, para utilizar outra expressão de Pachukanis.[39] Para que este “direito morto” ganhe ânimo real, é necessário que seja violado. É dizer: o sopro de vida do direito penal é identificado a partir de Pachukanis precisamente nos fatos de violação.

O que Pachukanis demonstra na sequência é que, no capitalismo, a relação decorrente da violação é, esta sim, potencialmente uma relação jurídica viva. O processo penal, apesar de aparentemente não corresponder a uma troca de mercadorias entre sujeitos de direito, é “indissociável da forma mais geral do contrato” (PACHUKANIS, 2017a, p. 174). A execução da pena, por sua vez, assume um modelo “profundamente ligado ao homem abstrato e à abstração do trabalho humano mensurável pelo tempo” (PACHUKANIS, 2017a, p. 177). Em suma, a mediação da relação entre o infrator e a organização estatal se dá pela aplicação da lógica da reparação equivalente, um novo fundamento da troca de equivalentes sob o valor, relação fundante da sociedade mercantil-capitalista.

Retorno, a partir daqui, ao debate suscitado anteriormente. Ao caracterizar a violação da lei penal desta forma, Pachukanis estaria fazendo alusão do todo (direito) pela parte (direito penal)? Ou, ainda, seria possível caracterizar teoricamente os fatos de violação em geral a partir destes elementos? Novamente, não cabe aqui a vã discussão sobre qual teria sido a intenção do autor ao escrever a obra. Mas é interessante observar agora que, com base na análise até aqui esboçada e a partir da comparação com situações análogas não penais, torna-se em alguma medida possível esboçar e testar possíveis respostas a estas perguntas.

A violação da legislação trabalhista apresenta-se como um primeiro exemplo relevante para se realizar tal investigação – por coincidência, objeto presente tanto em minha trajetória de pesquisa, quanto no tema da tese de doutoramento de Pachukanis. Tratarei, a partir daqui, mais especificamente dela.

Que fatos poderiam ser enquadrados em tal tipo de violação? Inicialmente, é necessário perceber que a dimensão jurídica da relação de emprego, pela complexidade que a envolve, caracteriza-se mais como um feixe de relações do que como uma única relação. O centro fundante deste amálgama certamente é a troca de força de trabalho por salário entre dois sujeitos de direito, patrão e trabalhador. Aliás, este é o núcleo central do processo de produção de valor que sustenta o modo de produção capitalista. Há, em torno desta relação nuclear, uma diversidade de relações em que o Estado aparece como terceiro vértice, tais quais relações securitárias (recolhimento de previdência social pelas duas partes), fiscais (recolhimento de imposto de renda), técnicas (dispositivos de segurança do trabalho) e administrativo-burocráticas (anotação da carteira de trabalho, comunicações ao Ministério do Trabalho etc.).

 Além das relações mencionadas, existe um conjunto de regras previstas em leis do Estado voltados à regulação da compra e venda da força de trabalho. Em célebre passagem do capítulo XIII d’O Capital, Marx já caracterizava a “legislação fabril” como “meio de proteção física e espiritual da classe trabalhadora” (MARX, 2017, p. 570). Está em jogo nesta formulação – cabe ressalvar – a crítica marxiana ao processo de intensificação da mais valia relativa e à concentração do capital, tema no qual não irei entrar com o necessário detalhamento aqui.[40] Entre estas regras, na regulação trabalhista nacional se destacam, por exemplo, o salário mínimo, as férias, a limitação da jornada de trabalho e a indenização compensatória por despedida sem justa causa, todas previstas no art. 7º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Não é demais dizer: nada impede que o empregador viole estes “direitos sociais” – assim chamados no texto constitucional. Como índice aproximativo da expressividade de fatos de violação neste contexto, anote-se que a litigiosidade na Justiça do Trabalho superou o número de quatro milhões de novos casos no ano de 2016, “com uma concentração no assunto ‘verbas rescisórias de rescisão do contrato de trabalho’ – o maior quantitativo de casos novos do Poder Judiciário” (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2017, p. 166).

