ESPAÇO DE DISCUSSÃO 4: POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS, QUESTÃO AGRÁRIA E CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS

  

Artigo

 


 AGRONEGÓCIO E ESTRANGEIRIZAÇÃO DE TERRAS: análise da disputa normativa e judicial [1]

AGRIBUSINESS AND LAND GRABBING: analysis of the normative and judicial dispute

Geraldo Miranda Pinto Neto[2]

 

Resumo: O presente trabalho visa discutir a relação entre o agronegócio e a estrangeirização de terras, partindo do objetivo de analisar o papel das representações do agronegócio na disputa legislativa e judicial da aquisição de terras por estrangeiros. A pesquisa foi desenvolvida aliando a técnica da pesquisa documental com a revisão bibliográfica. Num primeiro momento é feita uma apresentação do agronegócio, demonstrando sua base histórica, sua conceituação e as suas representações. No segundo momento é apresentado o debate acumulado sobre a temática da estrangeirização de terras e a descrição da proposição do Projeto de Lei n° 4.059/2012 liderada pela Frente Parlamentar da Agricultura (FPA) e o ajuizamento da ADPF n° 342 pela Sociedade Rural Brasileira (SRB). Para finalizar, há uma abordagem pontuando o posicionamento de tais organizações patronais, os motivos identificados e os argumentos apresentados na disputa normativa sobre a aquisição de terras por estrangeiros.

Palavras-chave: Agronegócio; Aquisição de Terras por estrangeiros; Estrangeirização de Terras;

Abstract: The present paper aims at discussing the relationship between agribusiness and land grabbing, based on the objective of analyzing the role of agribusiness representations in the legislative and judicial dispute over the acquisition of land by foreigners. The research was developed combining the technique of documentary research with the bibliographic review. At first, a presentation of agribusiness is made, demonstrating its historical basis, its conceptualization and its representations. In the second moment, the debate is presented on the theme of land grabbing and the description of the proposal of Bill n° 4.059/2012 led by the Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) and the filing of ADPF n° 342 by the Sociedade Rural Brasileira (SRB). Finally, there is an approach that points out the positioning of such employers organizations, the reasons identified and the arguments present in the normative dispute over the acquisition of land by foreigners.

Keywords: Agribusiness; Acquisition of land by foreigners; Land Grabbing.

 

1. INTRODUÇÃO

            O presente trabalho tem o objetivo de compreender a atuação das representações do agronegócio, mais especificamente a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) e a Sociedade Rural Brasileira (SRB), na disputa institucional sobre a temática que envolve a estrangeirização de terras.

            As sistematizações decorrentes da pesquisa documental e do acúmulo teórico são reflexos da dissertação de mestrado do autor intitulada: ‘A solução é alugar o Brasil? Um estudo da atuação dos representantes do agronegócio na disputa normativa sobre a estrangeirização de terras no Brasil’ defendida no ano de 2017 no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília (UnB).

            O primeiro momento do artigo há a apresentação do contexto histórico do surgimento do agronegócio, as suas conceituações e como se dá o procedimento de suas representações. É necessário compreender o agronegócio enquanto uma consequência do latifúndio improdutivo, que se readaptou no período militar (1964-1985), consolidando uma produção em larga escala através da junção do setor agrícola com o setor industrial. Tal setor se organiza para disputar institucionalmente as políticas, normas e programas do estado brasileiro. Tal organização é expressa através das mais variadas entidades da sociedade civil e projeções nos poderes estatais, no entanto, no presente trabalho há destaque para a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), comumente denominada de bancada ruralista, e da Sociedade Rural Brasileira (SRB).

            Enquanto escopo dessa disputa institucional realizada pelos setores patronais analisa-se a sua atuação na estrangeirização de terras. Num primeiro momento, através de uma abordagem teórica interdisciplinar, é pontuado o conceito de estrangeirização e as suas principais causas e consequências dentro da conjuntura da questão agrária. Ressalta-se que tal conceito se relaciona com a apropriação global de terras, tendo em vista que há uma intensa compra, arrendamento e controle dos recursos naturais, por parte de empresas e Estados estrangeiros. Tal fenômeno gera preocupação nos sujeitos coletivos de luta pela terra por compreenderem que há o encarecimento da reforma agrária e há risco à soberania (alimentar, nacional e popular).

            Para compreender a atuação das representações do agronegócio nesse processo serão analisados dois objetos específicos. O primeiro deles envolve a proposição do PL n° 4.059/2012, resultado da Subestra, e foi protagonizado pela Frente Parlamentar da Agropecuária, articulação parlamentar de defesa do agronegócio. O segundo objeto envolve a petição inicial ajuizada pela Sociedade Rural Brasileira (SRB) na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n° 342 que visa retirar a incidência das limitações e requisitos legais da aquisição de terras por estrangeiros para pessoas jurídicas constituídas sob maioria do capital social estrangeiro. A opção por trabalhar com esses dois objetos envolve: a possibilidade de trabalhar com a disputa tanto no Poder Judiciário quanto no Poder Legislativo e da potencialidade que tais instrumentos possuem para atingir o objetivo da pesquisa. No artigo tais objetos aparecem com caráter descritivo.

            Para finalizar encontra-se a demonstração da atuação das representações do agronegócio na disputa normativa e interpretativa sobre a estrangeirização de terras. Verifica-se que tanto a FPA quanto a SRB visam flexibilizar os apontamentos legais que regulam a temática da aquisição de terras. Ou seja, atuam com o intuito facilitar a aquisição de terras por estrangeiros. Conclui-se que os principais motivos para a realização de tal disputa envolvem a necessidade de investimentos externos para garantir o ‘sucesso’ econômico do agronegócio e que tais entidades atuam em caráter supranacional, pois o seu objetivo principal não é defender nenhuma nação, mas incrementar um setor econômico e político.

  1. AGRONEGÓCIO: CONCEITO, HISTÓRICO, ATUAÇÃO E REPRESENTAÇÕES

 

            A estrutura agrária brasileira é marcada pela usurpação das terras e das gentes em decorrência do colonialismo voltado para a acumulação de riqueza de forma extraordinária (MARÉS, 2013). A usurpação das terras é compreendida enquanto a destruição dos bens naturais, através da degradação das matrizes alimentares e da destruição ambiental, com o intuito de produzir alimentos para o continente europeu. Já a destruição das gentes é marcada pelo genocídio de indígenas e de negros africanos trazidos com o intuito de torná-los escravos (MARÉS, 2013).

            Findado o colonialismo há a perpetuação dos sistemas de poder, consolidando a colonialidade do poder, ou seja, houve a manutenção do caráter colonial de maneira estável e duradora (QUIJANO, 2000:122). Dessa maneira, o padrão de destruição das terras e das gentes se manteve e se mantêm mesmo após a Independência do país (1822).

            Um dos mecanismos implementados pelo colonialismo para garantir a exploração dos povos foi a construção de um sistema para limitar o acesso à terra (MARÉS, 2013). Tal limitação se deu através do sistema de outorgas de sesmarias pela Coroa e foi perpetuado com a promulgação da Lei de Terras (Lei n° 601, de 1850), limitando o acesso somente para quem poderia comprar, ou seja, excluindo grande parte da população (BALDEZ, 2002:97). Tais institutos contribuíram para a imposição do latifúndio na história brasileira, ampliando as desigualdades sociais e a destruição da natureza. Diante do contexto de exclusão surgem inúmeras resistências em torno da luta pela terra e território.

            Segundo Escrivão Filho e Sousa Júnior (2016:82), governos autoritários, como por exemplo, a Ditadura Militar no Brasil (1964-1985), tendem a reforçar o colonialismo. Na conjuntura da questão agrária tal período é importante para compreender a transformação do latifúndio[3] em agronegócio.

            O Golpe Militar (1964) tinha o objetivo de romper com o as reformas de base, incluindo a agrária, propostas pelo então presidente João Goulart (1961-1964), que atacavam os interesses de grandes proprietários, industriais e banqueiros (MARTINS, 1984:28). Neste período, houve um pacto agrário com o intuito de gerar a integração técnica da agricultura com a indústria, mantendo intactas as oligarquias ligadas ao latifúndio (DELGADO, 2012:14).

            O período da Ditadura Militar corresponde a base do surgimento do agronegócio, através: de inovações químicas e biológicas, através de fertilizantes químicos e produção da monocultura conjugado com implementação de estrutura do transporte (SAUER, 2010), consolidando a revolução verde (DELGADO, 2012:13) e o incremento do capital financeiro, através da política de créditos agrícolas (DELGADO, 2012:30). Dessa maneira, houve uma modernização na produção agrícola, aliando a agricultura com a indústria.

            A modificação da forma de produção ampliou a concentração da propriedade, o êxodo rural (SUAER, 2010:30) e a violência no campo (SAUER, 2010; MEDEIROS, 2002). Gerou ainda impactos na questão nutricional e na desumanização de trabalhadores e trabalhadoras (DELGADO, 2012:66).

            Tal retomada histórica surge para pontuar o surgimento do agronegócio, compreendendo que: “a classe dominante agrária, antes chamada de latifundiária, hoje se autodenomina agronegócio, atribuindo a si mesma uma semântica de síntese do que seria uma moderna assimilação capitalista da agricultura” (ESCRIVÃO FILHO, SOUSA JÚNIOR, 2016:128). Fabrini (2014:7) pontua que os grandes proprietários rurais de ‘vilões’ [latifúndio improdutivo] se transformaram em heróis em decorrência do discurso de produtividade e relevância para a economia.

            Carvalho (2013:32) afirma que as opções empresariais do agronegócio correspondem num aprimoramento histórico de espoliação dos recursos naturais e da exploração dos trabalhadores, permanecendo a alta concentração fundiária (GIRARDI, 2014:256), a produção de monoculturas voltada para a exportação e não para o consumo alimentar (CARVALHO, 2013:32), a forte influência do capital financeiro (DELGADO, 2012) e o uso de trabalho escravo e/ou degradante (CARVALHO, 2013; DELGADO, 2012).

            O agronegócio possui inúmeras formas de representação, atuando através de entidades da sociedade civil, de parlamentares [bancada ruralista e Frente Parlamentar da Agropecuária], no Poder Executivo, dentre outros espaços que carecem de melhores estudos, como no âmbito do Judiciário e da mídia. O trabalho dá ênfase nas representações da sociedade civil e no Poder Legislativo.

            Sobre as organizações das classes dominantes no âmbito agrário, existem algumas características que merecem destaque. A primeira delas envolve a multiplicidade de organizações que se fragmentam para representar os seus interesses, tais quais: Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária no Brasil (CNA) – entidade sindical oficial do patronato, União Democrática Ruralista (UDR), Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB), Sociedade Rural Brasileira (SRB), dentre outras (BRUNO, LACERDA, CARNEIRO, 2012:521). Apesar da multiplicidade, quando tais proprietários se sentem ameaçados em seus privilégios e interesses, se unem no exercício de garantir a concentração de terras (BRUNO, LACERDA, CARNEIRO, 2012:522).

            Uma das principais entidades de representação do agronegócio corresponde a Sociedade Rural Brasileira (SRB). Tal entidade foi fundada em 1919, em São Paulo, consolidando um histórico na disputa institucional do Estado Brasileiro (MENDONÇA, 2010:32), como por exemplo, a macha da família com Deus pela liberdade foi organizada na sede da entidade (MARTINS, 1984:28). A SRB se destaca em relação às demais organizações pois se considera uma articulação moderna, voltada para a articulação da produção agrícola com a indústria (MENDONÇA, 2010:32).

            Outra forma de representação do agronegócio corresponde à sua massiva participação no Poder Legislativo.             Delgado (2012:9) chama a atenção para o caráter político do agronegócio, demonstrada através da forte sustentação parlamentar e a sua adesão em todos os governos federais desde o seu surgimento. “A articulação política do agronegócio no Parlamento brasileiro, comumente denominada de ‘bancada ruralista’, encontra-se institucionalizada através da Frente Parlamentar da Agricultura (FPA)” (INTINI, FERNANDES, 2013:87-88). A bancada ruralista é resultado da representação direta de integrantes (proprietários, empresários rurais e agronegócio), contando com uma rede de sociabilidade (BRUNO, LACERDA, CARNEIRO, 2012:528), com o objetivo de defender a propriedade privada e a expansão capitalista (INTINI, FERNANDES, 2013:88). Tal frente possui uma ampla expressividade nas instâncias do poder e na representação da classe patronal, como a CNA e a SRB (INTINI, FERNANDES, 2013:95).

            Compreendendo o contexto histórico de surgimento do agronegócio, seu conceito e as suas formas de representação, demonstra-se necessário compreender como tais representações realizam disputas institucionais dentro do Estado brasileiro. O objetivo do presente trabalho é analisar como e de qual forma tais grupos atuam na disputa que envolve a estrangeirização de terras no Brasil.

  1. ESTRANGEIRIZAÇÃO DE TERRAS: O DEBATE ACUMULADO E A DISPUTA NORMATIVA

 

A presença estrangeira no território brasileiro não é um fenômeno novo, afinal, o próprio colonialismo representa uma massiva presença portuguesa com o intuito de retirar matéria-prima brasileira para ser utilizada e vendida no continente europeu. Alfonsin (2010) pontua que a presença estrangeira no Brasil, com a retirada de algumas exceções, foi feita de forma espoliativa e predatória.

No entanto, a partir do ano de 2018 o debate sobre a presença estrangeira vem ganhando destaque no âmbito acadêmico, social, político e jurídico, de forma nacional e internacional, através da denominação de land grabbing, popularmente e politicamente traduzido como estrangeirização de terras.

Dessa maneira, é importante compreender o conceito, as principais causas e consequências elencadas pelos teóricos brasileiros sobre o assunto.

Bernardo Mançano Fernandes (2009; 2011) pontua que a essência do capitalismo é a sua infinita territorialização, não observando barreiras ou fronteiras. O autor, ao utilizar a geopolítica, pontua que a estrangeirização é um processo em que empresas e Estados ricos compram e arrendam terras nos países mais pobres para produzir agroenergia e alimentos.

Lorena Pereira (2015:49) compreende o fenômeno como um mecanismo de apropriação de terras e dos seus benefícios realizada de inúmeras formas (compra, arrendamento, contratos de parceria, corporações, dentre outros) com o objetivo de garantir a soberania territorial e a segurança (alimentar, energética, política ou territorial).

Sérgio Sauer (2010) pontua que a disputa pela terra se transformou em um fenômeno global. Sauer e Leite (2011) conceituam o termo estrangeirização de terras enquanto fenômeno associado ao aumento de investimentos estrangeiros na agricultura feitos em articulação com o agronegócio e que vem adquirindo muitas terras na América Latina. Sauer e Borras (2016) pontuam que o melhor termo para explicar o land grabbing corresponde à apropriação global de terras, pois trata-se do controle sobre a terra e sobre os seus recursos naturais, o que não significa necessariamente na compra.

Através da revisão bibliográfica percebe-se que as principais causas que motivaram a estrangeirização de terras correspondem aos motivos expostos a seguir. A mudança da matriz energética (do petróleo para o álcool) gerou o aumento do cultivo de cana-de-açúcar, ocasionando a expansão das monoculturas em áreas que eram antes destinadas a produção de alimentos, gerando uma crise no preço de alimentos e o aumento no preço dos combustíveis (FERNANDES, 2009; 2011). A instabilidade mencionada ocasiou numa corrida mundial por terras (SAUER, LEITE, 2011), pois gerou risco a segurança alimentar e energética.

Sobre as consequências, Fernandes (2011) afirma que o fenômeno reforça o neocolonialismo e a dependência do Brasil em relação à economia internacional, afinal, o Brasil passa a privilegiar a produção de produtos agropecuários voltados para a exportação.

Há risco à soberania alimentar, pois a produção nas áreas de influência do capital internacional opera em poucas commodities (VINHA, PEREIRA, 2016; SAUER, 2010; SAUER, LEITE, 2011), diminuindo a produção de alimentos voltada para a satisfação da alimentação da população.

Proporciona o aumento do preço das terras, encarecendo as indenizações nas desapropriações para fins de reforma agrária, o que provoca o acirramento das disputas territoriais (SAUER, 2010). Existe preocupação também em relação às alterações nas relações de trabalho (SAUER, BORRAS, 2016). Ocorre a ampliação da concentração fundiária, através da expansão das fronteiras agrícolas (SAUER, 2010) e a ampliação do monopólio na produção de agroenergia e de alimentos (SAUER, LEITE, 2011).

Diante das consequências apontadas os sujeitos coletivos de direito (SOUSA JÚNIOR, 2008), aqueles que enunciam o direito à terra e ao território através das suas reivindicações e lutas, se preocupam com o fenômeno e com o impacto que podem provocar na conquista desse direito.

Em contrapartida, as representações do agronegócio atuam na disputa sobre o fenômeno, principalmente através da aquisição e o arrendamento de terras. Nota-se uma ausência de debates, reflexões e instrumentos normativos que operam para além desses institutos, como por exemplo sobre o controle dos recursos naturais em situações que não compra ou locação (PINTO NETO, 2017).

Com o intuito de investigar a atuação das representações do agronegócio sobre a estrangeirização de terras, há uma análise descritiva sobre a análise da propositura do Projeto de Lei (PL) n° 4.059, de 2012, e o ajuizamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n° 342[4].

            O PL n° 4.059, de 2012, é resultado da Subcomissão Especial com o intuito de analisar e propor medidas sobre a aquisição de terras por estrangeiros (SUBESTRA) da Câmara dos Deputados, feita entre os anos de 2011 e 2012. A subcomissão foi composta por 12 parlamentares, a maioria participa da Frente Parlamentar da Agropecuária e há um predomínio de filiados ao Partido Social Democrático (PSD), partido que aposta na cadeia produtiva do agronegócio (PINTO NETO, 2017).

            O relatório vencedor da SUBESTRA, produzido pelo parlamentar Marcos Montes (PSD-MG), integrante da FPA, com o intuito de flexibilizar as normas sobre a aquisição e arrendamento de terras por estrangeiro, pontuava os seguintes argumentos: a) não há risco para a soberania nacional, pois segundo os dados do INCRA apenas 0,51% do território estão nas mãos dos estrangeiros enquanto mais de 12% do território são de terras indígenas; b) não afeta o desabastecimento, tendo em vista que o Brasil é o maior exportador de alimentos do mundo, possuindo pouca insegurança alimentar e o preço dos alimentos são baixos; c) a degradação do meio ambiente e a volatilidade dos preços dos alimento não tem relação com a origem do capital do possuidor; d) a concentração fundiária decorre do fenômeno de mercado e trata-se uma decorrência global e) com a busca da estrangeirização de terras, verifica-se uma potencialidade do Brasil em suprimir a demanda mundial por produtos agrícolas e o país precisa do capital externo para aproveitar a oportunidade (MONTES, 2012).

            Sobre a ADPF n° 342, a Sociedade Rural Brasileira (SRB) ajuizou a ação com o intuito de declarar o §1º do art. 1º da Lei nº 5.709/1971 e do Parecer AGU LA-01/2008 inconstitucional (SRB, 2015).

O parecer AGU LA-01 apontou que o § 1º do art. 1º da Lei nº 5.709 é compatível com a Constituição Federal. Portanto, foi recepcionado pela ordem jurídica equiparando a pessoa jurídica brasileira, constituída de capital estrangeiro, à estrangeira. Dessa maneira estariam sujeitas às limitações impostas para a aquisição de terras por estrangeiros conforme as normas estipuladas na Lei n° 5.709/1971 (VIEIRA JÚNIOR, 2008).

            A Sociedade Rural Brasileira (SRB) afirmou que tal parecer viola os seguintes preceitos fundamentais: a) a livre iniciativa, pois há restrição na possibilidade de aquisição de terras por empresas ‘estrangeiras’, incidindo negativamente na economia; b) o desenvolvimento nacional, pois impacta na renda dos produtores rurais que tem a sua produção voltada para a agroindústria e necessita de créditos de financiamento (com o Parecer é mais difícil assegurar a terra como hipoteca à bancos e fundos de investimentos com capital estrangeiro), prejudicando a economia como um todo (SRB, 2015).

            O terceiro argumento levantado pela entidade foi: c) afeta o direito de propriedade, pois o art. 190, da CFRB/88, não impõe limitações a pessoas jurídicas brasileiras constituídas de capital estrangeiro. Para finalizar: d) direito à igualdade, tendo em vista que o parecer não trata de forma igualitária as empresas brasileiras com capital estrangeiro e as empresas brasileiras de capital estrangeiro (SRB, 2015).

            Diante a descrição da ação judicial e da propositura do projeto de lei percebe-se que as representações do agronegócio atuam para flexibilizar as normas no que tange a aquisição e o arrendamento de terras por estrangeiros, favorecendo o fenômeno da estrangeirização de terras. Dessa maneira, ficam as perguntas: por que? Sob qual perspectiva? Quais são as perspectivas adotadas? Tais perguntas correspondem ao desafio dos próximos capítulos.

  1. A ATUAÇÃO DAS REPRESENTAÇÕES DO AGRONEGÓCIO SOBRE A AQUISIÇÃO E O ARRENDAMENTO DE TERRAS POR ESTRANGEIROS[5]

Através da presente pesquisa percebe-se a atuação da Sociedade Rural Brasileira (SRB) e da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) enquanto grupos que realizam a disputa política no âmbito do Estado em prol do agronegócio no que tange a aquisição de terras por estrangeiros. Percebe-se a SRB com uma disputa interpretativa no âmbito do Poder Judiciário e a FPA enquanto grupo que realiza a disputa no âmbito do Legislativo. As reflexões restringem-se à tais entidades, ou seja, não há reflexões sobre o posicionamento de demais entidades no âmbito da estrangeirização de terras, pois através da pesquisa não foi possível constatar contradições entre os variados grupos que representam o agronegócio.

O assunto com maior relevo sobre o tema envolve o emblema se as pessoas jurídicas constituídas sob as leis brasileiras, mas com maioria do capital social estrangeiro, devem se submeter às limitações e restrições estipuladas em lei sobre a aquisição de terras por estrangeiros. A SRB, no âmbito do Judiciário, constrói uma interpretação que pontua que tal tais pessoas jurídicas não devem se submeter à tais limitações, pois haveria ofensa à preceitos fundamentais e seria inconstitucional (SRB, 2015). Já a FPA visa produzir uma lei que revogue o parágrafo primeiro do art. 1° da Lei n° 5.709/71 [que determina a incidência das restrições e requisitos para as pessoas jurídicas em questão].

Ou seja, as entidades que realizam tal disputa normativa visam flexibilizar as normas para a aquisição de terras por estrangeiros, retirando a incidência das limitações para pessoas jurídicas brasileiras constituídas sob capital estrangeiro. Tal medida, segundo o Ministro Marco Aurélio Mello (2016) é uma forma de burlar o texto constitucional.

Os principais motivos elencados por Pinto Neto (2017) sobre a atuação de tais organizações envolve a promoção do agronegócio e diante disso: a) há necessidade de investimentos externos no âmbito do setor, como por exemplo, a necessidade da créditos financeiros para a produção agrícola disponibilizados por instituições estrangeiras; b) tanto a SRB quanto a FPA o objetivo principal é defender o agronegócio, independentemente da nacionalidade do capital.

O primeiro motivo aponta que para a promoção e aprimoramento do agronegócio é necessário a busca por investimentos estrangeiros. Marcos Montes (PSD/MG), no relatório final da SUBESTRA, aponta que o crescimento do setor florestal e sucroalcoleiro estão comprometidos diante das imposições legais para pessoas jurídicas brasileiras sujeitas ao capital estrangeiro (MONTES, 2012). A SRB também demonstrou que a limitação gerou prejuízos ao setor agropecuário, pois empresas associadas à SRB demandam a aquisição de terras para realizarem as suas atividades e diante da imposição legal não podem fazer (SRB, 2015).

Como exemplo da necessidade de tal investimento, encontra-se a demanda pelo crédito agrícola. O Parlamentar Marcos Montes (2012:6) ao falar sobre a imposição às pessoas jurídicas de capital estrangeiro diante do Parecer da AGU LA-01/2008 da AGU afirmou: “O parecer inviabilizou o uso da terra como garantia para o capital repassado por bancos, empresas e fundos de investimentos estrangeiros, encarecendo o crédito para o produtor brasileiro”

Sobre o segundo motivo elencado, a Sociedade Rural Brasileira (SRB) afirma que dentre os seus associados existem empresas brasileiras que possuem a maioria do seu capital social estrangeiro (SRB, 2015). Intini e Fernandes (2013:89), sobre a FPA, afirmam: “os ‘ruralistas’ não tem partido, não compõem a base ou a oposição ao governo, defendem o agronegócio onde ele estiver”. Percebe-se que as entidades de representação do agronegócio apoiam e defendem os seus interesses independentemente da origem do capital visando a promoção do setor.

Pinto Neto (2017:134) sintetizou os principais argumentos utilizados pela SRB e pela FPA, quais são:

  1. a) a apresentação do agronegócio enquanto salvador da economia nacional, desta maneira, é capaz de prover empregos, diminuir a desigualdade regional, promover o desenvolvimento e a interiorização do país – e que tais benefícios só podem ser atingidos com investimentos externos; b) a necessidade de segurança jurídica, que é compreendida enquanto garantidora dos investimentos realizados em negócios.

Sobre o primeiro argumento, Pinto Neto (2017:134) critica que apesar das entidades patronais se colocarem enquanto salvadoras da economia e da nação realizam uma disputa afirmando que a forma de tal ‘salvação’ seria através da venda e aluguel dos imóveis rurais.

Já no segundo argumento, Pinto Neto (2017:134) aponta que a segurança jurídica levantada por tais grupos trata-se de uma segurança de investimentos [e não jurídica], pois busca uma interpretação normativa que propiciaria à burla ao texto constitucional (MELLO, 2015).

Percebe-se que a atuação das representações do agronegócio vai contra os interesses dos sujeitos coletivos de luta pela terra (PINTO NETO, 2017), pois estes estariam ameaçados na gestão dos seus territórios e causaria impacto na política de reforma agrária (SAUER, 2010). Para além de tais grupos, a sociedade brasileira estaria subjugada, pois há risco à soberania popular, alimentar e nacional, pois a produção de alimentos e a gestão dos recursos naturais podem ficar concentradas nas mãos de grupos estrangeiros.

Dessa maneira, as representações do agronegócio atuam de forma ilegítima, atuando contra os grupos oprimidos do campo brasileiro [camponeses, agricultores familiares, indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais, dentre outros]. Nesse viés, percebe-se uma disputa para modificar a legislação para garantir o agronegócio e reforçar a exploração dos mais variados grupos sociais. O que, numa leitura de Lyra Filho (1982) poderia se configurar enquanto um antidireito.

  1. CONSIDERAÇÕES FINAIS

            O tema da estrangeirização de terras, ou land grabbing, ganhou destaque no debate acadêmico a partir da segunda metade dos anos 2000. Pesquisadores e pesquisadoras das mais variadas debruçaram e debruçam esforços para compreender tal fenômeno dentro do âmbito da Questão Agrária.

Na tentativa de um consenso entre tais teóricos pontua-se que a estrangeirização de terras é um fenômeno que representa o mercado global de terras [e consequentemente a disputa global] através da aquisição, arrendamento e apropriação de recursos naturais. Tem sua origem na crise econômica [energética e alimentar] de 2008 e decorre da mudança da matriz energética na esfera mundial, acirrando a importância da gestão da terra. Como consequência principal de tal fenômeno há o risco à soberania alimentar, nacional e popular de inúmeros países em relação a potências econômicas [países e multinacionais].

            Para além do acúmulo gerado no âmbito acadêmico, houve[há] a repercussão nas bases normativas e a movimentação dos atores sociais e políticos no âmbito da questão agrária [movimentos sociais, sindicatos rurais, sindicatos patronais, entidades de classe, associações dentro do agronegócio, dentre outros]. O objetivo da presente pesquisa é analisar a movimentação de setores que representam o agronegócio.

            O objeto da presente pesquisa foi o Projeto de Lei n° 4.059/2012 e a ADPF n° 342 que discutem a temática principalmente sobre a forma da aquisição de terras por estrangeiros e representam os aspectos legais com maior projeção no âmbito nacional. Em tal âmbito percebe-se a atuação da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), responsável pela proposição do PL, e da Sociedade Rural Brasileira (SRB), entidade defensora do agronegócio que ajuizou a respectiva ação do controle de constitucionalidade. A pesquisa focou nos motivos e argumentos elencados por tais entidades, ou seja, existem uma multiplicidade de representação do agronegócio que não estão abarcadas aqui.

            A atuação das representações do agronegócio na construção da norma e/ou na disputa interpretativa sobre a legislação vigente demonstra que há o intuito de flexibilizar a aquisição de terras por estrangeiros e consequentemente, a estrangeirização de terras. O principal objetivo de tais representações é retirar a incidência dos requisitos e limitações da aquisição de terras por estrangeiros (estabelecidos pela Lei n° 5.709/71 sob determinação constitucional) das pessoas jurídicas ‘brasileiras’ com capital estrangeiro. A participação da FPA e da SRB confirmam a histórica atuação de entidades ligadas ao patronato rural na disputa institucional do estado brasileiro.

            Os principais motivos identificados por Pinto Neto (2017) da atuação de tais organizações envolve a necessidade de promoção do agronegócio, no entanto, para garantir o setor é necessário investimentos externos. Ou seja, o agronegócio demonstra-se enquanto campo dependente do mercado financeiro e estrangeiro, situação comprovada com o empecilho dos créditos agrícolas.

O segundo motivo identificado pontua que as representações do agronegócio atuam de forma supranacional, como por exemplo, a SRB possui enquanto associados pessoas jurídicas com capital social estrangeiro. Ou seja, não há uma pauta e um projeto nacional, mas sim, um projeto para o agronegócio que deve ser implementado independentemente do Estado.

Os argumentos levantados por tais entidades envolvem: a capacidade do agronegócio de salvar a economia nacional, promovendo empregos, diminuindo as desigualdades e promovendo o desenvolvimento. Tais entidades pontuam que para atingir tais benefícios são necessários investimentos estrangeiros. Pinto Neto (2017) pontua que a situação é contraditória, afinal, para garantir o desenvolvimento econômico seria necessário regularizar a venda e o aluguel de imóveis rurais à grupos estrangeiros.

Outro elemento pontuado corresponde a necessidade de segurança jurídica para os investidores no país, inclusive sobre a necessidade de regulamentar a questão do direito de propriedade. Percebe-se que a segurança jurídica é vista como uma segurança de investimentos e não uma segurança das instituições jurídicas na tutela dos fundamentos da República, como a soberania nacional.

Para finalizar, verifica-se que as entidades de representação do agronegócio atuam na disputa institucional, construindo mecanismos em várias esferas (no caso, Judiciário e Legislativo) para defenderem os seus interesses. No caso específico, pontua-se que por trás do discurso de ‘salvação da economia’ nacional, tais representações visam vender e alugar terras e transferir o controle de recursos naturais para grupos estrangeiros com o intuito único de defender o setor do agronegócio.

  1. REFERÊNCIAS

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Os traços do colonialismo na significação das relações entre humanos e não-humanos[6]

Luiza Alves Chaves[7]

Resumo: Este artigo versa sobre a objetificação dos animais não-humanos. Buscar-se-á entender como essa relação veio sendo construída de modo simbólico ao longo dos últimos séculos e como o imperialismo contribuiu na sua formação. Além disso, mostrar-se-á como ela se mantem nos dias de hoje através de práticas que se reformularam na atualidade e como se constitui uma rede de explorações onde o humano subalternizado e o não-humano estão constantemente servindo aos objetivos de uma elite exploradora. Com intuito de demonstrar a como esse processo vem se realizando abordou-se a legislação brasileira que trata dos animais demonstrando alguns traços que demonstram a subjugação dos animais no seu texto. Buscou-se também avaliar brevemente o PL 6268/2016, para que se possa entender como as inovações legislativas que tratam do meio ambiente construídas nesse período de retrocesso social que vive o Brasil pode ser nefasto tanto para humanos quanto para não-humanos.

Palavras-chave: natureza, imperialismo ecológico, especismo, ecocentismo, América Latina

 

Abstract: This article deals with the objectification of non-human animals. It will be sought to understand how this relationship was built in a symbolic way during the last centuries and how imperialism contributed in its formation. In addition, it will be shown how it is maintained today through practices that have been reformulated in the present time and how it constitutes a network of explorations where the human subalternized and the nonhuman are constantly serving the objectives of an exploiting elite . In order to demonstrate how this process is being carried out, the Brazilian legislation dealing with animals has been approached, demonstrating some traits that demonstrate the subjugation of the animals in their text. It was also tried to briefly evaluate PL 6268/2016, so that one can understand how the legislative innovations that deal with the environment constructed in this period of social retrogression that live in Brazil can be harmful for both humans and non-humans.

Keywords: nature, ecological imperialism, speciesism, ecocentism, Latin America

  1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por escopo analisar algumas características elementares da relação entre humanos e animais não-humanos, mais precisamente o processo de desvalorização moral destes por aqueles. A forma pela qual esses traços vieram se construindo ao longo da História, especialmente com a difusão do modo de vida europeu realizado no processo de colonização, e como eles simbolicamente constituem os seres humanos consiste no enfoque central que se pretende abordar o tema do comércio de animais.

O trabalho apresentará um estudo analítico e, para que seja possível realizar uma abordagem consistente acerca do problema levantado optou-se por uma pesquisa bibliográfica pautada principalmente no conceito de biota portátil trazido por Albert Crosby, nos debates levantados acerca do ideário de natureza levantados por Antônio Diegues e na compreensão da cultura vinculada ao consumo de animais abordada por Ann Potts. Bem como, uma breve análise da legislação brasileira referente ao tema.

  1. A REPRESENTAÇÃO SIMBÓLICA

 A relação de dominação entre homens e animais não-humanos atravessa a história de praticamente todas as sociedades componentes do globo terrestre. Em maior ou menor grau, a utilização e domesticação das mais diversas espécies funcionaram como mecanismos de desenvolvimento das sociedades humanas.

            Embora a grande maioria dos animais não-humanos que se tornaram objetos de consumo dessas sociedades tenham servido de maneira utilitária (para alimentação ou transporte, por exemplo), a utilização de animais com fins não utilitários também remonta à antiguidade. Segundo Filho (2013, p.8) tem-se que:

A tradição de capturar e enjaular animais selvagens para fins não utilitários teve início na pré-história, no período conhecido como Neolítico, entre os anos de 8000 a 3000 antes da Era Cristã. Pesquisadores das áreas de paleozoologia e arqueologia encontraram vestígios da coexistência, em uma mesma localidade, tanto de animais selvagens, como de espécies domesticadas – como porco e cavalo, usados pelo homem como fontes de alimento e meios de transporte.

            Como exemplo trágico e marcante na História temos as arenas romanas. Filho, (2013, p, 9) nos mostra ainda que:

Foi nessas arenas que muitos imperadores romanos desenvolveram uma forma única e particularmente cruel de demonstração de poder, prestígio e persuasão. Era nessas arenas que os cidadãos poderiam observar os animais de uma maneira inédita. Para o imperador e também para o público era uma experiência única, inédita e irresistível observar centenas de animais matando-se uns aos outros, dilacerando humanos e, principalmente, mortos por gladiadores.

As relações simbólicas estabelecidas entre o homem e os seres que o cercam sejam eles de natureza humana ou não-humana representam traços culturais indispensáveis à compreensão de um dado indivíduo ou sociedade. Nesse sentido, Potts (2016, p. 16) relaciona que o consumo de animais:

In all human cultures it is also symbolic: in the Western context it signifies important ideas about gender(Adams 2010; Parry 2010, Potts and Party 2010, Hovorka 2012), class and taste (potts and White 2008), socioeconomic position(galobardes et al 2001), geographical and economic factors (Hovorka, 2008). Its acceptance is facilitated by beliefs about humans right to dominate nature, including the bodies of animals and their reproductive lives (Luke 2007, Adams 2010, Joy 2010).

Seguindo o viés de estruturação social e dinâmica das classes não há como olvidar o aprendizado trazido por Bourdieu da necessidade de se avaliar a dinâmica entre significantes e significados e, portanto, a importância de se vislumbrar a prática do consumo e os objetos consumidos não somente como mero frutos de decisões utilitárias racionais, mas, principalmente, como fontes de construção do indivíduo e da sociedade como um todo.

            O entendimento do “eu” perpassa a noção de identificação social onde o indivíduo utiliza do consumo como meio de autoexpressão, autoafirmação e colocação na complexa dinâmica das estruturas sociais.

            Desse modo, o que se tem de mais relevante é que os objetos deixam de representar algo para serem centrais na criação do indivíduo, assim as relações constituídas através dos seres e grupos sociais com os objetos se tornam mais complexas e ultrapassam muito a visão econômica do fato.

            A manutenção de animais silvestres em cativeiro, por exemplo, representa historicamente a relação com o poder a riqueza e a autoridade de um determinado reino, família ou pessoa. A relação entre a raridade, ferocidade do animal e dificuldade vinculam-se diretamente ao tamanho do prestígio de seu detentordominador.

            Dessa forma reis, rainhas, imperadores e nobres expressaram seu poderio utilizando-se de animais capturados principalmente nas regiões coloniais. No que remete especificamente as coleções de animais mantidas no Brasil, Filho (2013, p. 7) relata que:

  1. João VI, rei do reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, por meio de uma ordem régia exigia do governador de Angola que começasse a enviar, em todos os navios que partissem daquela região para o Brasil, “um viveiro de pássaros esquisitos”. […] Em outubro de 1819 a primeira remessa de Benguela, com 100 pássaros exóticos, seguia para o Brasil a bordo do bergantim Tejo, que também trazia 396 escravos africanos. Em apenas três anos, de 1819 a 1823, D. João VI recebeu na Corte do Rio de Janeiro um total de 762 aves de diversas espécies.
  1. A INFLUÊNCIA DO IMPERIALISMO

Os países componentes da América Latina são constituídos por uma imensa rede de culturas, sendo a grande maioria delas atravessada pela dominação imperialista eurocêntrica.

Assim sendo, percebe-se que embora em diversas sociedades latino americanas, como inúmeras populações indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, a percepção acerca da natureza seja construída de maneira biocêntrica e holística a visão que impera nos ordenamentos jurídicos e políticos desses países é antropocêntrica e conservadora.

Isso se reflete nas políticas públicas de “proteção à natureza” que partem do princípio de que o homem e o não-humano estão em constante disputa, não compreendendo a possibilidade de relações harmônicas serem construídas. Dessa forma, ignoram-se as relações centenárias que diversas comunidades têm com a Terra e o espaço onde habitam, vendo eles como depredadores (e quiçá predadores) do meio ambiente.

À esse respeito Diegues (2000, p.13) traz que:

Para o naturalismo da proteção da natureza do século passado, a única forma de proteger a natureza era afastá-la do homem, por meio de ilhas onde este pudesse admirá-la e reverenciá-la. Esses lugares paradisíacos serviam também como locais selvagens, onde o homem pudesse refazer as energias gastas na vida estressante das cidades e do trabalho monótono. Parece realizar-se a reprodução do mito do paraíso perdido, lugar desejado e procurado pelo homem depois de sua expulsão do Éden. Esse neomito, ou mito moderno, vem impregnado, no entanto, do pensamento racional representado por conceitos como ecossistema, diversidade biológica etc.

A construção das áreas protegidas, que se basearam no modelo norte-americano de parques, sem muitas vezes se atentarem aos benefícios (e malefícios!) dessa estrutura e as particularidades brasileiras na sua implementação, tornam-se exemplo real de que essas práticas imperialistas, onde o conceito de natureza é formado com base na separação e no distanciamento entre o homem e o não-humano, se perpetuam e integram a política e legislação brasileira.

A desconexão existente entre a percepção do homem e do meio natural reflete-se também na forma como a própria natureza é tratada legalmente. Esse distanciamento reforça a percepção especista que impera na(s) sociedade(s) brasileira(s), em relação aos animais não-humanos, sendo essa claramente representada no ordenamento jurídico pátrio.

Animais não-humanos, mesmo com todo desenvolvimento científico demonstrando sua sensciência, são colocados no patamar de objetos de direito, tendo seus interesses protegidos somente no limite do interesse humano.

Aparentemente desconexos os dois pontos unem-se justamente na construção acerca do ideário de natureza e das relações que se estabelecem entre os não-humanos e os humanos.

Como bem identifica Crosby, o imigrante colonizador trouxe consigo uma biota portátil, onde além e fauna e flora, ele trouxe também seu modus vivendi e, consequentemente, sua forma de se relacionar com a natureza. Desse modo, o processo dominação não foi (e continua sendo!) só de um povo sobre outro, mas de uma tecnologia de organização social sobre a outra.

