ESPAÇO DE DISCUSSÃO 5 – GÊNERO, SEXUALIDADE E DIREITOS

  

Artigo


  Direito e Sexualidade: Ações afirmativas e sua efetividade. [1]

        Right and Sexuality: Affirmative actions and their effectiveness.

Gabriel Joaquim Chaves Pires[2]

Jerusa de Arruda[3]

Resumo: Historicamente, as questões relacionadas à diversidade tem sido voga de discussões constantes, não sendo, pois, diferente no Brasil. A população LGBT ao longo do tempo vem sendo vitimada quanto ao exercício do seu direito à liberdade, principalmente no âmbito de sua sexualidade. Ainda hoje, existem diferenciações entre indivíduos homossexuais em relação aos heterossexuais, fazendo assim, perceber ainda a presença de patriarcalismos e conservadorismos sociais, quanto ao direito a diversidade sexual e a diferença entre o que se entende por “normal”. Este, pois, foi o principal interesse em nesta pesquisa. Desse modo, o objetivo foi verificar no campo das ações afirmativas enquanto medidas que objetivam combater discriminações, dentre elas a de orientação sexual, a efetividade ao livre exercício do direito a sexualidade, enfim, o direito de ser “diferente”. Neste trabalho, portanto, discute-se como pode ser dada efetividade às ações afirmativas de base constitucional, a fim de consolidar, na prática, o referido direito.

Palavras-Chave: Direito; Sexualidade; Ações afirmativas; Efetividade.

Abstract: Historically, issues related to diversity have been vogue for constant discussions, and therefore are not different in Brazil. The LGBT population over time has been victimized in the exercise of their right to freedom, mainly in the scope of their sexuality. Even today, there are differences between homosexual individuals in relation to heterosexuals, thus making it possible to perceive the presence of patriarchalisms and social conservatism as to the right to sexual diversity and the difference between what is meant by “normal”. This, therefore, was the main interest in this research. Thus, the objective was to verify in the field of affirmative actions as measures that aim to combat discrimination, including sexual orientation, effectiveness to the free exercise of the right to sexuality, in other words, the right to be “different.” In this paper, therefore, it is discussed how effectiveness can be given to affirmative actions of a constitutional basis, in order to consolidate, in practice, the aforementioned right.

Keywords: Right; Sexuality; Affirmative actions; Effectiveness.

 

 INTRODUÇÃO

Este artigo é uma pesquisa bibliográfica, pelo método dedutivo, de observação indireta em livros, artigo e na legislação, além de ser fruto das discussões iniciais do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos, Educação e Diversidade[4].

O presente trabalho tem por escopo avaliar o direito a sexualidade em razão da efetivação das ações afirmativas tendo por base o contexto normativo-constitucional, observando se elas estão sendo materializadas, como forma de proteger o indivíduo LGBT no exercício pleno do direito à liberdade, dentre os quais faz parte o livre direito à sexualidade.

A proteção jurídica de condutas e preferências sexuais, portanto, está assentada no âmbito de proteção do direito da sexualidade tendo por base os princípios de liberdade e igualdade, princípios básicos inerentes aos direitos humanos e do constitucionalismo, o qual parte do clássico reconhecimento da dignidade de cada ser humano de orientar-se, de modo livre e merecedor de igual respeito, na esfera de sua sexualidade, sucedâneo ao campos dos direitos de primeira geração.

Como base teórica portanto temos que o direito à liberdade sexual, enquanto ramificação do direito à liberdade, se desdobra ainda em: direito à autonomia sexual, integridade sexual e à segurança do corpo sexual; direito à privacidade sexual; direito ao prazer sexual; direito à expressão sexual; direito à associação sexual; direito às escolhas reprodutivas livres e responsáveis; direito à informação sexual livre de discriminações. Estes são alguns dos desdobramentos mais importantes dos princípios fundamentais da igualdade e da liberdade que regem um direito da sexualidade. Esta liberdade, portanto, inserta no campo privacidade do indivíduo, diametralmente relacionado ao direito à vida e ao direito a não sofrer exploração sexual conforme dispõe a Declaração de Direitos Sexuais, decidida em Valência, no XIII Congresso Mundial de Sexologia, em 1997.

Esse rol de direitos sexuais trata-se do desdobramento dos direitos gerais de privacidade, liberdade, intimidade e igualdade, parâmetros de proteção jurídica da sexualidade enquanto direito.