Pois bem. Tratando então das verbas rescisórias, podemos começar por uma pergunta: do que exatamente estamos falando diante de uma situação na qual o empregador demite o empregado sem justa causa e não paga a indenização compensatória prevista na Constituição? Distintamente da problemática penal, neste caso, quem em tese pode exigir o pagamento desta indenização é o trabalhador, e não a organização estatal – sem considerar, por enquanto, as possibilidades de atuação do Ministério Público do Trabalho. O Estado, por sua vez, aparece como organização materializada na Justiça do Trabalho e voltada à aplicação coercitiva da lei mediante o exercício da jurisdição sobre litígios entre as partes.

Mesmo com esta importante distinção, algumas das formulações de Pachukanis em TGDM parecem apropriadas à compreensão da complexidade do fenômeno da violação da legislação trabalhista. Imaginemos, como exemplo voltado a conduzir a exposição, uma situação em que a empresa “A” deixa de pagar a indenização compensatória ao trabalhador “B” depois de demiti-lo. O trabalhador “B” ajuíza uma ação trabalhista e, comprovando os fatos ocorridos, obtém uma sentença condenando “A” a realizar o pagamento da referida indenização. A sentença transita em julgado. Estamos agora não mais diante apenas da lei, mas também de um “título executivo”, pelo qual a organização estatal condena “A” a pagar determinado valor a “B”. Neste momento, “A” pode pagar voluntariamente ou arriscar-se à possibilidade de execução forçada pela organização judiciária.

A partir desta narrativa hipotética, torna-se possível analisar de forma mais criteriosa a unidade, as generalidades e as diversidades presentes em casos de violação. Onde podemos encontrar o direito neste quadro formado por pelo menos cinco momentos sequenciais? A resposta que parece mais acertada é que, neste caso específico, o fenômeno jurídico está presente em todos estes momentos, mas em distintos graus de implicação. Em um primeiro momento, cabe observar que a relação originária entre “A” e “B” é uma relação de troca de força de trabalho por salário, a qual apenas se torna possível com a subjetivação das duas partes. Quer dizer, a relação de trabalho, antes de ser desfeita, apenas existiu na medida em que “A” e “B” relacionaram-se especificamente na qualidade de sujeitos de direito. Com isso, na medida em que constitui o momento original da relação entre “A” e “B”, o fenômeno jurídico acaba condicionando todo o desenrolar da narrativa. Considerando que este condicionamento é bastante particular às relações de trabalho, cabe pontuar que a generalização desta análise se torna relativamente limitada, motivo pelo qual se reforça a necessidade do prosseguimento do estudo de outros tipos de violação em outras oportunidades.

O segundo momento é aquele no qual aparece o fenômeno da violação como fato. “A” descumpriu a legislação constitucional-trabalhista. Portanto, violou não o direito em si, mas a lei. Observa-se, com isso, que “B” não está implicado neste momento. A relação da violação da legislação constitui-se como uma relação entre o fato praticado por “A” e o “direito morto” que resulta da ação legislativa da organização estatal. De fato, seria bastante provável que “B” sequer tivesse conhecimento deste “direito”, ou que não tivesse disposição de participar de um processo judicial, ou que a pretensão prescrevesse, ou que por qualquer outro motivo não ajuizasse a ação trabalhista. Em si, o momento da violação da legislação apresenta uma gama de questões relevantes a serem levantadas, por exemplo: por que “A” descumpriu a legislação? qual o posicionamento ideológico da classe burguesa em relação à legislação trabalhista? de que modo ocorrem alterações nesta legislação? quais as consequências desta violação em termos de economia política, considerando a relação valor e o processo de acumulação capitalista? Não tratarei, evidentemente, destas questões, levantando-as apenas para indicar possíveis estudos a serem realizados com maior verticalidade no campo do exemplo trabalhado. Paralelamente a uma sociologia da legislação, sugerida por Pazello na análise da obra marxiana[41], talvez assim também se possa falar em uma sociologia da violação da legislação.