Sendo assim, ao realizar o processo de “domesticação” da natureza o colonizador já define qual parte dela ele deseja reproduzir. Tendo, hoje, a natureza se tornado fruto dessa atividade, sendo uma espécie de reconstituição de um modelo europeu, compondo uma espécie de natureza globalizada. (CROSBY, 2011, p. 13-19).

Essa dinâmica repercutiu diretamente nas relações entre os homens e a natureza não-humana que se ressignificaram, de maneira geral, em todo planeta, sobre a forma de relações de exploração, subjugação e inferiorização, fato esse que muitas vezes não fazia parte da cultura tradicional de diversos povos, como as citadas populações indígenas ameríndias.

Isso porque, como já mencionado, a colonização Norte-Sul superou (e muito!) a barreira da dominação territorial significando um imperialismo social, étnico, cultural e político.

  1. MUDANÇAS NA AMÉRICA LATINA

 Em relação especificamente a construção legal das normativas de proteção a natureza, o que se percebe é que os países latino-americanos que tiveram maior abertura ao pluralismo representado em sua sociedade, também apresentam proposta de correlação com a natureza em que o processo de objetificação desses seres é bastante reduzido comparativamente.

São exemplos dessa diferente proposta legislativa a Constituição Equatoriana de 2008, bem como para a lei boliviana intitulada Lei da Mãe Terra.

Mais recentemente foi lançada também diretiva jurisdicional da Suprema Corte Colombiana que reforçar a percepção, onde a Amazônia Colombiana foi elevada ao patamar de sujeito de direito, sendo determinada pela Corte que esta região tem direitos e recaem sobre os homens os deveres a ela referentes, entre eles o principal é sua preservação.

Nesse sentido, foram estabelecidos como alguns dos deveres:

 Entre las órdenes que emitió la Corte, está la de ordenar a la Presidencia y al Ministerio de Ambiente a que, en un plazo de no más de cuatro meses, formule un plan de acción de corto, mediano y largo plazo para contrarreste la tasa de deforestación en la Amazonía, en donde se haga frente a los efectos del cambio climático. Asimismo, el alto tribunal ordenó a las anteriores autoridades a que dentro de cinco meses formulen un pacto intergeneracional por la vida del amazonas colombiano, en donde se adopten medidas encaminadas a reducir a cero la deforestación y las emisiones de gases efecto invernadero.(El espectador, Redacion Judicial, 5 de abril de 2018).

              Muito embora os manuais de direito ambiental remontem a referência dessas normativas à uma visão da ecologia profunda sobre o Direito Ambiental, acredita-se que alegar esse fato é mais uma vez apropriar-se da percepção ancestral dos ameríndios dando margem a uma teoria eurocêntrica que se põem inovadora, mas que de certa forma nada mais é que a teorização de um conceito relacional que já existe nessa região há milhares de anos.

            Esses países tiveram levantes populares, pelos quais, as populações tradicionais ganharam mais poder e visibilidade, chegando a cargos políticos e sendo responsáveis por inúmeras mudanças sociais. Por óbvio, a visão legal e jurídica acerca da natureza não passou de forma despercebida por essa mudança, sendo essas diretivas legais formas de representação de alguns avanços conquistados nesse processo.

  1. CENÁRIO BRASILEIRO

 No Brasil, infelizmente, essa dinâmica vendo sendo produzida de modo diferente, quiçá oposto. Para aprofundarmos essa percepção vamos levar em consideração ao posicionamento dos animais no nosso cenário jurídico.

Como já mencionado, seguindo os ensinamentos trazidos pelo Direito Romano, os animais, no Brasil, são tratados como objeto de Direito. Sua posição primordial continua sendo a de coisa, semovente. Nas palavras de Carlos Roberto Gonçalves:

O art. 82 do Código Civil considera móveis “os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social”. Trata-se dos móveis por natureza que se dividem em semoventes e propriamente ditos. Ambos são corpóreos.

(…)

Semoventes – São os suscetíveis de movimento próprio, como os animais. Movem-se de um local para outro por força própria. Recebem o mesmo tratamento jurídico dispensado aos bens moveis propriamente ditos. Por essa razão, pouco ou nenhum interesse prático há em distingui-los.[8]

É necessário que se entenda que há, no ordenamento jurídico pátrio, uma discussão referente ao conceito de fauna. Isso recai em uma divisão dos animais em dois grupos, sendo cada um destes considerados dentro de uma espécie de bem jurídico diferente.

A Constituição Federal trata o tema da proteção aos animais no seu art. 225, §1º, inciso VII, que tem a seguinte redação:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações

  • 1º – Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

(…)

VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.

  José Afonso da Silva (SILVA apud RODRIGUES, 2008, p. 69) interpreta o artigo literalmente, considerando, portanto, que o termo fauna, no texto constitucional, refere-se aos animais silvestres e aos peixes. Sendo a proteção jurídica ditada pela Carta, a eles referentes. Divergem desse entendimento, juristas como Celso Antônio Pacheco Fiorillo, Edna Cardozo Dias, Laerte Fernando Levai[9], entre outros. Para estes doutrinadores, a expressão fauna silvestre inclui todos os animais não-humanos na sua mais completa classificação, sendo a garantia constitucional elencada no dispositivo em voga estendida a todos os animais que estejam no território nacional, sejam eles pertencentes ou não à fauna brasileira (RODRIGUES, 2008, p. 69).

Essa falta de unidade conceitual também está presente na legislação, dificultando ainda mais a formulação de um entendimento convergente. A Lei 5.197/67 definiu, em seu art. 1º, caput, animais silvestres como:

Art. 1º. Os animais de quaisquer espécies, em qualquer fase do seu desenvolvimento e que vivem naturalmente fora do cativeiro, constituindo a fauna silvestre, bem como seus ninhos, abrigos e criadouros naturais são propriedades do Estado, sendo proibida a sua utilização, perseguição, destruição, caça ou apanha.   

Enquanto que a Lei 9.605/98, em seu art.29, §3º, traz:

  • 3° São espécimes da fauna silvestre todos aqueles pertencentes às espécies nativas, migratórias e quaisquer outras, aquáticas ou terrestres, que tenham todo ou parte de seu ciclo de vida ocorrendo dentro dos limites do território brasileiro, ou águas jurisdicionais brasileiras.

Ademais, o Ibama, através do art. 2º da Portaria 93, de 07.07.1998, conceitua três tipos de faunas diferentes, sendo elas:

Art. 2º – Para efeito desta Portaria, considera-se:

I – Fauna Silvestre Brasileira: são todos aqueles animais pertencentes às espécies nativas, migratórias e quaisquer outras, aquáticas ou terrestres, que tenham seu ciclo de vida ocorrendo dentro dos limites do Território Brasileiro ou águas jurisdicionais brasileiras.

II – Fauna Silvestre Exótica: são todos aqueles animais pertencentes às espécies ou subespécies cuja distribuição geográfica não inclui o Território Brasileiro e as espécies ou subespécies introduzidas pelo homem, inclusive domésticas em estado asselvajado ou alçado. Também são consideradas exóticas as espécies ou subespécies que tenham sido introduzidas fora das fronteiras brasileiras e suas águas jurisdicionais e que tenham entrado em território brasileiro.

III – Fauna Doméstica: Todos aqueles animais que através de processos tradicionais e sistematizados de manejo e/ou melhoramento zootécnico tornaram-se domésticas, apresentando características biológicas e comportamentais em estreita dependência do homem, podendo apresentar fenótipo variável, diferente da espécie silvestre que os originou.

Essa discussão culmina com a necessidade de se fazer uma categorização dos animais para sua efetiva proteção jurídica. Nas palavras de Rodrigues (2008, p. 70):

 

Os animais são juridicamente protegidos mediante certa classificação segundo suas características físicas (…) e qualificados em categorias de selvagens ou não, domésticos ou domesticados, aquáticos, terrestres, migratórios ou não, exóticos ou não, ameaçados ou em extinção.

Desta forma, sob a égide jurídica, a proteção dos animais é feita da seguinte forma: existe um primeiro grupo de animais, compreendendo os domésticos ou domesticados, que continuam sendo tratados como coisas ou semoventes ou como coisas sem dono, de acordo com sua situação e enquadramento no Código Civil Brasileiro.

Neste sentido, sua proteção é feita dentro do Direito de Propriedade, sendo estes considerados como propriedade privada do homem, sujeitos à apropriação.

Pode-se averiguar, por exemplo, nos art. 1.444 a 1.446, disposições concernentes ao penhor pecuário, que os animais são objetos válidos de penhor e alienação, além de compra e venda. Abaixo os artigos, para melhor visualização:

Art. 1.444. Podem ser objeto de penhor os animais que integram a atividade pastoril, agrícola ou de lacticínios.

Art. 1.445. O devedor não poderá alienar os animais empenhados sem prévio consentimento, por escrito, do credor.

Parágrafo único. Quando o devedor pretende alienar o gado empenhado ou, por negligência, ameace prejudicar o credor, poderá este requerer se depositem os animais sob a guarda de terceiro, ou exigir que se lhe pague a dívida de imediato.

Art. 1.446. Os animais da mesma espécie, comprados para substituir os mortos, ficam sub-rogados no penhor.

Parágrafo único. Presume-se a substituição prevista neste artigo, mas não terá eficácia contra terceiros, se não constar de menção adicional ao respectivo contrato, a qual deverá ser averbada.

Os animais silvestres em ambientes naturais e os exóticos (sendo estes os originários de outros países) compreendem o segundo grupo e são tratados como bens jurídicos de uso comum do povo, tendo natureza difusa, assim como os demais bens socioambientais. Os bens jurídicos de uso comum do povo não são públicos nem privados, eles pertencem à coletividade. Assim sendo, é dever do Poder Público e de todos protege-los. Como bem salienta Pedro Lenza (2010, p. 941):

 (…) o meio ambiente é bem de fricção geral da coletividade, de natureza difusa e, assim, caracterizado como res omnium – coisa de todos, e não como res nullius (…). Trata-se de direito que, apesar de pertencer a cada indivíduo é de todos ao mesmo tempo e, ainda, das futuras gerações.

            A esse respeito, cabe mencionar que os bens de uso comum ou bens difusos, não são os bens públicos de uso comum elencados no art. 66 do Código Civil Brasileiro, mas sim bens que independente da natureza pública ou privada, sendo considerados bens comuns de todos.

            Uma propriedade privada não deixa de assim ser, por ser um bem difuso, o que poderá ocorrer é um gravame de uma limitação ou restrição de uso a ela imposta para que haja maior preservação, visto que ela pertence à coletividade. Contudo, isso não indica que haja transmissão de propriedade para o poder público, nem que possa ser reivindicado o espaço por ser bem de uso comum.

De todo modo, a classificação constitucional dos animais como bens difusos foi uma grande evolução no que concerne ao protecionismo animal, mesmo o dispositivo tendo aberto margem à discussão e de modo geral deixado de lado grande parte da efetiva fauna brasileira. Contudo, a maior parte da legislação brasileira que se propõe à tutela jurídica da fauna ainda funciona de forma parca e termina por preservar primordialmente o interesse humano, leia-se aqui de um grupo humano dominante.

Como diz Rodrigues (2008, p.77):

Portanto, toda essa parafernália legislativa está sendo impotente para proteger os direitos à vida, à liberdade e dignidade dos Animais porque é tida sob a ótica antropocêntrica do ordenamento jurídico.

E, claro, em um momento político onde há avanço significativo do conservadorismo, expresso por medidas como a Reforma Trabalhista, no campo legislativo. E, no campo jurisdicional, na recente decisão do Supremo Tribunal de Justiça autorizando a prisão em segunda instância, se faz quase irreal pensar em uma inovação legal que possa trazer benefícios a qualquer grupo subalternizado, seja ele humano ou não-humano.

Pelo contrário, sejam elas legais ou jurisdicionais estão cada vez mais nefastas para ambos os grupos.

Como exemplo crucial de como esse cenário político pode ser extremamente maléfico ao meio ambiente e aos humanos vulneráveis e como estão ambas as questões interligadas na sociedade brasileira, optou-se por fazer uma breve análise do Projeto de Lei 6268/2016 (PL da Caça).

  1. PROJETO DE LEI 6268/2016

O Projeto de Lei 6268/2016, de autoria do deputado membro da Frente Parlamentar da Agropecuária, Valdir Colatto (MDB-SC), que tramita na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara dos Deputados (CMAD), tendo como relator o deputado Nilto Tatto (PT- SP), cujo objetivo é legalizar a caça de animais silvestres no Brasil.

Uma breve análise ao projeto de lei em questão foi trazida aqui, pois ele demonstra com facilidade como para se entender a relação entre o homem e a natureza no sistema jurisdicional brasileiro é fundamental compreender como o mesmo grupo que constantemente luta pela manutenção da visão eurocêntrica importada, ou melhor, imposta ao longo do processo de colonização, também é responsável pela constante reprodução de paradigmas exploradores, que aumentam os abismos existentes em nossa sociedade, principalmente nas áreas rurais.

Isso porque, além de autorizar a caça e o abate de animais silvestres ameaçados de extinção, legalizar o comércio de animais silvestres e exóticos e a manutenção desses em criadouros comerciais, permitir a erradicação de espécies exóticas que sejam considerados nocivos à saúde pública, às atividades agropecuárias ou correlatas e à integridade e diversidade biológica dos ecossistemas, autorizar o estabelecimento de campos de caça em propriedades privadas, permitir que animais resgatados que estejam sendo mantidos em campos de triagem sejam vendidos a campos de caça, ou levados a eutanásia sumária, possibilitar a comercialização de animais por zoológicos e o do abate de animais silvestres em unidades de conservação, ou seja, representar um retrocesso sem tamanho no que tange a legislação vigente no país referente à proteção à fauna. O supracitado projeto traz, entre outros pontos, em seu texto, a permissão de utilização de armas de fogo, proposta esta que se faz ameaçadora no que se refere também ao caráter humano.

Em seu texto:

Art. 38. O abate de espécimes da fauna silvestre é proibido. a) com visgos, atiradeiras, fundas, bodoques, veneno, incêndio ou armadilhas que maltratem o animal; b) com armas a bala, a menos de três quilômetros de qualquer via férrea ou rodovia pública; c) com armas de calibre .22 para animais de porte superior à lebre européia (Lepus capensis); […]

Em um cenário de aumento de mais de 20% na violência rural entre os anos de 2016 e 2017, segundo dados do Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida – OLMA, uma modificação que traga qualquer abertura ao aumento do índice de armas nas áreas rurais do país se propõe ameaçadores, principalmente aos socioambientalistas, membros de comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas.

            Propostas como essa servem ao propósito de um grupo dominante que explorada animais humanos e não-humanos, sendo responsáveis por esses indivíduos serem subalternizados, silenciados e, por que não?, abatidos todos os dias.

O deputado Valdir Colatto, autor do Projeto de Lei, é abertamente a favor do armamento da população rural, tendo apoiado o Projeto de Lei 6717/2016 que libera o porte de arma a moradores de zona rural com pelo menos 21 anos (modificando e reduzindo a idade mínima vigente no Estatuto de Desarmamento de 25 anos). Nesse sentido o deputado mencionou em entrevista dado ao programa Direito ao Ponto, do Canal Rural, que:

Estamos precisando que o agricultor tenha uma arma na propriedade. Imagine alguém lá no interior, isolado, sem telefone e os bandidos dizimando, assassinando as pessoas. A lei do abigeato aumentou a pena para quem rouba os animais, mas mesmo assim não conseguimos resolver o problema da criminalidade.[10]

            No breve relato fica clara a posição do deputado e a que grupo se filia, sendo reforçada a percepção acerca da conexão entre os sujeitos que são responsáveis pela objetificação e instrumentalização dos não-humanos e da constante exploração dos humanos mais vulneráveis.

  1. CONCLUSÃO

           Como brevemente abordado o tema é composto por inúmeros recortes que demonstram sua complexidade.

Ao buscar compreender o universo simbólico que permeiam as mais diversas relações humanas nos deparamos com signos, significantes e significados plurais que formam uma colcha de retalhos. Assim sendo, trabalhar a dinâmica das relações humanas e não-humanas não poderia deixar de envolver toda essa amalgama.

O objetivo com esse trabalho, portanto, não poderia ser esgotar o tema, visto que diante desses fatos essa busca seria no mínimo inocente. Buscou-se, portanto, iluminar alguns dos pontos de choque que se tem ao discutir a significação da relação entre os homens e os não-humanos que os cercam.

A compreensão da necessidade de se reinterpretar o conceito de Natureza para que se torne ao menos possível o diálogo dos mais diversos atores que compõem as sociedades latinoamericanas é fundamental na tentativa de debater qualquer evolução relacionada as políticas públicas e as legislações que abarcam o tema.

Além disso, é imprescindível a interpretação do papel que a natureza (principalmente no que tange aos animais não-humanos) exerce na construção simbólica dos indivíduos afim de se poder discutir novas propostas política, jurídicas e legais. Para tanto, não é possível se olvidar da percepção do que o imperialismo europeu gerou nessa formação de um ideal de natureza.

Além disso, é crucial que se entenda como o histórico dessas relações imperialistas continuam se perpetuam no cenário sociopolítico brasileiro, representado por elites que subalternizam, exploram, escravizam e abatem todos os dias tanto humanos como não-humanos.

             Opta-se aqui então por não utilizar nenhuma palavra de conclusão, uma vez que o processo de compreensão dos dados levantados e dos argumentos elaborados ainda está em pleno desenvolvimento, representando esse artigo o processo inicial de discussão.

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 Protocolos comunitários: resistência e autodeterminação no acesso a biodiversidade[11]

Community protocols: resistance and self-determination in access to biodiversity

Eliane Cristina Pinto Moreira[12]

Luciano Moura Maciel[13]

 

Resumo: O artigo objetiva demonstrar a importância dos protocolos comunitários como mecanismo de resistência e autodeterminação face às múltiplas violações de direitos humanos constantes na Lei 13.123/15. A análise é feita a partir do cenário do Direito Internacional Ambiental e Direito Internacional dos Direitos Humanos, evidenciando as incongruências da lei brasileira, ao tempo que destaca experiências concretas de protocolos comunitários. O método utilizado é o dialético.

Palavras-Chave: Protocolos Comunitários; autodeterminação; biodiversidade.

Abstract: The paper aims to demonstrate the importance of community protocols as mechanism of resistance and self-determination in the face of multiple human rights violations contained in Law 13.123 / 15. The analysis is done from the International Environmental Law scenario and International Human Rights Law, highlighting the incongruities of Brazilian law, while highlighting concrete experiences of community protocols.

Keywords: Community protocols, self-determination, biodiversity.

 Introdução

 A Lei 13.123/15, regulamentada pelo Decreto 8872/16, representou uma grande perda para os povos indígenas, comunidades tradicionais e agricultores familiares. Apoiada numa lógica que privilegia predominantemente o setor industrial, esta lei estabeleceu diversas isenções à obrigatoriedade de respeito aos direitos de consulta prévia, consentimento prévio informado (ou fundamentado), direitos de repartição de benefícios, direitos de participação dentre tantos outros.

Mencionada legislação veio a substituir a Medida Provisória 2.186-16/01 que vigorou por cerca de 15 anos (se considerarmos sua primeira edição) e possuía diversos problemas passíveis de críticas, todavia, ainda assim, assegurava alguns dos direitos agora suprimidos pela nova legislação.

Todavia, dentre tantas perdas, é possível vislumbrar aspectos positivos (ainda que raros) nesta recente legislação, um dos pontos positivos desta lei foi o reconhecimento dos protocolos comunitários como instrumento jurídico de efetivação de direitos de povos e comunidades tradicionais. Os protocolos comunitários já estavam previstos internacionalmente no Protocolo de Nagoya e, apesar do Brasil não ter ratificado este instrumento internacional, criou um diálogo com seu conteúdo ao reconhecer os protocolos comunitários no texto da Lei n.º 13.123/15.

Cabe-nos questionar se os protocolos comunitários podem servir de instrumento à conformação de uma estratégia de resistência às violações de direitos humanos decorrentes da negativa de direitos consubstanciada nesta nova legislação. Acreditamos que sim, face ao direito de autodeterminação e pluralismo jurídico reconhecido a estes povos nos instrumentos jurídicos internacionais que permitem que cada povo e comunidade estabeleça suas regras para a relação com terceiros interessados neste acesso e uso.

Assim, adotamos o método dialético compreendido como um conjunto de processos, em que há uma tese formada pela exposição do conjunto de normas internacionais sobre a diversidade biológica, sua preservação e proteção aos conhecimentos tradicionais dos povos e comunidades tradicionais. A antítese constitui os retrocessos da Lei 13.123/2015, e sua janela de “diálogo possível” com o Protocolo de Nagoya, para obtenção do consentimento prévio dos povos locais. A síntese seria os mecanismos de resistência dos povos e comunidades tradicionais, com a formulação de Protocolos Comunitários[14] pelas comunidades, Protocolos que foram reconhecidos pela norma em comento, como “norma procedimental das populações indígenas[15], comunidades tradicionais ou agricultores tradicionais” (inciso VII, do art. 2º da Lei 13.123/2015).

Neste artigo abordaremos os Protocolos comunitários para acesso e uso do patrimônio genético da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais associados desde sua previsão no Protocolo de Nagoya até sua inclusão na Lei n.º 13.123/15. Posteriormente, analisaremos como os protocolos comunitários podem representar um instrumento de efetivação dos direitos a autodeterminação e ao pluralismo jurídico dos povos e comunidades tradicionais. Finalmente, vamos apreciar as experiências no Brasil voltadas a este intento e refletir sobre seus potenciais e desafios.

 

  1. Contextualização

O debate sobre a proteção dos recursos genéticos da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais teve como importante marco a 2ª Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, denominada Eco/92, realizada entre os dias 3 a 14 de junho de 1992 no Rio de Janeiro. Durante a conferência foi assinada a Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB), instrumento jurídico internacional aberto para a assinatura em 05 de junho de 1992, firmado por cento e setenta e oito países, incluindo o Brasil, ratificado em 03 de fevereiro de 1994, mediante o Decreto Legislativo n.° 02/1994.

Por intermédio deste instrumento obteve-se um consenso normativo internacional acerca do valor intrínseco da diversidade biológica e a necessidade de sua conservação para a manutenção dos sistemas necessários à vida da biosfera e constituindo a biodiversidade um valor comum à humanidade (MACIEL, 2012; DOURADO, 2014).

Os objetivos da CDB são a utilização sustentável dos componentes da diversidade biológica e a repartição justa e equitativa dos benefícios destinados da utilização dos recursos genéticos, mediante o acesso adequado aos recursos genéticos e a transferência de tecnologias.

Dentre os objetivos da CDB o acesso e repartição justa e equitativa de benefícios –Access and Benefit-sharing em inglês gerando a sigla ABS – canalizou esforços para a composição de um Protocolo que previsse o marco jurídico internacional em que estas atividades deveriam ser desempenhadas. No ano de 2010 em 29 de outubro, na décima reunião da Conferência das Partes sobre a Diversidade Biológica (COP-10), celebrada em Nagoya, no Japão foi instituído o Protocolo de Nagoya. O Brasil assinou o Protocolo em 2010, todavia, ainda não foi ratificado pelo Congresso Nacional.

Contudo, Santilli (2015, p. 263) informa o papel importante do Brasil nas negociações internacionais do Protocolo, ressaltando que sua entrada em vigor no cenário jurídico internacional fora uma conquista dos países megadiversos ricos em biodiversidade, entre os países que já ratificaram o Protocolo encontram-se Indonésia, Índia, África do Sul, Madagascar, Quênia, Egito, Síria, Guatemala, Peru, Dinamarca, Espanha e Suíça, dentre outros.

O objetivo do Protocolo de Nagoya consiste em uma maior ênfase na distribuição justa e equitativa da repartição de benefícios, segundo termos mutuamente acordados, decorrentes da utilização de recursos genéticos, por meio de acesso aos recursos genéticos (Artigo 1°).  Na compreensão de Santilli (2015, p.264) o protocolo visa expandir a concretude e a efetividade às normas da CDB que asseguram a repartição justa e equitativa dos benefícios derivados da utilização da biodiversidade.

O Protocolo de Nagoya prevê que a repartição de benefícios só será possível com a prévia obtenção do consentimento prévio informado da parte provedora dos recursos, cabendo aos países signatários o estabelecimento de mecanismos para o envolvimento de comunidades indígenas e locais para o acesso aos recursos genéticos, quando o direito de conceder o acesso a tais recursos lhes tenha sido estabelecido.

No entender de Aubertin e Filoche (2011, p. 52) o Protocolo de Nagoya representou certo consenso entre os países do Sul e do Norte, os primeiros interessados em agregar valor aos conhecimentos tradicionais em seus territórios e em combater a biopirataria, os últimos voltados à crença de que existe um mercado para recursos genéticos capazes de alimentar uma nova economia baseada no conhecimento e nas biotecnologias.

Ao tratar do conhecimento tradicional associado a recursos genéticos (art. 12) o Protocolo de Nagoya expressamente reconheceu as normas costumeiras como balizas que devem ser consideradas, ressaltando os protocolos e procedimentos comunitários como instrumentos que devem ser apoiados pelo poder público:

 Artigo 12

CONHECIMENTO TRADICIONAL ASSOCIADO A RECURSOS GENÉTICOS

  1. Ao implementarem suas obrigações ao abrigo do presente Protocolo, as Partes levarão em consideração, em conformidade com sua legislação doméstica, as leis costumeiras de comunidades indígenas e locais, protocolos e procedimentos comunitários, conforme aplicável, com respeito ao conhecimento tradicional associado a recursos genéticos.

(…)

  1. As Partes devem buscar apoiar, conforme adequado, o desenvolvimento pelas comunidades indígenas e locais, incluindo as mulheres nessas comunidades:

(a) Protocolos comunitários sobre acesso a conhecimento tradicional associado a recursos genéticos e a repartição justa e equitativa de benefícios decorrentes da utilização desse conhecimento;

A importância dos protocolos e procedimentos comunitários é reforçada pelo texto de Nagoya ao tratar da obrigação das partes de tomar medidas para disseminar a conscientização sobre a importância de recursos genéticos e conhecimentos tradicionais:

Artigo 21

CONSCIENTIZAÇÃO

Cada Parte tomará medidas para conscientizar sobre a importância de recursos genéticos e do conhecimento tradicional associado a recursos genéticos e sobre temas afins relacionados a acesso e repartição de benefícios. Tais medidas podem incluir, inter alia:

(i) Conscientização sobre protocolos e procedimentos comunitários de comunidades indígenas e locais.

 Desta forma, este instrumento internacional estabeleceu importantes previsões para o reconhecimento dos protocolos e procedimentos comunitários enquanto norma jurídica emanada não do Estado, mas dos povos indígenas, comunidades e agricultores tradicionais, em perfeita consonância com o direito ao pluralismo jurídico previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT): “Artigo 8o item 1. Ao aplicar a legislação nacional aos povos interessados deverão ser levados na devida consideração seus costumes ou seu direito consuetudinário”.

O direito de decidir, mediante suas próprias regras, sobre o acesso e uso dos recursos da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais, assegurado aos povos e comunidades tradicionais possui escopo também no direito de autodeterminação previsto no art. 7º da Convenção 169 da OIT que ressalta o direito de escolha, controle e participação:

Artigo 7o: Os povos interessados deverão ter o direito de escolher suas, próprias prioridades e de controlar, na medida do possível, o seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural; e direito de participar da formulação, aplicação e avaliação dos planos e programas de desenvolvimento nacional e regional suscetíveis de afetá-los diretamente

Dessa feita, é possível reconhecer no cenário jurídico internacional o estabelecimento do direito de decidir sobre o tema conforme regras consuetudinárias, estabelecidas em protocolos e procedimentos comunitários para acesso e uso dos recursos genéticos da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais que devem ser observadas. Ressalte-se que ainda que o Protocolo de Nagoya não tenha sido incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro à obrigatoriedade de observância dos protocolos e procedimentos comunitários faz-se presente perante a Convenção 169 da OIT que estabelecem os fundamentos deste direito.

Sendo assim, a previsão sobre os protocolos comunitários constante do Protocolo de Nagoya foi absorvida – ainda que por linhas tortas, já que o Protocolo não foi ratificado no Brasil – pela Lei n. 13.123/2015 que o expressamente os menciona como mecanismo de obtenção do consentimento prévio fundamentado. Podemos identificar aí uma “janela de diálogo” com o espírito do Protocolo de Nagoya, que pode e deve ser apropriado pelos povos indígenas, comunidades tradicionais e agricultores tradicionais a fim de consolidá-lo como um dos instrumentos de pluralismo jurídico e autodeterminação, todavia, este é um caminho a ser construído em busca da afirmação deste direito. Se aqui temos um ponto parcialmente positivo da lei, a verdade é que os aspectos negativos, lamentavelmente preponderam em seu texto.

Sales (2014) evidencia vários pontos críticos da Lei 13.123/2015 que diferem do Protocolo de Nagoya e da Convenção da Diversidade Biológica: a) utilização do termo “populações indígenas”, ao invés de “povos indígenas”, em desconformidade com a Convenção n.º 169 da OIT e com a Declaração da Organização das Nações Unidas sobre povos indígenas de 2007; b) a elaboração do Projeto de Lei 7735/2014 (Lei 13.123/2015) sem a participação e representação de Povos Indígenas e Povos e Comunidades Tradicionais; c) o art. 8j da CDB menciona que as populações locais e indígenas são os titulares dos conhecimentos tradicionais e do patrimônio genético, a Lei 13.123/2015 aduz que “as populações indígenas, comunidades e agricultores tradicionais são detentores dos conhecimentos tradicionais associado acessado”; d) a repartição de benefícios da nova lei limitada à exploração econômica de produto ou processo oriundo de acesso, diversamente o art. 15.7 da CDB versa sobre exploração econômica ou de “outra natureza”; e) a comprovação do consentimento prévio informado por meio de instrumentos não cumulativos, ou seja, poderá haver consentimento prévio considerado pela lei como “informado” bastando a obtenção de um desses instrumentos: assinatura do termo de consentimento prévio, registro audiovisual, parecer do órgão oficial competente e adesão na forma prevista de Protocolo Comunitário.

Os protocolos comunitários foram definidos na nova lei como “norma procedimental das populações indígenas[16], comunidades tradicionais ou agricultores tradicionais que estabelece, segundo seus usos, costumes e tradições, os mecanismos para o acesso ao conhecimento tradicional associado e a repartição de benefícios” (inciso VII, do art. 2º da Lei 13.123/2015).

Dessa feita, os protocolos comunitários devem ser reconhecidos como fruto direto do pluralismo jurídico e, portanto, norma válida e vinculante de observância obrigatória. São fonte de onde emanam normas para o consentimento prévio informado, deixando claro que este deve ser obtido “segundo os seus usos, costumes e tradições ou protocolos comunitários” (art. 2º, inc. VI da Lei n.º 13.123/2015), consagrando, em definitivo, o direito de povos indígenas, comunidades tradicionais e agricultores tradicionais estabelecerem seus regramentos próprios para a obtenção do consentimento prévio informado.

O Decreto n.º 8772/2016 que regulamenta a Lei n.º 13.123/2015, disciplinou expressamente a possibilidade da população indígena, comunidade ou agricultor tradicional negarem o consentimento ao acesso ao seu conhecimento tradicional associado de origem identificável (art. 13 e 14), entretanto deixou as partes livres para negociarem seus termos e condições, em uma perspectiva liberal de igualdade das partes, “igualdade formal Kantiana”[17], olvidando-se as diferenças reais entre sujeitos distintos, quais sejam: empresas e indústrias de um lado e povos indígenas e comunidades tradicionais de outro.

De modo que se justifica a crítica de Bensusan (2015, p.11) no sentido de que deveria haver um “instrumento de comprovação de obtenção de consentimento prévio”, para que possa haver uma fiscalização do Estado e uma transparência social do processo de obtenção do consentimento prévio, considerando que os conhecimentos tradicionais e o patrimônio genético transcendem o interesse das partes envolvidas, pois constitui matéria afeta ao interesse geral do corpo social. Sugere Bensusan (2015, p.11) ainda no momento de debate sobre o Decreto regulamentador, que este poderia estabelecer mecanismos, a exemplo de um Relatório para aferir se o consentimento prévio informado foi obtido de forma adequada, sugerindo um novo item denominado de: “demonstração do processo de obtenção do consentimento prévio informado”.

Apesar da nova lei fazer referência unicamente aos protocolos comunitários como veículo para o acesso e uso conhecimento tradicional (art. 9º, § 1º, IV), fato é, que a Convenção 169 da OIT obriga a uma interpretação mais ampla e extensiva que deve também alcançar o acesso aos recursos genéticos ou patrimônio genético (na terminologia adotada pela lei) existente em territórios tradicionais, ou que possuam conhecimento tradicional intrínseco, posto que os direitos à autodeterminação e pluralismo jurídico dirigem o conteúdo interpretativo desta norma.

Sendo assim, é necessário afirmar a necessidade de que exista um diálogo entre a Lei n.º 13.123/15, a Convenção 169 da OIT e o Protocolo de Nagoya, espaço no qual os protocolos comunitários devem ser interpretados como forma de participação, autodeterminação e, inclusive, resistência legítima dos povos indígenas, comunidades e agricultores tradicionais, nos procedimentos de acesso e repartição de benefícios.

Necessário lembrar que o respeito aos protocolos e procedimentos comunitários também possui fundamento na Constituição Federal de 1988, tendo em vista a proteção especial garantida ao pluralismo político (art.1°, inciso V) e aos direitos culturais alusivos à identidade de grupos sociais e seus modos de criar, fazer e viver (art. 216).

Os direitos à autodeterminação e ao pluralismo jurídico dos povos e comunidades tradicionais foram consolidados pela Convenção n.º 169 da OIT. Este tratado internacional de direitos humanos constitui um marco jurídico capaz de romper os paradigmas integracionistas (ALMEIDA, 2010, p. 15) e consolidar direitos decorrentes desta garantia como a autoidentificação de grupos sociais distintos de outros setores da sociedade nacional, além disso, torna imprescindível a consulta prévia e consequentemente à observância das normas internas dos grupos sociais (ALMEIDA; NAKAZOMO et al, 2010).

É possível afirmar que a consulta prévia como processo e o consentimento prévio informado (ou fundamentado) – como um dos resultados possíveis – são instrumentos de concretização dos direitos à autodeterminação e pluralismo jurídico ao assegurar o direito de escolha e participação diferenciada destes grupos sociais sobre suas prioridades de desenvolvimento, com o direito a observância de suas normas consuetudinárias (art.7º e 8º da Convenção 169 da OIT).

O direito a consulta prévia, segundo Dourado (2013, p.41) significa a manifestação efetiva dos grupos sociais, não é um direito passivo, sendo a qualidade desta manifestação imprescindível, pois pode variar entre consentimento manipulado pelos agentes oficias de poder e dominação e uma atuação realmente decisiva no processo de criação de normas. Infere Leite (2013, p. 19) que estes parâmetros normativos de consulta e participação efetiva com informação visam à garantia do respeito ao princípio da autodeterminação dos povos previsto na Convenção 169 da OIT.

 

  1. Autodeterminação e Pluralismo Jurídico como ferramentas para a Resistências, Existência e Coexistência de Povos e Comunidades Tradicionais.

A autodeterminação de que trata a Convenção 169 da OIT se refere ao respeito e observância dos direitos consuetudinários internos dos povos indígenas, comunidades e agricultores tradicionais e deve ser compreendido em face do Estado brasileiro para que este observe e respeite às normas construídas no contexto interno dos grupos sociais, como forma de observar o pluralismo político, jurídico e a diversidade social e cultural dos povos que compõem um Brasil pluricultural.

O reconhecimento da autodeterminação em suas estreitas vinculações com o pluralismo jurídico é um fio condutor essencial para a afirmação dos direitos de povos e comunidades tradicionais à sua permanência em sociedades pluriétnicas e multiculturais, neste sentido, são ferramentas de resistências, no sentido de fazer frente aos abusos e violações de direitos; existência, entendida como direito de permanecer e não suprimido ou subjugado; e, coexistência, aqui entendida como o direito de compreender-se a necessidade de efetiva inclusão e compartilhamento do espaço público e acesso a direitos.

O direito à autodeterminação do ponto de vista jurídico pode ser conceituado pela combinação do art. 3º e 34 da Declaração da Organização das Nações Unidas sobre Povos Indígenas de 2007, quando observa que o direito à autodeterminação visa garantir a livre determinação política e a autônoma busca pelo desenvolvimento econômico, social e cultural, combinado com o direito dos povos a desenvolver suas estruturas institucionais e seus próprios costumes, tradições, procedimentos, espiritualidade, sistemas jurídicos, em conformidade com as normas internacionais de direitos humanos[18].

Para Díaz-Polanco (1996, p. 157-164) o direito à autodeterminação significa o direito à livre determinação possibilitando aos povos indígenas e aos grupos sociais o direito de escolha dos caminhos concretos pelos sujeitos envolvidos, que vão desde da conformação de entes autônomos sob um marco Estatal pré-existente até a independência e a constituição de um Estado próprio.

No entender de Sanchez (2009, p. 78) a ideia de autodeterminação significa respeito ao autogoverno dos povos, como forma de garantir a autonomia, base territorial, ou seja, a garantia dos territórios aos grupos sociais para possibilitar meios de produção material (agricultura, caça, pesca, empreendimentos, cooperativas, etc) e reprodução cultural, social, espiritual e simbólica. Nesta perspectiva, o território seria autônomo com competências políticas, jurisdicionais, administrativas, econômicas, culturais, simbólicas, cosmológicas e ecológicas próprias, com direito dos povos indígenas, comunidades tradicionais a participação e representação política na vida nacional (SÁNCHEZ, 2009, p. 69-76).

À autodeterminação vincula-se imediatamente o direito ao pluralismo jurídico, o qual se constitui em um direito humano que se contrapõe a teoria monista do direito que consideram válidas apenas as normas jurídicas emanadas do Estado, desconhecendo a existência histórica de formas plurais de manifestações jurídicas, distintas do ordenamento oficial (WOLKMER, 2001).

O pluralismo jurídico é compreendido neste contexto enquanto variedade de práticas normativas em um mesmo espaço social e político da ordenação estatal, não significa negá-la ou minimizá-la, mas reconhecer que esta é apenas uma das muitas formas jurídicas que podem existir na sociedade (WOLKMER; 2001; 2013). Neste sentido, a pluralidade envolve a existência de ordens jurídicas distintas de diferentes forças sociais e manifestações legais plurais, reconhecidas e incorporadas pelo Estado como norma jurídica.

O pluralismo jurídico como projeto emancipador deve legitimar os sujeitos sociais; democratizar e descentralizar espaços públicos de participação; a defesa pedagógica de uma ética de solidariedade; consolidar os processos conducentes a uma racionalidade emancipatória (WOLKMER, 2003, p.11).

Neste sentido, os Protocolos Comunitários emanados dos grupos concretamente designados, além de outros que possam se autoidentificar como portadores de referência à identidade, a ação e a memória da sociedade brasileira, constituem instrumentos jurídicos fundamentais para a efetivação da autodeterminação e o pluralismo jurídico, como direitos humanos dos povos indígenas, comunidades e agricultores tradicionais.

 Segundo Dias e Laureando (2014, p.4) os “protocolos comunitários podem ser conceituados como instrumentos que contêm acordos elaborados por comunidades locais, sobre assuntos relevantes ao seu modo de vida, visando garantia dos direitos consuetudinários”. Os autores acrescentam que os conhecimentos tradicionais estão “fundamentados na tradição expressos por valores, princípios e regras, cosmovisões e práticas que são passados de geração e geração, em um movimento vivo e contínuo”.

Considerando o arcabouço jurídico formado pela Convenção 169 da OIT, CDB, Constituição Federal e a Lei n.º 13123/15, só é possível compreender os protocolos e procedimentos comunitários como instrumentos de efetivação dos direitos à autodeterminação, pluralismo jurídico e consulta prévia que emanem, efetivamente, das práticas e costumes consagrados e reconhecidos como válidos pelos povos e comunidades tradicionais e que são acionados para uso e reivindicação nas relações sociais com o Estado e com agentes privados.

Os protocolos e procedimentos comunitários não são cabíveis apenas perante situações de acesso e uso dos recursos da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais, ao revés, podem ser utilizados em qualquer situação que afete a vida de povos e comunidades tradicionais em que desejem expor ao terceiro (Estado ou particular) as regras vigentes para qualquer atividade que lhe diga respeito, e tem sido utilizados como ferramenta de resistência a atos abusivos e/ou ilegais praticados contra seus direitos em searas diversas, tais como o estabelecimento de protocolos comunitários para consulta prévia no âmbito do licenciamento ambiental de grandes empreendimentos como hidrelétricas, até o tema aqui tratado com especificidade.