Para isto, primeiramente, será debatida a questão do movimento LGBT[5], bem como as concepções de Foucault sobre o tema. Em seguida vamos adentrar nas questões relativas ao processo de legalidade da referida luta, explanando todos os processos de concepção e adequação social, desde o processo de diálogo em casa, que é onde se começa a formação crítica do cidadão, além de sua moral – importante particularidade do Estado Constitucional de Direito – até o que está positivado, onde serão discutidas algumas leis e resoluções que garantem o direito a sexualidade bem como à igualdade, de modo a esclarecer o motivo do trabalho e as inquietações que o provocaram.

 No âmbito das ações afirmativas, que podem ser definidas como meios alternados a equidade de direitos, elemento principal de estudo para a edificação desse artigo, assim como o reconhecimento da causa LGBT. Para tanto usaremos apreciações e fundamentações de órgãos que regulamentam[6] essa causa.

 Por fim, será analisada a efetividade dessas ações na conjuntura atual, visto que muitos direitos já foram garantidos, contudo existe muito ainda a ser feito, sendo um passo muito relevante a necessidade de maior abordagem teórica e prática, de modo a fazer jus ao que está fundamentado no preâmbulo da Constituição Federal de 1988.

 

2 A PRETEXTO DE UMA DIGRESSÃO PROPEDÊUTICA: DIREITO E SEXUALIDADE.

Quando se fala sobre a representação do movimento LGBT, podemos referir-se a duas nominações: a primeira, utilizada pelas Organizações internacionais como a ONU e a Anistia Internacional adotam a sigla “LGBT” (lésbicas, gays, bissexuais e transexuais o padrão internacional, cuja nomenclatura foi adotada pela primeira vez na 1ª Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Entretanto, dentro do movimento propriamente dito, existem muitas variações quanto ao movimento, desde LGBBTS (Lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, transgêneros e simpatizantes) até a versão mais completa, que é LGBTPQIA+ (Lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros, pansexuais, queer, intersex, assexuais, e o +, que é utilizado por pessoas que não se sintam representadas por nenhuma das outras sete letras).

Essencial que se reconheça a sexualidade enquanto algo inato a própria natureza humana. Assim, sem garantia ao pleno exercício da liberdade, compreendidos neste campo a liberdade sexual e a liberdade à livre orientação sexual, se instaura a insegurança ao pleno exercício desse direito.

A liberdade, desse modo, deve ser vista amplamente, ou seja, compreendido o direito à liberdade sexual, imbricado com o direito de tratamento igualitário, independente da orientação sexual de cada indivíduo. Desse modo, o preconceito e a discriminação sofrida pelo sujeito LGBT, se constitui campo de proteção jurídica que deve ser efetivado através de políticas públicas.

À sexualidade, enquanto direito deve ser garantida ao ser humano, na condição de bem juridicamente tutelado, sem o qual não há liberdade efetiva. Sem isto, se fere frontalmente o princípio da igualdade e o da dignidade da pessoa humana.

 O direito à liberdade sexual, então, está para o próprio gênero humano, bem como o direito à vida, ambos, na condição de direito fundamental da pessoa humana, visto sob duas vertentes, positiva e negativa:

A vertente positiva liberdade sexual impõe a livre disposição do sexo e do próprio corpo para fins sexuais, ou seja, consiste na possibilidade que cada um tem de fazer as suas opções no domínio da sexualidade. Já a vertente negativa estabelece o direito de cada um a não suportar de outrem a realização de actos de natureza sexual contra a sua vontade (LEITE,2004).

Os direitos sexuais, no tocante ao binômio orientação sexual e identidade de gênero, vincula-se ao princípio da liberdade sexual. Este é um debate de atual relevância, tanto no contexto internacional quanto nacional. Assim, optamos como recorte pela verificação da questão em tomando como ponto de partida a década de 60, os avanços e retrocesso no tocante a luta em defesa do direito à sexualidade e os inúmeros e significativos desafios enfrentados pela população LGBT.