O terceiro momento é o momento do processo judicial trabalhista. Semelhantemente ao processo penal – que Pachukanis caracteriza como “indissociável da forma mais geral do contrato” (PACHUKANIS, 2017a, p. 174) –, a jurisdição trabalhista se realiza como uma negociação arbitrada pelo Estado. Autor e réu se confrontam como sujeitos de direito. Não se trata de um espaço de embate “biológico”, mas sim relacional. Mesmo se o caso analisado fosse de violência pessoal direta praticada pelo empregador – assédio moral ou sexual, por exemplo –, o empregado não compareceria à audiência para se vingar com o uso da força física dos fatos que o ofenderam, mas sim para apresentar a pretensão de uma reparação equivalente. O processo é o momento no qual o empregado busca no terreno do Estado a instauração de relações decorrentes da violação. Pachukanis caracteriza esta indissociabilidade do processo da forma contratual como a representação de “um momento irracional, mistificador e absurdo” – e arremata – “é justamente esse o momento especificamente jurídico” (PACHUKANIS, 2017a, p. 175).

O quarto momento da narrativa é o da formação da sentença condenatória como um título executivo que, tal qual uma nota promissória, “B” pode cobrar de “A”. Aqui estamos diante de uma relação jurídica peculiar. Aproxima-se da forma jurídica essencial na medida em que se trata da formalização de uma possível relação de troca entre sujeitos de direito. Por outro lado, a troca seria parcial, já que a entrega da mercadoria de “B” (a força de trabalho) se esgotou anteriormente à formação da sentença – ainda que a um preço menor do que o estabelecido em lei, e daí a possibilidade de ação judicial.

“A”, por sua vez, recebe da organização estatal a ordem de entregar a “B” determinada quantidade de dinheiro, tratando-se de relação contratual relativamente involuntária. A equivalência e a igualdade, portanto, estão presentes de forma indireta, o que impede a simples subsunção desta relação à forma essencial do direito. Neste sentido, Pachukanis faz alusão a definição aristotélica de “contrato concluído contra a vontade”[42] e, em outro momento, à noção de relação contratual estabelecida “depois de uma ação arbitrária de uma das partes”[43]. Por ora, retomando uma expressão já trabalhada no item anterior, este momento do fenômeno da violação pode ser caracterizado como o momento genético da relação contratual decorrente.

O quinto momento se divide em dois cenários. No primeiro, “A” paga voluntariamente o valor da condenação. Trata-se do momento que mais se aproxima da forma jurídica essencial, já que aqui se observa a efetiva circulação da mercadoria dinheiro entre dois sujeitos de direito (de “A” para “B”). Com isso, “A” quita o contrato. Está livre, parafraseando Pachukanis, para contratar novos empregados e cometer novas infrações trabalhistas.[44] Neste sentido, trata-se de momento que remete à narrativa de duas sentenças penais realizada em TGDM:

Eis aqui apenas duas de uma série: um reincidente condenado 22 vezes por falsificação, roubo, fraude etc. é sentenciado pela 23ª vez a 24 dias de prisão por desacato a um funcionário. Outro, que no total passou treze anos entre cadeias e penitenciárias (Zuchtaus), condenado dezesseis vezes por roubo, fraude etc., é sentenciado pela 17ª vez por fraude a quatro meses de prisão. (PACHUKANIS, 2017a, p. 179).

No caso da legislação trabalhista ocorre o mesmo, com a diferença de que o empregador não precisa terminar de cumprir uma “pena” para voltar a violar. Aliás, a violação deliberada seguida da realização de acordos judiciais trabalhistas pode se mostrar até mesmo como a estratégia mais vantajosa para a organização empresarial. É neste sentido que, em estudo realizado sobre o caso de uma empresa brasileira específica, utilizei a expressão “uso eficiente da Justiça do Trabalho” (UCHIMURA, 2016b).