  1. Protocolos Comunitários e Mobilizações pela Defesa dos Direitos Coletivos no Brasil

É interessante observar que diversos grupos de povos e comunidades tradicionais tem se utilizado dos protocolos comunitários como ferramenta para reivindicar a observância de seus direitos, por esta razão, vamos mencionar algumas experiências neste sentido.

O Protocolo de São Luís, formalizado em 2011, decorreu de uma experiência de acesso aos conhecimentos tradicionais associados envolvendo as quebradeiras de coco babaçu[19] e uma empresa de cosméticos que, após intensas discussões, subscrevam um Contrato de Repartição de Benefícios decorrente do acesso pela empresa da farinha de mesocarpo babaçu, bem como um Termo de Anuência Prévia.

O acesso teve início em 2005, quando a empresa contatou a COOPAESP (Cooperativa de Produtores Agroextrativistas do Município de Esperantinópolis e a ASSEMA (Associação em Áreas de Assentamento no Estado do Maranhão), em razão de ter obtido resultados de interesse comercial utilizando da farinha do mesocarpo babaçu e pretendendo lançar cosméticos contendo esse recurso da sociobiodiversidade.

Na oportunidade, a empresa informou à COOPAESP sobre direitos de repartição de benefícios previstos na Medida Provisória 2.186-16, de 23 de agosto de 2001, norma que antecedeu a atual Lei 13.123/2015, prevendo novos direitos as comunidades tradicionais e que precisava se regularizar a respeito. Após intensas discussões intracomunitárias e com órgãos públicos como o Ministério Público Federal, foram assinados: Termo de Anuência Prévia (TAP) e o Contrato de Utilização e Repartição de Benefícios (CURB), este último em janeiro de 2007 (MACIEL, 2012). O CURB estabeleceu cláusulas de repartição de benefícios com base na receita líquida advinda da comercialização de produtos que contenham a farinha de mesocarpo babaçu, bem como a criação do Fundo Socioambiental das Comunidades Extrativistas do Babaçu (MACIEL, 2012).

Dessa experiência, no I Seminário dos Conhecimentos Tradicionais realizado em São Luís em 2011, surgiu o Protocolo de São Luís oriundo do aprendizado desta relação jurídica e da mencionada negociação. Este documento trata de dispositivos para a composição de instrumentos legais sobre a regulamentação da então vigente Medida Provisória n.° 2.186-16.

Explica Dourado (2014, p. 70) que o Protocolo de São Luís, pode ser considerado “um protocolo comunitário”, de acordo com o art.12 do Protocolo de Nagoya, haja vista também tratar de um conjunto de normas sobre o acesso e a utilização do patrimônio genético, o Protocolo destaca que a legislação sobre a biodiversidade em relação aos conhecimentos tradicionais só faz sentido se estiver coadunada com garantias de acesso à terra e com o uso dos recursos naturais, preconiza a ampla necessidade de informação dos aspectos em jogo e de participação do Conselho de Gestão Nacional do Patrimônio Genético (CGEN).

Outra experiência importante foi à construção do “Protocolo Comunitário Biocultural das Raizeiras do Cerrado[20]”, em busca do “Direito consuetudinário de praticar a medicina tradicional”. Este Protocolo comunitário tem como objetivo ser um “instrumento político para a conquista de uma legislação que garanta o direito consuetudinário de quem faz o uso tradicional e sustentável da biodiversidade brasileira para sua saúde comunitária” (DIAS; LAUREANO, 2014).

A elaboração deste Protocolo foi fruto da realização de doze encontros regionais e dois encontros nacionais entre as raizeiras do cerrado, em que foram realizadas capacitações sobre políticas públicas e tratados internacionais relacionados ao tema “Biodiversidade e Conhecimentos Tradicionais”.

No Protocolo consta o necessário reconhecimento da autoidentidade de quem pratica medicina tradicional do Cerrado, agentes sociais, que pelo processamento das plantas fazem remédios caseiros, obedecendo a critérios de boas práticas populares, desde a coleta da planta até o remédio pronto conforme suas várias espécies de cura, sendo realizadas pelos seus praticantes, por raizeiras, curandeiros, remedeiros, parteiras, agentes de pastoral, etc. A regra desta autoidentidade é que as mesmas são múltiplas, logo, não podem ser interpretadas como individuais, pois compartilham experiências comuns de cura por meio da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais (Idem, 2014).

A identidade social construída pelo grupo possui relação com a comercialização dos remédios caseiros vendidos a um preço justo ou doados a quem não pode pagar, em ambos os casos diante de uma preparação espiritual. Outros aspectos deste Protocolo são importantes: a) transmissão do conhecimento para novas gerações; b) relações sociais em rede denominada Articulação Pacari; c) dinâmica do reconhecimento da eficácia e qualidade pelos usuários em uma relação de mútua confiança; d) Critérios para a escolha das Plantas, preferindo-se plantas usadas para tratar doenças mais comuns, especificas da mulher, doenças endêmicas, entre outras; e) metodologia de “pesquisa popular”, em que os próprios membros da comunidade realizam estudos de campo e registram coletivamente os conhecimentos tradicionais.

Em síntese, as raizeiras do Cerrado reivindicam a liberdade para a continuidade de suas práticas, já que pela visão monista do Direito a comercialização de remédios caseiros sofrem muitas vezes restrições impostas pelos sistemas de vigilância sanitária. Contudo, a prática das comunidades tradicionais do cerrado constitui um “bem cultural imaterial” protegido pela Constituição Federal de 1988 (art. 215) e práticas jurídicas legítimas voltadas à proteção de diretos culturais.

Igualmente interessante, a experiência Brasileira do Protocolo de Consulta Montanha e Mangabal, elaborada pelos Beiradeiros do Projeto Agroextrativista Montanha e Mangabal, realizada em 26 e 27 de setembro de 2014[21].

Segundo Torres (2008) a gente de Montanha e Mangabal constitui um povo beiradeiro situado às margens do Rio Tapajós[22] que resistiram à escravização por dívida do aviamento no período da borracha e tiveram seu território ocupado por uma empresa paranaense que possuía um título de terra questionado judicialmente pelo Ministério Federal que em 2006 ingressou com ação civil pública para obter seu cancelamento e garantir as comunidades tradicionais de Montanha e Mangabal os direitos aos seus territórios tradicionais.

No Protocolo Comunitário o povo de Montanha e Mangabal insurge-se primeiramente contra o planejamento governamental de construir barragens no rio Tapajós, sem sequer consultar o grupo. Exigem o cumprimento da consulta prévia, de “todos juntos”, com reuniões que devem ser na comunidade e em Itaituba, devem ser consultados os moradores mais antigos, os jovens, os professores, os filhos do beiradão que vivem nas cidades, devendo o governo procurar com antecedência mínima de três semanas, para acertarem juntos as datas facilitando a comunicação as famílias, devendo Governo avisar a associação pela rádio, à comunicação deve ser acessível, na linguagem do dia-a-dia beiradeiro, com a participação do Ministério Público Federal.

Chama atenção o fato em destaque no Protocolo da não aceitação da Polícia Militar, Federal, força nacional de segurança, Agência Brasileira de Inteligência, Polícia Rodoviária Federal, pois tal presença, no entendimento deste grupo, constituiria fonte de pressão. O Protocolo também não permite a obtenção de imagens sem a autorização por escrito da comunidade, devendo emitir cópias completas das gravações.

As reuniões foram divididas no Protocolo em: a) Reunião Informativa – Governo se reúne com a comunidade para tirar as dúvidas, em três locais: Vilinha, Machado e no município de Itaituba; b) Reuniões internas – O grupo discute com a presença dos Mundurukú, povo indígena aliado, possibilitando a reunião com outros parceiros, devendo ser realizadas quantas reuniões forem necessárias para a completude da informação; c) Reunião de Negociação – Após obtenção das informações suficientes discutimos com o Governo para que este ouça a resposta da reunião. As duas regras essenciais são: o tempo para a comunidade decidir e o Governo escutar as propostas e aceitar o que a comunidade quer, levando em conta a ancestralidade da comunidade (MONTANHA E MANGABAL, 2014). [23]

Merece destaque, também, o Protocolo Comunitário do Povo Munduruku, um instrumento jurídico de resistência apresentado como uma contra estratégica em face de empreendimentos Hidrelétricos e outros que atingem os povos indígenas, alteram o curso do rio, matam os peixes, inundam aldeias, afetam os aspectos espirituais e cosmológicos dos povos indígenas da região do Tapajós[24] (MUNDURUKU, 2014).

O Protocolo visa estabelecer regras para a obtenção da consulta prévia, tem como o primeiro princípio normativo de que a consulta antecede a decisão, ou seja, o Governo não deve consultar apenas quando já tiver tomado à decisão, a consulta precisa ser antes de tudo.

O Protocolo Munduruku busca a verdade da informação governamental assenta que o povo não aceita ser removido e propugna pela garantia do direito de consulta a todos enquanto uma unidade, deixando assente no documento, que associação não representa o povo, todos deverão ser consultados na língua Munduruku com tradutores de confiança do povo e os próprios Mundurukus devem coordenar as reuniões.

Este Protocolo expressa o “princípio da paciência” para que o povo possa decidir com calma e no seu tempo, sem pressão do governo ou de agentes privados, sendo o procedimento em três etapas: 1. Reunião do Plano de Consulta – Visa com o Governo o Plano de Consulta; 2. Reunião Informativa –  O Governo deve reunir com o povo aldeia por aldeia para tirar dúvidas e informar. O que não exclui a necessária Assembleia Geral convocada pelos caciques para decidir com base na maioria. 3. Reuniões Internas – Depois das reuniões informativas, o povo precisa de tempo para discutir as propostas e fazer reuniões com os parceiros sem a presença do Governo. 4. Reunião de Negociação – É a quarta etapa, quando o povo já obtiver informações suficientes, esta reunião contará com a presença do Governo e dos parceiros, devendo o Governo ouvir a proposta dos Mundurukus, mesmo que ela seja diferente da do Governo, não podendo haver “chantagem” com os direitos já conquistados e com possibilidade de veto da proposta do Governo (MUNDURUKU, 2014).

Outra experiência destacada é a construção do Protocolo Comunitário do arquipélago de Bailique[25] que objetiva o empoderamento da comunidade para dialogar com o poder público e privado objetivando a conservação da biodiversidade, uso sustentável e repartição dos benefícios advindos do acesso aos conhecimentos tradicionais e patrimônio genético. O Protocolo prioriza três áreas fundamentais, primeiramente, visa o fortalecimento das organizações sociais e conservação da biodiversidade, neste sentido, foi criado um Comitê composto de parteiras, benzedeiras e curandeiras para discutir a identidade da comunidade, uso dos recursos naturais, a governança, representatividade, registro e catalogação dos conhecimentos tradicionais, modos de manejo dos recursos naturais entre outros assuntos[26].

Estas experiências denotam o caráter aberto do Protocolo Comunitário, no qual cada especificidade de acesso e uso do patrimônio genético da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais pode gerar um novo protocolo, haja vista que este protocolo contemporâneo ao acesso carrega as experiências anteriores que vão se acumulando, possibilitando o aperfeiçoamento das normas internas dos povos indígenas, comunidades e agricultores tradicionais e a adaptação às novas situações que surgem.

Mais recentemente, foi aprovado pela Comunidade Quilombola do Abacatal, na Região Metropolitana de Belém, o “Protocolo de Consulta dos Quilombolas de Abacatal/Aurá”[27], fruto das constantes pressões sofridas pelo território quilombola do Abacatal, localizado em região que sofre fortes influências das políticas urbanas de mobilidade, implantação de projetos de moradia, extração de minerais para a construção civil e, até mesmo, a proximidade com um aterro sanitário que operava irregularmente.

O protocolo do Abacatal situa fortemente a questão no contexto da resistência cultural, além de aportar importantes bases para a compreensão dos distintos processos e valores em disputa, ao afirmar “Para nós, a terra que nos dá morada e alimento é nossa mãe. Os igarapés, a floresta e todos os animais com os quais compartilhamos nossa história não são mercadorias, para nós são parte que não podem ser separadas”. Ao mesmo tempo verbalizam sua indignação com as opções feitas que impactaram até então seu território ressaltando

Vivíamos em paz, mas eis que chega o “progresso”, a urbanização que exclui, e com isso sofremos toda sorte de mazelas e de ameaças à nossa comunidade. Nossas terras já foram invadidas, vendidas e nossas casas derrubadas. Lutamos, resistimos, vencemos. Agora nossos igarapés e o ar que respiramos estão poluídos pelo aterro sanitário (que para nós é um lixão) e pelo despejo de esgotos de condomínios. Na estrada que dá acesso à nossa comunidade retiram aterro e depositam lixo às suas margens. Estamos resistindo e não iremos ser derrotados.

 Neste protocolo consta a definição dos passos a serem dados e também a referência clara aos que devem ser consultados e as hipóteses em que a consulta é cabível. Para os quilombolas do Abacatal Mulheres, Homens, Crianças, Adolescentes, Jovens, Idosos, Agricultores, Universitários, Pessoas com Deficiência, Grupos Culturais, Grupos Religiosos, Famílias do Sitio Bom Jesus e ribeirinhos do igarapé Uriboquinha que estejam dentro do território tradicional devem fazer parte da consulta.

5          CONCLUSÃO

Os Protocolos Comunitários constituem uma fundamental estratégia de resistência e afirmação dos direitos consuetudinários dos povos indígenas, comunidades e agricultores tradicionais. Possibilitam o emponderamento social e individual dos sujeitos que constroem a ação coletiva e se capacitam junto aos parceiros para obterem informações necessárias ao debate, ainda que o Estado seja recalcitrante em informar previa e honestamente sobre os direitos em jogo.

Vale ressaltar que os protocolos comunitários podem até mesmo ser um instrumento destinado ao enfrentamento das múltiplas isenções se consulta prévia e repartição de benefícios previstos na Lei 13.123/2015, isto porque, mesmo nas hipóteses em que esta lei irregularmente buscou afastá-los, os protocolos comunitários podem ser impostos como meio de exigi-los, por representarem direito costumeiro e consuetudinário fundamentados em tratados internacionais de direitos humanos, a teor da Convenção sobre a Diversidade Biológica, ao Protocolo de Nagoya assinado e com importante participação do Brasil nas etapas de negociação, Convenção n.º 169 da OIT e Declaração da ONU sobre o direito dos povos indígenas. Direitos convencionais que asseguram a autodeterminação dos povos e o pluralismo jurídico, com positivação de direitos de autogoverno e autoadministração dos territórios, direitos estes que possuem em uma interpretação sistemática relação direta com a formulação de Protocolos Comunitários.

De fato, a Lei 13.123/2015 está eivada de graves inconvencionalidades por não observar os tratados internacionais de direitos humanos supramencionados, apesar de ser conhecido que os tratados que foram ratificados possuam um peso jurídico maior do que a própria lei, tanto ao estabelecer as hipóteses de isenção de consulta prévia e de repartição de benefícios, quanto por não trazer a lume princípios de direitos mais abrangentes como autodeterminação e pluralismo. Uma importante estratégia neste campo, pode ser a exigibilidade das normas previstas internacionalmente pela via dos protocolos comunitários, criando um ambiente de resistência e afirmação da autodeterminação.

Em outras palavras, propomos que pela via dos protocolos comunitários e com fundamento nos tratados internacionais de direitos humanos, os povos indígenas, comunidades tradicionais e agricultores tradicionais, exijam a consulta prévia e a repartição de benefícios, mesmo nas hipóteses em que tenham sido negadas pela Lei n. 13.123/15, tomando por base o direito à autodeterminação e pluralismo jurídico.

Assim, os Protocolos Comunitários como expressão rica de pluralismo jurídico e autodeterminação necessitam ser reconhecidos como normas jurídicas com no mínimo o mesmo status normativo que as leis ordinárias, por representarem a mais pura expressão e a fala jurídica sistematizada dos povos indígenas, comunidades e agricultores tradicionais de sua juridicidade, aflora, portanto, a democracia direta, direitos diretos de participação, equidade, reconhecimento do outro enquanto sujeito, ou seja, alteridade constitui os Protocolos uma riqueza jurídica, organizacional e cultural fundamental para repensarmos o direito Estatal, suas hierarquias e dogmatismo, refletirmos o modelo de democracia representativa e reconhecermos formas diretas de participação, formulação do direito e democracia.

 

  1. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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O Direito Faxinalense no Latifúndio das Leis: Estudo de Caso sobre a Territorialização de uma Comunidade Faxinalense da Região Metropolitana de Curitiba-PR[28]

The Faxinalense Rights in the Latifundio of Laws: Case Study on the Territorialization of a Faxinalense Community of the Metropolitan Region of Curitiba-PR

 André Hl Dallagnol[29]

  

Resumo: Este estudo de caso tem como objetivo analisar um conflito de terra que demonstra a territorialização faxinalense abordando a luta pelo direito a essa territorialidade específica, em oposição aos conceitos clássicos presentes no ordenamento jurídico brasileiro, apontando também os limites do sistema de justiça para a efetivação dos direitos desses povos, bem como a necessidade de novos modelos para a construção de uma sociedade verdadeiramente democrática, objetivando a interculturalidade.

Palavras-Chave: Direito, Territorialização, Faxinalenses, Jusdiversidade, Interculturalidade.

Abstract: This Case Study aims at analyzing a land conflict that demonstrates the “Faxinalense” territorialization approaching the struggle for the right to this specific territoriality in opposition to the classic concepts present in the Brazilian legal system, also pointing out the limits of the justice system for the effective of the rights of these peoples, as well as the need new model for the construction of a truly democratic society, aiming at interculturality.

Key words: Right, Territorialization, Faxinalenses, Jusdiversity, Interculturality.

1. INTRODUÇÃO

No presente estudo de caso procurarei apresentar os Povos Faxinalenses como sujeitos de direito (SOUZA, 2010), contando um pouco do histórico que os alçou a este patamar, bem como as suas implicações no campo jurídico (TOMAZONI, et al, 2015, SHIRAISHI, 2009). Em seguida apresentarei um breve relato de uma recente situação conflituosa que está em curso em uma comunidade faxinalense da região metropolitana de Curitiba-PR[30], demonstrando a insuficiência dos instrumentos jurídicos disponíveis para a garantia dos direitos dos Povos Faxinalenses no campo jurídico e a importância do protagonismo da comunidade para impedir as violações de seus direitos.

Diante dessa problemática, faço uma análise dos direitos faxinalenses imersos no ordenamento jurídico brasileiro, cuja matriz patrimonialista fundada na propriedade privada, e com viés eurocêntrico (PACKER, 2009 e SOUZA FILHO, 2003), corroboram para a criação do que chamo de “latifúndio das leis”, apontando também os limites do sistema de justiça para a efetivação dos direitos desses povos, bem como a necessidade de ruptura com velhos modelos para a construção de uma sociedade verdadeiramente democrática, objetivando a interculturalidade.

A pesquisa se dá no contexto de um caso concreto em que estou atuando, na qualidade de advogado popular, em uma comunidade faxinalense na região Metropolitana de Curitiba-PR. Essa situação envolve o modo tradicional de territorialização faxinalense, materializada principalmente pelo uso e gestão comum do lugar onde estão situadas essas comunidades, especialmente o “Criador Comunitário”[31], e que está sendo ameaçada por uma pessoa que se autointitula proprietária do imóvel.

A partir do caso concreto, procuro realizar um levantamento de teses, artigos e dissertações que abordam a história do movimento faxinalense, bem como as leis e políticas públicas conquistadas, além de documentos, cartilhas produzidas pelo movimento que retratam os conflitos que eles vem enfrentando historicamente e que se relacionam com o conflito atual.

Concluo afirmando que a luta desses “novos sujeitos” faxinalenses e outros povos e comunidades tradicionais contribuem decisivamente para a ruptura de velhos dogmas jurídicos.

Em relação ao estudo de caso, concluo com a potência da afirmativa emanada na palavra de ordem da Articulação Puxirão dos Povos Faxinalenses: “No direito ou na luta, essa terra é faxinalense”, evocando que a luta por direitos não vai parar.

2. OS POVOS[32] FAXINALENSES

Existentes, no território paranaense, desde tempos imemoriais é em 2005, por ocasião do 1º Encontro dos Povos de Faxinais cujo tema foi: “Terras de faxinal: Resistir em Puxirão pelo Direito de repartir o chão”, que a Articulação Puxirão dos Povos Faxinalenses organizou suas ações em cinco níveis de atividades (os Encontros Estaduais, as Coordenações Geral, Executiva, de Núcleos e Comissões Locais), e se autorreconhecem como grupo étnico diferenciado portador da identidade coletiva faxinalense colocando-se como sujeitos de direitos (BERTUSSI, 2010. p. 40 a 44).

Referidos sujeitos se colocam no cenário político local, regional, e, em muitos momentos, nacional, através do movimento social Articulação Puxirão de Povos Faxinalenses (APF).

Esse fenômeno ocorre como resposta às inúmeras pressões territoriais e processos de desterritorialização ou expropriação territorial que esses povos vêm sofrendo, especialmente a partir da década de 1970, com a migração dos sulistas e a ampliação do modelo de modernização agrícola, também conhecida como Revolução Verde (SOUZA, 2010. p. 199 a 243).

É nessa relação de conflito que essas pessoas começam a se organizar para afirmar suas especificidades enquanto grupo étnico diferenciado, com especial enfoque para o uso comum da terra e dos seus recursos naturais, em forte oposição ao modelo “moderno” que demanda a concentração de grandes porções territoriais através da propriedade privada (SOUZA, 2010. p. 199 a 243).

Assim adoto a visão de Frederick BARTH (1998), no sentido de que a identidade faxinalense e seu pleito enquanto povo deve ser vista através do prisma de categorias que não se limitam a raça ou origem, mas que se dão através de conflitos entre fronteiras étnicas, noção de pertencimento e dinâmicas de relações identitárias.

SOUZA (2010) aponta no mesmo sentido e procura analisar o fenômeno da emergência da identidade coletiva faxinalense através da análise Estrutural Construtivista proposta por BOURDIEU, e, através dela demonstra a passagem, dessas pessoas, da condição de objeto para sujeito sugerindo

uma inversão da lógica na qual os faxinais são tratados como produto das condições socioeconômicas de um tempo passado, para a compreensão que representam um ato deliberado por agentes faxinalenses que atribuem a essa modalidade de uso comum da terra o sentido da sua existência social (SOUZA, 2010. p. 200).

O traço marcante da identidade faxinalense é o do uso comum da terra, mas é na maneira como esse uso comum se dá bem como através da auto-atribuição coletiva que vão se constituindo os elementos da identidade faxinalense, e isso se reflete na forma de organização e definição de regras do lugar – através de Acordos Comunitários; como se dão os processos educativos – conhecimentos que são transmitidos de geração para geração; como desenvolvem suas tecnologias próprias – os “valos”[33], “mata-burros”[34], “puxirões”[35], criação de animais “a solta”, em grandes extensões territoriais onde existem o “Criador Comunitário” e materiais para viabilizar esse modo de criação; formas de cultivar e realizar o extrativismo de erva-mate, pinhão e recursos madeireiros renováveis com baixo impacto ambiental; suas festas; espiritualidade; Em fim é como como se organizam social, economica, e culturalmente, e como exercem a territorialização do lugar onde estão situadas.

Com isso procuro me afastar das visões essencialistas que costumam situar as identidades coletivas dos Povos e Comunidades Tradicionais como algo idealizado e, portanto, possível somente em tempos passados, trazendo-as como processo presente e dinâmico relacionado a laços de lealdade, e solidariedade, típicos de laços familiares, mas para além da questão genética, ou biológica (GIMÉNEZ, 2006).

Desta forma reconheço essa identidade como produto da interação social realizada pelos próprios atores sociais, organizando-se e interagindo entre si (BARTH, 1998, p. 189) cuja origem está em tempos imemoriais, e que vem historicamente resistindo através de diversos meios para que permaneça possível e viável.

Sigo o mesmo caminho para afirmar, emprestando as reflexões de LARAIA (2003), que a cultura dos Povos Faxinalenses escapa de conceitos deterministas, como a questão geográfica e/ou biológica, não que não seja por elas influenciada, mas se constitui “em processo acumulativo, resultante de toda a experiência histórica das gerações anteriores”, o que vai se afirmando e confirmando através da transmissão dos conhecimentos adquiridos entre as gerações, e, através desses conhecimentos, formam a lente através da qual esses Povos veem o mundo.

Deve ficar evidente para o leitor, como afirma LARAIA (2003), que “todo sistema cultural tem sua própria lógica e não passa de um ato primário de etnocentrismo tentar transferir a lógica de um sistema para outro”.

Portanto os faxinalenses podem ser caracterizados como uma identidade étnica coletiva que se dá através da autoatribuição e que é de fundamental importância para a formação do mosaico sociocultural formador da sociedade brasileira e paranaense.

Trazendo o foco para a localidade específica dos Faxinais da Região Metropolitana de Curitiba, encontramos no Mapeamento Social dos Faxinais no Paraná (2009) a seguinte descrição:

Na Mesorregião Metropolitana de Curitiba, conseguimos percorrer duas microrregiões situadas ao sul de Curitiba, onde observamos uma grande concentração de faxinais, especialmente nos municípios de Mandirituba (15) e Quitandinha (13), respectivamente situados nas microrregiões de Curitiba e Rio Negro, no 1° Planalto Paranaense. Importa frisar que essas microrregiões situam-se em áreas de colonização antiga, denominados de campos curitibanos, isto é, a sua ocupação remonta ao período colonial, demonstrando com isso a persistência desses faxinais em face dos ciclos econômicos atuantes nessa região há mais de 2 séculos. Comprobatoriamente a estas informações, seguem narrativas obtidas nas entrevistas que descreveram ascendências e fatos históricos que alcançaram com segurança mais de 200 anos de existência das formas tradicionais de uso comum dos recursos naturais (SOUZA, 2009, p. 31).

É, segundo Luiz Almeida TAVARES (2008, p. 634), na prática da criação à solta que se encontra um dos elementos fundamentais para a formação da fração do território comunitário camponês faxinalense. E, segundo ele, é por isso que as áreas de criador comunitário se encontram localizadas estrategicamente nas matas e florestas mais abertas, ricas em árvores frutíferas e pastagem nativas, fundamentais para a criação de animais de pequeno porte, especialmente de porcos.

Em seu estudo TAVARES (IDEM) também identificou que os Povos Faxinalenses se baseiam em normas costumeiras, ou consuetudinárias[36] para formar uma sustentação jurídica, política, social e cultural onde são definidas.

A essas normas os próprios faxinalenses dão o nome de “Acordos Comunitários”, neles podemos encontrar regras sobre o autorreconhecimento faxinalense, as divisas dos faxinais, regras para elaboração de cercas nas áreas de Faxinal, regras para a criação – que definem quais animais podem e quais não podem ser criados na área do “criadouro comunitário”, a quantidade populacional de animais, regras de trânsito, de destinação de lixo, além de infrações aplicáveis em caso de desrespeito das regras dispostas no acordo comunitário, também encontramos a instalação da “Comissão Local”, instituição comunitária composta por moradores locais com competências relacionadas à fiscalização, apuração e aplicação de penalidades, e nomeação para composição do Conselho Gestor das Áreas Especiais de Uso Regulamentado – ARESUR[37], quando for o caso.

Os acordos comunitários se dão historicamente dentro das comunidades faxinalenses e vão sendo criados de acordo com as dinâmicas e conflitos sociais internos, ou seja, sempre que surge uma situação conflituosa a comunidade é provocada a chegar a um acordo de como agir nessas situações.

De acordo com a entrevista da Senhora E.T.[38] – Faxinalense da Região Metropolitana de Curitiba-PR, a entrada de pessoas de fora do faxinal mediante apropriação de terrenos na comunidade para fins de recreação ou de produção, os chamados “chacreiros” é extremamente prejudicial para a manutenção do uso coletivo das terras, vejamos:

O que mais prejudica é esses chacreiros que entram e cercam as áreas só para eles, roubam criação. Tinha as galinhas solta, mas agora tem que ter fechado. Nós somos os mais prejudicados, nós que moramo aqui dependemo das criação para se manter. A gente que já não tem terreno. Nós se mantemos com a criação. Dinheiro de porco, vendemo os porcos pra comprar as coisinha de casa, pras crianças ir pra escola. Já não temo estudo, não temo terreno de planta, se acabar, a gente tem que ir embora. Se terminá do que nós vamos viver. E. T., 67 anos.
(ARTICULAÇÃO PUXIRÃO DOS POVOS FAXINALENSES, 2008)

As principais reclamações dos faxinalenses da região Metropolitana de Curitiba relacionadas aos “chacreiros”[39] está relacionada à colocação de ‘fechos’[40] que impedem a circulação das criações animais, mas os faxinalenses ressaltam que existem “chacreiros” que respeitam as normas de uso comum, e lideranças relatam, inclusive, que algumas famílias chegaram como “chacreiros” e acabaram virando faxinalenses.

Porém, como relata SOUZA (2010, p. 250), os agentes faxinalenses historicamente se mobilizam contra intrusões em territórios de uso comum, mesmo que sejam propriedade privada, pública ou de terceiros, contrapondo-se através de instrumentos legais contra as diversas formas de pressão territorial, inclusive contra casos de grilagem.

Segundo SOUZA (2010, p. 249), foram organizados abaixo-assinados que datam de 1980, em defesa do “criador comum”, também existem acordos com prefeituras, “escrituras de uso coletivo” registradas em cartório, mais de uma dezena de ações judiciais, através das quais os faxinalenses buscam a retirada das cercas individuais, denominadas “fechos”, identificadas com mais intensidade a partir da década de 1990.

3. O CONFLITO

No presente estudo de caso, proponho a análise de situação recente relacionada à suspeita de grilagem dentro de uma comunidade faxinalense da região metropolitana de Curitiba-PR.

Lideranças da comunidade procuraram este pesquisador na qualidade de Advogado Popular, em abril de 2017, relatando que uma pessoa denominada V. S., estaria tentando entrar na comunidade com a intenção de realizar “fechos” em área historicamente utilizada coletivamente como “criador comunitário”.

Diante desta situação as lideranças locais solicitaram meus préstimos no sentido de verificar os documentos do referido imóvel, foram inúmeras tentativas infrutíferas junto ao cartório de registro de imóveis da comarca competente até que encontrássemos a documentação do imóvel.

A comunidade optou por se colocar em estado de alerta, e foram orientadas a solicitar a comprovação da propriedade do imóvel caso essa pessoa adentrasse o espaço da comunidade.

Em reuniões no âmbito da Associação Comunitária, a comunidade debateu a situação da área e, pela análise das atas é evidente a importância daquele lugar para a coletividade, bem como a preocupação em relação à possível apropriação dela com seu consequente fechamento, também foram relatados riscos relacionados ao impedimento de circulação de animais, de pessoas, danos ambientais, impedimento da realização do extrativismo de erva-mate, de madeira para uso doméstico, de pinhão, e até mesmo de pastagem nativa para seus animais[41].

Em agosto de 2017, a comunidade, finalmente, conseguiu obter uma cópia da escritura pública do imóvel, que data de julho de 1979, e confirma as informações relatadas pelos moradores, pois os nomes dos supostos “proprietários” do imóvel não apontam qualquer semelhança com o nome da pessoa que se intitulava proprietária.

Essas informações reforçaram a suspeita de que o Sr. V. S., em verdade, era um grileiro que pretendia se adonar da área, e, com isso, a comunidade se encorajou, mobilizando-se contra a ameaça de intrusão.

Em diversas reuniões junto às lideranças locais, este pesquisador foi questionado sobre as possibilidades jurídicas de proteção daquele território, uma das primeiras a ser debatidas foi relacionada ao instituto da Usucapião, forma de prescrição aquisitiva através da qual se adquire a propriedade de um imóvel pelo decurso de tempo no exercício da posse do mesmo.

De fato, em tese, os mais de 200 anos em que a comunidade utiliza o lugar, sem qualquer forma de perturbação, deveriam ser mais do que suficientes para que fosse reconhecida a propriedade do bem, porém, para que se possa chegar a esse resultado o ordenamento jurídico nacional carece de caminhos possíveis, pois desconhece, legalmente, formas coletivas de aquisição da propriedade rural, outra saída poderia ser o reconhecimento da posse através da Associação Comunitária, fundada no ano de 2006, porém, como comprovar juridicamente o exercício da posse através da Associação Comunitária?

Seguindo um parecer emitido, em 2011, pelo Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça dos Direitos Constitucionais do Ministério Público do Estado do Paraná, as possibilidades levantadas para a tentativa judicial de proteção da área foram as seguintes:

Abordagem Proposta
Do ponto de vista da propriedade: – Usucapião com base nos artigos 1378 e 1379 do Código Civil, sustentando o exercício incontestado e contínuo de uma servidão aparente, por mais de 20 anos, tendo em conta que os possuidores não detém título que comprove essa utilização;

– Interdito Proibitório com base no artigo 1.210 do Código Civil, sustentando o exercício da posse da comunidade e com justo receio de ser injustamente molestada;

Do ponto de vista Cultural e Ambiental (socioambiental), com base no artigo 216 e 225 da Constituição Federal, combinados com a Lei Estadual 15.673/2007: – Tombamento: conforme relatado no parecer, este é o ato pelo qual o poder público declara o valor especial, histórico, paisagístico, científico, cultural, artístico ou ambiental de coisa ou lugar e a necessidade de sua preservação. Os efeitos desta modalidade incluem a desapropriação, ou a perda do direito de propriedade sobre o imóvel, o que pode afetar o contexto social dinâmico da comunidade.

– Desapropriação: “procedimento administrativo através do qual o Poder Público compulsoriamente despoja alguém de sua propriedade e a adquire para si, mediante indenização, fundada em interesse público” (MELLO, 1987, p. 258)

– Inventário: pode ser definido como relação oficial dos bens culturais, ainda não recebeu regulamentação, mas pode ser promovido para funcionar como fonte de conhecimento das referências identitárias previstas constitucionalmente;

– Registro: ato de inscrever ou lançar em livro especial;

– Vigilância: Não é um instrumento, mas uma obrigação de atenção, um dever estatal de ser vigilante pela conservação do bem cultural, tendo o direito de inspeciona-lo sempre que entender conveniente; (SOUZA FILHO, 1997, p. 49)

– Outras formas de acautelamento e preservação: consubstanciadas na possibilidade de Ação Popular, com base nas Leis nº. 4.717/1965 e 6.513/1977, que outorga a qualquer indivíduo a possibilidade de acionar esse instrumentos na defesa de bens públicos quando sua integridade estiver comprometida por ato ilegal praticado por autoridade pública e Ação Civil Pública, que busca a reparação efetiva de danos causados aos bens culturais e interesses coletivos em geral e pode ser proposta por pessoas jurídicas de direito público, pelo Ministério Público e pelas associações civis criadas a mais de um ano e que tenham, em seus estatutos a finalidade de realizar a proteção aqui analisada.

Fonte: Parecer do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça dos Direitos Constitucionais do Ministério Público do Estado do Paraná, 2011, p. 10-12.

É fato que, no exercício argumentativo, inúmeras possibilidades se abrem para tentarmos encontrar a “natureza jurídica” mais adequada da relação estabelecida, mas todas elas não escapam à realidade de que o ordenamento jurídico brasileiro não dá conta de responder, com segurança, as demandas específicas dos Povos e Comunidades Tradicionais quando se trata de direitos territoriais.

Qualquer tentativa neste sentido estaria condicionada à aceitação do dogma da “completude” do sistema jurídico (SHIRAISHI, 2009, p. 21), e a opção pela judicialização, neste caso, pode significar uma batalha interpretativa extremamente morosa, e aqui filio-me à noção de campo jurídico definido por BOURDIEU (1989) como o espaço de “concorrência pelo monopólio do direito de dizer o direito”.

De outro lado não havia escolha para a comunidade diante dos crimes ambientais que foram cometidos pelo intruso, e foi nessa medida que optamos por formalizar um procedimento não judicial, consistente no registro de um Boletim de Ocorrência, mas que foi negado pela autoridade policial sob o pretexto de que não poderia ser realizado de maneira anônima ou em nome da Associação Comunitária. Por isso, acabamos por formalizar uma notícia de fato, perante o Ministério Público, local.

O caso sob análise ainda está em curso, mas o que procuro demonstrar, e isso ficará mais evidente nas conclusões, é que a atuação como advogado popular deve ocorrer de maneira estratégica, sempre em parceria com os sujeitos envolvidos nas demandas, para que não sejam suprimidas etapas importantes no processo de mobilização da comunidade, conscientização sobre seus direitos e os limites de pleiteá-los perante o poder judiciário, levando-se em conta, também, as potencialidades das saídas propostas pelos próprios sujeitos, mas sem perder de vista a necessidade da construção de uma nova forma de conceber o direito, a resposta para essa questão talvez esteja no conceito de jusdiversidade, proposto por Carlos Frederico Marés de SOUZA FILHO, conforme abordarei no próximo tópico.

4. Eito[42] e Direito qual a parte que cabe aos Faxinalenses no latifúndio das Leis?

Um levantamento preliminar coordenado pela Articulação Puxirão dos Povos Faxinalenses, Instituto Equipe de Educadores Populares (IEEP) e Projeto Nova Cartografia Social indicaram a existência de aproximadamente 227 faxinais no Estado do Paraná, com uma estimativa populacional de 40.000 faxinalenses (VANDRESSEN, BUTI & SOUZA, 2014, p. 37).

Entretanto, se comparados à quantidade de instrumentos jurídicos destinados à proteção da propriedade privada, são poucos os instrumentos jurídicos que dispõem essas comunidades tradicionais para garantir seus direitos, todos eles são frutos da histórica luta desses movimentos, mas a maioria desses instrumentos são relacionados à questão identitária, social, e até mesmo ambiental, já a questão territorial, que é central para esses movimentos, permanece sendo um desafio.

Nessa medida a realidade social desses povos vem sendo ignorada ora através de omissões, ora através de atos comissivos com intuito claro de encobrir a existência desses povos negando-lhes a condição de sujeitos de direitos e, por consequência, livrando os Poderes Públicos e interesses privados de responsabilidades perante esses povos, diagnóstico já realizado, em 2013, pela primeira Turma Recursal do Tribunal de Justiça do Paraná, sob a relatoria da Juíza Fernanda de Quadros Jorgensen Geronasso:

RECURSO INOMINADO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS. ALEGAÇÃO QUE ANIMAL DO VIZINHO INVADIU SUA  PROPRIEDADE E DESTRUIU PARTE DA LAVOURA. COMUNIDADADE FAXINALENSE. TERRITORIALIDADE RECONHECIDA PELO ESTADO. ANIMAIS CRIADOS SOLTOS. CARACTERÍSTICA DO GRUPO QUE NÃO PERMITE VERIFICAR O COMETIMENTO DE ATO ILÍCITO.  PARTICULARIEDADE DO CASO EM CONCRETO. ART.5º DA LJE INVOCADO. COMPLEXIDADE DA CAUSA RECONHECIDA. INCOMPETÊNCIA DOS JUIZADOS. FEITO EXTINTO SEM JULGAMENTO DO MÉRITO, NOS TERMOS DO ART.51, II DA LJE. SENTENÇA CASSADA. DECISÃO : Assim, o primeiro questionamento que se pode fazer é se razoável imputar a responsabilidade por dano causado por cabrito solto, quando a ausência  de delimitação do espaço é inerente ­ e imprescindível ­ para identificação cultural e étnica deste grupo.

Sendo assim, a grande questão a ser observada e trabalhada no Faxinal do Salso não é apenas a da saúde ou da sustentabilidade, tão criticada pelos antagonistas dos faxinalenses, pois ela nunca será ideal enquanto a territorialidade não for ideal. A grande questão é a do território tradicional. Então, é necessário que as autoridades busquem providências cabíveis para que a lei federal seja cumprida. A situação no Faxinal do Salso tende a se agravar tanto em aspectos ambientais e de saúde pública quanto em relações sociais enquanto o poder público em Quitandinha ignorar a existência dessa comunidade, e ignorar um território tradicional, de um povo tradicional. Por outro lado, será a justa legislação municipal que impulsionará o projeto de estabelecimento das garantias territoriais asseguradas pela legislação federal.