Segundo dados do Grupo Gay da Bahia, a mais antiga associação brasileira em defesa dos direitos humanos dos homossexuais, nosso país figura como campeão mundial no que tange a crimes de homofobia:

Salvador, Bahia, 13 de abril de 2018. Por GGB -O site HOMOFOBIA MATA do Grupo Gay da Bahia (GGB), registrou de 1 de janeiro até 10 de abril um total de 126 crimes violentos praticados contra LGBTs no Brasil Os dados da violência até 10 de abril revelam que a cada 19hs um LGBT é assassinado ou se suicida em nosso país. De acordo com o GGB esses dados têm cara, nome e sobrenome. São 47 gays, 26 lésbicas, 3 bissexuais, 31 travestis, 17 mulheres trans, 1 homem trans, 2 bissexuais todos vítimas do ódio que é a homofobia que mata indistintamente, como é o caso do registro de 2 heterossexuais assassinados apenas por se parecer confundidos com homossexual.  “É absurdo que tio, pai, irmão não possam mais demonstrar afeto entre si, sem serem massacrados como se fossem gays”, alerta Marcelo Cerqueira, presidente do Grupo Gay da Bahia, em tempo que destaca que um comportamento familiar natural, possa desestruturar a família por ser confundido com algo que é proibido. Os dados do Grupo Gay da Bahia(GGB) são reveladores de que o combate a LGBTfobia não se refere apenas aos homossexuais e transexuais, mas a toda sociedade. Isso porque o movimento LGBT brasileiro não é uma movimento isolado, mas um braço de uma corrente humana composta por mulheres, sem teto, sem-terra, pornô-stars, jovens, vadias, blogegger, trans, youtubers, movimento essencialmente marcado pela presença feminina. Mesmo que o movimento se fortaleça por meio dessas perspectivas, o debate junto a população LGBT ainda não é equânime, talvez pela diversidade das tribos e guetos urbanos. E mesmo que se divulgue que a cada 19hs um LGBT é assassinado no Brasil, isso não é motivo suficiente para sensibilizar toda a categoria que é diferencialmente impactada pelo preconceito. O GGB acredita que para diminuir os estigmas, preconceitos e discriminações é fundamental e urgente que cada LGBT se reconheça enquanto tal, e mais ainda, reconheça que a proteção de cada um está na organização de todos. Em termos práticos, trata-se da relação com a vizinhança e a comunidade LGBT local, inclusive desenvolver relacionamento amistoso e solidário com a vizinhança e condôminos (GGB, 2018).

Possíveis soluções existem para combater de modo efetivo esta situação, tais como campanha de educação sexual nas escolas de todos os níveis; a elaboração de um conjunto de leis punindo a homotransfobia com o mesmo rigor do crime racial; o planejamento e execução políticas públicas que garantam a segurança nos locais mais frequentados pelos LGBT, além de campanhas educativas de empoderamento do segmento são ações que podem e devem ser tomadas a favor da população LGBT.

Uma premissa no entanto, diante de tal situação, refere ao fato de que o sujeito LGBT antes de tudo é uma pessoa que possui direitos como qualquer outra. A obviedade no entanto não se apresenta tão simples pelo que observamos acima a partir dos dados trazidos pelo Grupo Gay da Bahia.

Diante das questões aqui suscitadas vem à tona a seguinte pergunta: Você se imagina vivendo em uma sociedade na qual a homossexualidade é considerada uma doença mental e, ao mesmo tempo, um desvio de comportamento? Pois era assim os Estados Unidos da década de 60, ferimos a Revolta de Stonewall.

Naquele dia 28 de junho, nascia o Dia do Orgulho LGBTI (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e pessoas intersex). Esta data é um marco na luta em defesa dos direitos da população LGBT. O episódio ocorreu em Nova Iorque, em 1969. Naquele dia, as pessoas que frequentavam o bar Stonewall Inn, até hoje um local de frequência de gays, lésbicas e transexuais, reagiram a uma série de batidas policiais que eram realizadas ali com frequência.

Naquela época, embora não seja diferente em questões vindouras, a população LGBT, era tida como persona nociva, ao padrão social tido como “normal”.  Desse modo, os gays eram frequentemente internados em clínicas e submetidos a lobotomias, castrações químicas e outras formas de “tratamento”. Na mídia eram execrados, e a televisão alertavam para os “perigos” de se conviver com homossexuais, comparados sempre a pedófilos. Enfim, a sexualidade periférica, entendida esta como aquela que fuja ao padrão estético tido como “normal” não era tolerado.