No segundo cenário, em que “A” não paga voluntariamente o valor arbitrado na sentença, “B” depende da atuação coercitiva do Estado para, nos marcos do funcionamento da “ordem jurídica”, efetivar a pretensão e obter a prestação declarada em sentença. Neste caso, observa-se que a violação pode se sobrepor a si mesma: primeiro como violação da legislação e, depois, como violação da relação contratual decorrente. O Estado, por sua vez, aparece como fiador desta segunda relação, posição que assume abstratamente em relação a qualquer contrato como garantidor da circulação de mercadorias entre proprietários livres e independentes. Este tema é desenvolvido no capítulo quinto de TGDM (“Direito e Estado”), em que afirma Pachukanis: “Aparecendo a título de fiador dessas relações, o poder se torna um poder social, um poder público, que persegue o interesse impessoal da ordem” (PACHUKANIS, 2017a, p. 141).

Observa-se com isso que a lógica da violação da legislação trabalhista apenas se fecha com a presença unitária e absurda da forma do direito. Violar a “norma trabalhista” ou o “direito social” na verdade é, contraintuitivamente, dar-lhe vida jurídica. A indenização pela demissão sem justa causa que repousa no texto legal é “direito morto” que ao ser violado, potencialmente, torna-se relação de troca entre sujeitos de direito. O caráter jurídico do fenômeno da violação apenas aparece após o fato da violação e em um desenrolar complexo de momentos distintos que, ao final, apresenta-se como unidade. Conforme observado no caso hipotético aqui analisado, entre o fato da violação (momento 2) e a realização da relação contratual decorrente (momento 5), realiza-se um tipo específico de juridicidade.

Com isso, o caso da violação da legislação trabalhista – ainda que abordado apenas em caráter de ensaio – demonstra que os elementos desenvolvidos no capítulo sétimo de TGDM podem ser mobilizados de forma bastante rica para a compreensão e para a realização da crítica da violação do direito em geral. É dizer: apesar de muito incipientes, as reflexões aqui esboçadas são indicativas de possíveis caminhos para o desenvolvimento da crítica marxista ao direito.

Existe uma diversidade de situações semelhantes, com menor ou maior proximidade das lutas populares, que merecem ser analisadas. Observem-se, por exemplo, o pagamento extrajudicial de uma multa prevista em um contrato de locação por sua ruptura antecipada (situação um), o pagamento de uma multa por uma infração de trânsito (situação dois), a imposição pelo Estado a uma empresa de uma indenização pela responsabilidade por danos socioambientais (situação três) e a condenação do próprio Estado a indenizar a vítima de uma prisão ilegal efetuada por autoridades policiais em uma manifestação de rua (situação quatro). Situações absolutamente distintas entre sim, com implicações políticas de pesos igualmente distintos. Porém, em comum, as quatro subordinam-se à forma jurídica e operam sob a lógica da troca equivalente.

As relações decorrentes, seguindo a forma geral da violação, são relações que “opera[m] em uma relação com a forma da troca de equivalentes baseada no valor”[45]. Nos quatro casos, assim como nos casos dos delitos e da violação da legislação trabalhista, a liberdade jurídica manifesta-se como a possibilidade subjetiva de poder liberar-se de uma relação contratual decorrente pelo ato do pagamento de uma medida proporcional. Pagando a multa contratual, o locador quita o contrato (situação um). Pagando a multa de trânsito, o infrator quita a irregularidade praticada (situação dois). Pagando a indenização, a empresa quita a responsabilidade pelos danos socioambientais (situação três), e do mesmo modo o Estado quita a prisão ilegal efetuada (situação quatro). Isso tudo reforça a arbitrariedade ao mesmo tempo sugerida e ocultada pelo fenômeno jurídico, assim resumida por Pachukanis: “Direito e arbítrio – conceitos que poderiam parecer opostos – estão, na verdade estreitamente ligados” (PACHUKANIS, 2017a, p. 139).