(TJPR – 1ª Turma Recursal – 20120004467-8 – Rio Negro –  Rel.: FERNANDA DE QUADROS JORGENSEN GERONASSO –  J. 21.03.2013)

Este cenário fica ainda mais evidenciado na fala do Sr. A. S. de B., Coordenador do Núcleo da Região Metropolitana de Curitiba da Articulação Puxirão dos Povos Faxinalenses:

vale lembrar o Pais em que vivemos, onde as leis em sua maioria são criadas de cima para baixo, muitas defendendo o interesse dos chama- dos “Grandes” da sociedade e as leis que nos amparam por sermos co- munidades tradicionais temos que lutar constantemente para torná-las melhor conhecidas por até quem faz parte do direito ou são doutores do direito, onde em diversas delegacias sequer registram B.O.s, que os faxi- nalenses necessitam de registrar por ocasião de roubo, danos dos animais, onde a pessoa que está na delegacia cujo trabalho dela é ouvir os faxinalenses e registrar o B.O, ela já começa a nos questionar em que está amparado nosso modo de vida? O que comprova a existência do faxinal? Chegam a dizer que “isso não dá em nada”, já julgam a causa sendo que não é o papel deles, mas tudo em nome da tal “propriedade privada” e nem levam em conta ou sequer se interessam em saber mais sobre o uso coletivo, a vivência solidária de nós, faxinalenses. Vale ressaltar também as ameaças de morte sofridas por várias lideranças faxinalenses, que não são levadas muito a serio, nem tomadas as providências para proteção das mesmas. Pois estamos lutando por nossos direitos, defendendo a comunidade faxinalense. Direitos esses que constam no papel por meio de Leis e Decretos, amparando nosso modo de vida, mas infelizmente não são respeitados, reconhecidos ou até pior, são simplesmente ignorados pelos que fazem parte do poder público e pelos que são formados em direito e deveriam atuar firme, defendendo e garantindo os nossos direitos.[43]

Através deste depoimento temos a dimensão clara da percepção dos Povos e Comunidades Tradicionais na construção do Direito. Porém não podemos ignora-lo, devemos entende-lo também como espaço a ser ocupado e democratizado, conforme defende Bruna Maria Wisinski TOMASONI, et al (2015, p. 1026):

O direito como arma do povo se encontra na ação desafiadora dos movimentos sociais que buscam a satisfação das demandas que a comunidade percebe em sua vivência coletiva. Os faxinalenses, quilombolas, trabalhadores urbanos, entre outros grupos marginalizados, tomam consciência das agressões que sofrem e passam a buscar o direito, não como forma de alienação, mas como ação política libertadora – ainda que nem sempre observada em seus limites – das armas que os unem ao explorador. (TOMASONI, et al, p. 1026)

Nesse sentido sigo a conclusão adotada por TOMASONI, et al, ao citar Jesús Antonio de la Torre RANGEL (2004), quando afirma que “no atual estágio de desenvolvimento, não se pode abrir mão completamente do direito, sendo uma tomada crítica o mecanismo de intervenção ao estilo do uso combativo do direito (dentro da tradição daquilo que se chamou “positivismo de combate”)”.

Porém, sem abandonar a disputa no campo do direito, esses povos e comunidades tradicionais vem resistindo historicamente em campos que não se limitam ao judiciário, muitas vezes contrariando as interpretações jurídicas, econômicas e sociais, que anunciavam o fim do “sistema faxinal”, resistem e emergem como sujeitos de direitos provocando rachaduras no dogma jurídico da completude do direito, e também a necessidade da atualização da discussão jurídica tomando como foco a primazia dos agentes sociais o que encontra alicerce na Convenção 169 da OIT, trazendo os indivíduos e os grupos sociais aos quais pertencem para o foco (SHIRAISHI, 2009, p. 17).

Nesta linha de raciocínio, ao emergirem como sujeitos de direito, os faxinalenses passaram a invocar dispositivos jurídicos nacionais e internacionais para o seu reconhecimento.

O “eito” encontrado para a luta dos movimentos sociais para a criação do direito de ser e estar faxinalense em seu território, no campo legislativo, se dá através da Constituição Federal de 1988, diante da sua pretensa abertura para o “pluralismo jurídico”, mas também, e principalmente, em 2004, através da ratificação da Convenção 169 da OIT, resultado da luta dos movimentos indígenas da América Latina, que rompe com a estrutura integracionista da Convenção anterior e traz, em seu conteúdo, as bases para a interculturalidade com conceitos inovadores como o autorreconhecimento, novas dimensões de direitos territoriais e o direito ao consentimento livre, prévio e informado.

Ao ser ratificada, através do Decreto Legislativo 143/2002, e promulgada pelo Decreto 5.051/2004, a Convenção 169 da OIT passa a trazer o caráter vinculante[44] dos direitos territoriais, e o direito à consulta livre, prévia e informada, direitos que somados, apesar de estarem decompostos no corpo da Convenção, conduzem ao direito a autodeterminação ou livredeterminação dos Povos e Comunidades Tradicionais (LIMA, 2017).

Essa é a noção que mais se aproxima do conceito de jusdiversidade, defendida por Carlos Frederico Marés de SOUZA FILHO (2010, p. 191), definido como “a liberdade de agir de cada povo segundo suas próprias leis, seu direito próprio e sua jurisdição”, e assim esses povos passam a deter autonomia cultural, conforme defende LITTLE (2002, p. 41) tendo como foco o direito a “uma participação direta nas decisões sobre o destino dos recursos naturais contidos no seu território e, igualmente importante, controle sobre os recursos culturais do grupo (língua, organização social, práticas tecnológicas, etc.)”. Pra isso, LITTLE destaca que deve ser garantido a esses povos autonomia nos planos Político, Econômico e Simbólico.

Esse caminho, também seguido por SHIRAISHI (2009, p. 21), contribui para os operadores de direito apontar a incompletude do sistema jurídico, tornando-o permeável às diversas formas de organização social.

Nesse sentido, é possível interpretar que a Constituição Federal teria optado por uma “sociedade pluralista” o que impõe ao direito e aos seus operadores o acolhimento das distintas demandas, oriundas dos diversos povos que compõem o mosaico de etnias que formam a sociedade brasileira.

Nesta esteira, defender a identidade faxinalense, e seus modos de ser, fazer e viver (artigo 215 e 216 da Constituição Federal), é, também, defender o direito à diversidade que só é possível através da construção de uma democracia social real, ou seja, que conte com a participação das diversas identidades étnicas e coletivas que compõem a sociedade brasileira, o que se materializaria na radicalização da democracia no sentido de se alcançar uma democracia intercultural (LIMA, 2017, p. 111-116).

Assim a incidência da Articulação Puxirão dos Povos Faxinalenses:

(…) se insere em lutas maiores que objetivam a “abertura” do Estado às realidades pluriétnicas, reprimidas com intensidade desde o período colonial em razão da imposição de arbítrios econômicos, culturais e sociais que se legitimaram pela violência física, e em especial a violência simbólica institucionalizada pela discriminação e negação social de grupos socialmente diferenciados, corroborada pelo imperativo de instrumentos jurídicos que fizeram reconhecer progressivamente o regime de propriedade privada como legítimo, subjugando a diferença contida nas expressões sociais heterogêneas até seu aniquilamento ou integração à ordem social dominante, através de mecanismos de repressão da população camponesa excluída dos processos econômicos e políticos. (SOUZA, 2010, p. 218)

A partir da organização em movimento social os Faxinalenses passaram a demandar a reinterpretação de dispositivos jurídicos já existentes, a aprovação de novos marcos legais, que reconheçam e garantam suporte para o atendimento de suas demandas perante o sistema de justiça, e começam a pleitear a proteção de seus territórios através do Decreto Estadual 3.446/1997, na modalidade de Áreas Especiais de Uso Regulamentado[45].

Para melhor compreensão, trago a noção de ecologia faxinalense, proposta por Taísa LEWITZKI (2015), através da qual ela apresenta a construção de uma política ambiental específica para as comunidades de faxinais no Paraná, por meio das Áreas Especiais de Uso Regulamentado, que criam uma espécie de Unidade de Conservação específica para proteger a forma diferenciada de ocupação territorial faxinalense, através do repasse de verbas públicas decorrentes do ICMS Ecológico, criado pela Lei Complementar Estadual nº. 51/1991, a que todos os municípios do Estado têm direito a partir da sua manifestação e comprovação da existência de áreas ambientais especialmente protegidas.

O conceito de Ecologia Faxinalense, proposto pela antropóloga, baseia-se em dois elementos chave, cultura e política, que oscilam em intensidade diante das diferentes escalas de poder onde são discutidos, aprofundando esses termos LEWITZKI, afirma a Cultura:

entendida quanto um modo de vida, em que práticas cotidianas de inteiração com a natureza desenham o sentido do faxinal, integrando elementos biofísicos e simbólicos, que associados a estratégias de resistência territorial são potencialmente conservacionistas. Reitero, que a resistência territorial é uma ferramenta de conservação visto que a perda de território configura uma ameaça constante ao equilíbrio ecológico nos faxinais, passo assim ao segundo elemento (LEWITZKI, 2015, p. 97-98).

E política, como:

O argumento político de conservação [que] se faz presente no discurso e na prática de vários atores, num primeiro momento o Estado subsidiado pela academia, embalado pelas reformulações globais sobre como conservar a natureza, como demostrei nos primeiros estudos sobre faxinais que resultaram na ARESUR. Estratégia atualizada e fortalecida pelos faxinalenses quando estes se organizam politicamente quanto movimento social e reivindicam seu papel quanto sujeitos protetores da natureza. (IDEM)

Diferentemente do reconhecimento do “Sistema Faxinal”, como uma forma de produção, o reconhecimento jurídico da existência coletiva dos Povos Faxinalenses enquanto grupo étnico distinto só acontece depois de muita luta e mobilização social, no ano de 2007, através da Lei Estadual 15.673/2007, que dispõe sobre o reconhecimento dos faxinais, dos modos específicos de sua territorialidade e dos acordos comunitários (BERTUSSI, 2010, p. 4,-44), ato contínuo foram aprovadas cinco leis municipais, quais sejam: Lei Municipal de Rebouças (1.235/2008), Lei Municipal de Pinhão (1.354/2007), Lei Municipal de Antônio Olinto (1.354/2007), Lei Municipal de São Matheus do Sul (1.780/2008).

Somam-se às conquistas da mobilização social faxinalense o direito de terem emitidas certidões de autorreconhecimento, junto ao Instituto de Terras, Cartografia e Geologia do Paraná, através das quais as comunidades faxinalenses elaboram um abaixo-assinado de autorreconhecimento faxinalense e recebem uma certidão atestando sua existência perante o poder público.

Os faxinalenses também passaram a ser reconhecidos a nível Nacional através da garantia de assento na Comissão Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, criada pelo Decreto Federal 6040/2007.

Nesse campo de disputa, o Instituto Ambiental do Paraná foi impelido a criar um procedimento interno denominado Plano Operacional Padrão (POP), em 2009[46], com o objetivo de regulamentar a fiscalização ambiental nesses territórios levando em conta o cumprimento dos Acordos Comunitários.

E, após um trabalho de mobilização intenso, conquistaram a criação do Conselho Estadual de Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais, com o reconhecimento da necessidade de políticas públicas específicas para esses grupos através da Lei Estadual nº. 17.425/2012.

Esses elementos, somados, formam uma espécie de cadeia lógica para a fundamentação jurídica dos direitos dos Povos Faxinalenses, fazendo ligações que vão desde as normas internas da comunidade – os acordos comunitários, passando por legislações municipais que reconhecem a identidade faxinalense e a aplicabilidade jurídica de seus acordos, legislações estaduais que garantem a proteção de seus modos de vida e a validade jurídica dos seus acordos comunitários, relacionando-os com dispositivos constitucionais e internacionais, possibilitando a utilização de mecanismos estatais para a proteção de sua identidade e territorialidade específicas.

Um traço marcante dos faxinais, ou da identidade faxinalense é a sua territorialidade específica que escapa da dicotomia entre público e privado, e incorpora elementos considerados como bens coletivos, ou de uso comum (CARVALHO, 1984, CHANG, 1988, TAVARES, 2008, PACKER, 2009, SHIRAISHI, 2009, BERTUSSI, 2009, SOUZA, 2010, SILVA, 2017), traço compartilhado por outros Povos e Comunidades Tradicionais tais como Povos Indígenas, Quilombolas, Pescadores e Pescadoras Artesanais, Ilhéus do Rio Paraná, Cipozeiros e Cipozeiras, entre outros.

Essa constatação coloca a pertinência do debate diante da inexistência de dispositivos jurídicos aptos ao reconhecimento e defesa desta forma de disposição territorial, em contraste com a própria base do ordenamento jurídico brasileiro que encontra no Código Civil a simbologia de uma sociedade que funciona a partir da propriedade privada criando um verdadeiro latifúndio legislativo que vai se espraiando para diversas áreas, inclusive a ambiental (SOUZA FILHO, 2003, PACKER, 2015).

Alguns teóricos, fora da área do Direito, se propuseram a debater formas diferenciadas de propriedade, destacamos aqui o trabalho do Sociólogo Luiz Henrique CUNHA (2004, p. 18) que propõe a existência de, pelo menos, quatro tipos básicos de propriedade, a saber: a. Acesso Livre; b. Propriedade Privada; c. propriedade comum; e d. propriedade estatal.

Na Constituição Federal, a propriedade privada está no rol destinado às cláusulas pétreas e encontraria flexibilidade somente pelo respeito à sua função social (SOUZA FILHO, 2003), referido marco é importantíssimo e fundamental para o litígio estratégico na perspectiva do “positivismo de combate”, pois coloca em cheque o absolutismo do direito de propriedade.

Porém, saindo do campo das ideias e partindo para o campo da prática, o que se percebe é uma dificuldade para o reconhecimento e aplicabilidade desses instrumentos, em situações que vão desde a negativa de um registro de Boletim de Ocorrência, nas delegacias, conforme visto anteriormente, até a ameaça de propositura de Ação para obter a declaração de inconstitucionalidade das Leis conquistadas até agora pelas comunidades faxinalenses.

Foi o que aconteceu na promoção de arquivamento de um Inquérito Civil[47], que buscava apurar a existência de “fechos” realizados em desacordo com os Acordos Comunitários de uma comunidade faxinalense de São Mateus do Sul-PR, mas o Promotor de Justiça, competente, invés de apurar a situação, pediu a declaração de inconstitucionalidade da legislação protetiva.

A promoção de arquivamento foi reformada pelo Conselho Superior do Ministério Público do Paraná em julgamento do recurso interposto pela Articulação Puxirão de Povos Faxinalenses, mas na avaliação da advogada popular que atuou comigo nesse caso, Flávia ROSSITO, “questionar a constitucionalidade dos direitos faxinalenses é desconsiderar e invisibilizar a existência dos povos tradicionais no Paraná.”[48].

O julgamento, ocorrido no dia 09 de março de 2018, trouxe uma decisão histórica porque muitas promotorias locais titubeavam sobre a aplicação e garantia dos direitos faxinalenses, mesmo previstos em Lei, e o voto vencedor lavrado pela Conselheira Relatora Mônica Louise de AZEVEDO, favorável à constitucionalidade da legislação faxinalense[49], é claro ao afirmar que a existência dos Povos Faxinalenses é uma “experiência de grande importância ecológica social, histórica e cultural [que] deve ser protegida pelo Poder Público, na perspectiva de constitucionalidade material da função da propriedade.”.

Portanto, o que se vê é um pequeno espaço de luta, muitas ameaças e importantes vitórias, no campo jurídico, mas que, diante do latifúndio das leis direcionadas à proteção da propriedade privada, e do avanço do regime proprietário sobre “bens comuns” por intermédio de novas leis (PACKER, 2015), parecem diminutas, e isso nos leva à reflexão sobre a necessidade de se discutir novas abordagens no campo do direito, procurando superar a abordagem quase exclusivamente teórico-dogmática do ensino jurídico (TOMASONI, et al, 2015, p. 1035).

De outro lado, é importante trazer à reflexão os limites ou a contradição de se propor o que Sandra NASCIMENTO (2013) chama de “constitucionalização dos direitos dos índios”, que pode servir de paralelo como alerta à luta dos Povos e Comunidades Tradicionais, pois dentro dessa perspectiva não devemos esperar respostas jurídicas que não sejam racialistas, conservadoras e positivistas, já que o constitucionalismo brasileiro “toma os paradigmas eurocêntricos e as vertentes teóricas estadounidenses para reproduzir o modelo do Estado de Direito Constitucional, silenciando o cenário político da América-Latina” (NASCIMENTO, 2013).

Nesse sentido “qualquer interpretação para a aplicação da constituição que não considere a autonomia e a autodeterminação indígena [e de outros Povos e Comunidades Tradicionais] é desprovida de legitimidade” (NASCIMENTO, 2013, p. 28), o que, por consequência, enfraquece a normatividade da Constituição Federal.

5. Conclusões: No Direito ou na Luta, essa Terra é Faxinalense![50]

Analisando o caso objeto de estudo à luz da histórica luta da Articulação dos Povos Faxinalenses, concluo que o campo jurídico também é um campo de disputa para os movimentos sociais dos povos e comunidades tradicionais, bem como que a entrada desses “novos sujeitos” tem poder suficiente para a ruptura de dogmas que se reproduzem dentro das faculdades de direito, no poder legislativo e no judiciário, o que nos leva à esperança da construção de uma democracia intercultural.

Nessa medida entendo que os operadores do direito estão sendo provocados, cada vez mais e por pressões cada vez maiores dos movimentos sociais a se decidir entre manter a estrutura positivista, racialista, e conservadora do Direito, e se reconhecer em guerra contra a diversidade étnica e cultural guardadas nos princípios de um estado que se propõe democrático, ou reconhecer esses povos como sujeitos de direitos e protagonistas da sua própria história, reconhecendo os inúmeros processos de resistência contra os atentados que sofreram e sofrem historicamente, promovendo uma profunda mudança social em campos que vão além do jurídico, mas que o permeiam profundamente.

De outro lado, verifico que apesar de poucos, os instrumentos conquistados historicamente pelos movimentos sociais, contribuem com a conclusão anterior, e também demonstram a importância de não depositar todas as expectativas no campo jurídico, mas sem abandona-lo construir com grupos de pesquisa, organizações não governamentais, advogados e advogadas populares, membros do Ministério Público e de pessoas que compõem os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, uma nova forma de aplicação do Direito.

Também provocando os operadores a colocar em prática os instrumentos conquistados através dessas lutas, seja taticamente, através do “positivismo de combate”, onde procuramos reduzir a assimetria de poder entre as partes envolvidas em conflitos sociais através de instrumentos jurídicos, mesmo que inadequados, seja estrategicamente ampliando o debate sobre a democratização do sistema de justiça, e da radicalização da democracia no Brasil.

Por fim, concluo que o caso estudado apresenta de maneira satisfatória a forma como esses povos vem resistindo historicamente contra a intrusão de estranhos em seus territórios, comprovando o caráter dinâmico da cultura e etnicidade, faxinalense, e a sua afirmação enquanto sujeitos de direitos, bem como a utilização de mecanismos próprios de defesa de sua territorialidade aliados a atuação de profissionais da área do direito no sentido de reduzir as assimetrias de poder e possibilitando que, no direito ou na luta a terra permaneça FAXINALENSE!

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ESTADO PLURINACIONAL DA BOLÍVIA: ENTRE O DESENVOLVIMENTO DAS FORÇAS PRODUTIVAS E O HORIZONTE DO VIVIR BIEN [51]

BOLIVIA’S PLURINATIONAL STATE: between development of productive forces and horizon “vivir bien”

 

Daniel Araújo Valença[52]

 

 Resumo:

Analiso a principal contradição intrínseca ao processo político em curso na Bolívia, em que o governo Evo-Linera argúi estar em curso um Proceso de Cambio hacia el Socialismo Comunitario. Se uma proposta socialista pressupõe o desenvolvimento das forças produtivas, o “socialismo comunitário” remete ao vivir bien, ou seja, à busca da emancipação humana em harmonia com a Madre Tierra. Há, portanto, uma contradição intrínseca que se encontra na natureza do próprio Estado Plurinacional e do Proceso de Cambio. Para dissecar o objeto, amparo-me no materialismo histórico-dialético. Analiso a história da Bolívia e de suas classes subalternas, para, desde então, apreender os caracteres do Estado Plurinacional e do Proceso de Cambio. Como instrumentos metodológicos, faço uso de revisão bibliográfica, entrevistas abertas e levantamento de documentos oficiais. Ao controlar excedentes, o Estado viabilizou-se como dirigente da economia e executou medidas destinadas a desenvolver forças produtivas, vias de comunicação e redistribuir renda. Porém, as ações extrativistas e o desenvolvimento de forças produtivas nem sempre condizem com o ideário de “Madre Tierra”. É uma contradição intrínseca ao Proceso. A indianização do Estado só é possível a partir da manutenção do atual bloco hegemônico, bem como ela por vezes choca-se com valores originários.

Palavras-Chave: Proceso de Cambio; Socialismo Comunitário; Vivir Bien; Madre Tierra; Estado Plurinacional.

Abstract: I analyze the main intrinsic contradiction of the political processes in curse in Bolivia, where the Evo-Linera’s government, is ongoing a Change Process in order to achieve the Communitarian Socialism. If the proposal of socialism presupposes the development of productive forces, the “Communitarian Socialism” refer to vivir bien, or, the demand of human emancipation in harmony with the Madre Tierra. There is, an intrinsic contradiction that is located in the nature of the own Plurinational State and in the Change Process. In order to dissect the object, I use the historical-dialectical materialism. Analyze the history of Bolivia and their subaltern classes, for, this way; learn the characters of Plurinational State and the Change Process. As methodological instruments, i use bibliographic review, interviews and official documents. With the control of surplus, the State was able to become the leader of the economy and implemented measures to develop productive forces, communication ways and redistribute income. However, extractivist actions and the development of productive forces not always conform to the conception of “Madre Tierra”. It is an intrinsic contradiction of the Process. The indianization of State it’s possible when comes to maintaining the current hegemonic situation, as well sometimes clashed with original values.

Keywords: Exchange Process; Communitarian Socialism; Vivir Bien; Madre Tierra; Plurinational state

1. Introdução

Busco, neste trabalho, analisar a principal contradição intrínseca ao processo político em curso na Bolívia, em que o governo Evo-Linera, o Movimiento Al Socialismo-Instrumento por la Soberanía de los Pueblos (MAS-IPSP) e as principais organizações camponesas indígena-originárias argúem estar em curso um Proceso de Cambio hacia el Socialismo Comunitario.

Se bem é verdade que uma proposta de socialismo pressupõe o desenvolvimento das forças produtivas, como ressalta Marx em seus escritos sobre a Rússia (MARX, ENGELS, 2013), o “socialismo comunitário” remete, também, ao Vivir Bien, ou seja, à busca da emancipação humana (MARX, 2009) em harmonia com a Madre Tierra. Há, portanto, uma contradição intrínseca que se encontra na natureza do próprio Estado Plurinacional e do Proceso de Cambio.

Para dissecar o objeto, amparo-me no materialismo histórico-dialético. Analiso a história da Bolívia e de suas classes subalternas, para, desde então, apreender os caracteres do Estado Plurinacional e do Proceso de Cambio. Como instrumentos metodológicos, faço uso de revisão bibliográfica, levantamento de documentos oficiais e entrevistas abertas. Estas foram realizadas com lideranças de movimentos sociais, intelectuais e membros do governo plurinacional.

            Para o desenvolvimento do presente trabalho, primeiramente resgato a formação social boliviana, a tessitura do Estado Plurinacional para, finalmente, voltar-me ao Proceso de Cambio.

2 A TESSITURA DE UM BLOCO CAMPONÊS-INDÍGENA-POPULAR NA SOCIEDADE CIVIL BOLIVIANA

A origem imediata das transformações ocorridas na Bolívia remete às consequências econômicas, políticas e sociais da reestruturação produtiva advinda das políticas neoliberais inauguradas em 1980. O Decreto 21060/86, de privatização das minas, proporcionou tanto a depreciação das condições objetivas de reprodução social quanto a reconfiguração das classes sociais (GARCÍA-LINERA, 2010). À época, milhares de mineiros transladaram-se ao Chapare e a El Alto. Levaram consigo a consciência de classe operária, enraizada desde a Revolução Nacional de 1952.

O Chapare destaca-se pela produção da folha de coca. Ocorre que, para acessar recursos de agências americanas – bem como atender aos interesses de multinacionais do agronegócio – o governo boliviano declarou guerra ao seu cultivo. A luta camponesa em torno da terra, neste contexto, encontrava na coca um elemento unificador, pois incorporava a defesa desta cultura originária e materializava a resistência à nova imposição estrangeira. Um conflito local e de cunho econômico-corporativo transcendeu à dimensão ético-política (GRAMSCI, 2002).

Mas, para além do legado mineiro, o Chapare também incorporou o indianismo, teoria inicialmente elaborada por Fausto Reinaga (TICONA-ALEJO, 2014). Este publicaria, em 1970, o Manifiesto del Partido Indio  e, em 1971, Tesis India (TICONA-ALEJO, 2014).  Em seus primeiros escritos, Reinaga realizou uma singular interpretação da Bolívia e territórios originários incaicos para recuperar seus elementos fundantes e defender uma nova possibilidade de desenvolvimento autônomo de seus povos e nações. Bebendo parcialmente das formulações de Reinaga, ainda na década de 1970, desenvolveu-se o indianismo katarista. Em seu interior, havia desde os “indianistas duros”, que rejeitavam qualquer assimilação ocidental, aos que aproximavam as questões étnicas e de classe, sendo estes a parcela majoritária. Em posição próxima à de Mariátegui (2010), o katarismo enxerga o camponês como índio. Este camponês, portanto, não é abstrato e atemporal. Se na Europa ocidental se materializava desde a propriedade privada particular e uma organização individual do processo de trabalho, o katarismo reconhece a particularidade do campesinato boliviano: este não passou pela individuação ocidental e preserva, mesmo que parcialmente, organização do processo de trabalho, da propriedade e de reprodução social próprios às comunidades originárias.  Por outro lado, inegável seria que, naquele momento, amplas massas indígenas também se identificassem como camponesas, bem como se auto-organizassem ao redor de seus sindicatos. O elemento comunidade, seja nos Ayllus ou sindicatos rurais, perfazia uma particularidade deste campesinato.

As organizações indianistas kataristas[53], ao lançarem, em julho de 1973, em cerimônia com ampla participação de aymaras e quéchuas, principais nações indígenas da Bolívia, o Manifiesto de Tiwanaku, forneceram bases para a posterior teorização e ação política com fins de descolonizar o Estado. O manifesto realizava uma crítica incisiva ao Estado republicano e colonial, bem como à Revolução Nacional de 1952, por esta mirar ao mestiçamento[54] da sociedade boliviana e não à afirmação de sua diversidade de nações e tempos históricos. O índio, como ser eminentemente comunitário, não foi visto como sujeito coletivo econômico e político, mas individualizável, a partir dos referenciais modernos. Não à toa, dentre as conquistas da Revolução Nacional de 1952 estavam o sufrágio universal, o fim das relações sociais de produção de tipo pré-capitalistas e o acesso à terra mediante a reforma agrária.

O Manifesto reconhecia a importância da reforma agrária levada a cabo pela Revolução Nacional, contudo apontava seus limites ao importar modelo organizativo e técnico-produtivo no processo de trabalho alheio à realidade boliviana[55]. Tal partilha de terras, de maneira dialética, seria parte das condições objetivas necessárias à conformação da organização camponesa que lideraria processos políticos no século XXI.

Por fim, no tocante a esse tema, cabe ressaltar que o manifesto terminava por concluir que somente a partir de um projeto político autônomo seria possível superar a condição indígena:

Tampoco creemos en la prédica de aquellos partidos que, diciéndose de izquierda no llegan a admitir al campesinado como gestor de su propio destino. Una organización política para que sea instrumento de liberación de los campesinos tendrá que ser creada, dirigida y sustentada por nosotros mismos […] Creemos que la única solución está en la auténtica organización campesina. El equilibrio entre los productos del campo que nosotros vendemos y lo que debemos comprar de la ciudad lo encontraremos en la correlación de fuerzas (PRIMER MANIFIESTO DE TIAHUANACO, 1973).

Ao contrário do indianismo “mais puro”, o Katarismo enxergava o índio como camponês e o campesinato indígena como possível sujeito revolucionário – sem fazer uso expresso desta categoria – em um país eminentemente rural. A ação política indianista deveria recuperar os mecanismos ancestrais dos Ayllus, constituir um sindicalismo rural autônomo e comunal, bem como desenvolver seu próprio instrumento partidário (TICONA-ALEJO, 2014) para, atraindo o apoio de outras frações[56] das classes trabalhadoras, construir a regeneração social da Bolívia. Desenvolveu-se, desde aí, portanto, a categoria “campesino indígena” (Informação verbal)[57] e um sujeito histórico que seria maturado até princípios do século XXI.

Ao este campesinato, objetiva e historicamente constituído pela Revolução Nacional de 1952, aproximar-se de sua identidade étnica, conformou-se uma perspectiva nacional-popular, que iria orientar as organizações sindicais do campo, a partir da década de 1990.  Por outro lado, os indígenas de terras baixas, povos e nações minoritários, desenvolveriam um horizonte indígena-comunitário (CUNHA FILHO, 2015), no decorrer da mesma década.

No processo de resistência às políticas neoliberais, as organizações de orientação nacional-popular se voltaram à construção de seu instrumento partidário. Criaram, então, o Instrumento por la Soberanía de los Pueblos- Movimiento Al Socialismo (MAS-IPSP).

Ao ultrapassar a fase de mobilização por demandas econômico-corporativas próprias e alcançar, progressivamente, a tessitura de plataformas ético-políticas que respondiam às contradições imediatas e mediatas do Estado boliviano (GARCÍA-LINERA, 2010), tal fração dirigente reuniu as demais ao seu redor e compuseram um bloco social de larga duração, exercendo direção intelectual e moral sobre as massas.

3 A CONSTITUIÇÃO DO ESTADO PLURINACIONAL DA BOLÍVIA E  OS IMPASSES NO INTERIOR DO BLOCO CAMPONÊS-INDÍGENA-POPULAR

Após três anos de processo constituinte, o governo Evo-Linera e as organizações sociais conquistam a aprovação a Constituição Política de Estado de 2009[58], a qual proclama o Estado Plurinacional da Bolivia. Fruto do encontro na história das classes subalternas bolivianas, ele representa a síntese de um repertório de levantamentos indígenas, operários, camponeses ocorridos ao longo de cinco séculos de espoliação (VALENÇA, 2017).

Por outro lado, se as elites oligárquicas, que lideravam um bloco burguês-imperialista-colonial (MOLDIZ, 2009), levaram o país à iminência de um golpe de Estado e guerra civil, com a derrota desta no chamado Punto de Bifurcación[59], as inúmeras contradições presentes no interior do bloco popular começaram a emergir:

[…] te crea una especie de cegueras cognitivas, o sea, a veces bueno, a veces malo; por ejemplo, del 2006 al 2008 a nadie se le ha ocurrido incluso hasta el 2010, 2011, “p.” pelearse mal y romper con el gobierno, ¿me entiendes? Porque tenías la presión de la derecha, entonces, tú decías, “p.” se notaba intuitivamente incluso que no podíamos pelear, yo tenía posición más autonomista y tú más capitalista pero eso tiene un límite. Cuando desaparece esto, la gente ya se enloquece hermano, ¿me entiendes? Entonces te peleas a muerte[60] (Informação verbal).

A CPE apontou para um Estado anti-imperialista e plurinacional: as riquezas naturais outrora vilipendiadas por multinacionais voltam-se, a partir daí, à redistribuição de excedentes para a garantia de novo patamar de reprodução social das classes subalternas bolivianas. Por outro lado, visualizava-se o plurinacional, não no sentido de reconhecer que a sociedade é multicultural, como o fizera a reforma constitucional de 1993, mas de atribuir ao Estado o caráter de plurinacional (GARCÍA-LINERA, 2010), o que significa uma indianização da forma Estado. Classe e etnia (ou o nacional-popular e o indígena-comunitário) entrelaçam-se no texto legal, como produto das lutas políticas concretas que desaguaram na nova CPE.

3.1 O Modelo da Economía Plural e as contradições no interior do bloco popular

A CPE, nos marcos das perspectivas anti-imperialista e plurinacional, estabeleceu a Economía Plural, com fins de eliminar a pobreza e a exclusão social, nos marcos do Vivir Bien (Art. 313). Para o ex-ministro das Finanças e Economia, Luis Alberto Arce Catacora, o “Modelo Económico Social Comunitario Productivo” ou a Economia Plural, prevista na CPE de 2009:

[…] es un modelo de transición hacia el socialismo, en el cual gradualmente se irán resolviendo muchos problemas sociales y se consolidará la base económica para una adecuada distribución de los excedentes económicos. En ningún momento se pensó en construir el socialismo de inmediato, el propio Carlos Marx – cuando habla de la Comuna de Paris – y Lenin, dan elementos que explican por qué no se puede realizar el tránsito mecánico del capitalismo al socialismo, hay un periodo intermedio (ARCE-CATACORA, 2014, p. 4).

A CPE atribui ao Estado a direção integral do desenvolvimento econômico e seu planejamento (Art. 311 e 316), determina que é prioridade do Estado a industrialização dos recursos naturais para a superação da dependência quanto a commodities e a constituição de uma economia de base produtiva e exportadora, em todo o território nacional, em harmonia com a natureza (Art. 311, 318 e 355), prevê que o investimento nacional será priorizado, frente ao capital multinacional (Art. 320), prevê a redistribuição dos excedentes econômicos para políticas sociais (Art. 306) e a proteção e promoção da economia comunitária de povos e nações indígenas originário-camponesas (Art. 306).

Ademais, com a nacionalização dos hidrocarbonetos – ocorrida em 2006 e elevada à condição de cláusula pétrea na CPE de 2009 – o governo Evo-Linera conseguiu inverter a apropriação sobre os excedentes produzidos em solo boliviano, em favor do Estado andino. Dessa maneira, na primeira nacionalização dos hidrocarbonetos, no governo de David Toro (1937-38), em torno de 11% dos ingressos decorrentes da produção voltavam-se ao Estado. Em 1969, na segunda nacionalização, sob governo de Alfredo Ovando, alcança 18% frente a 82% das multinacionais. Com a terceira nacionalização, mediante o Decreto Supremo 28701, 82% dos ingressos passam a ser retidos pelo Estado (ESTADO…, 2017).

Dessa maneira, o Estado, outrora facilitador da acumulação por despossessão (HARVEY, 2011), opera para a distribuição das riquezas socialmente produzidas. O modelo econômico adotado desde então é claramente de intervencionismo e direção estatal da economia, voltado à distribuição de excedentes a partir do extrativismo e com fins de industrialização dos recursos naturais. Dentre as várias políticas empreendidas, ressalte-se o reajuste periódico do salário mínimo, a determinação de pagamento de um 14° salário – por parte de entes públicos e privados – em exercícios de crescimento do PIB superior a 5%; políticas de redistribuição de renda – denominadas de bonos –, dentre outras com fulcro constitucional.

A partir de tais políticas públicas, segundo García-Linera

Quanto à distribuição de riquezas, reduzimos a diferença entre os mais ricos e mais pobres em 139 vezes: os 10% mais ricos tinham 139 vezes mais riquezas que os 10% mais pobres dos bolivianos. Esta diferença está reduzida a 40, de 139 a 40 […]. O petróleo caiu de 100 a 29 dólares e a economia caiu de 6 a 4-5, ou seja, não despencou. Isto devido à importância do mercado interno e do fortalecimento das economias comunitárias, das economias camponesas, das economias artesanais, do mercado interno. Conquistamos um feito há alguns meses. Há 10 anos, a economia brasileira era 96 vezes maior do que a boliviana; agora, é 45 vezes, ao redor disto. Segue sendo enorme, é verdade! Mas, em uma década, reduzir de noventa e algo para 45, é bastante. A economia chilena era 14 vezes maior do que a boliviana há dez anos, hoje é sete vezes maior (VALENÇA; PAIVA, 2017, p. 358).

O conjunto de medidas no campo da produção e redistribuição de excedentes, tomadas a partir de 2006 e com pilares fincados na nacionalização dos recursos naturais, portanto, teve o condão de alterar as condições de reprodução social da população boliviana. Desta totalidade, no campo se materializaram as maiores transformações, especialmente no tocante aos índices de pobreza, extrema pobreza e acesso a terra:

Gráfico 1 – Incidência de pobreza, por área, 1999-2014

Fonte: Instituto Nacional de Estadística; (p) Preliminar.

Gráfico transcrito e adaptado pelo autor.

Gráfico 2 – Incidência de pobreza extrema, por área, 1999-2014 (em porcentagem)

Fonte: Instituto Nacional de Estadística; (p) Preliminar.

Gráfico transcrito e adaptado pelo autor.

Contudo, percebe-se que, apesar dos avanços em termos de padrões de sociabilidade, persiste a Bolívia como país pobre e com grandes parcelas de sua população sem acesso a políticas públicas básicas, o que demanda mais extrativismo e mais obras de infra-estrutura.

No seio do bloco camponês-indígena-popular tal diretriz, todavia, não se revela consensual, havendo, periodicamente, choques entre o horizonte nacional-popular versus o indianista-comunitário. Se, durante a Constituinte, tal contradição era perceptível, porém secundarizada, tendo em vista o “inimigo maior”, o período de consolidação do Estado Plurinacional mostrou-se entrecortado por ela e com maiores dissensões até os dias atuais. De um lado, a afirmação do vivir bien, da Madre Tierra e da autonomia dos povos originários minoritários; de outro, a corrida contra o tempo para a alteração qualitativa dos índices econômicos e sociais do país.

Destas principais oposições entre os dois horizontes, destacam-se o caso de TIPNIS – Territorio Indígena y Parque Nacional Isidoro-Secure, a Represa del Bala e El Chepete.

O próprio García-Linera, termina por reconhecer a contradição instalada no país entre a questão social e o meio ambiente:

A terceira tensão era a questão social e o meio ambiente. Economia que satisfaça necessidades das pessoas, extrativismo temporal, ou proteção da “Mãe Terra”? Se somente proteges a “Mãe Terra”, que é tua base indígena, perfeito, mas se não tens como alimentar o povo, como construir um colégio, ou garantir a saúde, essas pessoas irão “cair em cima” de ti e reclamar onde está sua escola e seu hospital, e vai votar por quem sim promete a escola, o hospital, a rodovia ou um salário melhor. Mas, se somente se dedicas a isto, deixando de lado políticas de proteção do meio ambiente, então simplesmente estás assumindo um caminho no sentido de um Estado de bem-estar, desenvolvimentista, extrativista, já terás abandonado esta meta comunitário-comunista, esta rearticulação, esta nova forma de encontro metabólico entre natureza e ser humano (VALENÇA; PAIVA, 2017, p. 365).

Em verdade, a liderança política no interior do bloco camponês-indígena-popular, desde antes da eleição de Evo-Linera, apontava para a prevalência de uma orientação nacional-popular. Tanto as principais organizações sociais quanto o MAS-IPSP, incorporam mais esta perspectiva frente à indígena-comunitária.

De um lado, mostrava-se necessário o desenvolvimento de forças produtivas do país, para ampliar as políticas públicas de educação, saúde, distribuição de renda e a própria plurinacionalidade. De outro, foi a questão étnica o elemento unificador no seio das classes subalternas e, após a ascensão ao Estado, manteve-se como elemento aglutinador das, agora, classes dirigentes (VALENÇA, 2017).

É a nacionalização dos hidrocarbonetos de 2006 e a política de desenvolvimento das forças produtivas que fornecem a base material para as escolhas macroeconômicas, sociais e políticas realizadas após a ascensão do bloco camponês-indígena-popular. Ao controlar excedentes, o Estado viabilizou-se como dirigente da economia e executou medidas destinadas a desenvolver forças produtivas, vias de comunicação e redistribuir excedentes. Por outro lado, tal escolha também implica, frequentemente, no desrespeito ao vivir bien, princípio alçado à ordem constitucional e estatal, redundando em freqüentes conflitos socioambientais com povos originários minoritários. Tal contradição, contudo, revela-se intrínseca ao processo em curso e exige que movimentos e governo saibam enfrentá-la em cada caso concreto.

 […] si tú no desarrollas fuerzas productivas técnicas más o menos avanzadas, no vas a salir nunca del extractivismo. Ese debate del extractivismo o anti-extractivismo se lo maneja de una forma muy “boluda”, ¿no? O sea, Brasil que es la octava economía del mundo ha profundizado su perfil extractivista pero no es porque Lula es traidor, o sea, ‘p.’. ¿Porque qué va a hacer Brasil? O sea, es un campo que está definido por la división internacional del trabajo o sea, no lo define Lula. Y si Brasil no puede hacer demasiado, ¿qué va a hacer Bolivia hermano? Va a dejar de producir gas para que los ecologistas estén felices? No hermano. Ahora, por otro lado los cabrones estatalistas también se aprovechan de eso para hacer ‘c.’, también hay eso[61].

 

Se há uma contradição instaurada entre a perspectiva do Vivir Bien e a do desenvolvimento das forças produtivas, esta tampouco implica em o Proceso estar se aproximando de uma via nacional ao socialismo – o denominado “Socialismo Comunitário” ou “Socialismo Andino”.