Pa ra terminar (sem concluir), posso dizer que as reflexões esboçadas indicam que, sim, há no capítulo sétimo de TGDM elementos que permitem abordar a complexidade da questão da violação em geral, e não apenas da esfera penal. Em termos de método, coloca-se como apontamento para a continuidade da pesquisa a investigação do fenômeno da violação desde a unidade de seus momentos constitutivos até a análise de cada um deles, com a ascensão ao concreto e o retorno espiral ao ponto de partida. Eis um breve ensaio para debatermos os caminhos desta tarefa que se abre à crítica marxista.

Referências

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NOTAS:

[1]Trabalho apresentado ao Espaço de Discussão Direito e Marxismo do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[2]Doutoranda (2017-) na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre (2015) em Direito pela Universidade Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP. Graduada em Direito Faculdade de Direito de Franca – FDF (2011). E-mail: [email protected]

[3]Graduado em Direito Universidade Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP (2017). E-mail: [email protected]

[4]Vale lembrar que aqui o uso do termo “cientista social”, refere-se apenas aos cientistas que cumprem em sua produção cultural as condições epistemológicas e metodológicas do “holismo quineano” (cf. QUINE, 2010)

[5]Para a compreensão do conceito de “ideologia da ideologia”: Cf. VEYNE, 2014.

[6]É digno de nota que com a expressão “debate meticuloso” não se está fazendo referência às teorias filosóficas que pregam algum modelo idealizado de debate racional – tais como a teoria do “agir comunicativo” (cf. HABERMAS, 1989) ou ao “anarquismo epistemológico” (cf. FEYERABEND, 2011). Faz-se, em verdade, referência ao método científico.

[7]Para uma primeira aproximação com o conceito de capital simbólico (cf. BOURDIEU, 2011).

[8]Pode soar um pouco estranho para certo “funcionalismo” que um cientista prefira se valer de uma ideologia do que da verdade. Contudo, se é verdade que o campo científico tem como bem simbólico mais valorizado “a verdade”, também é verdade que os mesmos agentes sociais que dão vida a este campo dão vida a outros campos sociais e, por consequência, o topo hierárquico social pode ser alcançado por outras vias que não a produção da verdade (cf. BOURDIEU, 2009).

[9]O leitor deve se atentar para o fato de que não se está querendo dizer que os agentes tem consciência de que estão usando uma ideologia, isso por causa de dois principais motivos: (a) a linguagem não precisa e nem suporta um sujeito consciente filosófico (kantiano), bem como, as pesquisas em ciências sociais permitem inferir que os agentes sociais agem por “habitus” (cf.  BOURDIEU, 2005); (b) em razão da solidez das estruturas – a qual pode ser comprovada pelas estatísticas (cf. BOURDIEU, 2007) – a consciência ou não de um agente social não tem muita importância, o que realmente importa, como bem lembra Todorov (cf. 2011), é se os demais agentes estão predispostos a aceitar como verdade uma mentira.

[10]“Essa foi a origem da monogamia, tal como pudemos observá-la no povo mais culto e desenvolvido da antiguidade. Ela não foi, de modo algum, fruto do amor sexual individual, com o qual nada tinha a ver, já que os casamentos continuavam sendo, como antes, casamentos conveniência”. (ENGELS, 2012, p. 66).

[11] Trabalho apresentado ao Espaço de Discussão Direito e Marxismo do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[12]Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Especialista em Direito Constitucional pelo Instituto de Direito Constitucional e Cidadania e Mestrando em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo, Largo São Francisco. E-mail: [email protected].

[13]Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Estudante no Curso de Especialização em Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional.  E-mail: [email protected]

[14]
NETTO, José Paulo. Introdução ao estudo do método em Marx. São Paulo: Expressão Popular, 2011.