O Proceso de Cambio, em verdade, foi exitoso em alterar o controle e apropriação dos excedentes produzidos pelas classes trabalhadoras bolivianas. Desde aí, foi possível o desenvolvimento de políticas públicas que alteraram o padrão de reprodução social das mesmas. Todavia, houve pouco progresso em termos de desenvolvimento do trabalho associado, bem como da economia comunitária. Esta passou a receber o apoio das chamadas “Empresas Sociales”, empresas criadas pelo governo e voltadas a impulsionar a produção comunitária – adquirindo safras mediante valores superiores aos ofertados por empresas privadas, minimizando o papel de atravessadores, etc. O surgimento de dezenas de empresas com esse caráter, contudo, ainda revela-se como ação tímida em termos de proporcionar à economia comunal relevância no aparato produtivo nacional.

Por outro lado, em termos de poder político, há experiências de aprofundamento dos instrumentos de democracia participativa – perceptível a partir dos inúmeros referendos e plebiscitos realizados ao longo de uma década e meia – do que a proliferação de mecanismos de organização de poder popular.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Bolívia vivencia um processo único em sua história. País submetido a cinco séculos de espoliação, é neste limiar do siglo XXI que suas classes subalternas se encontram, produzem um projeto político autônomo e constroem uma forma política estatal reflexo daquele.

Ao longo de mais de uma década, o outrora pobre país andino nacionalizou seus hidrocarbonetos e recursos naturais, empresas privatizadas de setores estratégicos e, a partir daí, criou todo um conjunto de políticas de redistribuição de excedentes. Ademais, impulsionou, de maneira incipiente, uma infra-estrutura mínima apta à circulação de pessoas e mercadorias.

Tais ações refletem a prevalência, no Proceso de Cambio, do horizonte nacional-popular frente ao indígena-comunitário. Porém, ambos são expressão do mesmo processo político e apenas a partir da convivência com esta contradição é possível dar-se um salto a mais nas transformações em curso no país. Não se trata de optar-se meramente pela via extrativista, mas, episódios como Tipnis não contribuem para o aprofundamento do Proceso de Cambio, ao contrário, o fragilizam a partir de sua essência.

Em verdade, as grandes transformações da humanidade derivam da ação política criativa, auto-organizada das massas, e não de ações governamentais. O pragmatismo dos “estatalistas” fere de morte esse potencial criativo das pessoas que, ao agirem politicamente, transformam a realidade e a si mesmas. A idealização e abstração dos “hiper-autonomistas” quanto às condições concretas da conjuntura, por outro lado, implicam no desconhecimento de avanços e em uma ação política descolada das condições objetivas, das concretas lutas pelo poder.

De qualquer maneira, novas rupturas revelam-se necessárias – para além da mera redistribuição de excedentes – ao aprofundamento do Proceso de Cambio hacia el Socialismo Comunitario.

Referências

  1. Livro (língua original)

GARCÍA-LINERA, Álvaro. Las tensiones creativas de la revolución: la quinta fase del Proceso de Cambio.  La Paz: Vicepresidencia del Estado Plurinacional, 2012.

MARIÁTEGUI, José Carlos. Sete ensaios de interpretação da realidade peruana. São Paulo: Expressão Popular/Clacso, 2010.

MOLDIZ, Hugo. Bolivia en los tiempos de Evo: claves para entender el proceso boliviano. Bolívia: Ocean Sur, 2009.

SCHAVELZON, Salvador Andrés. El nacimiento  del Estado Plurinacional de Bolivia: versión para el debate de la democracia intercultural. La Paz: CEJIS/Plural Editores, 2012.

  1. Livro (traduzido)

GARCÍA-LINERA, Álvaro. A Potência Plebeia: ação coletiva e identidades indígenas, operárias e populares na Bolívia. São Paulo: Boitempo, 2010.

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Volume VI. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

HARVEY, David. O enigma do capital: e as crises do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2011.

MARX, Karl. Para a questão judaica. São Paulo: Expressão Popular, 2009.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Lutas de Classes na Rússia. São Paulo: Boitempo, 2013.

  1. Artigo de periódico

ARCE-CATACORA, Luis Alberto. El Nuevo Modelo Económico Social Comunitario Productivo. Revista Economía Plural. La Paz, año 1, v. 1, p, 3-7, set 2014.

WOLKMER, Antônio Carlos; FAGUNDES. Lucas Machado. Tendências contemporâneas do constitucionalismo latino-americano: Estado plurinacional e pluralismo jurídico. Pensar, Fortaleza, v. 16, n. 2, p. 371-408, jul./dez. 2011.

VALENÇA, Daniel Araújo; PAIVA, Ilana Lemos de. ÁLVARO GARCÍA LINERA: UM RELATO DO PROCESO DE CAMBIO E DESAFIOS DA ESQUERDA MARXISTA LATINOAMERICANA: Entrevista com Álvaro García Linera, Vice Presidente da Bolívia. Revistas Culturas Jurídicas, v. 4, n. 8, p.355-372, maio 2017. Disponível em: <http://www.culturasjuridicas.uff.br/index.php/rcj/article/view/437/158>. Acesso em: 04 mar. 2018.

  1. Artigo de jornal

TICONA-ALEJO, Esteban. 41 años del Manifiesto de Tiwanaku de 1973. La Razón. La Paz. 13 jul. 2014. Disponível em: <https://goo.gl/qgqL3G>. Acesso em: 10 set. 2016.

  1. Tese ou dissertação

CUNHA FILHO, Clayton Mendonça. A construção do horizonte plurinacional: liberalismo, indianismo e nacional-popular na formação do Estado boliviano. 2015. 312f. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Instituto de Estudos Sociais e Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

VALENÇA, Daniel Araújo. Disjuntivas do Proceso de Cambio: o avanço das classes subalternas, as contradições do Estado Plurinacional da Bolívia e o horizonte do socialismo comunitário. 2017. 404 f. Tese (Doutorado em Direito). Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2017.

VII. Texto de internet

ESTADO PLURINACIONAL DE BOLIVIA. Ministerio de Comunicación. Informe Presidencial: Día del Estado Plurinacional de Bolivia. La Paz, 40p., 2017. Disponível em:<http://www.comunicacion.gob.bo/sites/default/files/media/publicaciones/INFORME%20presidencial%202017%20%20REDES.pdf>. Acesso em 10 de fev. 2017.

PRIMER Manifiesto de Tiahuanaco, 1973. Disponível em: <http://marianabruce.blogspot.com.br/2010/06/primer-manifiesto-de-tiahuanaco-1973.html>. Acesso em 07 dez 2016.

VIII. Legislação

BOLIVIA. Constitución Política del Estado Plurinacional de Bolivia de 2009. La Paz: Vicepresidencia, 2009.



Pluralismo jurídico e autonomias – contribuições dos zapatistas e da revolução curda para a refundação do direito[62]

 

Legal pluralism and autonomies – contributions of the zapatistas and of the kurdish revolution to a new foundation of the law

 

Alexandre Pinto Mendes[63]

Paolo Ricci[64]

Patrick Saigg[65]

 

 RESUMO:  O objetivo central do artigo é descrever as práticas dos movimentos zapatista e curdo no terreno da justiça e do direito e como elas impactam sobre a própria ideia de direito, tradicionalmente entendida sob a forma da estatalidade. Para fazê-lo, pretendemos mapear a literatura sobre as práticas jurídicas destes movimentos, com o intuito de estabelecer uma base de dados acerca dos trabalhos empíricos já realizados neste campo. Em ambos os casos, o pluralismo jurídico não é simplesmente um “fato” sociológico ou antropológico. O pluralismo jurídico representa neste contexto a refundação do direito fora dos parâmetros da estatalidade.   Aqui busca-se colocar em prática a ideia de autonomia, da qual resulta a possibilidade de um novo direito, destituinte das relações de dominação, opressão e exploração.

Palavras-Chave: Zapatismo; Revolução Curda; Autonomia; Justiça; Direito.

ABSTRACT: The main goal of this paper is to describe the pratices of the zapatista and  kurdish social movements in the terrain of law and justice and how they impact the idea of the law itself, traditionally understood as state-law. To do so we intend to map the literature about the juridical pratices of these movements aiming to estabilish a data-base of empirical work already done in this field. In both cases, legal pluralism is not just a sociological or anthropological “fact”. Legal pluralism represents at this context a new foundation of the law, outside the parameters of the state. They search to put into pratice the ideia of autonomy from wich the possibility of a new law arises apart from domination, opression and exploitation.

Keywords: Zapatism; Kurdish Revolution; Autonomy; Justice; Law.

1. Introdução

            No final da década de 1990, imaginou-se que chegara a crise final de uma ideia que havia dominado o pensamento político revolucionário no século XX, a saber, a de que o Estado seria o principal instrumento de transformação da sociedade, seja pela via da reforma, seja pela revolução. Mudar o mundo sem tomar o poder, título do célebre livro de John Holloway[66] (2002), parecia não ser mais uma ilusão romântica “pré-socialismo científico”, mas uma necessidade concreta para os movimentos sociais de contestação do capitalismo global, em busca da definição aqui e agora de um novo modo de socialidade diante dos fracassos da experiência socialista estadocêntrica.

            O chamado dos indígenas de Chiapas-México, a partir do levantamento zapatista de 1994, abriu a possibilidade histórica de construção efetiva de um novo mundo. Os zapatistas não apenas levantaram-se por direitos indígenas que desejavam ver reconhecidos pelo Estado mexicano, mas progressivamente foram construindo instituições autônomas que nos permitiram um vislumbre do “outro mundo possível” que afirmavam. Enquanto isso, no oriente médio, o movimento de libertação nacional curdo na Turquia e na Síria realizava inflexão que pode ser comparada ao chamado zapatista. Tendo como força dirigente o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), de origem marxista-leninista, o movimento social curdo na região passa por uma reformulação programática que o conduz a defender a ideia de que não é mais preciso lutar por um Estado-nação curdo, mas pela criação de instituições autônomas e pluralistas, baseadas na igualdade de gênero e na ecologia e, sobretudo, independentes das instituições estatais. Seu líder, Abdulah Öcalan, inspirado na ideia de uma síntese entre anarquismo e marxismo, chama este projeto de  confederalismo democrático. A revolução social iniciada no norte da Síria, na região de Rojava, nos escombros da guerra civil e da expulsão do Estado Islâmico, colocará esta ideia em movimento no seu sentido pleno, mas a sociedade curda vem construindo tais instituições como alternativa a repressão dos Estados-nação desde a década de 1990.

            Em ambos os casos, a produção de uma nova institucionalidade democrática e direta autônoma passa também pela construção de um novo sistema de justiça. Neste artigo, pretendemos descrever os dois experimentos de uma nova justiça em suas linhas gerais, com o objetivo de compreender, ainda que de maneira provisória e carente de aprofundamentos posteriores, quais são as inovações formais e substantivas em relação ao direito estatal alcançadas e os impasses na elaboração de uma nova teoria e prática do direito, considerando a efetivação destas instituições sob a permanente ameaça das forças da ordem. Ao final, levantamos alguns pontos para discussão que resultam da abordagem comparativa que utilizamos.

  1. O zapatismo e a construção da Justiça autônoma em Chiapas/México

2.1 Breve histórico das relações entre o Zapatismo e o Estado mexicano

           

            O contexto histórico desenhado pelos acontecimentos políticos ocorridos entre os anos 80 e 90 do século XX é fundamental para compreender o “trovão em céu azul” representado pelo levantamento zapatista de Chiapas[67], México. Num mundo onde supostamente a história acabara, um exército popular com pouco mais de dois mil homens, formado por campesinos e trabalhadores rurais advindos de comunidades indígenas mayas, se insurge de forma organizada para retomada de terras dos latifundiários e ocupa os prédios que sediavam as representações do governo oficial, para exigir o rompimento com a gestão estatal de parte do território de Chiapas, celebrando nesta data a instauração de 32 municípios autônomos agora sob administração e regência dos rebeldes no pleno exercício de sua autonomia e auto-organização[68].

O levante armado de 1º de janeiro de 1994[69] simboliza o início de um enfrentamento que é marcado por posteriores conflitos físicos entre o EZLN e o exército nacional mexicano que terminam por levar pouco mais de 150 vidas. Com o acirramento do conflito, organizações sociais[70] passam a reivindicar do governo mexicano uma saída pacífica através do diálogo com as tropas rebeldes, o que não significa que outros enfrentamentos não tenham ocorrido até a construção de um acordo[71]. Ainda assim, no ano seguinte, o congresso mexicano decreta a chamada LEY PARA EL DIÁLOGO, LA CONCILIACIÓN Y LA PAZ DIGNA EN CHIAPAS (EZLN, 1998, não paginado)[72], de 11 de março de 1995, que teve como objetivo estabelecer as bases jurídicas para um diálogo conciliatório em busca de uma solução pacífica para os conflitos iniciados em janeiro de 1994[73]. Finalmente, em 1996, foram então firmados os “Acordos de San Andrés”, no dia 16 de fevereiro, como forma de atender aos apelos da sociedade civil e dos próprios zapatistas. No acordo o governo mexicano se comprometia a alterar a constituição de modo a reconhecer e fazer constar no documento magno os direitos relativos à construção e ao exercício da autonomia indígena. Na prática o acordo foi reiteradamente violado por parte dos governantes mexicanos que da carta constitucional não alteraram nenhuma linha sequer. Sobre o fato, consta na Sexta Declaração da Selva Lacandona:

E nestes acordos os maus governos disseram que vão reconhecer os direitos dos povos indígenas do México, vão respeitar a cultura, e vão transforma-lo em lei na Constituição. Mas, depois de assinados, os maus governos se fizeram de esquecidos, passam muitos anos e nada de cumprir estes acordos. Ao contrário, o governo atacou os indígenas para obriga-los a recuar em sua luta, como em 22 de dezembro de 1997, data em que Zedillo mandou matar 45 homens, mulheres, anciãos e crianças no povoado de Chiapas que se chama Acteal (EZLN, 2005, não paginado).

Com o descumprimento dos acordos e posteriores ataques à comunidade por grupos paramilitares – culminando com o massacre de Acteal[74]– a situação das negociações de paz tornaram a regredir e de 1998 até 2000, os índigenas resistem e lutam como podem, intercalando sua luta à buscas por viabilizar o arrefecimento do conflito. Neste mesmo ano, ocorrem eleições no México e o PRI – Partido Revolucionário Institucional –, partido de situação a mais de 70 anos no país, perde o comando do executivo para o PAN – Partido da Ação Nacional –, assumindo na função de novo presidente Vicente Fox[75]. Pouco tempo depois, em março de 2001, os zapatistas organizam uma marcha conhecida como “marcha pela dignidade indígena”, que teve muito apoio de milhões de mexicanos e de outros países, e chegou até onde os deputados e os senadores, ou seja, o Congresso da União, para exigir o reconhecimento dos indígenas mexicanos (EZLN, 2005, não paginado).

Contudo, as principais demandas levantadas pelos zapatistas continuaram a ser ignoradas e dois anos mais tarde o movimento decide pelo rompimento total das relações com o governo e passa a aplicar unilateralmente o que se encontrava pactuado nos acordos do dia 16 de fevereiro de 1996, anunciando tal decisão com um comunicado dirigido ao povo do México e do mundo no dia 19 de julho de 2003 (EZLN, 2003, não paginado)[76]. O rompimento definitivo das relações com Estado marca o início da construção de instituições autônomas que abarcam todos os aspectos da vida das comunidades, desde o governo dos municípios autônomos e da autodefesa à educação e saúde. Nos debruçaremos a seguir sobre a produção de leis ensejada pelo movimento zapatista  e abordaremos a maneira como são ordenadas as três instancias possíveis para a resolução de conflitos (comunidades, municípios autônomos e as Juntas de Buen Gobierno), as penas aplicadas – e as formas de aplicação –, buscando estabelecer um panorama palpável de como a autonomia é construída neste âmbito específico da vida de qualquer sociedade que é a Justiça.

2.2 A Justiça Autônoma

            No caminho emancipatório do movimento zapatista, para além da resolução de diversos conflitos políticos que o movimento teve de enfrentar, a construção de uma estrutura jurídica autônoma se apresentava como mais um desafio a ser superado para a efetivação da autonomia requerida pelos povos em rebeldia. Desde o levante e com o início das retomadas de terra, o movimento dá início a uma larga produção legislativa – as leyes revolucionarias –  que passa a orientar o modo de produção da vida social a partir do rompimento com o capitalismo e do resgate das culturas indígenas. Passa a ser, portanto, fundamental compreender no que se diferencia o sistema de justiça autônomo do sistema até então posto aos povos pela lógica do Estado-nação moderno, tornando claro que “fazer justiça” para os zapatistas significa, antes de mais nada, fazer democracia.

Dos princípios que regem o governo autônomo zapatista nenhum deles é mais emblemático e fundamental do que o “mandar obedeciendo” – diretamente relacionado ao exercício da autoridade e à legitimidade para exercer na prática esta delegação que o povo faz àquele que ocupa cargos importantes na vida social e política da comunidade. Deste fundamento, se constrói a gênese da “estrutura normativa principiológica” que pode ser relacionado às primeiras leyes revolucionarias zapatistas, construídas ainda no período de enfrentamentos com o governo e nos primeiros passos para o anuncio da fundação dos municípios autônomos.  Num território autônomo zapatista a democracia não é uma, nem é exercício popular de um só dia. À eleição democrática dos representantes se segue um acompanhamento diário por parte dos povos no sentido de garantir que as funções às autoridade delegadas estejam sendo cumpridas a contento (REYNOSO, et. al., 2015, p. 207). Com isso, de acordo com Carlos Alonso Reynoso e outros:

Un primer fundamento democrático de la justicia autónoma zapatista se encuentra em la elección libre, directa y aberta de sus autoridades cuya permanência en el cargo está siempre condicionada al buen desempeño de sus funciones, a que obedezcan lo que el Pueblo manda. Un segundo fundamento democrático de la justicia lo constituyen los princípios que guían el trabajo de las autoridades autónomas, princípios que conocen todos los habitantes de los pueblos zapatistas y que reconocen hasta los enemigos de éstos que acuden em busca de justicia autónoma. Completan este funestamente democrático las prácticas comunitarias previstas para la aprobación de leyes y reglamentos, y para que las autoridades consulten a la asamblea del Pueblo cuando se presentan assuntos complejos o problemas difíciles de resolver. De esta manera democracia electoral-representativa y democracia comunitária se conjugan em la vida diaria de pueblos zapatistas y autoridades autónomas y convergen en la administración de justicia (REYNOSO et al., 2015, p. 207).

Por fim, aquilo que melhor expressa o caráter libertário e humano da principiologia zapatista em contraposição ao ideário hegemônico diz respeito à interpretação que aqueles dão à palavra liberdade. Existe uma relação importante a ser evidenciada que é a relação de liberdade com identidade. Liberdade como exercício da construção de sua própria identidade. Para eles isto tem significa finalmente poder governar e governar-se de acordo a seus modos, em sua geografia e nesse calendário (CHRISTLIEB, 2014, pp. 338-339). Para os zapatistas, de toda forma, o conceito de liberdade influi naquilo que se compreende como justiça e que, por consequência, se reflete na forma como esta justiça será feita, por quem será feita, através de quais órgãos será feita, como será estruturada para melhor atender ao interesse do povo[77].

                De 1994 até 2003 os municípios autônomos se comunicavam política e culturalmente sob a figura dos Aguacalientes[78], que até então poderiam ser considerados como a forma de representação dos povos naquelas comunidades, mas não de forma jurídica. Nesse sentido, contribui Paulina Férnandez Christlieb:

Eran municípios paralelos a los cosntitucionales. No recibían financiamento estatal ni recaudaban impuestos. Su pressuposto era precário, fruto de la cooperación de sus integrantes y de donativos de la solidariedade nacional e internacional. (…) Los municípios autónomos resolvían problemas locales de convivencia, relación e intercambio entre comunidades, y atendían a delitos menores. Em caso de delincuência, el castigo que se solía imponer era la reparación del daño (em vez de cárcel). La justicia que se aplicaba era la del derecho consuetudinário. También se aplicaban las leyes revolucionarias zapatistas, sobre todo la ley revolucionarias de las mujeres. La constituición de los municípios autónomos implico una fuerte labor participativa desde abajo. Se produjo uma especie híbrido entre formas tradicionales del autogobierno de los pueblos indígenas com elementos innovadores, sobre todo los relativos a los derechos de las mujeres. En cada comunidade la asamblea há sido el órgano máximo de decisión; pero se adoptó la modalidade de Consejo para la coordinación de las decisiones (Alonso, 2003a) (CHRISTLIEB, 2014, p. 171).

Em 2003, acompanhando o movimento de rompimento do diálogo entre os zapatistas e o governo mexicano, são criadas a figura dos Caracoles e das Juntas de Buen Gobierno, solicitados por 30 municípios de Chiapas sobre o controle do EZLN[79]. É a partir deste movimento estrutural que se configuram as formas até hoje mantidas da justiça rebelde. . Aos Caracoles foram assinaladas diferentes funções – ser como “la boca para sacar lejos sus palavras y escuchar la del que lejos este” – dentre elas, como já referido, sediar as Juntas – o primeiro órgão formal da administração dos municípios autônomos (CHRISTLIEB, 2014, p. 181). De modo explicativo, seguindo as palavras da autora aqui já referida:

En cada Caracol se crearon Juntas de Buen Gobierno, el primer órgano formal de adminitración de los municípios autônomos. A cada Junta se le construyó uma casa pra poder funcionar. El gran encargo que se les dio fue el de <<mandar obedecendo>>. Se les encomendo resolver los problemas de la comunidade y ser puentes entre las comunidades y el mundo. Se les dio el encargo de contrarrestar los desequilíbrios em el desarollo de los municípios autónomos y de las comunidades y de mediar em los conflitos que se presentaran tanto entre los municípios autónomos como entre éstos y los municípios oficiales. Outra de sus funciones era la cuidadosa atención de las denuncias contra los consejos autónomos por vialaciones a los derechos humanos, atendendo, investigando y encontrando la manera de que se corrigieran las protestas y as inconformidades. Las Juntas de Buen Gobierno debían vigilar la realización de proyetos y tareas comunitárias em los municípios autónomos; promover el apoyo a proyectos comunitários; estar atentas al cumplimiento de las leyes zapatistas; atender y guiar a la sociedad civil em sus visitas a las zonas rebeldes; promover proyectos productivos; instalar campamentos de paz; realizar investigaciones para beneficio de las comunidades. Outra función es promover y aprobar – de comum acuerdo com e Comité Clandestino Revolucionário Indígena – Comandancia General del EZLN (CCRI-CG) – la participación de membros de los municípios autónomos en actividades fuera de las comunidades rebeldes (CHRISTLIEB, 2014, p.181).

                Com isso, tem-se que o governo autônomo que vem construindo os zapatistas possuem 3 níveis: as comunidades, os municípios autônomos e as Juntas de Buen Gobierno. Estas instancias dialogam entre si e baseiam-se nos mesmo princípios para orientar suas atividades[80] (CHRISTLIEB, 2014, p. 344). Ao que nos interessa mais diretamente aqui, as características que mais se destacam sobre as formas de administrar a justiça nos territórios autônomos são: a) o caráter horizontal-vertical da figura da autoridade como consequência do princípio de “mandar obedecendo”; b) o componente democrático que corresponde ao fato da justiça – e outros serviços também – seres prestados de maneira gratuita aos povos das zonas autônoma e também para os não zapatistas; e c) o ponto das penas buscarem pela conciliação (acordos) e serem pagas com trabalho em contraponto à punição simples e esvaziada do cárcere. Para a administração da justiça as autoridades autônomas estão organizadas em três instâncias, que correspondem aos 3 níveis de governo, e estas instâncias intervêm sucessivamente na medida que não há um bom acordo.

            “Recorrer” ou “apelar”, para os zapatistas, é uma decisão que não cabe as partes, senão às autoridades que julgarão ser suficiente ou não, justo ou não, o acordo pleiteado. Em outras palavras:

Es decir, el paso de uma primeira a uma segunda o terceira instancia, no se da por decisión del inculpado que quisiera apelar de uma sentencia dictada, sino poruqe así lo deciden las autoridades cuando no han podido llegar a um acuerdo satisfactorio para todos, o cuando la gravedad del delito o la complejidad del caso lo amerita (REYNOSO, et. al. 2014, p. 218).

Por fim, sobre a progressão de instancias, nos auxilia ainda Reynoso quando cita a descrição que as autoridades do Municipio Autónomo San Manuel fazem do sistema das instancias autônomas:

La primera instancia es la comunidade poruqe tiene autoridades como Agentes y Suplente y Comisariado, ahí se puede resolver el problema. Cuando um problema no se puede resolver em la autoridade de la comunidad, pasará como segunda instancia a la autoridade del município autónomo. Si no se puede, la terceira instancia será la Junta de Buen Gobierno, y si no se ca a poder, se convoca a uma reunión extraordinária de las máximas autoridades de la Zona, que es la Asamblea Máxima, que la forman las autoridades de los cuatro municípios: Agente, Comisariados, Consejos, Comisiones de Honor y Justicia y Agraria, y la Junta. Ahí debe terminar porque están presentes todas las autoridades de la Zona” (REYNOSO, et. al., 2014, p. 218).

No que tange às penas e sua forma de aplicação, a justiça autônoma também de diferencia de forma antagônica daquela supostamente oferecida pelas instâncias oficiais do governo mexicano. De início, o primeiro apontamento a ser feito é com relação ao modo como a dosimetria de pena é feita, computava de acordo com o grau de culpabilidade do sujeito ativo – como na justiça oficial – divergindo, entretanto, na base sobre a qual será computada o tempo de pena, sendo completamente distinto, ainda, os tipos de pena aplicados ao indivíduo que comete um crime.

Outro ponto de relevante diferença é que a justiça, para além de ser gratuita e aberta também a não zapatistas, não trabalha nem estabelece penas que tem por substancia questões pecuniárias. Não se utiliza nem aceita dinheiro seja lá para qual finalidade for. O dano é pago – a depender do grau – majoritariamente com campos de trabalho coletivo. Os problemas mais graves passam por um processo de tramitação diferente, cabendo as decisões mais difíceis normalmente as Juntas de Buen Gobierno e excepcionalmente a Asamblea Máxima. Como já anunciado, a justiça autônoma busca em primeiro lugar restituir o dano sofrido ao invés de apenas punir o indivíduo para fazê-lo sofrer e com isso “pagar” por aqui que fez.

Ainda neste caminho, é necessário apontar para o fato de que, no que tange ao regime de aplicabilidade da pena, esta igualmente se diferencia por ter contida em sua prática os aspectos de humanidade intrínsecos ao modo de pensar zapatista. A distinção entre as justiça oficial e autônoma nesse sentido se dá então através da maneira como esta pena é aplicada e sobre quais condições se encontra o condenado no momento de sua execução, sendo possível ao condenado, além de receber visitas com maior frequência, ser alimentado e ser apoiado por seu familiares no decorrer do cumprimento da pena.

  1. Confederalismo democrático: a refundação do movimento de libertação nacional curdo e a revolução silenciosa em Rojava

3.1 Breve histórico das lutas do povo curdo

            Assim como no caso dos zapatistas, para uma compreensão mais precisa do que seria inovador na concepção de direito e justiça do povo curdo na Síria e na Turquia, torna-se necessária uma breve digressão histórica. Os curdos são “[…] o produto de milhares de anos de contínua evolução, assimilação de culturas e migrações introduzidas” na região que se entende hoje como Curdistão (PEIXINHO, 2010, p. 4). Considera-se que a primeira evidência da existência do povo curdo data de 6.000 a.C. (ÖCALAN, 2010, p. 11). Desde a conquista do fundador do império persa, “Ciro, o Grande”, a região do Curdistão permaneceu quase que ininterruptamente sob o jugo da dominação estrangeira: persas, gregos, romanos, bizantinos, árabes, turcos, mongóis, otomanos, britânicos e, após a retirada das potências imperialistas com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, encontram-se atualmente o jugo dos Estados-Nação que recortam o território curdo, estão hoje sob a sujeição dos turcos, árabes e persas, em seus respectivos Estados: “tanto a repartição do Curdistão quanto a essência dos regimes árabe, persa e turco constituíram obstáculos ao desenvolvimento social dos curdos destas regiões” (ÖCALAN, 2010, pp. 7, 17).

Atualmente, pode se considerar os curdos como o maior povo sem Estado do mundo, cerca de 30 milhões de habitantes espalhados pela região do Curdistão, território em torno de 450 mil km²[81] que compreende, sobretudo, a cordilheira de Zagros, estendendo-se por diversos países do Oriente Médio: Turquia, Síria, Irã, Iraque, Armênia e Azerbaijão; contudo, classifica-se como Curdistão todo território no qual foi e ainda é habitado pelo povo curdo[82] (PEIXINHO, 2010, pp. 4-5, 7). Os curdos são muitas vezes designados como “árabes do Iêmen” pelos árabes, “turcos das montanhas” pelos turcos e considerados pelos persas como seu “alter ego étnico” (ÖCALAN, 2010, p. 8). Tais atitudes são sintomáticas, demonstrando as constantes tentativas de assimilação da qual são alvos (MOREL, 2016, p. 9):

O Curdistão tem sido sistematicamente palco para tentativas de assimilação cultural por parte de potências hegemônicas estrangeiras. Os últimos cem anos de sua história, porém, tem sido os mais destrutivos. A implantação de estruturas de nação-estado modernas nos países hegemônicos e a criação de um sistema de domínio colonial do Curdistão agravaram ainda mais as tentativas de assimilação dirigidas à língua e à cultura curdas (ÖCALAN, 2010, p. 20).

Na Turquia, um dos lócus do movimento curdo que abordaremos, os curdos são cada vez mais objeto dessa tentativa de incorporação pela cultura hegemônica, por exemplo, com a proibição de manifestações culturais tradicionais e do idioma curdo, considerados como atos subversivos, assim como o consequente banimento da possibilidade das instituições educacionais utilizarem ou ensinarem o idioma tradicional curdo, fatores que exercem o efeito de paulatino desmantelamento da cultura curda (ÖCALAN, 2010, pp. 20-21). Além da questão das tentativas de assimilação cultural, por conta de sua localização estratégica no Oriente Médio e por ser uma região rica em recursos naturais, os curdos também são alvos das ambições das potências capitalistas (ÖCALAN, 2010, p. 16).

No início do século XX, com a assinatura do Tratado de Sèvres, decorrente da derrota otomana e o fim da Primeira Guerra Mundial, tomou força um movimento que reivindicava a formação de um Estado curdo, constando essa demanda em um dispositivo no referido tratado[83] (PEIXINHO, 2010, p. 51). Como é de se imaginar, tal dispositivo não foi cumprido pelas potências encarregadas de efetivarem tal missão, mormente negligenciada após a criação do Estado turco em 1923 (SOARES et al. 2017, p. 1). Surgiu, então, na Turquia (Curdistão turco), no ano de 1978, o PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão), seguindo princípios de cunho marxistas-leninistas, reascendendo com maior viço as reivindicações de libertação curda do domínio estrangeiro e criação de um Estado propriamente curdo, sendo tais lutas intensificadas com uma guerrilha de libertação nacional que se desencadeou no ano de 1984 (MOREL, 2016, p. 9).

Todavia, no final da década de 1990, após a queda do sistema socialista-soviético, há um rompimento desse movimento de libertação com o ideal reivindicatório de criação de um Estado-Nação próprio, despontando, em seu lugar, a proposta do Confederalismo Democrático, uma teoria de autonomia democrática baseada na ecologia, libertação de gênero e no anticapitalismo (TATORT, 2013, p. 19-20). O abandono da reivindicação de criação de um Estado curdo por esse movimento[84] diz respeito ao entendimento de que o Estado-Nação é um dos elementos fundamentais de perpetuação das opressões, tanto ideológica quanto política e econômica (MOREL, 2016, p. 9), não sendo, por essas razões, o caminho mais prudente para a construção de uma sociedade livre[85].

O Confederalismo Democrático pode ser caracterizado como sendo uma forma de “[…] administração política[86] não-estatal […] flexível, multicultural, antimonopolista e orientado para o consenso. A ecologia e o feminismo são pilares centrais[87] (ÖCALAN, 2016, p. 27). Não se pode pensar tal forma de gestão autônoma como um monólito imutável, mas como uma prática que “[…] se estabelece por um amplo projeto visando a soberania econômica, social e política, visando a criação de formas organizativas necessárias para possibilitar à sociedade um autogoverno” (MOREL, 2016, p. 10).

            Cabe ressaltar que, apesar de coincidirem com a adoção das ideias do Confederalismo Democrático, a dinâmica do Confederalismo Democrático no Curdistão do Norte (sudeste da Turquia) é diferente da dinâmica desse sistema no Curdistão do Sul (região de Rojava no norte da Síria, composta pelos cantões de Cirize, Afrin e Kobani). No caso do Curdistão do Norte, o Confederalismo Democrático é posto em prática no interior do Estado turco, existindo um paralelismo entre este Estado o modelo autogestionário curdo. Já na situação do Curdistão Sírio, a conjuntura política é distinta, pois, devido à guerra civil na Síria, o Estado  literalmente se decompôs da região onde os curdos adotaram o Confederalismo Democrático,  e a autogestão curda tornou-se a única referência de governo para as populações ali residentes, justamente pelo desaparecimento do poder do Estado naquela região.

A forma organizacional do Confederalismo democrático é de autoadministração política, nele todos podem se expressar nas reuniões locais, convenções gerais e conselhos (todas formas de assembleia popular): “esse entendimento de democracia abre espaço político a todos os estratos da sociedade e permite a formação de grupos políticos diferentes e diversos […] A política se torna parte da vida cotidiana” (ÖCALAN, 2016, p. 30). Em 2011, em uma assembleia que reuniu mais de 800 participantes dos mais diversos segmentos da sociedade curda, foi elaborado um documento com 8 dimensões da autonomia democrática, são elas: política, justiça, autodefesa, cultura, sociedade, economia, ecologia e diplomacia (TATORT, 2013, p. 27). Esse é um exemplo do que se intenta pôr em prática com o Confederalismo Democrático: um modelo de autogestão comunitária organizada “em conselhos abertos, conselhos de município, parlamentos locais e congressos gerais. Os próprios cidadãos são os atores de um auto-governo deste gênero” (ÖCALAN, 2010, p. 32).

            O sistema de direito colocado em prática nos territórios curdos pretende incorporar os princípios pluralistas, feministas, anticapitalistas e ecológicos da “nação democrática”, conceito que se refere ao aspecto ético-político do confederalismo democrático. Diante disso, é, sobretudo, um sistema que recusa a separação entre a ética e a política que afasta o direito  estatal da vida concreta das comunidades. Nas palavras de Öcalan:

“O direito democrático é baseado na diversidade. Mais importante ainda é o fato de que ele faz pouca referência à regulação legislativa e é um constructo simples. Através da história, o Estado-nação soberano é a forma de estado que desenvolveu a regulação legislativa ao maior grau, de maneira a eliminar a sociedade moral e política (…) Rejeitando a moral e a política, a burguesia recorre ao instrumento do direito, que dá enorme poder. Nas mãos da burguesia, o direito é uma arma poderosa. (…) As leis são, em certo sentido, os versos do deus-estado-nação. Ele prefere governar a sua sociedade por estes versos. É por esta razão que a nação democrática é sensível em relação ao direito, em especial o direito constitucional. A nação democrática é uma nação moral e política mais do que jurídica” (2016, p. 49).

3.2 O novo sistema de justiça em Rojava

             O sistema de justiça em Rojava tem seu embrião nos comitês de paz e consenso instituídos para autodefesa e resolução de conflitos dos bairros e comunidades curdas[88] sob a ditadura do Baath. Com a derrocada da influência do Estado Sírio (2011), e a posterior expulsão do Estado Islâmico da região (2012), tornou-se possível colocar em prática a proposta do Confederalismo Democrático sem a convivência com o Estado-nação, com a fundação de uma estrutura de Conselhos Populares que passaria a governar os cantões de Cirize, Afrin e Kobani. Logo após a liberação, foram instituídas comissões de justiça (ou conselhos de justiça, dependendo da tradução de dîwana adalet) inicialmente compostas por advogados e lideranças comunitárias, que se encarregaram de libertar presos políticos e recrutar juristas que romperam com o sistema de justiça Sírio para as comitês de paz e tribunais populares (AYBOGA, FLACH & KNAPP, 2016, p. 165).

             Quanto à estrutura, o sistema de justiça se articula pelos níveis territoriais e por matéria, sendo a comissão de justiça a instância vinculada diretamente aos Conselhos Populares e responsável pela organização dos diferentes componentes do sistema. No nível da comuna, do bairro ou às vezes das ruas, atuam os comitês de paz e consenso, que têm a tarefa de resolução de conflitos por mediação e dividem-se em comissões gerais e comissões de mulheres[89]. No nível das cidades, funcionam os tribunais populares (dadgeha hielo), compostos por juristas e não-juristas, cujos nomes são propostos em geral (não necessariamente) pela comissão de justiça e debatidos nos Conselhos Populares. Como instâncias recursais, o sistema conta com os tribunais de apelação – dois em Cirize e um em Afrin e Kobani – e com um tribunal regional para os três Cantões. Os casos criminais mais graves são discutidos diretamente nos tribunais populares, mas não há impeditivos formais para a discussão e rediscussão de um caso por todos os níveis.

            Finalmente, o sistema se completa com a jurisdição constitucional exercida pelo tribunal constitucional (dadgeha hevpeyman), responsável por garantir a aplicabilidade da constituição de Rojava, e com o parlamento judicial, instituição que visa realizar o controle do sistema como um todo para que “o sistema legal acomode às necessidades dessa sociedade em processo de democratização e altamente mutável” (AYBOGA, 2016, p. 148). Como os curdos não tinham um sistema legal e na verdade tinham sua existência social negada pelos Estados-nação (ÖCALAN, 2016, p. 50), cabe aos parlamentos judiciais promover a análise crítica do novo sistema judicial em face dos princípios constitucionais que se fundam na ideia de “nação democrática” desenvolvida por Öcalan.

            Do ponto de vista substantivo, o sistema realizou avanços notáveis sobretudo no campo do direito penal, tendo abolido a pena de morte  (AYBOGA, FLACH & KNAPP, 2016, p. 169) e mudado a lógica do sistema penal do punitivismo para a justiça restaurativa (AYBOGA, 2016. 153). Isto se verifica na prática com a busca do consenso mesmo em conflitos que envolvam violência, sendo a prisão efetivamente o último  recurso: as prisões se tornaram em grande medida centros de reabilitação, inclusive para os prisioneiros de guerra do Estado Islâmico, sendo abertas para a visitação de organismos internacionais de direitos humanos (AYBOGA, FLACH & KNAPP). Como resultado da maior organização da sociedade, Ayboga (Idem, p. 150) relata que o número de crimes baixou e, sobretudo, os chamados “crimes de honra” – nome patriarcal para a violência de gênero – com o trabalho do movimento de mulheres.

            O fato de que a sociedade em Rojava tenha conseguido um alto grau de organização “desde baixo”, levou em 2015 à realização de um experimento intitulado “plataformas de justiça”, como resultado de uma crítica às tendências centralizadoras que permanecem no sistema de justiça. Segundo Ayboga, Flach e Knapp (p. 170):

No outono de 2014 alguns dos tribunais populares passam a sofrer intenso criticismo. De acordo com os críticos, estavam começando a se assemelhar às cortes do sistema hierárquico de justiça. Ao invés de ampla participação social, um número pequeno de pessoas estava tomando as decisões como se tivessem algum poder especial (…). Uma longa discussão no verão de 2015 chegou à conclusão de que era necessário uma maior participação pública para resolução de conflitos comunitários. Para este fim, tomou-se a decisão de estabelecer ‘plataformas de justiça’. Agora, se o comitê de paz e consenso no nível da comunidade não conseguir resolver um conflito pode pedir à comissão de justiça que reúna uma plataforma de justiça. Para uma plataforma de justiça, até 300 pessoas, das comunas envolvidas, organizações da sociedade civil e movimentos sociais são reunidas para ouvir a apresentação e discutir um caso

            As plataformas de justiça não pretendem substituir os tribunais, mas são exemplos experimentação no campo da democratização do sistema de justiça.

 3.3 Conselhos e justiça no Curdistão do Norte

            Na Turquia, a situação do confederalismo democrático é bem diversa. Sofrendo intensa repressão do Estado turco, as organizações populares curdas têm que lidar com perseguições, prisões de lideranças e a criminalização dos conselhos populares em geral, além de dificuldades materiais de toda espécie (TATORT, 2013, p. 49). Nas localidades de maioria curda, os governos municipais tentam institucionalizar os conselhos e construir cidades democráticas, com igualdade de gênero e ecológicas (Idem, p. 50), mas os limites da institucionalidade altamente centralizada do Estado turco impõem obstáculos ao desenvolvimento de um projeto de autonomia.

            Em que pesem as dificuldades, o caráter excludente e discriminatório do sistema de justiça turco levou os conselhos a atuar pela resolução dos conflitos em suas comunidades seguindo um conjunto próprio de princípios e regras, dentre as quais é possível destacar: o anticapitalismo, a não subserviência ao mercado, a proteção ao meio ambiente, o feminismo radical e sua lógica liberdade e antecipação de gênero ou a autogestão por meio da economia comum. Um exemplo desse modelo de resolução de conflitos a partir dos conselhos é a situação de violência doméstica. Através da figura do Comitê de Mulheres, quando há uma denúncia de violência, propõe-se, sem a interferência do Estado e do aparato jurídico formal, uma reunião com agressor, vítima e suas famílias para discutir o episódio. Neste caso, observamos um reflexo da administração da justiça no Curdistão que opera resolvendo as questões internamente no sentido de uma justiça restaurativa: “nosso jeito de administrar a justiça não é retrogrado como o estatal. Nós não prendemos as pessoas e depois as soltamos quinze anos depois. Ao invés disso, tentamos operar uma transformação fundamental na pessoa e depois reintegrá-la.” Transcrevemos abaixo um trecho do texto no qual se aprofunda a concepção de direito aqui presente:

A Autonomia Democrática considera que um sistema legal perfeito é impossível. Ao invés de tentar escolher entre a ética e a lei, ela tenta harmonizar ambos conceitos. Uma sociedade sem consciência é uma sociedade perdida; a ética é a consciência e o coração de uma sociedade autogovernamental. Procuramos construir um sistema de justiça social usando os paradigmas de libertação de gênero, democracia e ecologia (TATORT, 2013, p. 59).

            Vale destacar que, assim como em Rojava, os comitês de justiça não são compostos apenas por juristas e têm por principal meta alcançar o consenso na resolução de conflitos, mesmo no caso de crimes violentos (Idem, pp. 59-60). A maneira alternativa de resolver os conflitos torna os comitês referências não apenas para a comunidade curda, mas também para os outros povos que vivem na região e até por autoridades estatais.

  1. Pontos para discussão

            A comparabilidade das experiências zapatista e curda de democracia radical aqui descritas pode ser colocada em questão e mereceria ser abordada em um estudo próprio. Contudo, as analogias que surgem da simples observação dos experimentos de refundação do sistema de justiça são impressionantes, ao passo que sua verificação exitosa em contextos muito diversos – pequenas comunidades indígenas campesinas, no caso dos zapatistas, e um território muito mais amplo, composto por comunidades pluriétnicas distribuídas entre o urbano e o rural, no caso dos curdos – refuta de saída a velha ideia de que a democracia direta é impraticável em sociedades complexas.

            Os êxitos, por certo, não implicam ausência de contradições. A principal delas é que, em ambos os casos, a existência dos Estados-nação e a (re)pressão militar, política, econômica e ideológica continua a exercer influência direta sobre a vida das comunidades. Por esta razão, as permanências ideológicas e culturais no que concerne ao direito e à justiça afastam qualquer ilusão de ruptura absoluta com o modelo anterior. Todavia, ao contrário de muitos movimentos sociais passados e presentes, os zapatistas e os curdos assumem tais contradições abertamente e se propõem a trabalhar para superá-las, ao invés de dissimulá-las sob um ufanismo teórico e prático qualquer, ou mesmo de empurrar a contradição para o exterior, no caso, atribuindo todos os problemas à permanência das estruturas estatais. As sucessivas reformulações da ideia de autonomia no zapatismo, exemplificadas pela formação das Juntas de Buen Gobierno e dos Caracoles, e a autocrítica permanente do movimento social curdo, levando , por exemplo, à formação das plataformas de justiça, mostram que este é o caso.

            Feitas estas observações gerais, alguns pontos comuns entre as duas experiências merecem destaque para discussão:

  1. A dupla “não-separação”. O direito para os zapatistas e para os curdos é uma prática social inseparável da democracia direta de base comunitária e dos valores ético-políticos das comunidades e sua expressão organizada nos movimentos sociais – princípios do mandar obedeciendo, no caso dos zapatistas, e da nação democrática, no caso dos curdos. Neste sentido, um sistema de justiça profundamente enraizado no cotidiano dos povos torna não problemáticos os elementos formais da “separação de poderes” e substantivos da separação entre direito e moral, verificados, ao menos teoricamente, no direito estatal. O fato de que o indivíduo-sujeito de direito não seja a estrutura nuclear do sistema de justiça pode ser a razão desta “não-problematização” e, ao mesmo tempo, é um desafio em sociedades em que o nível de organização popular não garante um vínculo ético e político tão forte entre as comunidades.
  2. O caráter não profissional da atividade jurídica. Como consequência imediata da não separação formal, os postos e atividades jurídicas não são vistos em ambos os casos como tarefas de especialistas, ainda que, no caso de Rojava, os advogados e participantes do sistema de justiça anterior à revolução estejam diretamente envolvidos na reconstrução. Esta possibilidade da participação de pessoas do povo sem formação jurídica dota o sistema uma maior efetividade, uma vez que coloca em primeiro plano a necessidade de que haja compreensão por todos os envolvidos das regras, procedimentos e soluções adotadas em cada caso, além de permitir o amplo debate público sobre todos estes aspectos.
  3. A prioridade das soluções consensuais e da justiça restaurativa. Embora as condutas consideradas como crimes não sejam o único tipo de casos discutidos nos sistemas de justiça autônomos descritos, em ambos destaca-se o esforço para se afastar do punitivismo mesmo quando há violência e até em casos de homicídio. Parte-se da convicção de que o direito penal dos Estados é o aspecto mais opressor de seu direito e, por esta razão, o ponto onde justamente é preciso distanciar-se mais radicalmente da justiça estatal. Também é notável como as ideias de reabilitação e reintegração, que não são estranhas ao direito penal estatal,  atuando como justificadoras da existência das prisões, adquire nestes contextos uma materialidade significativa para impactar na redução da própria prática de condutas descritas como crimes.

            Vale destacar, como último ponto de reflexão especificamente sobre os curdos, os  possíveis impactos das duas cartas de teor constitucional da região de Rojava sobre a construção do sistema de justiça: a primeira de 2014, uma Constituição provisória que declarava os três cantões de Rojava (Afrin, Kobane e Cizire) autônomos do governo sírio[90], e a segunda de 2016, a definitiva. Apesar de a carta de 2014 ser a provisória, é nela que são dispostos vários princípios e “normas gerais” (por assim dizer) de organização da sociedade curda de Rojava, como: i) organização do Estado[91], ii) direitos e garantias individuais[92], iii) direitos sociais[93] (YPG, 2016a). Sabe-se que o objetivo da aprovação dos textos tem mais a ver com as circunstâncias da guerra na Síria e a necessidade de reconhecimento internacional  de Rojava (ÖCALAN, 2016, p. 50) diante da possibilidade de retomada do controle territorial pelo Estado Sírio, ou mesmo da possibilidade de ofensiva pelo Estado Turco, como se viu pelo recente massacre em Afrin. Contudo, a formalização dos princípios do sistema de justiça pode, sem dúvida, representar um passo na direção da cristalização determinadas definições e instituições, esvaziando a sua normatividade própria à medida que afasta o direito da vida cotidiana das comunidades.

 Conclusão

            As experiências de autonomia aqui brevemente discutidas são fundamentais para a compreensão da perspectiva de refundação do direito fora dos marcos do Estado-nação moderno. Elas não só colocam em prática um novo tipo de institucionalidade no campo político e econômico, como permitem rediscutir a própria administração da justiça, assunto que nas experiências revolucionárias do século XX esteve confinado às analogias com o direito pré-existente ou com a ideia de um “direito de transição” que não rompia, em suas práticas efetivas, com o direito capitalista. O objetivo principal do trabalho foi o de contribuir com o debate de tais experiências emancipatórias no campo do direito que assumem um novo destaque em função do chamado fim do ciclo progressista na América do Sul (ZIBECHI & MACHADO, 2017), no qual se evidencia a recolocação de problemas análogos às experiências do século XX em termos de limitação da transformação da sociedade “por cima”. De toda forma, por fim, será através deste estudo das vias teórica e prática do sistema de justiça zapatista que buscaremos contribuir com a produção jurídica da sociedade dita “formal”, estruturada sob o paradigma monista do direito. A pluralidade das formas de se buscar pela justiça é o que nos interessa em grande medida por ser aquilo que de fato possibilita uma análise para além do “mais do mesmo”, buscado assim e de outras formas, colaborar para a refundação do Direito como um todo, rompendo com a lógica de que o Direito apenas existe com a existência do Estado e tornando claro que o exercício da autonomia –  em paralelo com a construção dos povos no sentido de sua pluralidade jurídica – é também um exercício de liberdade e emancipação, digno de respeito e admiração, fonte de inspiração e, finalmente, um direito humano garantido aos povos.

 

Referências

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ZIBECHI, Raul; MACHADO, Décio. Os limites do progressismo: a impossibilidade de mudar o mundo de cima para baixo. Rio de Janeiro: Consequência, 2017.



Direito à consulta prévia, livre e informada em contextos urbanos: o caso das comunidades quilombolas de Maicá e Abacatal no Estado do Pará[94]

Right of prior, free and informed consultation in urban context: the case of Maicá and Abacatal quilombola communitites at the Pará State

 

Juliana C. Vasconcelos Maia[95]

Ciro de Souza Brito[96]

Jhonny Giffoni[97]

 

Resumo: O direito à consulta prévia, livre e informada (CPLI) de povos indígenas e povos e comunidades tradicionais encontra fundamento jurídico na Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Este tratado internacional de direitos humanos foi ratificado pelo Brasil, momento em que consagrou o status normativo materialmente constitucional, passando a vigorar em âmbito interno mediante o Decreto Executivo nº 5.051/2004. Mais de dez anos depois da ratificação brasileira à CPLI muitas violações de direitos continuam a se perpetuar no País, especialmente face às comunidades quilombolas em contextos rurais e urbanos. Com efeito, este trabalho procura analisar formas de resistência quilombola frente a políticas públicas urbanas, a partir dos casos de Maicá e Abacatal, localizados em Santarém/PA e em Ananindeua/PA. Para tanto, realizou-se pesquisa de natureza qualitativa, a partir do método interpretativo dialético, cuja técnica da coleta de dados utilizada foi bibliográfica e documental. No caso de Santarém, a descrição das situações empíricas investigadas deu-se por meio de análise da Ação Civil Pública nº 0000377-75.2016.4.01.3902, ajuizada pelo Ministério Público Estadual e Federal e posterior decisão favorável da 2ª Vara Federal do Tribunal Regional Federal da 1ª Região. No caso de Abacatal, analisou-se o protocolo de CPLI da comunidade e os documentos extrajudiciais disponibilizados pela Defensoria Pública do Estado do Pará. Procurou-se demonstrar que a CPLI possibilitou às comunidades citadas exercerem o seu direito de resistência frente às decisões governamentais pensadas hegemonicamente e ratificar a necessidade dos Estados observarem os ditames da Convenção nº 169/OIT, a partir da perspectiva constitucional e pluralista.

Palavras-Chave: Consulta Prévia, Livre e Informada. Quilombolas. Contexto urbano. Direito de resistência.  Convenção 169 da OIT.

Abstract: The right of prior, free and informed consultation (PFIC) of indigenous peoples and peoples find legal basis in the International Labor Agreement (ILO) Convention nº 169. This international agreement was substantially grounded, considering the constitutional material normative status, passing an executive decree in 5.051/2004. More than ten years after the Brazilian ratification of PFIC, many rights violations continue to perpetuate in Brazil, especially against the quilombola communities at rural and urban contexts. In fact, the forms of effort confronted the quilombo in the face of urban public policies, the cases of Maicá and Abacatal, in Santarém / PA and Ananindeua / PA. “In order to do so, the research of a qualitative nature, based on the dialectical interpretative method, with the technique of data collection used was bibliographical and documentary. In the case of Santarém, the description of the empirical situations investigated was given by means of analysis of Public Law Nº 0000377-75.2016.4.01.3902, filed by the State and Federal Public Prosecutors and subsequent favorable decision of the 2nd Federal Court of the Federal Regional Court of the 1st Region. In the case of Abacatal, the PFIC protocol for the community and the extrajudicial documents available to the Public Defender of the State of Pará. It was found that a PFIC enabled the mentioned communities to exercise their right to be in accordance with the obligations of governments, and to ratify the obligation of the States to observe the dictates of the ILO Convention 169, from the constitutional and pluralist perspective.

Keywords: Prior, Free and Informed Consultation. Quilombolas. Urban Context. Right of resistance. ILO Convention 169.

1. Introdução

O direito à consulta prévia, livre e informada (CPLI) encontrou seu primeiro amparo legal na Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que se dirigiu aos chamados “povos indígenas e tribais”. De maioria quantitativa vivendo em contextos rurais, pode parecer que estes povos indígenas e tribais, que no Brasil são considerados povos indígenas e povos e comunidades tradicionais (Shiraishi Neto, 2004), habitam apenas nessas zonas, contudo há que se atentar para um número considerável de habitantes em contextos urbanos e periurbanos.

Essa realidade confere particularidades aos grupos tradicionais, especialmente no que tange aos seus antagonistas e às relações que vão nutrindo com o espaço que os cerca. Os antagonistas deixam de ser principalmente os fazendeiros e se revelam agentes múltiplos como empresas, lixões, imobiliárias e, sempre ele, o Estado. E as relações deixam de ser o embate direto no campo ou a disputa por áreas de roça e de pesca, por exemplo, e passam a ser, também, por mobilidade urbana, saneamento básico e infraestrutura.

Consequentemente, as comunidades tradicionais são obrigadas a atualizar seus repertórios de articulação e luta, visando combater, mesmo que de maneiras precárias, as violações de direito que são encampadas nessa arena de múltiplos agentes. Há momentos que se apoiam, inclusive, no aparato normativo, apropriando-se do mesmo e passando a trabalhar dentro e além desse aparato, traçando uma linha de frente de resistência. Um dos casos emblemáticos é o dos protocolos comunitários.

Os protocolos comunitários passaram a ser previstos, no ordenamento jurídico brasileiro, oficialmente com o advento da Lei n. 13.123, de 20 de maio de 2015. No entanto, mesmo antes desse marco legal e político, já era possível observar algumas iniciativas que se adiantaram à Lei e desenvolveram, no âmbito de comunidades tradicionais, os primeiros protocolos comunitários do Brasil, com destaque para o das comunidades ribeirinhas do Bailique (Monteiro, 2015). Uma de suas funções mais relevantes é de justamente ratificar e prever meios de viabilizar a CPLI.

Claro que a experiência do protocolo não esgota os meios de resistência de povos e comunidades tradicionais em contexto urbano. Ela apenas elenca uma ação interessantíssima no âmbito extrajudicial. Por sua vez, do ponto de vista judicial, estratégias são pensadas em conjunto entre comunidades e instituições do sistema de justiça com abertura funcional mais progressista, visando tentar impedir violações. Essas ações são encampadas nas Justiças locais, mas puxando, nas petições e dos discursos, um diálogo entre o ordenamento nacional e o internacional, uma vez que o segundo tem aparecido mais aberto à consecução de direitos territoriais tradicionais e, nesse sentido, à composição da chamada justiça socioambiental (Moreira, 2017).

Com efeito, este trabalho procura refletir sobre formas de resistência de comunidades tradicionais frente a ações que se sobrepõem ao direito à consulta prévia, livre e informada. Mais especificamente, apresentamos uma pesquisa empírica que desloca o eixo de análise para comunidades quilombolas que vivem em contextos urbanos no Estado do Pará e colocam-se na resistência diária contra políticas públicas aviltantes. Trata-se dos casos de Maicá e Abacatal, localizados nos municípios de Santarém e Ananindeua, respectivamente.

Para tanto, realizou-se pesquisa de natureza qualitativa, a partir do método interpretativo dialético, cuja técnica da coleta de dados utilizada foi bibliográfica e documental. No caso de Santarém, a descrição das situações empíricas investigadas deu-se por meio de análise da Ação Civil Pública nº 0000377-75.2016.4.01.3902, ajuizada pelo Ministério Público Estadual e Federal e posterior decisão favorável da 2ª Vara Federal do Tribunal Regional Federal da 1ª Região. No caso de Abacatal, analisou-se o protocolo de CPLI da comunidade e os documentos extrajudiciais disponibilizados pela Defensoria Pública do Estado do Pará.

Na primeira seção, teceremos uma síntese do chamado direito à consulta prévia, livre e informada, destacando seus principais referenciais normativos e alguns relevantes referenciais teóricos. Na segunda seção, discorreremos sobre o caso de Maicá, destacando o contexto sociopolítico a que estas comunidades estão inseridas. A terceira seção segue a linearidade da seção anterior, onde discorreremos sobre o caso de Abacatal, destacando seu histórico de constituição e algumas vinculações com a realidade circundante atual. Por fim, apresentaremos nossos pontos conclusivos a partir do que vimos aprendendo com estes dois casos, admitindo, principalmente, que se tratam de conclusões inconclusivas, uma vez que não se chega a herméticos postulados fechados e as situações ainda estão em andamento. Mas a principal contribuição talvez seja a argumentação em torno da defesa de aplicação da CPLI mesmo nos âmbitos de planejamento e execução de políticas públicas e legislativas, não somente em relação à implementação de projetos de “desenvolvimento”.

  1. O direito à consulta prévia, livre e informada

 

A consulta prévia, livre e informada é o direito que povos indígenas, quilombolas e povos e comunidades tradicionais têm de serem acionados, escutados e atendidos, coletivamente ou mediante entidades representativas, sempre que o Estado propuser medidas administrativas e legislativas suscetíveis de afetá-los diretamente.

Este é um direito consubstanciando na Convenção 169 da OIT, mais especificamente no seu art. 6.1.a, que diz que ao aplicar as disposições do referido tratado, os Estados deverão “consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente”.

Segundo Sheilla Dourado, a CPLI é um direito processual substanciado pela importância material decorrente de direitos substanciais (Dourado, 2014), que estão relacionados aos modos de criar, fazer e viver dos grupos tradicionais.  A CPLI é considerada, também, como um direito processual – por dizer respeito às formas de como se conduzir processos seja judicial seja extrajudicialmente – encontrando-se valor justamente nas maneiras que melhor representam uma relação bilateral respeitosa que visa estabelecer um acordo entre partes que tem competência para se obrigar mutualmente (Garzón, 2009)

Para Rodrigo Oliveira, a CPLI é uma das exigências que o Estado deve cumprir para que a limitação ou restrição aos territórios tradicionais[98] não ameace a integridade física ou cultural do grupo (Oliveira, 2016).

Considerada um tratado internacional de direitos humanos (Oliveira, 2016), a Convenção 169 foi ratificada pelo Brasil em 2002[99] e promulgada por meio do Decreto n. 5.051, de 19 de abril de 2004. A depender do intérprete que manuseá-la, essa convenção pode ser considerada como uma norma jurídica de natureza supralegal (Mazzuoli, 2014) ou mesmo de natureza constitucional (Shiraishi Neto, 2004). De todo modo, sua aplicação é imediata, por força do §1º do art. 5º da Constituição Federal.

Pode parecer não pairar dúvidas acerca dessa aplicação imediata, contudo tal questão foi objeto de litígio na Corte Suprema brasileira, que, então, posicionou-se de maneira a observar ipsis litteris o que vem abordado na Carta Maior.

Ao possibilitar a incorporação de novos direitos por meio de tratados, a Constituição estaria a atribuir a esses diplomas internacionais a hierarquia de norma constitucional. E o § 1º do art. 5º o asseguraria a tais normas a aplicabilidade imediata nos planos nacional e internacional, a partir do ato de ratificação, dispensando qualquer intermediação legislativa (STF – RE nº 466.343/SP, Relator: Ministro Cesar Peluso, Data de Julgamento: 03/12/2018, TRIBUNAL PLENO, fl. 07).

Além do tratado internacional e das legislações nacionais que foram sendo adotadas a partir da ratificação brasileira, o enxerto acima chama a atenção para a necessidade de utilização da CPLI em consonância com outros entendimentos – claro, para além daqueles de povos indígenas e povos e comunidades tradicionais -, que são os dos tribunais nacionais e internacionais. No Brasil, o julgamento do Recurso Especial n. 466.343/SP pode ser considerado um exemplo de abertura da corte brasileira a ampliação de entendimento e aplicação da CPLI. Mas essa ampliação apenas vem acompanhando a aplicação arrolada em diversos julgados da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Essa construção vem sendo proposta como a chamada interpretação sistêmica, a que Eliane Moreira (2017) faz menção em obra que analisou julgados da Corte Interamericana de Direitos Humanos e demonstrou uma alta intensidade de abertura dessa instância deliberativa em relação à CPLI e direitos conexos a ela ou a que ela faz conexão.

No caso concreto, algumas características da CPLI não podem deixar de ser observadas. São elas: caráter prévio, caráter livre, caráter informado, caráter culturalmente apropriado e a boa-fé.

  1. Caráter Prévio:

A Convenção nº 169/OIT confere aos governos a obrigação de realizar a CPLI à medida que sejam previstas “medidas administrativas e/ou legislativas suscetíveis de afetá-los diretamente” (art. 6º). Dessa forma, a CPLI deve ser no momento da proposição das medidas administrativas ou legislativas suscetíveis de afetar os sujeitos interessados e anterior à qualquer ato executório das medidas.

Um dos pontos mais importantes é que a consulta é taxativa e deliberativa. Ou seja, há a possibilidade de revisão do projeto inicial a ser implementado ou em implementação ou, ainda, sua não realização (Duprat, 2015). “A consulta é prévia exatamente porque é de boa-fé e tendente a chegar a um acordo. Isso significa que, antes de iniciado o processo decisório, as partes se colocam em um diálogo que permita, por meio de revisão de suas posições iniciais, chegar-se à melhor decisão (Ibidem, p. 68).

Infelizmente, em que pese a CIDH enfatize a necessidade de se realizar a CPLI na fase de planejamento da medida legislativa ou administrativa, antecedendo quaisquer atos executórios desta, o Estado brasileiro posterga ao máximo esta obrigação prévia.

No Brasil, observamos que as consultas são postergadas ao máximo, e até repassadas para momentos posteriores à execução das decisões que deveriam ser consultados. Entre vários exemplos, a consulta proposta pelo governo federal aos Munduruku, discutida anteriormente, ocorreria após diversas manifestações do governo, revelando que a decisão de construir usinas hidrelétricas que impactam diretamente seus territórios já estava no planejamento do setor elétrico (Gárzon et al, 2016, p. 34).

  1. b) Caráter Livre e Informado:

A CPLI precisa ser sem qualquer tentativa de pressão ou imposição dos governos sobre os seus resultados, tendo em vista que a função originária de consultar os povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais é exatamente o diálogo e a tentativa de se chegar a um acordo. Desse modo, é imprescindível que os sujeitos interessados estejam cientes do porquê estarem sendo consultados e em que medida o seu veto ou anuência serão determinantes para o povo, para o território e os bens de uso comum de uso e gozo da comunidade.

  1. c) Boa-fé e caráter culturalmente apropriado:

O art. 6.2 da Convenção estabelece que “as consultas realizadas na aplicação desta Convenção deverão ser efetuadas com boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca das medidas propostas”. Nesse sentido, o requisito da boa-fé pressupõe transparência, confiança e respeito mútuo (Moreira, 2006). Para que a consulta seja efetiva e eficaz, é necessário que o Estado deixe claro suas reais intenções a cada ato procedimental junto aos povos, os legítimos sujeitos.

Somado a isso, os procedimentos consultivos precisam respeitar as organizações sociais, políticas, cosmológicas, culturais e territoriais dos povos indígenas e povos e comunidades tradicionais, viabilizando o que Gárzon et al (2016) denominam de “diálogo intercultural”. Portanto, a forma de realização da CPLI deve ser pautada a partir das temporalidades e formas de vida dos grupos a que se destinam.

Há quem afirme que no Brasil nunca houve consulta prévia, livre e informada. Afirmações como esta são difíceis de serem constatadas dado ao tamanho do País e as dificuldades de congregar informações que pudessem subsidiar tal aferimento. Contudo, um dos motivos que leva a essa crença é a constante confusão que se faz entre a CPLI e as audiências públicas, conferindo às audiências uma equivalência com as consultas.

A diferença fundamental entre a audiência pública e CPLI é a de que aquela é parte do procedimento administrativo do licenciamento ambiental e a segunda, não. Por se tratar de etapa do licenciamento ambiental, a audiência pública encontra-se disciplinada na Lei n. 9.784/1999 e, pelas Resoluções n. 01, de 23 de janeiro de 1986, e n. 09, de 3 de dezembro de 1987, ambas do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA). Por sua vez, a CPLI garante aos povos e comunidades que se autor reconhecem e identificam-se como indígenas; quilombolas e/ou comunidades tradicionais a decisão sobre seus destinos e prioridades de desenvolvimento (art. 7º da Convenção 169 da OIT), de forma autônoma e vinculante. Este direito integra a dimensão democrática de um Estado de Direito que se propõe a efetivar o direito à pluralidade e à autodeterminação dos povos.

  1. Os quilombolas residentes às margens do Lago do Maicá e o contexto urbano de Santarém

O município de Santarém situa-se em uma região estratégica em que se expande a fronteira de exportação de commodities agrícolas: o oeste do Pará. Como consequência, há uma série de empreendimentos que pleiteiam ou já estão em fase de construção, como portos, hidrelétricas e mineradoras, ao largo do interesse da sociedade civil local e sem a consulta prévia, livre e informada aos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais (Cunha et al, 2016).

A região denominada como “Grande Área do Maicá”, zona de transição entre áreas urbana e rural e de terra firme e de várzea, no bairro Área Verde do município de Santarém, na qual há projetos de assentamento, populações ribeirinhas e oito territórios quilombolas – Arapemã, Saracura, Bom Jardim, Murumurutuba, Maria Valentina, Murumuru, Tiningu e Pérola do Maicá. Estas comunidades possuem uma relação direta com o lago do Maicá e com o rio Ituqui, ambos pertencentes ao Rio Amazonas, e têm sido reiteradamente invisibilizadas pelos governo, através da Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade (SEMAS) [100].

Figura 1 – Mapa da região conhecida como “Grande Área do Maicá”, em Santarém/PA, onde se pretende construir o complexo portuário da EMBRAPS. Fonte: INCRA, 2015.

Os quilombolas residentes às margens do Lago do Maicá têm enfrentado processos de decisão hegemônicos, o que se visualiza no caso da construção do complexo portuário pretendido pela Empresa Brasileira de Portos de Santarém – EMBRAPS, no ano de 2016. Já tendo iniciado o licenciamento ambiental, a Federação das Comunidades Quilombolas de Santarém (FOQS) requereu uma revisão do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) do referido porto e solicitou que as comunidades quilombolas fossem consultadas conforme prevê a Convenção 169/OIT.

Diante disso, em 15 de fevereiro de 2016 o Ministério Público Federal e o Ministério Público Estadual ingressaram com uma Ação Civil Pública no juízo federal buscando a suspensão liminar do licenciamento ambiental do referido complexo portuário, devido à ausência de CPLI às comunidades tradicionais que seriam impactadas pelo porto da EMBRAPS. Então, em 12 de abril de 2016, a Justiça Federal subseção de Santarém determinou a suspensão requerida, sob o argumento de não realização da consulta livre, prévia e informada.

No mesmo sentido, em 03 de maio de 2017, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região manteve a decisão referida e negou o agravo de instrumento ajuizado pela Empresa Brasileira de Portos de Santarém em face do Ministério Público Federal e Estadual. Conforme o disposto na ACP em questão, o TRF-1 reconheceu a legitimidade do pedido de suspensão liminar do licenciamento ambiental.

CONSTITUCIONAL, ADMINISTRATIVO, AMBIENTAL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. INSTALAÇÃO DE TERMINAL PORTUÁRIO ÀS MARGENS DO RIO AMAZONAS, NO MUNICÍPIO DE SANTARÉM/PA. ÁREA DE INFLUÊNCIA DIRETA EM COMUNIDADES QUILOMBOLAS E DEMAIS POPULAÇÕES TRADICIONAIS. LICENCIAMENTO AMBIENTAL. AUSÊNCIA DE CONSULTA PRÉVIA (CONVENÇÃO Nº 169 DA ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO). TUTELA INIBITÓRIA. CABIMENTO. (TRF 1 – AI: 00278431320164010000 0027843-13.2016.4.01.0000, Relator: Des. Federal Souza Prudente, Data de Julgamento: 03/05/2017, QUINTA TURMA, Data de Publicação 24/05/2017 e-DJF1)

Essa vitória no judiciário foi emblemática porque conseguiu, mesmo de maneira posterior ao licenciamento ambiental, paralisar a implementação de um grande empreendimento e sob o argumento principal de não observação da CPLI. Após anos de diversas lutas travadas contra antagonistas diversos, os povos do Maicá conseguiram, por meio da parceria com os órgãos do sistema de justiça local que trabalham em prol dos interesses difusos e coletivos impetrar e litigar de maneira a alcançar essa vitória no Judiciário. Contudo, cabe registro que essa força na articulação é facilitada pelas constantes mobilizações que esses grupos realizam no entorno do Maicá.

Essas mobilizações encampam as estratégias de reconhecimento dessas comunidades e vêm se arrastando e fortalecendo ao longo dos anos. Enquanto as decisões, em primeira e segunda instância, não eram publicadas, os grupos do Maicá protagonizaram movimentos como os registrados nas fotografias abaixo.

Figura 2 – Ato em defesa do Lago do Maicá, realizado em 08 de março de 2016, no município de Santarém/PA. Fonte: Sara Pereira – FASE.

Figura 3 – II Caravana das Águas em Defesa dos Povos do Rio Tapajós, realizada em agosto de 2016, nos municípios de Santarém e Itaituba/PA. Fonte: Attilio Zolin – Fundo Socioambiental CASA.

 A comunidade quilombola de Abacatal e o contexto periurbano de Ananindeua

A comunidade quilombola Abacatal fica localizada na área urbana do município de Ananindeua, o segundo município com maior número de habitantes do Pará, com entorno de 500.000 (quinhentos mil), e área de 190 km² (Sirotheau, 2012). Mesmo localizando-se na área urbana de Ananindeua, os quilombolas de Abacatal referem-se ao seu território não como um quilombo urbano – o que afastaria aproximações e análises afoitas ao contexto das discussões sobre quilombos urbanos – e sim como um quilombo periurbano ou semiurbano[101]. Duas implicações práticas dessa afirmação são evidentes: a primeira é que a infraestrutura de serviços e mobilidades do entorno do Abacatal é precária e a segunda é que a produção da comunidade é eminentemente agrícola[102].

 

Figura 4 – Mapa do quilombo Abacatal, em Ananindeua/PA. Fonte: Sirotheau (2012).

Em que pese Ananindeua, enquanto município independente, ter uma história recente, o quilombo Abacatal, às margens do rio Uriboquinha, é mais antigo que o marco político-legal de criação do município[103], tendo sido fundado no período colonial a partir do engenho de açúcar Uriboca, de propriedade do conde Coma Mello. Esse conde teria deixado seu engenho de herança para três de suas filhas com a escrava Olímpia (Marin & Castro, 2004). Essas filhas deram origem às três principais famílias de Abacatal: os Rosa, os Barbosa e os Costa (Souza, 2007). Essa área corresponderia a 15% do que atualmente se considera como Abacatal, que tem seu território titulado pelo Instituto de Terras do Pará totalizando 583,3 hectares[104].

Um fator que tem reduzido a intensidade da relação com a terra por parte dos quilombolas de Abacatal são as constantes pressões externas que o grupo vem sofrendo. Tais pressões acabam que por operar uma redução territorial, que causa, nas palavras de J. Luiz Sirotheau, uma “profunda mudança” nas dinâmicas produtivas do quilombo, que tem influenciado à diminuição ou mesmo desaparecimento gradual de espécies da flora e fauna, refletindo em dificuldades na pesca, caça e extrativismo (Sirotheau, 2012, p. 117), e um impacto relevante em relação a produção e reprodução social, material, econômica e física dos quilombolas do Abacatal (ibidem).

Um dos fatores de pressão externa foi a criação de uma área de proteção ambiental, em 1984, pelo governo do Estado do Pará, na qual o território de Abacatal acabou por estar inserido. Essa APA, denominada de APA de Belém, foi criada pelo Decreto Estadual n. 3.251, de 12 de abril de 1984, que estabeleceu uma área de 1.598, 10 hectares de preservação ambiental, que tinha como principais objetivos proteger os mananciais Bolonha e Água Preta e apresentar subsídios para a definição de critérios em relação ao uso e ocupação do solo (Sirotheau, 2012, p. 91).

Em discussões posteriores e redirecionamentos da legislação em detrimento dos interesses políticos, foi colocada a necessidade e, então, foram criados os parques do Utinga e Ecoturístico do Guamá, que tomaram considerável área do terreno primeiro de conde Coma Mello, ou seja, território de Abacatal e entorno (Sirotheau, 2012). Ocorre que a instituição de uma APA traz uma série de consequências jurídicas consubstanciadas em condições de uso dos recursos naturais e nem sempre afins ao uso tradicional dos quilombolas, forçando, portanto, que o grupo se curve às determinações legais. Há relatos de áreas do território que tiveram que deixar de ser utilizadas por seus moradores para caça e roça, por exemplo. “Já tem uns terrenos que tiraram dentro da área do Parque, já tem uma área tirado pico”, como relata o quilombola seu Pedro em fevereiro de 2012 (apud Sirotheau, 2012).

Outro fator de pressão externa é a metropolização a que Ananindeua vem passando nos últimos anos e que tem se aproximado do quilombo. Essa metropolização pode ser considerada como um processo de expansão urbana que repercute na perda do sossego e segurança ainda existentes na comunidade[105] e uma explosão demográfica no entorno (Sirotheau, 2012). Isso está evidente na fala de duas mulheres quilombolas de Abacatal, dona Cida e dona Maria do Socorro:

Nós somos privilegiados em morar em Abacatal (…). Tem sim violência, mas só que não tá que nem lá fora, né? Hoje aqui tu ainda dormes e as bicicletas ficam assim no terreiro(…). Aonde que ali no Águas Brancas [bairro vizinho] já se deixa uma janela aberta e vai lá pra cozinha?! (Dona Cida, quilombola, fevereiro de 2012 apud Sirotheau, 2012, p. 124)

A cidade tá chegando aí, taí a área da Pirelli, isso aí tudo… com mais uns anos, tudo vai ser cidade. Eu posso até não ver, mas vai ser. Porque o projeto que tem aí é pra 150.000 casas né? (…) E vai acontecer (Dona Maria do Socorro, quilombola, fevereiro de 2012 apud Sirotheau, 2012, p. 124).

Mais um fator de pressão, que não deixa de atingir a questão da relação com a terra, é o do recorrente caso de despejo de lixo – orgânico e doméstico – na estrada do Aurá, vizinha do Abacatal, evidenciando um caso de descaso do poder público. Conforme dados acionados por Kamilla Santos, a área do Aurá e entorno estaria degradada ambientalmente por mais de 25 anos o que resultou em contaminação dos mananciais aquíferos rio Bolonha e Lago Água Preta pelo chorume produzido no agora oficialmente extinto lixão do Aurá (Santos, 2016). Esses mananciais abastecem a região metropolitana de Belém[106] com água potável.

O lixão do Aurá[107], por muito tempo, foi considerado o segundo maior lixão do País em número de catadores (Furtado, 2014), tendo sido decretado seu fechamento oficial no ano de 2014, devido a observância da Política Nacional de Resíduos Sólidos – Lei n. 12.305, de 02 de agosto de 2010 – que determinou que, até 2014, todos os lixões do Brasil deveriam ser fechados e os catadores que nele trabalhavam fossem reconhecidos como trabalhadores de materiais recicláveis e reutilizáveis. Ocorre que, mesmo depois do seu fechamento oficial, a prefeitura de Belém – circunscrição municipal oficial do antigo lixão do Aurá – ainda não teria iniciado os trabalhos de restauração e revitalização da área, conforme a determinação da Lei, e o local ainda estaria recebendo entulhos de diversas naturezas (Santos, 2016).

Os problemas relatados acima acabam por atingir a dinâmica da comunidade por diversos ângulos, vindo a prejudicar os quilombolas de maneiras distintas e em alguns momentos históricos mais do que em outros. Naturalmente, eles não são os únicos problemas que a comunidade tem de enfrentar e também não são exclusivos de Abacatal, contudo a especificidade que os une é que, em todos os casos, não houve consulta prévia, livre e informada aos quilombolas em relação aos empreendimentos, normas ou políticas públicas adotadas pelo Estado e que interfeririam – e interferem – direta ou indiretamente nesse grupo.

Contudo, há que se comemorar alguns avanços nessas relações quase sempre conflituosas. Graças a uma iniciativa dos quilombolas de Abacatal em desenvolver um protocolo de consulta prévia, livre e informada, o quilombo do Abacatal foi o primeiro quilombo da Região Metropolitana de Belém e da Região Guajarina[108] a construir seu Protocolo de Consulta Prévia, Livre e Informada[109]. O referido documento vem sendo utilizado como instrumento frente ao Governo paraense, buscando garantir que o direito à CPLI seja respeitado, previamente aos procedimentos de licenciamento ambiental, bem como a qualquer fase de pesquisa ou elaboração de um projeto que possa gerar um conflito socioambiental a afetar o território.

Recentemente, o Município de Ananindeua, seguindo o que determina a Lei 10.250 de 10 de julho de 2001, cujo objeto é a instituição do Estatuto da Cidade, determina a criação do Plano Diretor. Este consiste em um instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana, necessitando ser revisto a cada 10 anos, devendo englobar todo o território dos Municípios conforme estabelece o art. 40.

Sobre este ponto, a primeira experiência brasileira de aplicação da consulta prévia, livre e informada em âmbito legislativo está sendo construída pela Comunidade Quilombola de Abacatal – através da Associação de Moradores e Produtores Quilombolas de Abacatal (AMPQUA) – no âmbito do Plano Diretor do Município de Ananindeua. Este Plano rege-se pela Lei Municipal n. 2.237/2006 -, que em seu art. 1º dispõe:

Art. 1° – O plano diretor de Ananindeua – PDA é o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana, considerando a totalidade do território municipal, e tem como objetivos fundamentais o cumprimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana e a garantia do bem-estar de seus habitantes.

Considerando que o Plano Diretor de Ananindeua produziria efeitos diretos aos quilombolas de Abacatal, estes, tendo como base os protocolos de CPLI, ensejaram cobrança devida ao governo municipal para que este garantisse à comunidade o direito de sere consultada conforme estabelece a Convenção nº 169/OIT e a partir das diretrizes do protocolo produzido pela Comunidade.

Percebe-se que na definição do plano diretor reconheceu-se o quilombo de Abacatal pelo legislador em seus dispositivos (art. 12, 13, 14, 20 e 27). Então, mediante o seu protocolo a comunidade quilombola ensina o governo de Ananindeua a respeitar o direito à CPLI, in verbis:

Passo 1 – A autoridade envia à Coordenação da Associação solicitação de iniciar a consulta conforme a OIT 169 e segundo o Protocolo de Consulta da Comunidade Quilombola do Abacatal localizado no TQ Abacatal no município de Ananindeua/PA.

Passo 2 – a Coordenação da Associação analisará as informações do projeto apresentado com apoio de pesquisadores e instituições parceiras da comunidade. (AMPQUA, 2017)[110]

Desta forma, os quilombolas de Abacatal, buscando efetivar seu direito à autoderminação com o auxílio da sociedade civil, e de órgãos como a Defensoria Pública do Estado do Pará e o Ministério Público do Estado do Pará e após dialogo com o Município de Ananindeua, estão dando seguimento aos procedimentos consultivos de maneira prévia, livre e informada, referente ao Plano Diretor de Ananindeua.

  1. Considerações Finais

 

A partir dos casos de Abacatal e Maicá no estado do Pará, entendeu-se que é a Consulta Prévia, Livre e Informada, embora consolidada nos âmbitos legislativo e jurisprudencial, ainda apresenta-se como um direito pelo qual seus sujeitos precisam lutar para que seja efetivamente garantido pelos governos. Nesse sentido, os desafios à aplicação do instituto jurídico em questão se dão pela falta de compromisso político dos entes governamentais em fazer valer os direitos dos povos e comunidades tradicionais.

No Estado do Pará, tanto os quilombolas de residentes às margens do Lago do Maicá, localizado no município de Santarém, bem como a comunidade quilombola Abacatal, situada no município de Ananindeua, para terem o seu direito à participação efetivado em decisões de natureza pública, realizaram mobilizações populares e solicitações a órgãos do sistema de justiça – Ministério Público Federal, Ministério Público Estadual e Defensoria Pública – para que estes atuassem judicial e extrajudicialmente no sentido de obrigar os governos a observarem a Convenção nº 169/OIT.