[15]GOMIDE, Denise Camargo. O Materialismo Histórico-Dialético Como Enfoque Metodológico Para A Pesquisa Sobre Políticas Educacionais. In: Jornada do HISTEDBR, 2011, Cascavel, PR. Anais (on-line). Cascavel, 2013. Disponível: http://www.histedbr.fe.unicamp.br/acer_histedbr/jornada/jornada11/artigos/2/[email protected]. Acesso em 12 de abril de 2018.

[16]MASCARO, Alysson Leandro. Estado e Forma Política. São Paulo: Boitempo, 2013.

[17]MARX, K. Posfácio da 2. Edição. In: ______. O capital: crítica da economia política. Livro 1 – O processo de Produção do Capital. Vol. 1. 15ª ed. Tradução Reginaldo Santanna. Rio de Janeiro: Bernard Brasil, 1996.

[18]AUSANI, Julio Cesar; POMMER, Roselene Gomes. Educação profissional e tecnológica em um Brasil em transformação: compreensões históricas. In: Revista do Lhiste, Porto Alegre, num.3, vol.2, jul/dez. 2015

[19]MOURA, Dante Henrique. Educação Básica e Educação Tecnológica: dualidade histórica e perspectiva de integração. Holus, ano 23, vol. 2. Natal: 2007. Disponível em: <http://goo.gl/tPBJV>. Acesso em: 15 Nov. 2015.

[20]CESÁRIO, Pablo S. Redes de influência no Congresso Nacional: como se articulam os grupos de interesse. Revista de Sociologia e Política, Vol. 24, N. 59, 2016

[21]AFONSO, A.M.M; GONZALES, W.R.C. Educação Profissional e Tecnológica: análises e perspectivas da LDB/1996 à CONAE 2014. Ensaio: avaliação políticas públicas Educacionais, Rio de Janeiro, v.24, n.92, p. 719-742, jul./set. 2016

[22]FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005

[23]SAVIANI, D. Pedagogia Histórico Crítica: Primeiras Aproximações. 8ª ed. Campinas/Autores Associados, 2003

[24]SAVIANI, Dermeval; DUARTE, Newton. Pedagogia histórico-crítica e luta de classes na educação escolar. Campinas: Autores Associados, 2012. 184pp. Coleção Polêmicas do Nosso Tempo

[25]SAVIANI, Dermeval. Op. Cit.

[26]FREIRE, Sandra Braga. A mediação do conhecimento teórico-filosófico na atividade pedagógica: um estudo sobre as possibilidades de superação das manifestações do fracasso escolar. 2016. 185 f. (Dissertação) Mestrado em Educação. Universidade de São Paulo, São Paulo. 2016

[27]SAVIANI, D. Pedagogia Histórico Crítica: Primeiras Aproximações. 8ª ed. Campinas/Autores Associados, 2003

[28]MARX, Karl. Teses de Feuerbach. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/marx/1845/tesfeuer.htm. Acesso em: 03/11/17

[29]Trabalho apresentado ao Espaço de Discussão 2 – Direito e Marxismo do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[30]Mestrando em Estado, Economia e Políticas Públicas pelo Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Paraná (PPPP/UFPR), com bolsa pela CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Graduado em Direito. Contato: [email protected].

[31]Remeto os leitores e as leitoras não familiarizados com o corpo teórico marxista-pachukaniano, em primeiro lugar, evidentemente ao estudo da própria obra que será aqui analisada: Teoria geral do direito e marxismo. Além disso, a Naves (2008), obra mais difundida nacionalmente como introdução à crítica marxista ao direito, e aos capítulos 3 e 4 de Pazello (2014), nos quais se encontra uma didática e atual síntese sobre a questão do direito em Marx e em Pachukanis, considerando o contexto do debate soviético e as formulações de comentadores.

[32]O levantamento destas expressões com a investigação da obra original de Pachukanis, em russo, foi gentilmente realizada por Pedro Pompeo Pistelli Ferreira, que fica, porém, prontamente eximido de qualquer inadequação eventualmente aqui realizada por nós. Os limites encontrados na tradução destas categorias são evidentes, sobretudo em se tratando do distanciamento histórico-contextual entre a realidade russa de 1924 e a realidade brasileira de 2018. O esforço que se realiza aqui, portanto, é apenas de aproximação.

[33]Por exemplo, em “[a] relação jurídica adquire historicamente seu caráter específico antes de tudo em fatos de violação do direito” (PACHUKANIS, 2017a, p. 166).

[34]Primeiro em “[a] insubordinação à norma, a violação desta […]” (PACHUKANIS, 2017a, p. 166) e depois em “o direito penal moderno não parte, a princípio, do prejuízo da vítima, mas da violação da norma estabelecida pelo Estado” (idem, p. 174).

[35]Em “[a] lei e a pena por sua violação […]” (PACHUKANIS, 2017a, p. 167) e também, anteriormente, no título de sua tese de doutorado: “Estatística das violações das leis de segurança do trabalho”.

[36]“A necessidade de se fixar e definir com precisão a extensão e o conteúdo dos direitos e das obrigações mútuas surge no momento em que a existência pacífica e tranquila é violada” (PACHUKANIS, 2017a, p. 166).

[37]Apesar de Pachukanis referir-se mais diretamente à formação histórica russa, entendo que, para os fins aqui propostos, é possível assumir que as principais análises realizadas pelo autor se aplicam à formação capitalista em geral. Essa assunção não exclui, evidentemente, a necessidade de se investigar, no nosso caso, as especificidades (geopolíticas, mas não apenas) da formação histórica brasileira e em que medida estas poderiam condicionar uma caracterização própria do fenômeno da violação.

[38]“A relação decorrente do empréstimo se fixa no caso em que o devedor não quer saldar a dívida” (PACHUKANIS, 2017, p. 166).

[39]“[…] no caso em que para o jurista o supremo princípio normativo, ou, para usar linguagem técnica, a fonte do direito, é a lei do Estado, as considerações jurídico-dogmáticas sobre o direito ‘vigente’ nada significam para o historiador que queira estudar o direito realmente existente” (PACHUKANIS, 2017a, p. 99).

[40]Para aprofundamentos sobre a questão do direito na problemática marxiana em uma análise especifica do capítulo XIII d´O capital, ver PAZELLO, 2014, pp. 155-171.

[41]“[…] A partir destas indicações, queremos sugerir que Marx desenvolve os sentidos 2 e 3 de direito em sua obra, aportando em uma sociologia da legislação” (PAZELLO, 2014, p. 161).

[42]“Por isso, Aristóteles, ao falar da igualação na troca como um tipo de justiça, distingue-se em dois subtipos: igualação em ações voluntárias e igualação em ações involuntárias, sendo que nas ações voluntárias ele se refere às relações econômicas, como compra e venda, empréstimo etc., e na segunda, os diferentes tipos de delito que implicam uma pena equivalente. Pertence-lhe, ainda, a definição de delito como contrato concluído contra a vontade.” (PACHUKANIS, 2017a, pp. 168-169).

[43]“O delito pode ser considerado uma variante particular de circulação, na qual a relação de troca, ou seja, contratual é estabelecida post factum, ou seja, depois de uma ação arbitrária de uma das partes” (PACHUKANIS, 2017, p. 167).

[44]No original, “O infrator que cumpre a sua pena retorna à posição inicial, ou seja, à existência individualista da sociedade, à ‘liberdade’ de contrair obrigações e cometer delitos” (PACHUKANIS, 2017a, pp. 182-183).

[45]Referência a trecho de TGDM citado no item anterior: “A vingança como um fenômeno puramente biológico se torna uma instituição jurídica na medida em que opera em uma relação com a forma da troca de equivalentes baseada no valor” (PACHUKANIS, 2017a, p. 169).