Em ambos os casos, observou-se que a Convenção nº 169 configurou um importante instrumento de resistência aos quilombolas, uma vez que, por intermédio da suspensão liminar de um complexo portuário – caso de Santarém – e da aplicação da CPLI aà medida legislativa – caso de Ananindeua , as comunidades puderam dar vazão aos seus reais anseios e prioridades de desenvolvimento alternativas à gestão pública hegemônica.

  1. Referências

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O DIREITO À LUZ DA EXPERIÊNCIA VIVIDA: O caso de Morada Nova de Minas e os impactos causados pela ausência de políticas públicas na construção da barragem de Três Marias – Minas Gerais[111]

THE LAW IN THE LIGHT OF LIVING EXPERIENCE:  construction of the Três Marias dam and the absence of public policies for the arrival of water in the municipality of Morada Nova de Minas – Minas Gerais

Mônica Thaís Souza Ribeiro[112]

 

Resumo: A ideia de reescrever as culturas e a diversidade humana em uma única narrativa caracteriza e qualifica os discursos do campo do direito. Sistema jurídico, estado, nação, soberania, dominação, legitimidade, direitos individuais, direitos sociais são parte do vocabulário que constrói as narrativas da expansão e consolidação da história moderna e de suas instituições típicas. Esse vocabulário não apenas descreve, mas tematiza e naturaliza valores, sustentando uma lógica discursiva complexa, porém particular. O efeito simbólico dessa lógica é a imposição de uma cultura particular que é assim universalizada, impedindo narrativas alternativas, periféricas e descentralizadas de classes, grupos, povos e gêneros. O trabalho apresentará a descrição de múltiplas narrativas alternativas de uma situação específica, de pessoas atingidas pela barragem de Três Marias, especificamente de moradores e ex-moradores de Morada Nova de Minas, em Minas Gerais. Entre os sentidos do direito estão os relacionados à dimensão subjetiva dos atores, numa dimensão ligada à ideia de justiça, de moral, de ética, de valores que não são estranhos aos modos de viver do cotidiano. Através de entrevistas o direito se apresentará em suas múltiplas facetas no quadro de histórias e narrativas de vida relacionadas ao impacto de uma política pública executada na década de 60. Palavras-Chave: direito; narrativas, políticas públicas, pluralismo jurídico;

Abstract: The idea of rewriting cultures and human diversity in a single narrative characterizes and qualifies discourses in the field of law. Legal system, state, nation, sovereignty, domination, legitimacy, individual rights, social rights are part of the vocabulary that builds the narratives of the expansion and consolidation of modern history and its typical institutions. This vocabulary not only describes, but thematizes and naturalizes values, sustaining a complex but particular discursive logic. The symbolic effect of this logic is the imposition of a particular culture that is thus universalized, preventing alternate, peripheral and decentralized narratives of classes, groups, peoples and genres. The paper will present a description of multiple alternative narratives of a specific situation, of people affected by the Três Marias dam, specifically of residents and former residents of Morada Nova de Minas, in Minas Gerais. Among the meanings of law are those related to the subjective dimension of the actors, in a dimension linked to the idea of justice, morality, ethics, values that are not foreign to the daily ways of living. Through interviews the law will present itself in its multiple facets in the framework of stories and life narratives related to the impact of a public policy implemented in the 60’s.

Keywords: right; narratives; public policies; legal pluralism;

1. O DESAFIO DA PESQUISA EMPÍRICA E A ANÁLISE DO DIREITO ENQUANTO CATEGORIA

“Eu mesma sofri muito quando a água subiu. Quando passamos a primeira vez na água, dava a impressão de estarmos passando por cima das folhas de tantas folhas e sujeira que tinha. A gente passava medo. Era um barquinho de quatro tambores e uma pessoa ia tirando as madeiras para não atrapalhar o motor. E antigamente a gente tinha aquele respeito das pessoas uns com os outros, né? Então meu pai dizia “não tem perigo não. Não tem perigo não” e a gente entrava com aquele medo, né? A gente achava que tava derrotado[113]

A pesquisa nas ciências comporta uma ampla ordem de problemas teóricos, metodológicos e substanciais, o mesmo ocorre com os estudos produzidos por juristas (EPSTEIN, LEE;2013, p.11). A pesquisa empírica no campo jurídico ainda é, entretanto, um desafio, especialmente em decorrência da tradição dogmática e das características da retórica jurídica que se direciona para a argumentação e para a decisão normativa. Entretanto, o direito tem muitos sentidos, podendo ser percebido como conjunto normativo, mas também como portador de objetivos e demandas sociais, como ferramenta de mediação e resolução de problemas ou como instrumento de mobilização social. Como afirma Coutinho,

Se o direito administrativo pode ser visto como mecanismo de disciplina, procedimentalização e de regulação da participação substantiva, bem como da mobilização de atores mais ou menos organizados na formulação, implementação e avaliação de políticas públicas, então faz sentido que isso seja mais tematizado por juristas, acadêmicos ou práticos. E se é igualmente verdadeiro que o direito, além disso, estrutura e regula formas de prestação de contas e transparência dessas políticas – uma vez que pode obrigar quem as opera a justificar e motivar as decisões relativas à definição de prioridades, seleção de meios, formulação de planos de execução, alocação de recursos e outras consideradas de interesse público, então seria razoável supor que a falta de consciência desse papel profissional tende a aumentar o risco de que haja maior opacidade, menor participação e menos intensa mobilização de atores relevantes – sobretudo os grupos menos organizados – em políticas públicas. (Coutinho, 2010 p.6)

O objetivo desse trabalho é situar o campo do direito nos seus múltiplos significados com a história de Morada Nova de Minas. A cidade tem uma história que se alinha a inúmeras outras impactadas por grandes projetos, mas que, certamente, guarda suas singularidades. A cidade enfrentou reorganização econômica e social e, ainda, guarda traços de desigualdades sociais profundas e da ausência de políticas públicas, os diretos sociais prestacionais ou de segunda geração, que são ancoradas em direitos de proteção e oportunidade.

As mobilizações em busca de direito, motivadas pela invisibilidade da comunidade prejudicada pela ausência de políticas públicas previstas como garantias constitucionais, são as provocações deste trabalho – que pretende apresentar a estrutura atual do município de Morada Nova de Minas e os impactos causados pela construção da barragem de Três Marias, na década de 60, gerando diversos conflitos socioambientais, econômicos, culturais e humanos na cidade. Por último, será apresentada a sugestão de mitigação de alguns dos problemas existentes, ou pelo menos, um caminho para este diálogo.

Assim, para alcançar os objetivos desta pesquisa, foi definido como unidade de análise o município de Morada Nova de Minas, por ter sido a comunidade mais afetada pela área alagada[114]e pelos problemas advindos do represamento causado pela contenção das águas da barragem de Três Marias. Portanto, foi traçado o seguinte plano: realização de entrevistas semiestruturadas com trinta (30) moradores da cidade que vivenciaram o encobrimento das terras férteis pela chegada das águas da barragem. Os questionários foram replicados de forma igual para todos e as perguntas verbalizadas e filmadas, o que gerou um posterior documentário audiovisual. Estas entrevistas serão utilizadas em trabalho posterior.

Em seguida, foi realizado levantamento da literatura específica sobre o tema, em arquivos públicos e privados (diários, publicações de moradores locais, jornais e cartas), documentos oficiais, estudos de viabilidade, impacto e custo das obras e alinhados às entrevistas, fizemos a utilização das regras de inferência descritiva usando os dados coletados e triangulados para pontos ainda desconhecidos.

Nas palavras de Foucault é

Um novo sujeito que fala: é alguém diferente que vai tomar a palavra na história, que vai contar a história; alguém diferente vai dizer ‘eu’ e ‘nós’ quando narrar a história; alguém diferente vai fazer o relato da sua própria história; alguém diferente vai reorientar o passado em torno de si mesmo e de seu próprio destino (FOUCAULT, 2010, p.112)

Sobre o alcance do papel do direito na vida das comunidades tradicionais, enquanto pessoas invisíveis e não consultadas sobre as decisões que lhes afetaria à época, “Tão importante quanto dizer o que o direito é, é compreender o que ele faz, o que requer uma abordagem ou método de investigação” (Coutinho, 2010, p.18). Para a aplicação efetiva de políticas públicas no Brasil é necessário o cumprimento de algumas tarefas para o direito e para os operadores em políticas públicas “em apontar fins e situar as políticas no ordenamento (direito como objetivo), criar condições de participação (direito como vocalizador de demandas), oferecer meios (direito como ferramenta) e estruturar arranjos complexos que tornem eficazes essas políticas (direito como arranjo institucional)” (Coutinho, 2010, p.11).

2. CONTEXTO HISTÓRICO DA CIDADE DE MORADA NOVA DE MINAS

“A água foi cobrindo os roçados, as plantações. E a pergunta era sempre a mesma: E agora, pra onde é que a gente vai?[115]”.

Morada Nova de Minas fica na região centro-oeste do estado de Minas Gerais e faz parte da microrregião da cidade de Três Marias, na região do alto São Francisco. A cerca de trezentos quilômetros da capital do estado, Belo Horizonte, e quinhentos e setenta quilômetros da capital do país, Brasília, no Distrito Federal, a cidade possui uma área de 2.084 km². Limita-se ao norte com os municípios de Três Marias e São Gonçalo do Abaeté, ao sul com Abaeté, a leste com Felixlândia, a oeste com Tiros e a sudeste com Biquinhas e Paineiras[116].

Os principais rios que cortam o município são: Sucuriú, Indaiá, Borrachudo e a represa de Três Marias[117], formada em 1960 para promover a navegabilidade do rio São Francisco. .A topografia e as disponibilidades de recursos hídricos apresentam-se, segundo este estudo, como fatores favoráveis à irrigação e à mecanização agrícola[118].

A formação da represa de Três Marias ocorreu por meio de construção de barragem pela Comissão do Vale do São Francisco[119], que ocasionou o alagamento de 1.000 km[120] dos quais cerca de 85% estão no território de Morada Nova de Minas, tornando, portanto, necessário o transporte através de barcas e posteriormente balsas, disponibilizadas para o que os moradores, ilhados pela chegada das águas, pudessem ter acesso à recém-construída BR-040 que liga o Distrito Federal ao estado do Rio de Janeiro, cruzando o estado de Minas Gerais.

Em 1981 realizou-se estudo do sistema viário de Morada Nova de Minas para diagnosticar problemas relacionados aos transportes e ligações da cidade com outras da região. O relatório foi elaborado por engenheiros e técnicos do Ministério dos Transportes em conjunto com Ministério do Interior, responsável à época pela Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco – Codevasf (antiga Suvale), com o objetivo de:

1- proposição de sistemas tarifários alternativos, para o serviço de transporte por balsas em seis locais de travessia no lago, de modo a cobrir os gastos advindos da prestação desse serviço; 2- A eventual proposição de rotas alternativas que permitam a supressão de algumas das atuais travessias; 3- O fornecimento de um sistema de contagem de tráfego, projeção e análise dos dados coletados[121], estudo este com projeção de 10 anos.

O discurso da época, que perdura aos dias atuais, é de que não houve diálogo entre Estado e Comunidade sobre o volume de água que a barragem traria ao município, o número de hectares que seriam ocupados, os meios de transporte que seriam fornecidos para os que ficaram ilhados. Não foram informados valores de desapropriação ou qualquer expectativa de direitos que fosse cabível. Documentos históricos relatam a tentativa de diálogo do Prefeito da época com o então Presidente da República, Juscelino Kubitschek, sobre os prejuízos da construção da barragem e possíveis ajustes mitigatórios, uma vez que recuperação seria impossível[122].

No documento entregue ao Presidente, o então Prefeito da cidade, Agenor Soares dos Santos solicita ao município: que seja fornecida energia oriunda da hidroelétrica de Três Marias; indenização justa aos desapropriados; passagem da rodovia que desse acesso à nova Capital Federal; Construção de um Ginásio gratuito e um hospital regional[123].

Mas o Prefeito não logrou êxito em sua ida ao Rio de Janeiro, em 1957, quando no IV Congresso Brasileiro de Municípios entregou o documento ao Presidente. A precariedade dos transportes hidroviários e terrestres, a ausência de hospital público, de reparação social e ambiental ainda é atual na região, passando de geração por geração a humilhação e o descaso de um povo invisível, furtado o direito de pertencimento aos que viram no êxodo o único caminho para sua sobrevivência.

Têm em comum, todavia, uma preocupação quanto aos direitos de minorias culturais em relação a estados nacionais e a várias maiorias culturais, e sempre envolvem batalhas sobre direitos culturais pois relacionam-se à cidadania nacional e  questões ligadas ao pertencer(APPADURAI, 2009, p. 54).

Provisoriamente foram usados barcos de pequeno porte para realizar as travessias. À época da construção da barragem, com a chegada das águas, a única saída rodoviária dava acesso ao então distrito (hoje município) de Biquinhas, a sudeste de Morada Nova de Minas.

O sistema rodoviário destaca-se pelo mau estado de conservação desde a época dos estudos, que já relatavam[124] o revestimento primário que liga a sede do município à BR-040, através da travessia do nomeado “Porto Novo”, sendo esta a principal rota de acesso à cidade e o grande problema da população há 58 anos, pois além de estradas precárias, o transporte hidroviário também o é.

Sobre o subsistema hidroviário de transporte no lago formado pela barragem de Três Marias, nas oito travessias existentes na área, aduz o seguinte[125]: As extensões das travessias variam de 400m a 3.000m e os tempos de navegação são de 4 a 30 minutos. Dentre os problemas detectados destacam-se:

  1. O estado de conservação das embarcações varia de regular a precário, com a maioria delas apresentando defeitos técnicos e vazamento em sua estrutura;
  2. Os tipos de motores não são os mais indicados à navegação, além do que a falta de padronização dos mesmos dificulta a sua manutenção. Por outro lado, alguns deles já foram retificados três vezes;
  3. A resolução da Capitania dos Portos de Pirapora, que exige, como medida de segurança, no mínimo, dois tripulantes para cada embarcação, não é cumprida em algumas travessias;
  4. Os atracadouros encontram-se, de maneira geral, em regular estado de conservação. Em alguns, o aterro que adentra no lago, para atracação das balsas, necessita de elevação e colocação de camada de revestimento primário. A falta de uma manutenção periódica concorre, ainda, para dificultar as operações de atracação e desatracação das balsas.

O estudo ora analisado viabilizou tarifas e receitas, registrando desde aquela época da impossibilidade da gestão sem subsídios, uma vez que não seria possível sequer cobrir os custos variáveis das embarcações. Os custos fixos são bastante elevados, tornando o subsistema, de certa forma, antieconômico[126].

Designou-se, à época, que a CEMIG[127] – Companhia Energética do Estado de Minas Gerais, através de convênio, pagaria à Codevasf, uma quantia anual para as despesas na operação e manutenção dos serviços na área de reservatório[128]. A Codevasf, por sua vez, ficaria responsável por repassar ao município os valores correspondentes ao custo com operação e manutenção das balsas.

A responsabilidade da CEMIG origina-se da construção da hidroelétrica junto à barragem, tornando-a responsável e pagadora dos royalties ao município sob os valores gerados pela energia elétrica. Sobre os diálogos e tratativas, observamos o seguinte:

de certa forma, polarizei a decisão. Eu sabia que a Comissão [CVSF] tinha recursos para aplicar em Três Marias: combinei com o pessoal da CEMIG estudar um projeto para que parte das obras hidráulicas, a barragem e as tomadas d’água fossem feitas pela Comissão; e que a CEMIG instalaria unidades de geração próprias ao pé dessa barragem. Então, fez-se um acordo: a obra era da Comissão, mas a utilização seria da CEMIG. O quilowatt gerado seria da CEMIG, e a barragem, da Comissão, porque era uma obra de múltipla finalidade. Nós montamos um esquema pelo qual a CEMIG teve uma delegação da Comissão para fazer a obra. Inclusive a concorrência para construção da obra, feita pela Comissão com o apoio da CEMIG e do BNDE. O projeto final foi revisto pela Internacional de Engenharia e, depois, feita a concorrência; a CEMIG liderou a construção, no governo Juscelino Kubitschek (CEMIG. Projeto memória, v. 1. Lucas Lopes, 1986:48) (PAULA, 2017, p.5)

Grandes obras são realizadas com apoio e participação de múltiplos agentes, o que gera a expectativa de que a reparação e as políticas públicas também serão de responsabilidade solidária entre os beneficiários econômicos da execução dos projetos. Empresas públicas nacionais e estrangeiras[129] executaram a obra da construção da barragem e da hidroelétrica de Três Marias, fruto de acordos políticos e planos nacionais de operação e controle das águas e da energia elétrica fornecida[130].

O capital estrangeiro, por sua vez, passou a potencializar a exploração do trabalho mediante o uso e domínio da tecnologia em processos, máquinas e equipamentos. Essa é, para Oliveira, a equação original surgida nos anos 1950 que será, doravante, aprofundada. Tratava-se, portanto, de todo um conjunto de ideais e de práticas vinculadas a uma função qualitativamente distinta do Estado brasileiro, que foi tecida por meio de embates sociais e que abrange variados espaços no campo e na cidade. Os empreendimentos da Cvsf, Tres Marias, Cemig, Furnas, a anterior Companhia Hidrelétrica do São Francisco (1948) e a hidrelétrica de Paulo Afonso, Sobradinho (Ver SYGAUD, 1986), a construção de Brasília etc., fazem parte de ações de cunho desenvolvimentistas que incluíram vastas sub-regiões de Minas Gerais, Centro-Oeste e Nordeste no mapa econômico nacional. O que, nem de longe, resolveu os problemas sociais que sempre voltam à tona e que são usados para novos projetos que beneficiam em maior escala os detentores do capital, utilizando sempre argumentos ligados ao “progresso”, geração de empregos, etc. 4 Ou seja, o “atraso”, o “subdesenvolvimento”, “interesses regionais” 5 são sempre invocados para a realização de novos projetos, ou “progresso”, que ampliam a escala da expropriação. Sabemos que as populações se manifestam, com resistências, às vezes forçando modificações nos planos originais, obtendo algumas conquistas. (PAULA, 2017, p. 9)

Ressalta-se, no que tange ao transporte das balsas, terem sido realizadas tratativas de gestões entre a Codevasf e a Franave (empresa fundada em 1963, vinculada ao Ministério dos Transportes e dissolvida em 1990) entendendo que esta seria a empresa competente para gerir transporte das balsas. O estudo[131] analisou o sistema tarifário alternativo, instituindo a cobrança pela passagem nas travessias com cálculos por número de pessoas em cada veículo, base no custo de serviços e custos operacionais. Contudo, a empresa Franave, vinculada ao DNIT, foi extinta antes que pudesse ser feito. O poder público (federal e municipal) decidiu, desde a instalação das balsas, que caberia à população local arcar contribuir com os custos do transporte realizado pelas balsas, incidindo, portanto uma tarifa por veículo[132], que incide até os dias atuais.

A partir dessas considerações, é possível dizer que a Codevasf estaria mantendo desde a construção da barragem até os dias de hoje, em caráter precário e de forma improvisada o subsistema de navegação implantado, mesmo que algumas razões econômicas não o justifiquem. O subsistema foi avaliado como antieconômico em razão da pequena demanda de transportes, das tarifas altamente subsidiadas e do baixo percentual (30% à época) de participação financeira da CEMIG, nas despesas de operação e manutenção do subsistema[133].

Reconhece ainda, o estudo realizado em 1981, que os usuários já prejudicados com a construção da barragem não podem arcar com o custo, e que o município entrou em decadência após a formação do lago, que inundou as melhores terras com o consequente declínio de sua produção agrícola e sua população rural. No entanto, acreditavam que a fronteira agrícola teria grandes chances de expandir-se dada a grande parte do cerrado inexplorado, as boas condições climáticas, a disponibilidade de recursos hídricos para irrigação, a localização geográfica privilegiada pela proximidade dos maiores centros do país, para possível desenvolvimento integrado em projetos de irrigação voltados para a agroindústria[134].

Dentre as principais recomendações, entendeu-se necessário o melhoramento na operação do subsistema de navegação através de[135]:

-substituição gradual dos motores, com vistas a sua padronização;

-melhoramentos e manutenção periódica nas embarcações, atracadouros e reaparelhamento do estaleiro;

-reestruturação e treinamento pessoal de bordo e recrutamento de pessoal especializado para o estaleiro;

– reestruturação nos horários de travessia;

Antes da construção da barragem, a linha ferroviária existente possuía cerca de 180 quilômetros de extensão que ligava a cidade de Divinópolis ao distrito de Frei Orlando – pertencente ao município de Morada Nova de Minas.

Inesperada é a forma verbal que os Moradenses usam para exasperar sua mágoa pela forma abrupta como a barragem foi construída. Naquele tempo, o presidente do Brasil, Juscelino Kubitschek de Oliveira recorreu a então Comissão do Vale do São Francisco – CDVSF[136], para realizar os estudos de implantação do grandioso projeto que estava por vir e construir a barragem com a ideia de facilitar a navegação do rio.  Participou também a CEMIG, com o projeto da construção da hidroelétrica, conforme consta dos registros dos livros e relatórios consultados. Vejamos.

“os projetos foram elaborados para além de sua realidade “geográfica e energética”, conjugando questões políticas com outras mais amplas vinculadas à lógica estatal naquele momento e à própria expansão do capital. Algumas regiões e sub-regiões foram “eleitas” por serem capazes de cumprir uma função dentro da opção econômica considerada estratégica, que era prover de energia o entorno de Belo Horizonte, região considerada com mais potencial econômico, bem como prover a mesma região de fontes abastecedoras de alimentos e matérias-primas para a indústria. Esse desenvolvimentismo “seletivo” seguiu os eixos de interesse dos donos do capital, às vezes mesclados em (e disputados por) interesses de frações de classe dominantes locais. Os engenheiros, naquele período foram, então, os artífices dessa hegemonia. Todavia, o caráter classista desses empreendimentos raramente aparece, pois eles são sempre visto como “geral”, para o benefício de todos”. (PAULA, 2017. p.6)

Ainda distrito em 1941, ao tratar de sua emancipação administrativa, consta em relatório enviado ao então Governador do Estado de Minas Gerais, ter a vila de Morada Nova cerca de 12 mil habitantes, dos quais 1.600 habitavam a futura sede do município e o restante pertencente a área rural[137]. Já na década de 60 o censo demográfico do IBGE registrou 11.287 habitantes;[138] em 1970 caiu para 8.352 e em 1980 para 6.457 pessoas[139].

O município sofreu um decréscimo acentuado de sua população entre as décadas de 60 a 80, principalmente na zona rural, cuja participação no total do contingente demográfico passou de 72% em 1960, para 53%, em 1980[140], período de grandes mudanças pela chegada das águas da barragem, ocupado os solos férteis, obrigando milhares de famílias a buscarem sobrevivência em outras cidades.

 Apesar da alarmante situação em que se encontrava o município, o estudo realizado considerou que o êxodo rural iria diminuir na década de 90, sob o argumento de que empresas voltadas para atividades agropecuárias e agroindustriais estariam se instalando naquela área e a população voltaria a crescer e a atingir o número de habitantes da década de 70 (11.287) [141].

O previsto não ocorreu e a população, de acordo com o IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, em 2007 era de 8.297 habitantes, sendo a população masculina de 4.310 e a feminina de 3.970. A área urbana tem a população de 6.402 habitantes e a zona rural de 1.895[142]. No último censo realizado pelo IBGE[143] em 2010 a população registrada foi de 8.255 pessoas, apresentando a densidade demográfica de 3,96 hab./km².

3. O NASCIMENTO DO PERÍODO CONTINGENCIAL

“Eu morava no mateiro quando a água subiu. Um dia fomos tirar os milhos das roças, a represa tava subindo, mas foi subindo igual leite fervendo. E nos catando milho, quebrando e botando dentro da canoa. Você nunca viu o tanto que é milho ficar estragado e cheio de formigas[144]”.

Com o alagamento das terras férteis do município, em razão da chegada das águas represadas do rio São Francisco pela barragem construída em Três Marias, a cidade de Morada Nova de Minas passou a se organizar de forma inédita e precária, sem qualquer expectativa prevista no estudo de prospecção em análise: nenhuma indústria ou produção de grande porte instalou-se por lá e ainda, até os dias atuais, a responsabilidade pelo convênio de operação e manutenção das balsas é atribuída à Codevasf – empresa que não possui estrutura operacional e administrativa adequada para este tipo de serviço, mas ainda o faz, através de convênio, na operação e manutenção dos transportes fluviais.

Atualmente são seis Portos de Travessia, que levam aos seguintes destinos:

  • Porto Novo e Porto das Melancias levam à BR-040;
  • Porto do Indaiá de Baixo conduz ao Povoado do Traçadal;
  • Porto do Indaiá de Cima conduz ao Povoado de Pindaíba;
  • Porto da Extrema conduz ao Distrito de Frei Orlando;
  • Porto de São Vicente conduz ao município de Abaeté;

Os povoados que compõe o município são: Frei Orlando, Traçadal, Pindaíba, Vau das Flores e Cacimbas, estes dois últimos não necessitam serviço de travessia por balsa, embora sejam carentes de outras demandas de infraestrutura escolar, de saneamento básico, saúde e moradia.

O município era formado por uma população predominantemente rural, com elevada produção de grãos que abastecia toda a região com seus insumos: algodão, feijão, milho, dentre outros. Em tempos atuais, a produção ainda é fortemente agrícola, mantida por perímetros irrigados pelo uso da água, que também é usada na criação de peixes em tanque rede e pecuária[145]. Contudo, o desenvolvimento econômico dessas atividades é primário e depende de ações do governo para existirem e prosperarem.

Caberia entender como as formas de gestão de políticas públicas, os seus instrumentos e os seus preceitos organizativos estariam ligados não apenas a projetos ideológicos, mas, mais do que isso, a um projeto mais amplo, de controle dos comportamentos, de construção da passividade, da “docilidade” dos indivíduos; um projeto de “governo” das condutas, de padronização dos comportamentos e de restrição das possibilidades de contraposições (SANT’ANNA PORTO, 2014, p.382/383).

            Ao ocupar as terras férteis de um município, alterando toda a dinâmica e as formas de subsistência de uma comunidade, é dever do Estado proporcionar novas formas de existir e sobreviver. Uma vez que lhes foi imposto o alto custo do progresso, deveria, em contrapartida, haver mitigação do período contingencial que ainda vivenciam.

            A ocupação da água sobre as terras férteis gerou especulação sobre o baixo valor das indenizações que seriam feitas pelo Estado, e aproveitando-se do medo e da insegurança econômica, o desconhecimento jurídico e difícil acesso às informações naquele tempo, a concentração das terras passa a ser de uma única empresa agropecuária, que pouco ou quase nada desenvolveu para a economia, emprego e crescimento local[146].

As representações sobre a cidade e sua cultura são elementos historicamente construídos, mantidos ou não pela sua resistência e por interesses políticos, pelas relações sociais e econômicas. Invariavelmente, fatores econômicos nacionais e regionais predominam e sobrepujam interesses locais. Esses dinamismos entre escalas territoriais condicionam as relações sociais, as ideologias e as estruturações políticas.

A velocidade e a intensidade com que elementos tanto materiais quanto ideológicos agora circulam através de fronteiras nacionais criaram uma nova ordem de incertezas na vida da sociedade. O que quer que caracterize esse novo tipo de incerteza não se encaixa facilmente na profecia dominante, weberiana, sobre a modernidade, segundo a qual as formas sociais mais antigas e íntimas iriam se dissolver e ser substituídas por ordens burocrático-legais altamente regulamentadas, governadas pelo crescimento dos procedimentos definidos e da previsibilidade. As formas dessa incerteza são, decerto, variadas. Um tipo de incerteza é aquele que se reflete diretamente nos temas abordados pelo censo: quantas pessoas desse ou daquele tipo existem realmente num dado território? (…) Outra incerteza é sobre se uma determinada pessoa é aquilo que ele ou ela diz ser ou parece ser ou tem sido historicamente (APPADURAI, 2009, p. 15).

As décadas de 1950 e 1960 foram marcadas por mudanças ocorridas no Brasil em seu período de crescimento, a mudança da capital do país do Rio de Janeiro para a recém-construída Brasília, registro de um período de construções e projetos de alta expectativa de geração de empregos, crescimento do país e investimento nos grandes setores, dentre eles o investimento em produção de energia elétrica pelo uso da água.

A brutalidade, degradação e desumanização que frequentemente acompanham a violência étnica dos últimos quinze anos são um sinal das condições em que o próprio limite entre diferenças menores e diferenças importantes tornou-se incerto. Nessas circunstâncias, a raiva e o medo que a incompletude e a incerteza, juntas, produzem não podem mais ser tratados por meio da extinção ou expulsão mecânicas das minorias indesejáveis. A minoria é o sintoma, mas a diferença em si é que é o problema subjacente. Assim, a eliminação da diferença em si mesma (não apenas o hiperapego às diferenças menores) é a nova marca registrada dos atuais narcisismos predatórios em grande escala” (APPADURAI, 2009, p. 19).

É preciso compreender que fatores não considerados à época do crescimento do país em 60, eram e são de valor imensurável para o convívio humano, para a história, cultura e formação da identidade de um povo. Em maior escala, o comportamento governamental exprime ainda a ausência de unidade política quando uma minoria é esmagada por planos grandiosos de crescimento econômico impostos, de forma a sobrepor a preservação do meio ambiente, da cultura local, do respeito às origens e hábitos de um determinado povo.

As minorias, porém, não surgem pré-fabricadas. Elas são produzidas nas circunstancias especificas de cada nação e de cada nacionalismo. Frequentemente são portadoras de lembranças indesejáveis dos atos de violência que produziram os estados existentes, da convocação militar forçada ou da expulsão violenta à medida em que novos estados se formavam. E, além disso, como demandantes fracos dos direitos concedidos pelo estado ou como drenos dos recursos altamente contestados do país, elas também lembram os fracassos de vários projetos de estado (socialista, desenvolvimentista e capitalista). Elas são as marcas do fracasso e da coação. São um constrangimento para qualquer imagem, patrocinada pelo estado, de pureza nacional e justiça do estado. São, portanto, bodes expiatórios no sentido clássico (APPADURAI, 2009, p. 38).

Para a concretização dos projetos, pequenas cidades foram prejudicadas, como foi o caso de Morada Nova de Minas, cuja comunidade era invisível para o governo, uma vez que economicamente não possuíam simbolismo que justificasse a sua proteção.

4. MORADA NOVA DE MINAS HOJE – POLÍTICAS PÚBLICAS E A MITIGAÇÃO DE IMPACTOS

Eu era menino e a lembrança era só os mais velhos reclamando. Tristes com a represa chegando, que antes não acreditavam, e de repente a água tava chegando e pegando as lavouras. O pessoal correndo para desmontar a sede, desmontar cerca, curral. Naquele tempo 70% da população era rural e foram mudando, tendo que sair das suas casas, porque a represa tava tomando tudo. Causou uma tristeza muito grande. Antes um progresso grande e de repente mudou tudo. Mas hoje, Morada Nova não sabe viver sem essa água. Essa deflação do lago quando chega a 10% mais prejudica do quando ela veio. Hoje nos vivemos em função dessa água. Você tem que se adaptar[147].

Em 2009 o município recebeu a doação de tanques de criação de peixe e cursos de qualificação para os produtores locais desenvolverem e profissionalizarem a atividade de produção de tilápia em tanque rede[148], sendo esta uma das principais atividades econômicas na atualidade.

Para o desenvolvimento das atividades econômicas do município, além da qualificação da mão de obra e da produção, faz-se necessário a interlocução com o grande empresariado a fim de promover a comercialização dos produtos, alinhar expectativas de demanda, questões orçamentárias, financeiras e logísticas. Limitações sobre técnicas legais de exportação dos insumos, também precisam ser sanadas uma vez que a cadeia de produção e comercialização além de complexa exige planejamento, investimento e rotas de escoamento da produção.

Os impactos causados pela construção da barragem refletem ainda hoje de forma negativa na vida local, o que torna urgente a perspectiva de atuação do Estado em fazer cumprir a previsão constitucional contida no artigo 5º, inciso XXXV “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, fazendo crer, a partir desta norma, que a implantação de direitos sociais através de políticas públicas é um direito a ser aplicado.

São as peculiaridades – o setor a que se refere sua configuração administrativa e institucional, os atores, seu histórico na administração pública, entre outras variáveis – que permitem a discussão sobre o direito das políticas públicas, não uma teoria jurídica autocentrada e distanciada da realidade (Coutinho, 2010, p. 24)

Pontua-se ainda, o distanciamento causado pelas longas estradas de terra, o transporte hidroviário precário e restrito[149], somados à falta de informações e ausência de recursos financeiros. O cenário apresenta o desafio de associar políticas públicas ao desenvolvimento das comunidades tradicionais afetadas pelas águas da represa construída.

Existem hoje, seis passagens de travessia hidroviária realizadas por balsas construídas na década de 70, cujo transporte é subsidiado pelo governo federal e municipal e ainda, tarifado aos passageiros. Anteriormente a cobrança era feita por pessoa e hoje, por veículo, alternando os valores pelo porte. Os valores geram transtorno diário para os que vivem em zonas rurais e dependem diariamente deste meio de locomoção.

 “(…) as minorias não nascem, mas são feitas, em termos históricos. Em suma, é através de escolhas e estratégias específicas, muitas vezes feitas pelas elites do estado ou por líderes políticos, que determinados grupos, que ficavam invisíveis, são transformados em visíveis como minorias contra as quais podem-se desencadear campanhas caluniosas, que levam a explosões de etnocídio. Portanto, em vez de dizer que as minorias produzem violência, seria melhor dizer que a violência, especialmente no âmbito da nação, requer minorias. E essa produção de minorias exige que se desenterrem algumas histórias e se enterrem outras. Esse processo é que explica as maneiras complexas com que choques e questões globais “implodem” gradualmente em nações e localidades, frequentemente na forma de violência paroxística em nome de alguma maioria”. (APPADURAI, 2009, p. 40)

Há uma provocação para a atuação do Estado enquanto detentor do poder econômico e ainda, como o provocador da situação em que aquela comunidade se encontra hoje. As narrativas dos atores apresentam frustração e expectativas de direitos, que foram vilipendiadas através de suas terras ocupadas, de suas atividades econômicas frustradas e ainda, a barreira de locomoção criada pelas águas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O texto seguiu a descrição de questões sugeridas pelas narrativas dos entrevistados, todos moradores de Morada Nova de Minas ou que tiveram a vida impactada por ações do poder público, especialmente pela construção de Três Marias. Objetiva e subjetivamente, os moradores enfrentaram mudanças na distribuição de terras, reorganização da vida urbana, no regime de produção e trabalho, no acesso a recursos e no contato com cidades vizinhas e, sobretudo, nas condições de acesso aos direitos sociais elementares.

As políticas públicas dispõem de inúmeros recursos normativos e institucionais para a mitigação dos problemas causados tanto pela ação de conglomerados privados quanto públicos. Os principais recursos referem-se às capacidades governativas, especialmente o planejamento compreensivo, a exemplo da elaboração de planos diretores[150], que abrangem a ponderação e avaliação de necessidades, objetivos e recursos, identificando deficiências e definindo agendas e sequências de ações para enfrentar os problemas e garantir direitos[151].

A situação de Morada Nova não é original no Brasil, inúmeros municípios sofreram e sofrem os impactos das grandes obras efetivadas sem a preocupação com o planejamento global e sem preocupações com seus impactos socioeconômicos, mas, como já se escreveu, o município carrega uma história peculiar.

A distância geográfica, somada ao difícil acesso, isola as atividades produtivas e impossibilita a dinamização da economia local, restringindo-a. A situação é internalizada nas experiências vividas subjetivamente e na memória das experiências vividas e narradas por pais, mães, avôs e avós, bem como de outros familiares e moradores. O isolamento físico é também um isolamento subjetivo em relação aos contextos urbanos circunvizinhos, o que não impede a experimentação de ricas experiências de reflexão e busca de sentido para os acontecimentos locais. Seja como for, essas experiências também têm um sentido objetivo e moral. Diferentes recursos podem e devem ser mobilizados para a garantia de direitos inscritos no texto constitucional que assegura um sentido amplo de cidadania social, de participação nos processos decisórios e em processos de ação pública ancoradas em direitos.

A título de exploração de alternativas de ação pode sugerir algumas linhas de ação. Em primeiro lugar, que as ações de mitigação sejam iniciadas pela demanda mais urgente, que é o asfaltamento das vias de ligação entre a cidade e a BR-040, acompanhada da construção de via de acesso sobre a represa – ponte ou aterro – ligando os acessos das estradas vicinais de maneira a aposentar o uso de balsas neste trecho, que é o principal acesso à cidade. Nessa linha, e na falta de recursos financeiros nas municipalidades, abrem-se caminho para a participação da iniciativa privada, com implementação de parcerias entre grandes empresas, pequenos produtores, poder público e população a fim de viabilizar o crescimento da economia com a possibilidade de escoamento de insumos e produtos locais.

Neste cenário, é sempre difícil identificar se as ações como as fixadas em grandes linhas no parágrafo anterior têm o sentido de uma política de desenvolvimento com equidade regional ou se se tratam de manobra política não democrática, de exploração e manutenção de políticas seletivas de manutenção de hegemonia de poder. Por essa razão é possível associá-los com a ativação de inúmeros mecanismos participativos previstos constitucionalmente e, de certa forma, garantidas por órgãos públicos, como o próprio Ministério Público e Defensoria Pública.

Não é possível esgotar o tema neste trabalho, mas certamente nossas lentes procuram ajustar elementos trazidos pelas narrativas e entrevistas ouvidas com outros aspectos, objetivos, estruturais ou previstos legalmente. Como se viu, a estrutura da descrição foi conduzida pelas falas dos entrevistados, mas as triangulamos com a análise de documentos oficiais e estudos oficiais publicados que justificaram a construção da obra pública estudada.

O trabalho discute as descrições reducionistas do direito, formal e dogmática, e o coloca em contexto real, impresso não em textos de hermenêutica complexa, mas nos contextos da dialética do posto e oficial, com o vivido, ou como diria Lyra Filho (1986), na dialética social do direito[152].

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NOTAS:

[1] Trabalho apresentado ao Espaço de Discussão n° 4: Povos e comunidades tradicionais, questão agrária e conflitos socioambientais do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[2] Mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB) e Graduado em Direito pela Universidade Federal de Goiás – Regional Goiás (UFG). Professor do Centro Universitário de Goiatuba (Unicerrado) e da Faculdade de Jussara (FAJ). Pesquisador do Observatório Fundiário Goiano (OFUNGO) e do Direito Achado na Rua. Correio eletrônico: [email protected].

[3] A transformação do latifúndio em agronegócio não aponta a inexistência do latifúndio improdutivo na atualidade, trata-se apenas de uma mudança de padrão hegemônico da estrutura fundiária.

[4] A sistematização da descrição do presente artigo está presente na dissertação: ‘A solução é alugar o Brasil? Um estudo dos representantes do agronegócio na disputa normativa sobre a estrangeirização de terras no Brasil’ defendida pelo autor do artigo em 2017 pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília (UnB).

[5] A sistematização do presente tópico está na dissertação: ‘A solução é alugar o Brasil? Um estudo dos representantes do agronegócio na disputa normativa sobre a estrangeirização de terras no Brasil’ defendida pelo autor do artigo em 2017 pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília (UnB).

[6] Resumo de artigo apresentado ao Espaço de Discussão ED 4 (Povos e comunidades tradicionais, questão agrária e conflitos socioambientais) do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[7] Mestranda do Programa de Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (PPGSD/UFF), Bacharel em Direito pela Universidade Federal Fluminense (2013). Email: [email protected]

[8] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, volume 1: Parte Geral. 8ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 288

[9] Celso Antônio Pachedo Fiorillo, autor de obras como o Curso de Direito Ambiental Brasileiro. Edna Cardoso Diaz, autora de obras como Direito Ambiental no Estado Democrático de Direito e Laerte Fernando Levai, autor de Direito dos Animais: O Direito Deles e o Nosso Direito sobre Eles.

[10] Entrevistado do programa Direto ao Ponto deste domingo, dia 31, o deputado Valdir Colatto (PMDB-SC) fez uma análise de alguns temas que dominaram o agronegócio em 2017 – Canal Rural – Leia mais no link http://www.canalrural.com.br/noticias/direto-ao-ponto/armamento-rural-esperanca-setor-2018-70961

[11] Trabalho apresentado ao Espaço de Discussão ED 4 – Povos e comunidades tradicionais, questão agrária e conflitos socioambientais do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[12] Doutora em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido pela Universidade Federal do Pará (2006), Pós-Doutora pela Universidade Federal de Santa Catarina, Mestre em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Promotora de Justiça do Estado do Pará

[13] Doutorando em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Pará, Mestre em Direito pela Universidade do Estado do Amazonas (2012), Advogado.

[14] No artigo faz-se a exposição de alguns Protocolos Comunitários: o Protocolo Comunitário das Raizeras do Cerrado, Protocolo Munduruku, Protocolo Comunitário do arquipélago de Bailique, Protocolo da Comunidade Quilombola de Abacatal.

[15] Este é um dos graves equívocos da lei, repete a formulação “populações indígenas” quando deveria ter observado a terminologia estabelecida pela convenção 169 da OIT que consagrou “povos indígenas”.

[16] Este é um dos graves equívocos da lei, repete a formulação “populações indígenas” quando deveria ter observado a terminologia estabelecida pela convenção 169 da OIT que consagrou “povos indígenas”.

[17] Em estudo sobre igualdade Jiménez Perona diferencia a igualdade prevista em Immanuel Kant, vinculada com a igualdade formal, ou seja, perante a lei. Enquanto Rousseau propõe um modelo alternativo, de igualdade econômica e política, denominada de igualdade material.

[18] Combinação da interpretação do art. 3º com o art. 34 da Declaração dos Povos Indígenas da Organização das Nações Unidas de 2007, In: http://www.un.org/esa/socdev/unpfii/documents/DRIPS_pt.pdf. Acesso em: 07.06.2016

[19] As quebradeiras de coco babaçu se autodefinem socialmente pelas atividades comuns de extrativismo de coco babaçu, constituindo-se um grupo de mulheres oriundas de um campesinato formado por descendentes de negros escravizados, de índios destribalizados e de nordestinos deslocados. (PORRO, 2002), estando presente nos Estados do Pará, Maranhão, Piauí e Tocantins.

[20] Segundo informa a obra organizada por Dias e Laureano (2014), o bioma do cerrado possui cerca de 2014 milhões de hectares, ¼ do território nacional, possui uma rica sociobiodiversidade, contendo 30% da biodiversidade brasileira. Possui um mosaico de vários tipos de vegetação desde campos até florestas, com uma flora nativa com aproximadamente 12.000 espécies catalogadas, sendo 44% endêmicas.

[21] Para maiores informações consultar a Proposta da Criação do Protocolo de Consulta de Montanha e Mangabal. In http://www.prpa.mpf.mp.br/news/2014/arquivos/Protocolo%20de%20Consulta%20Montanha%20e%20Mangabal_Set_2014.pdf

[22] O Rio Tapajós é um rio que nasce no Mato Grosso, banha parte do Estado do Pará e desagua no Rio Amazonas, com 810 km. O Greenpeace e os povos indígenas da região do Tapajós tem denunciado o projeto para a construção da Hidrelétrica de Tapajós, na probabilidade de repetição dos danos ambientais, étnicos, culturais e sociais que ocorreram com a implementação da Hidrelétrica de Belo Monte. In www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/09/150928_greenpeace_tapajos_ e noticias.terra.com.br › Notícias › Ciência › Sustentabilidade Acesso em 25.05.2016.

[23] In http://fase.org.br/wp-content/uploads/2016/01/PROTOCOLO-MONTANHA-E-MANGABAL.pdf Acesso em 25.05.2016.

[24] MUNDURUKU, Protocolo de Consulta Munduruku. Realização Movimento Munduruku Ipereg Ayu, Associações: DA’UK, PUSURU, WUYXAXIMÃ, KEREPO e PAHYHYP. Projeto “Consulta prévia, livre e bem informada: um direito dos povos indígenas e comunidades tradicionais da Amazônia” e pelo Ministério Público Federal. In http://www.consultaprevia.org/files/biblioteca/fi_name_archivo.326.pdf Acesso em 07.06.2016.

[25] O arquipélago de Bailique é um conjunto de ilhas no Estado do Amapá, composto por 7 mil habitantes espalhados pelas 8 ilhas, com 32 comunidades e 1.700 quilômetros quadrados de área, incluindo água e continente. A fartura de peixes e açaí se reflete nos rostos de um povo bonito e saudável. In http://www.greenpeace.org/brasil/pt/Blog/mar-doce-mar-do-bailique/blog/40178/ Acesso em 07.06.2016

[26] Maiores informações ver Protocolo Comunitário de Bailique In http://www.amazoniacosmetico.com.br/arquivos/PROTOCOLO_COMUNITARIO_DO_BAILIQUE_Ana_Margarida_Bailique.pdf Acesso em 07.06.2016

[27] Acessível em http://www.mppa.mp.br/upload/PROTOABACATALarquFINAL2709%20(1)_compressed.pdf.

[28] Artigo apresentado ao Espaço de Discussão Povos e comunidades tradicionais, questão agrária e conflitos socioambientais do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[29] Advogado Popular parceiro da Rede Puxirão de Povos e Comunidades Tradicionais e Mestrando em Sustentabilidade junto a Povos e Terras Tradicionais – MESPT/UnB – e-mail: [email protected]

[30] Por questões de segurança da comunidade, não informarei qual das comunidades está vivenciando a situação aqui estudada.

[31] Termo local para se referir ao lugar de uso comum.

[32] Filio-me aqui à utilização do termo povos proposto por LITTLE, Paul E. Territórios Sociais e Povos Tradicionais no Brasil: por uma antropologia da territorialidade. Série Antropologia. Brasília: Universidade de Brasília, 2002. P. 251-290.

[33] Termo local para se referir às escavações utilizadas para marcar os limites do “criador comunitário”.

[34] Ponte de tábuas, ou traves espaçadas colocadas para impedir a passagem dos animais para fora dos limites do faxinal.

[35] Mutirões organizados e realizados pela comunidade para determinadas atividades relacionadas à manutenção das cercas, valos, mata-burros, ou até mesmo para colheita de erva-mate e outras.

[36] O termo “consuetudinário” utilizado pelo Geógrafo carrega um sentido subalternizado se analisado diante do processo formal de criação de leis adotado pelo Brasil inspirado sistema romano-germânico, mas serve para identificar a preexistência de um ordenamento jurídico próprio das comunidades faxinalenses.

[37] Previstas no Decreto Estadual nº. 3.446/1997 as Áreas Especiais de Uso Regulamentado são uma espécie de Unidade de Conservação de Uso Sustentável que tem por objetivo proteger o aspecto socioambiental do que denomina “Sistema Faxinal”, por conciliar as atividades agrosilvopastoris com a conservação ambiental, incluindo a proteção da “araucária angustifolia” (pinheiro-do-paraná).

[38] Os nomes e dados foram propositalmente suprimidos para resguardar a segurança das pessoas.

[39] Termo local para se referir às pessoas que moram na metrópole, mas mantém chácaras de lazer dentro das comunidades faxinalenses.

[40] Termo local para se referir às Cercas.

[41] Informações extraídas das Atas de Reunião da Associação Comunitária durante os primeiros meses do conflito.

[42] Palavra de origem lusitana, relacionado a determinado espaço de terra a ser lavrado, caminho a ser seguido, e que foi incorporada e ressignificada por camponeses, talvez por influência na sua utilização no período escravocrata, para designar determinado pedaço de chão que cabe a cada um trabalhar nos mutirões.

[43] Entrevista concedida para a elaboração do artigo “Direito no espelho do Faxinal, Faxinal no espelho do direito: Refletindo a partir de notas etnográfico-jurídicas”.

[44] Por ser tratado de direitos humanos, a convenção 169 ao ser promulgada com quórum legislativo necessário para emenda constitucional conforme §3º do artigo 5º da Constituição Federal, passa a ter hierarquia supralegal, estando hierarquicamente acima de toda a legislação infra-constitucional, entendimento que encontra ressonância no Supremo Tribunal Federal (RE nº. 466.343-SP Rel. Min. Cezar Peluso).

[45] Dos 227 Faxinais mapeados, somente 21 são cadastradas como ARESUR.

[46] Conquista da Articulação Puxirão dos Povos Faxinalenses após a ocupação, por cerca de 100 faxinalenses, da sede do Instituto Ambiental do Paraná em Curitiba.

[47] Inquérito Civil nº. MPPR – 0136.16.000111-3.

[48] Ministério Público reconhece constitucionalidade de decreto e leis que garantem os direitos dos povos faxinalenses, disponível em: <https://terradedireitos.org.br/noticias/noticias/ministerio-publico-reconhece-constitucionalidade-de-decreto-e-leis-que-garantem-os-direitos-dos-povos-faxinalenses/22787>. Acesso em: 23/04/2018.

[49] Mais informações em: <http://direitosocioambiental.org/orgao-maximo-do-ministerio-publico-do-parana-reafirma-a-constitucionalidade-das-leis-faxinalenses/>

[50] Palavra de ordem da Articulação Puxirão dos Povos Faxinalenses.

[51] Trabalho apresentado ao Espaço de Discussão “Povos e comunidades tradicionais, questão agrária e conflitos socioambientais”, do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[52] Professor Doutor do Curso de Direito da UFERSA, Coordenador do Grupo de Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina – Gedic.

[53] Eram elas: o Centro de Coordinación y Promoción Campesina Mink’a; o Centro Campesino Tupaj Katari; a Asociación de Estudiantes Campesinos de Bolivia; a Asociación Nacional de Profesores Campesinos (PRIMER MANIFIESTO DE TIAHUANACO, 1973).

[54] Nesse sentido, assinalava o manifesto: “[…] La escuela rural por sus métodos, por sus programas y por su lengua es ajena a nuestra realidad cultural y no sólo busca convertir al indio en una especie de mestizo sin definición ni personalidad, sino que consigue igualmente su asimilación a la cultura occidental y capitalista. Los programas para el campo están concebidos dentro de esquemas individualistas a pesar de que nuestra historia es esencialmente comunitaria, sistema cooperativo es connatural a un pueblo que creó modos de producción en mutua ayuda como el ayni, la mink’a, yanapacos, camayos. . . La propiedad privada, el sectarismo político, el individualismo, la diferenciación de clases, las luchas internas nos vinieron con la Colonia y se acentuaron con los Regímenes Republicanos […] La Reforma agraria está concebida también dentro de ese esquema. El poder económico y político es la base de la liberación cultural. Debemos tecnificar y modernizar nuestro pasado pero de ningún modo debemos romper con él” (PRIMER MANIFIESTO DE TIAHUANACO, 1973).

[55] “Con la Reforma agraria los indios nos liberamos del yugo ominoso del patrón. Es una pena que esta no haya traído todos los bienes que de ella se esperaba debido sobre todo a que está concebida en un esquema demasiado individualista ya que, por obra de algunos elementos derechistas incrustados dentro del MNR no fue implementada con otras leyes que favorezcan la inversión, la tecnificación y la comercialización de productos. El Voto universal no debería desconocer la participación orgánica de las comunidades indígenas en la vida política” (PRIMER MANIFIESTO DE TIAHUANACO, 1973).

[56] A mediação política com a correlação de forças real da sociedade boliviana era tal que o Katarismo abria-se inclusive para alianças com a Igreja Católica e evangélicas progressistas, em momento de expansão da Teologia da Libertação, por mais que o cristianismo tenha cumprido papel medular na exploração colonial: “Los mineros, los fabriles, los obreros de la construcción, del transporte, las clases medias empobrecidas… son hermanos nuestros, víctimas bajo otras formas, de la misma explotación, descendientes de la misma raza y solidarios en los mismos ideales de lucha y liberación. Solamente unidos lograremos la grandeza de nuestra patria. Pedimos igualmente a la Iglesia Católica (la Iglesia de la gran mayoría campesina) igualmente a otras Iglesias Evangélicas que nos colaboren en este gran ideal de liberación de nuestro pueblo aymara y quechua. Queremos vivir íntegramente nuestros valores sin despreciar en lo más mínimo la riqueza cultural de otros pueblos” (PRIMER MANIFIESTO DE TIAHUANACO, 1973).

[57] Entrevista concedida por VIAÑA, Jorge. Entrevista 1 [jun. 2014]. Entrevistador: Daniel Araújo Valença. La Paz, 2014. 1 arquivo de mp3 (1h44min). (VALENÇA, 2017).

[58] Para uma análise mais acurada do processo constituinte, consultar SCHAVELZON, Salvador Andrés. El nacimiento  del Estado Plurinacional de Bolivia: versión para el debate de la democracia intercultural, de Salvador Schavelzon (SCHAVELZON, 2012) e a tese Disjuntivas do Proceso de Cambio: o avanço das classes subalternas, as contradições do Estado Plurinacional da Bolívia e o horizonte do socialismo comunitário (VALENÇA, 2017).

[59] Álvaro García Linera denomina Punto de Bifurcación ao: “Momento en que los bloques antagónicos, los proyectos irreconciliables de sociedad que cubren territorialmente la sociedad y el Estado, deben dirimir su existencia de manera abierta, desnuda, a través de la medición de fuerzas, la confrontación (el último recurso que resuelve las luchas cuando no hay ya posibilidades de otra salida)” (GARCÍA-LINERA, 2012, p. 19).

[60] Entrevista concedida por VIAÑA, Jorge. Entrevista 1 [jun. 2014]. Entrevistador: Daniel Araújo Valença. La Paz, 2014. 1 arquivo de mp3 (1h44min) (VALENÇA, 2017).

[61] Entrevista concedida por VIAÑA, Jorge. Entrevista 1 [jun. 2014]. Entrevistador: Daniel Araújo Valença. La Paz, 2014. 1 arquivo de mp3 (1h44min) (VALENÇA, 2017).

[62]Trabalho apresentado ao Espaço de Discussão 4 – Povos e comunidades tradicionais, questão agrária e conflitos socioambientais do VII Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[63] Professor da UFRuralRJ/Seropédica, Doutor. Email: [email protected].

[64] Estudante do Curso de Direito da UFRuralRJ/Seropédica. Email [email protected]

[65]Estudante do Curso de Direito da UFRuralRJ/Seropédica. Email: [email protected].

[66]Neste mesmo sentido aponta a leitura de Antonio Negri e Michael Hardt em Império (1999), muito embora algumas das teses dos autores sobre o Estado tenham sido reformuladas nos livros seguintes, justamente em face dos movimentos de refundação do Estado na América do Sul.

[67]Chiapas, estado mexicano onde ocorreu o levantamento zapatista, figurava – e figura até hoje –  entre os mais pobres do país, apresentando uma realidade de acirradas disputas por terra e concentração fundiária que para além de pobreza extrema dão origem a uma realidade muito semelhante àquela que encontrou Emiliano Zapata em 1910: povos indígenas e mestiços, como maioria e povo que tradicionalmente vive da terra, submetidos ao julgo de exploradores, grandes latifundiários e empresas representantes da vontade do capital internacional para a exploração dos recursos financeiramente valorados encontrados na região. De acordo com Zanatta, Chiapas possuía na época, como possui ainda hoje, uma estrutura social mais semelhante à das repúblicas centro-americanas do que à da maioria dos demais estados mexicanos. Essa estrutura se caracterizava pela sobreposição de duas divisões sociais profundas: a de classe, entre uma elite reduzida de proprietários territoriais e a maioria desprovida de terra, e a étnica, sondo a minoria mestiça e a maioria indígena. Dada essa premissa, dois fatores teriam criado as condições da insurreição: de um lado, o aumento do clero voltado à defesa e à organização da população indígena; de outro, a nova atenção que muitos militantes marxistas começaram a dedicar à questão indígena depois do refluxo das ideologias revolucionárias (ZANATTA, 2017, p.255).

[68]“Cuando en deciembre de 1994 el EZLN de forma pacífica había roto el cerco militar anunció la creación de 32 municipios indígenas rebeldes” (CHRISTLIEB, 2014, p.169). Vale dizer que a ideia de rompimento com a gestão estatal neste momento está também  relacionada aos direitos contidos na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho.

[69]A data é simbólica por questões históricas e busca ser um ato de repúdio do movimento zapatista à adesão do México ao NAFTA – o tratado de livre comércio (mas apenas de mercadorias) entre México, Estados Unidos e Canadá – que representa também o marco de adesão e concretização do projeto neoliberal no país.

[70]Instituições sociais como a Igreja Católica e organismos de direitos humanos foram importantes no processo de denuncia às violações ocorridas em Chiapas.

[71]Diversos enfrentamentos foram dados ao longo deste período entre os zapatistas e os militares do governos Mexicano. Para além do Exército, grupos para-militares também realizaram e ainda realizam diversos ataques às bases de apoio zapatista. Neste artigo não estão enunciados todos os conflitos ocorridos, apenas os de maior relevância.

[72]“Comunicado del Comité Clandestino Revolucionario Indígena – Comandancia General del Ejército Zapatista de Liberación Nacional”, do dia 5 de janeiro de 1998.

[73]Diz o artigo 1º da referida lei: “Esta Ley tiene por objeto establecer las bases jurídicas que propicien el diálogo y la conciliación para alcanzar, a través de un acuerdo de concordia y pacificación, la solución justa, digna y duradera al conflicto armado iniciado el 1o. de enero de 1994 en el Estado de Chiapas.”

[74]Em 1997, um grupo de paramilitares conhecido como “Máscara Roja” realizou um dos maiores massacres da história da resistência zapatista, conhecido como “o massacre de Acteal”, no qual foram assassinados 45 indígenas da etnia tzotziles.

[75]Fox toma posse em novembro de 2000 e se compromete a cumprir os Acordos de San Andrés em seu governo.

[76]Faz constar no comunicado de maneira muito clara: “Em nuestro país, la clase política mexicana (donde se incluyen todos los partidos políticos com registro y los três poderes de la Unión) traicionó la esperanza de milliones de mexicanos, y miles de personas de otros países, de ver reconocidos constitucionalmente los derechos y la cultura de los pueblos índios de México (…)”. E o ato de rompimento é anunciado da seguinte forma: “Frente a todo esto, el EZLN decidió suspender totalmente cualquier contacto com el gobierno federal mexicano y los partidos políticos, y los pueblos zapatistas ratificaron hacer de la resistência su principal forma de lucha. En sendos comunicados dados a conocer por membros del CCRI-CG del EZLN, el primero de enero de este año em la cuidad de San Cristóbal de las Casas, Chiapas, los zapatistas reiteramos nuestra condición de rebeldes y anunciamos que, a pesar de la estupidez y cegueira de los políticos mexicanos, los llamados “Acuerdos de San Andrés en Derecho y Cultura Indígenas” (firmados por el governo federal y el EXLN el 16 de febrero de 1996 y plasmados em la llamada ‘iniciativa de ley COCOPA’) serian aplicados en territórios rebeldes”.

[77]“Está muy relacionado la justicia con la democracia porque son los pueblos los que a decidir quien va a ser su autoridade” (REYNOSO, et. al., 2015, p. 210).

[78]Os Aguascalientes foram territórios constituídos para ser a sede das atividades político-culturais promovidas pelos zapatistas, assim como do diálogo e da articulação do movimento com a sociedade civil nacional e internacional, movimentos sociais, partidos, imprensa, etc. Foram constituídos cinco Aguacalientes em cinco municípios: La Realidad, Oventic, La Garrucha, Morelia e Roberto Barrios. Com os Aguacalientes, o EZLN põe fim ao cerco militar e anuncia o maior de resultado do seu processo de ordenamento territorial, os 32 Municípios Autônomos Rebeldes Zapatistas (MAREZ) (SILVEIRA, 2016, p. 8).

[79]Entre julio e agosto deste mesmo ano, o subcomandante Marcos, como porta-voz do movimento, emite dez comunicados, uma aclaração e uma mensagem gravada para explicar tanto a organização que se daria a estes municípios como a relação que teriam com a sociedade civil nacional e internacional (CHRISTLIEB, 2014, pp. 176-177).

[80]“En estos três niveles opinan, discuten y deciden teniendo en cuenta sus siete princípios: obedecer y no mandar (es tomada la opnión del pueblo); representar y no suplantar (el representante toma em cuenta lo que disse el pueblo); bajar y no subir (las autoridades lo hacen de manera sencilla pensando em los pueblos); servir y no servirse (las autoridades están serviendo a su pueblo); convencer y no vencer (las autoridades tienen que analizar las propuestas que traen antes de entrar em contacto con el pueblo); construir y no destruir (cuidan su palavra); proponer y no imponer (estudian, analizan antes de proponer, y hacen asambleas para llegar a decisiones) (CHRISTLIEB, 2014, p. 344).

[81]Aproximadamente o tamanho dos estados de São Paulo e Paraná somados.

[82]Apesar de constituírem maioria, os curdos não são os únicos povos que habitam o Curdistão, a região é um mosaico composto por armênios, assírios, árabes, curdos, turcos, checos, yazidis e alevitas, assim como possui seguidores das religiões muçulmana (sunitas), judaica e cristã (TATORT, 2013, p. 21).

[83]Artigo 62 do Tratado de Sèvres: “A Commission sitting at Constantinople and composed of three members appointed by the British, French and Italian Governments respectively shall draft within six months from the coming into force of the present Treaty a scheme of local autonomy for the predominantly Kurdish areas lying east of the Euphrates, south of the southern boundary of Armenia as it may be hereafter determined, and north of the frontier of Turkey with Syria and Mesopotamia, as defined in Article 27, II (2) and (3). If unanimity cannot be secured on any question, it will be referred by the members of the Commission to their respective Governments. The scheme shall contain full safeguards for the protection of the Assyro-Chaldeans and other racial or religious minorities within these areas, and with this object a Commission composed of British, French, Italian, Persian and Kurdish representatives shall visit the spot to examine and decide what rectifications, if any, should be made in the Turkish frontier where, under the provisions of the present Treaty, that frontier coincides with that of Persia” (1920).

[84]É importante ressaltar que o abandono pela reivindicação da criação de um Estado curdo é particular desse segmento político de Confederalismo Democrático da análise em voga dos curdos de Rojava e do Curdistão do Norte. Outras parcelas da população curda possuem reivindicações distintas, evidenciando-se, por exemplo, pela existência de diversos partidos no território curdo: PKK (Parti Karkerani Kurdistan), KDP (Kurdistan Democratic Party), PUK (Patriotic Union of Kurdistan), PDKI (Partî Dêmokiratî Kurdistanî Êran) e PJAK (Partiya Jiyana Azad a Kurdistanê) (SOARES et al. 2017, p. 2-5).

[85]“Capitalist modernity has three basic elements: capitalism, the nation-state, and industrialism. According to the Kurdish freedom movement, the elements of democratic modernity are also threefold: democratic nation, communal economy, and ecological industry” (TATORT, 2013, p. 20). Para os seguidores do Confederalismo Democrático a democracia só pode florescer apenas onde o Estado não exerce sua influência.

[86]Não se pode confundir, no entanto, o conceito de administração política do Confederalismo Democrático com a ideia de Administração Pública do Direito estatal contemporâneo: “Os Estados só administram, enquanto democracias governam. Os Estados são fundados no poder; as democracias são baseadas no consenso coletivo. Os cargos no Estado são determinados por decreto, ainda que possam, em parte, ser legitimados através de eleições. As democracias usam eleições diretas. O Estado usa a coerção como meio legítimo. As democracias se baseiam na participação voluntária” (ÖCALAN, 2016, p. 27). Ou seja, essa “administração política não-estatal” é um mecanismo com uma dinâmica funcional desatrelada dos paradigmas jurídicos estatais da modernidade, voltada para resolver/satisfazer as necessidades do povo pelo povo, não apenas em um sentido retórico demagógico, mas sim prático e efetivo sob um arranjo materialmente democraticamente.

[87]It’s a matter of the people organizing themselves outside state institutions, and the search for alternatives for communal self-management” (TATORT, 2013, p. 27).

[88]Sob o regime do Baath, esses comitês funcionavam de modo clandestino em paralelo ao sistema de justiça Sírio (AYBOGA, 2016, p. 145).

[89]Na revolução de rojava, a luta contra o patriarcado leva a dois processos concomitantes: de um lado, a proliferação de organizações autônomas de mulheres, com destaque para as academias que desenvolvem a Jineologia (ciência das mulheres) e as milícias femininas do YPJ, que não se subordinam a uma organização superior qualquer, mas se integram ao movimento para uma sociedade democrática (TEV-DEM) dirigido pelo PKK. De outro, a criação de cotas de gênero em todas as instituições sociais e também nos tribunais. Nos comitês de paz e consenso, segundo Ayboga, Flach e Knapp, há uma cota de gênero de no mínimo 40% de mulheres.

[90]Preâmbulo da carta provisória: “We the peoples of the areas of self-administration of Democratic Kurds, Arabs and Assyrians (Assyrian Chaldeans, Arameans), Turkmen, Armenians, and Chechens, by our free will have announced this to materialize justice, freedom and democracy in accordance with the principle of ecological balance and equality without discrimination on the basis of race, religion, creed ,doctrine or gender, to achieve the political and moral fabric of a democratic society in order to function with mutual understanding and coexistence within diversity and respect for the principle of self-determination of peoples, and to ensure the rights of women and children, the protection defense and the respect of the freedom of religion and belief” (YPG, 2016a).

[91]V.g.: “The Structure of The Democratic Self –Management in the province. Article 4: 1–The Legislative Council 2- The executive council 3- The judicial council 4- The higher Commission of elections 2. the Supreme Constitutional Court. 5. The local councils […]Article 13: This contract ensures the principle of the separation of legislative, judicial and executive authorities” (YPG, 2016a).

[92]V.g.: “Article 25: A. The personal liberty is inviolable and no one may be arrested. B-Human dignity shall not be tortured mentally or physically and that who does that will be punished himself. Providing a decent life for the prisoners to make prison a place for rehabilitation and reform not a place for punishment” (YPG, 2016a).

[93]V.g.: “Article 30: This contract guarantees every citizen: […] 5- Ensuring the health and social care for disabled people , the elderly and people with special needs” (YPG, 2016a).

[94] Artigo a ser apresentado no Espaço de Discussão 4 – Povos e comunidades tradicionais, questão agrária e conflitos socioambientais do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[95] Graduanda em Direito pelo Centro Universitário do Pará. Integrante do grupo de pesquisa Direitos de Povos e Comunidades Tradicionais (ICJ/UFPA). E-mail: [email protected].

[96] Advogado. Mestre em Agriculturas Familiares e Desenvolvimento Sustentável pela UFPA. Integrante do grupo de pesquisa Conhecimento e Direito (CNPq). Assessor jurídico de Questões Agrárias para Povos e Comunidades Tradicionais no ITERMA. E-mail: [email protected].

[97] Defensor público do Estado do Pará designado para o Núcleo de Direitos Humanos. Especialista em Direito da Criança e do Adolescente pela UFPA. Mestrando em Direitos Humanos pela UFPA. E-mail: [email protected].

[98] Neste trabalho adotamos a definição elencada no Decreto n. 6.040/2007, art. 3º, inciso II: “espaços necessários a reprodução cultural, social e econômica dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma permanente ou temporária, observado, no que diz respeito aos povos indígenas e quilombolas, respectivamente, o que dispõem os arts. 231 da Constituição e 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e demais regulamentações”.

[99] Por meio do Decreto Legislativo n. 143, de 20 de junho.

[100] Segundo consta na ação civil pública com pedido de liminar, que impetraram em conjunto o Ministério Público Estadual e o Ministério Público Federal de Santarém. Disponível em: <http://www.mpf.mp.br/pa/sala-de-imprensa/documentos/2016/ACPICP648201509PortosMaic_1.pdf>.

[101]Por estar em uma área peri/semi-urbana, a circunscrição de Abacatal é rodeada por empresas e empreendimentos. Em 2011, Sirotheau relata que havia vizinhança ao norte com a fazenda Uriboca, propriedade da empresa Guamá Agro-Industrial S/A (vinculada à empresa Pirelli); ao sul, com a Embrapa; ao leste, com o rio Uriboquinha; e ao oeste, empresa Pirelli e algumas propriedades particulares (Sirotheau, 2012).

[102]Destacando-se as roças de inverno e verão (mandioca, milho, maxixe, macaxeira, mandioca e jerimun) e as culturas perenes e semiperenes (cupuaçu, açaí, pupunha, uxi, acerola e maracujá) (Marin & Castro, 2004). Valendo ressaltar, que segundo estudos de J. Luiz Sirotheau (2012) a atividade agrícola, se comparado com tempos em que Abacatal se encontrava “isolada” de Ananindeua por ligações terrestres, tem decaído bastante, devido a fatores analisados pelo autor.

[103] Ananindeua se emancipou de Belém, capital do Estado do qual era um distrito, somente na década de 1940, por meio do Decreto-Lei Estadual n. 4.505, de 30 de dezembro de 1943.

[104] A titulação primeira data de 1997 (segundo Marin & Castro, 2004) ou 1999 (segundo Souza, 2007 e Sirotheau, 2012), contudo não corresponde ao território atual, uma vez que em 2008, após pedido de revisão da área pelos quilombolas, o tamanho do território sofreu reajuste e foi aumentado (Sirotheau, 2012).

[105] “Outro fator que contribuiu para o aumento da violência na área foi a criação da Alça Viária. A via aumentou a dinâmica e o fluxo de pessoas. Algumas vezes, a comunidade quilombola de Abacatal, por fazer limite com a rodovia, já serviu de rota de fuga para assaltantes de motos” (Sirotheau, 2012, p. 130).

[106] Formada, a partir da Lei Complementar Estadual n. 76, de 28 de dezembro de 2011, pelos municípios de Belém, Ananindeua, Marituba, Benevides, Santa Izabel do Pará, Santa Bárbara e Castanhal (Bogéa, 2013).

[107] O lixão do Aurá foi “inaugurado” em 1990, tendo iniciado suas atividades de forma precipitada e sem nenhum tipo de consulta às populações que habitavam ao redor, que só foram comunicadas. Como relata Kamilla Santos (2016), o lixão do Aurá iniciou suas atividades não de forma planejada e sim devido a urgência em despejar o lixo da Região Metropolitana de Belém (RMB) em algum lugar e porque o antigo local de despejo desse entulho, localizado no bairro de Águas Lindas, não haver mais condições de utilização.

[108] A Comissão Pastoral da Terra (CPJ) utiliza o termo de “Guajarina”, para sua abrangência, sendo o termo utilizado para denominar as seguintes áreas de conflitos socioambientais, que envolvem agroextrativistas, quilombolas, indígenas e agricultores. A região Guajarina é composta pelos seguintes Municípios: Abaetetuba, Acará, Tailândia, Moju, Barcarena, Bujaru, Concórdia do Pará, Tomé-Açu e a região do Salgado no Município de Maracanã.

[109] Aqui não iremos reproduzir as normas estabelecidas no protocolo, contudo a versão digital do protocolo pode ser acessada no endereço eletrônico: <https://drive.google.com/file/d/0BymSev7h91aZX3d3SnEzOEZsbUE/view>.

[110] Protocolo de Consulta Quilombola de Abacatal/Aurá.

[111] Trabalho apresentado ao Espaço de Discussão 4 – Povos e comunidades tradicionais, questão agrária e conflitos socioambientais do VII Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[112] Advogada. Mestranda em Direito e Políticas Públicas pelo UNICEUB. Membro dos Grupos de Pesquisa: Lei e Sociedade; Políticas Públicas e Estudos Feministas Rose Muraro. Brasília. 2018.

[113] Trecho extraído da entrevista feita com Rozária José de Souza. Realizada em dezembro de 2016.

[114] Empresa Brasileira de Planejamento de Transportes – GEIPOT – Relatório de Estudo do Sistema Viário de Morada Nova de Minas; 1981, apresentação, “o lago formado pela barragem tem perímetro de aproximadamente 1.000km dos quais 85% estão dentro do município”. P.34.

[115] Trecho extraído da entrevista feita com Laura Amélia dos Santos. Realizada em dezembro de 2016;

[116] Empresa Brasileira de Planejamento de Transportes – GEIPOT – Relatório de Estudo do Sistema Viário de Morada Nova de Minas; 1981, apresentação, p. 33.

[117] SANTOS DIAS, Adelaide. A saga do nosso povo. Gráfica Editora Aquarius Ltda. 2009, p.12.

[118] Sobre estes dados observa-se: “Numa época em que ainda não havia Estudos de Impacto Ambiental, tampouco Relatório de Impacto Ambiental, o conjunto de obras envolvendo a inundação de cerca de 1.132 km2 pelo reservatório, requereu uma organização visando: a) ao levantamento e mapeamento de terras, propriedades e populações atingidas; b) avaliação e desapropriação de terras; c) relocação de estradas e estabelecimento de balsas. Para tornar esse trabalho mais rápido, os grupos de campo foram equipados com uma frota de jeeps, lanchas, tratores leves para abertura de estradas de penetração e desmatamento, além de aeroplano para 4 ocupantes.(BRASIL. CVSF. Anexo n. 2. Barragem de Tres Marias. In: Serebrenick, 1961: 84- 100). Foram 900 propriedades desapropriadas em seis municípios (S. Gonçalo do Abaeté, Morada Nova de Minas, Pompéu, Corinto, Felixlândia, Abaeté). (Cf. BRASIL. CODEVASF. Desapropriação de Três Marias. Relatório Codevasf, 12/12/1978).(PAULA, 2017. P. 2)

[119] A Comissão do Vale do São Francisco – CDVSF foi criada pela Lei nº 541 de 1948 e extinta pelo artigo 40 do Decreto-lei 292 de 1967, que criou a Superintendência do Vale do São Francisco-SUVALE. Em 1974 foi sancionada a Lei 6.088 que declarou em seu artigo 15 a extinção da SUVALE e a criação da empresa pública vinculada ao Ministério do Interior (extinto através da Lei 8.028/1990) intitulada Companhia de Desenvolvimento dos Vales do Rio São Francisco– CODEVASF, que é vinculada ao Ministério da Integração Nacional nos termos da Medida Provisória n° 1.911-8 de 1999 – convertida na Lei nº 10.683, de 28/5/2003 – criando, mediante transferência das competências da Secretaria Especial de Políticas Regionais, o Ministério da Integração Nacional. Nos termos da Lei 13.507/2017, artigo 2º, a área de atuação da Codevasf abrange os vales dos seguintes rios: São Francisco, Parnaíba, Itapecuru, Mearim, Paraíba, Mundaú, Jequiá, Tocantins, Munim, Gurupi, Turiaçu e Pericumã.

[120] Empresa Brasileira de Planejamento de Transportes – GEIPOT – Relatório de Estudo do Sistema Viário de Morada Nova de Minas; 1981, apresentação, p. 9.

[121] Empresa Brasileira de Planejamento de Transportes – GEIPOT – Relatório de Estudo do Sistema Viário de Morada Nova de Minas; 1981, apresentação, p. 1.

[122] SANTOS DIAS, Adelaide. A saga do nosso povo. Gráfica Editora Aquarius Ltda. 2009, p.50/51.

[123] Ibid. p. 50.51.

[124] Ibid. p. 14. 1-A área de estudo é bem servida no que se refere ao sistema viário troncal, porque está situada praticamente no centro de um quadrilátero rodoviário, constituído pelas rodovias pavimentadas BR-040, BR-365, BR-354 e BR-262; 2-As rodovias vicinais (alimentadoras e coletoras), no entanto, em sua grande maioria, encontram-se em leito natural e ficam praticamente intransitáveis em período chuvoso; 3- O lago da barragem, atualmente, não é utilizado por qualquer tipo de transporte fluvial, a não ser nas oito travessias, nas quais são usadas embarcações tipo chata-motor; 4- A linha férrea mais próxima, a EF-040, pertencente à SR-2 – Belo Horizonte, passa na cidade de Curvelo, a uma distância de 135 km. Ressaltamos aqui, ainda nos dias de hoje, em 2018, a situação permanece a mesma, exceto pela linha férrea inativa.

[125] Ibid. p. 15.

[126] Empresa Brasileira de Planejamento de Transportes – GEIPOT – Relatório de Estudo do Sistema Viário de Morada Nova de Minas; 1981, apresentação, p. 17.

[127] Companhia Energética de Minas Gerais S.A. é uma das principais concessionárias de energia elétrica do Brasil, tendo sede na cidade de Belo Horizonte, capital do estado de Minas Gerais; “em julho de 1962 – Inaugurada a Usina Hidrelétrica de Três Marias, primeira grande usina da Cemig e uma das cinco maiores do mundo da época. É o primeiro reservatório de uso múltiplo do Brasil: provê geração de energia, dá navegabilidade ao rio e promove o controle de cheias – um conjunto de benefícios para todo o Vale do São Francisco”. Disponível em http://www.cemig.com.br/pt-br/a_cemig/Nossa_Historia/Paginas/linha_do_tempo.aspx; 2018.

[128] Ibid. p. 17.

[129] “Sobre o financiamento, foram 7,7 bilhões do governo federal, sendo 3,6 bilhões da CVSF e 4,1 bilhões do BNDE, sob a forma de empréstimo a longo prazo. O empreiteiro geral foi a empresa “Corinto e Cia Construtora Três Marias”, nome nacional para abrigar o consórcio que abrigava as seguintes empresas, todas de origem norte-americanas: Morrison KnudsenCo. Inc., Raymond Concrete Pile Co., Utah Cosntruction, Kaiser engineers. A tubulação, da Chicago Bridge do Brasil. Tudo isso sob a supervisão geral da CEMIG, mas os equipamentos principais são de empresas estrangeiras, ou seja, tecnologia, patentes etc., de outros países. Pode parecer senso comum, mas são características inerentes ao chamado nacional-desenvolvimentismo dos anos 1950, que de “nacional”, efetivamente, possuía somente a ideologia” (PAULA, 2017, p.3)

[130] PAULA, Dilma Andrade de. A Usina Hidrelétrica de Três Marias, o Desenvolvimentismo Seletivo e o Papel de Intelectuais. 2017. p. 9.

[131] Empresa Brasileira de Planejamento de Transportes – GEIPOT – Relatório de Estudo do Sistema Viário de Morada Nova de Minas; 1981.

[132] Ibid. p. 21

[133] Ibid. p. 21.

[134] Empresa Brasileira de Planejamento de Transportes – GEIPOT – Relatório de Estudo do Sistema Viário de Morada Nova de Minas; 1981, apresentação, p. 21.

[135] Ibid. p. 22.

[136] Empresa criada com os objetivos de: regularização do curso das águas, utilização do potencial hidroelétrico, fomento da indústria e da agricultura, desenvolvimento da irrigação, modernização dos transportes, incremento da imigração e exploração das riquezas do Vale”. (Projeto de Resolução da Comissão de Inquérito Parlamentar destinada a investigar as causas e consequências das cheias do rio São Francisco. 22/10/1981; p.1).

[137] SANTOS DIAS, Adelaide. A saga do nosso povo. Gráfica Editora Aquarius Ltda. 2009, p.24.

[138] Empresa Brasileira de Planejamento de Transportes – GEIPOT – Relatório de Estudo do Sistema Viário de Morada Nova de Minas; 1981, apresentação, p. 36.

[139]Ibid. p. 36.

[140] Ibid. p.36.

[141] Ibid. p.37.

[142] SANTOS DIAS, Adelaide. A saga do nosso povo. Gráfica Editora Aquarius Ltda. 2009, p.12.

[143] IBGE, Disponível em https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/morada-nova-de-minas; 2018;

[144] Trecho extraído da entrevista feita com Lázaro José Ferreira. Realizada em dezembro de 2016;

[145] Dados extraídos das entrevistas realizadas com 30 moradores da cidade; 2016/2017.

[146] Empresa Brasileira de Planejamento de Transportes – GEIPOT – Relatório de Estudo do Sistema Viário de Morada Nova de Minas; 1981, apresentação, p. 37 e menção à Veragro “empresa detentora de 45mil hectares”, p.56.

[147] Trecho extraído da entrevista feita com Luciano Souza Ribeiro. Realizada em dezembro de 2016;

[148] Codevasf. Disponível em http://www.codevasf.gov.br/noticias/2007/unidade-de-beneficiamento-de-pescado-de-morada-nova-de-minas/. Acessado em 23 de abril de 2018.

[149] As balsas funcionam em horários determinados, não sendo possível atravessar a qualquer tempo. Além disso, é cobrada a tarifa de R$30,00 (trinta reais) por veículo, valor exorbitante para os locais cuja renda per capita média é de 1,5 salários mínimos.  Disponível em https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/morada-nova-de-minas/panorama. Acessado em 23 de abril de 2018.

[150]Conforme previsão constitucional inserida no artigo 182 do texto legal Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes. (Regulamento) (Vide Lei nº 13.311, de 11 de julho de 2016); § 1º O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana; § 2º A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor; § 3º As desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa indenização em dinheiro; § 4º É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de: I – parcelamento ou edificação compulsórios; II – imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo; III – desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.

[151] COUTINHO, Diogo R. O direito nas  compartilhado pelos morades e ex-moradores locais. públicas. 2010, p.18.

[152] LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito? Coleção Primeiros Passos. São Paulo: Editora Brasilense, 1986.