O ser humano, pelo fato de pertencer a parcela da população LGBT, vivia sob o estigma da perversão, eram perseguidas, alvo de violência física, psicológica e moral. Não conseguiam emprego, o que os empurrava muitas vezes a prostituição como única forma de sobreviver.

O estigma da intolerância, preconceito, discriminação, vitimando o sujeito social considerando pela norma padrão como “anormal”. Em face desse estigma: negro, pobre, judeu, gordo, homossexual, pouco importa, se está fora do que se possa considerar estética padrão de normalidade deve ser excluído ou mesmo colocado em condição subalterna, enfim, pessoa de segunda classe.

Nos reportamos neste momento ao disposto na obra As Regas do Método Sociológico, pelo qual infere que ao nascermos encontramos um mundo com regras e padrões de conduta já estabelecidos, o que segundo Durkheim significa:

 “[…] é hoje incontestável que a maior parte das nossas ideias e tendências não são elaboradas por nós, mas antes nos vêm do exterior, elas só podem penetrar em nós impondo-se […] (DURHEIM, 2011)

Verifica-se ainda com base na obra acima citada que dessa forma, fruto de uma construção humana, o fato social foi conceituado como:

 “[…] toda a maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior: ou então, que é geral no âmbito de uma dada sociedade tendo, ao mesmo tempo, uma existência própria, independente das suas manifestações individuais. (DURKHEIM, 2011)

Dessa o fato social possui então uma existência própria, independente das suas manifestações individuais. Não importa a consciência individual, as normas de conduta existem de forma externa e independente da vontade e maneira de pensar de cada um. Para ilustrar com fato bastante atual: não importando o que cada pessoa pensa sobre a união homo afetiva, recente decisão do Supremo Tribunal Federal representou um fato social de aplicação a todos os membros da sociedade brasileira, qual seja, o reconhecimento jurídico da existência da união estável entre pessoas do mesmo sexo.

As Regras do Método Sociológico, conceitua assim o que é um fato social, o qual para ele, consideram-se formas de pensar e agir elaboradas por nós mesmos, no entanto, fazem parte de nossa exterioridade. Neste sentido, nossa vida em sociedade é regulada por padrões de comportamentos tidos como “normais”. Assim, o fato social é por excelência, um dos maiores fatores coercitivos que regulamentam nossa vida social.

Como então romper os padrões coercitivos provenientes do contexto social que vai de encontro a direitos inatos ao ser humano, em prejuízo da própria dignidade humana?

Ainda em Durkheim, temos que ele vai mais além dessa conceituação, ele nos afirma que existem duas formas de fato social, o normal e o patológico. Para ele, a diferença é dada de acordo com que determinado fato se apresenta nas sociedades consideradas no mesmo estado de evolução (teoria definida por Comte). Durkheim afirma ainda que se um fato é comum em várias sociedades no mesmo estado, ele é considerado “normal”, mas, se esse fato é algo que vai além e desestabiliza a ordem social, pode ser considerado patológico.

Entretanto, a normalidade e a patologia deveriam ser analisadas em cada momento da história. A grande regra para identificação do fato anormal foi assim descrita por Durkheim:

[…] depois de ter estabelecido pela observação que o fato é geral, irá até às condições que no passado determinaram esta generalidade e indagará em seguida se estas condições ainda existem no presente ou se, pelo contrário, se modificaram. No primeiro caso, terá o direito de considerar o fenômeno como normal e, no segundo, de recusar-lhe este caráter (DURKHEIM, 2011)

Diante do exposto, reportamos ao nosso marco histórico – A Revolta de Stonewall, o qual trouxe modificações na legislação norte-americana e inspirou o mundo todo em defesa dos direitos inatos, por sua condição de sujeito de direitos. No entanto, não é correto afirmar categoricamente que a violência, o desrespeito, a discriminação e o preconceito tenha acabado. Enfim, em pleno século XXI o mundo não é um lugar seguro para o sujeito LGBT.  O medo é parceiro constante. Tal premissa, reverbera em ações como suicídio cometidos pelos jovens em razão de sua orientação sexual, como visto em pesquisa conduzida pela Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, onde jovens homossexuais tem até cinco vezes mais chances de acabarem com as próprias vidas:

Overall, suicide is the third leading cause of death among youth ages 15 to 24, and LGB youth attempt suicide at significantly higher rates than heterosexuals. Few studies, however, have examined whether a young person’s social environment contributes to the likelihood that he or she will attempt suicide.[7]

Vale ressaltar que a perseguição, discriminação e violências cometidas contra pessoas por causa da sua orientação sexual ou identidade de gênero – real ou percebida – não acabou. No Brasil, segundo dados oficiais, Relatório de Violência Homo fóbica no Brasil, da Secretaria Especial de Direitos Humanos do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos. O Relatório já na sua apresentação afirma:

O Brasil vive atualmente um movimento contraditório em relação aos direitos humanos da população de lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis ‐ LGBT. Se por um lado conquistamos direitos historicamente resguardados e aprofundamos o debate público sobre a existência de outras formas de ser e se relacionar, por outro acompanhamos o continuo quadro de violência discriminação que a população LGBT vive cotidianamente. Vemos que ser LGBT, infelizmente, ainda configura uma situação de risco.

O Relatório cunha o termo homofobia “como preconceito ou discriminação (e demais violências daí decorrentes) contra pessoas em função de sua orientação sexual e/ou identidade de gênero presumidas.

Vale ressaltar desse modo, que existem tipos de homofobia: institucional (discriminação praticada pelas instituições), de ódio (tipificadas pelo código penal) e social (aquela em que a vítima não é apenas a população LGBT, delimitadas pela preconceito, mais todo e qualquer indivíduo, cuja a identidade de gênero seja percebida socialmente como diversa da heterossexual).

O exercício de nossas vontades na sociedade, o modo como pensamos e agimos, a forma como nos comportamos, como nos vestimos, para qual time de futebol torcemos, a qual corrente política nos filiamos, o que entendemos como por certo ou errado, com quem dormirmos ou deixamos de dormir, pode ser visto como parte ou fora do padrão do que historicamente se concebe como padrão “normal” de conduta social. O que é normal?

Historicamente, percebe-se então que as transformações ocorridas na sociedade humana são estruturadas através de ciclos, enfim, conjunto de ideias e valores que são fundantes para a civilização humana.

Essas transformações servem de medidas não apenas em termos de mudanças nos regimes políticos, mas dizem respeito aos costumes, as interações humanas e na própria sexualidade, e suas mais diversas expressões, sobretudo no que tange a população LGBT.

Assim, a trajetória do movimento LGBT, deve ser vista num macro e micro contexto, ou seja, não é possível falar sobre ela sem rever os acontecimentos do passado que influenciaram sua constituição, nem deixar de fazer referência a fatos que ocorreram fora e dentro do Brasil.

Pode-se perceber que há no sujeito político desse movimento uma diversidade de questões envolvidas, predominantemente relacionadas a gênero e a sexualidade. O movimento brasileiro nasce no final dos anos 1970, predominantemente formado por homens homossexuais. Mas logo nos primeiros anos de atividade, as lésbicas começam a se afirmar como sujeito político relativamente autônomo; e nos anos 1990, travestis e depois transexuais passam a participar de modo mais orgânico. No início dos anos 2000, são os e as bissexuais que começam a se fazer visíveis e a cobrar o reconhecimento do movimento.

Diversidade, pluralidade, igualdade. Os seres humanos são diferentes uns dos outros, lutamos pelo direito de ser diferente, e nos igualamos por nossa condição humana e não nossas escolhas, em especifico, aqui em razão de orientação sexual e identidade de gênero. (SANTOS,2003)

No mesmo sentido afirma Günther Frankenberg (2007, p. 252): […] para o tratamento igualitário de todos os indivíduos, trata-se não somente de igualdade de chances formal, mas, também, de material, de recursos e de capacidades sociais.

Por fim, conclui-se que os direitos sexuais são direitos humanos universais baseados na liberdade inerente, dignidade e igualdade para todos os seres humanos, expressos na “Declaração dos Direitos Sexuais:

Durante o XV Congresso Mundial de Sexologia, ocorrido em Hong Kong (CHINA), entre 23 e 27 de agosto de 1999, a Assembléia Geral da WAS – World Association for Sexology – aprovou as emendas para a Declaração de Direitos Sexuais, decidida em Valência, no XIII Congresso Mundial de Sexologia, em 1997.

Sexualidade é uma parte integral da personalidade de todo ser humano. O desenvolvimento total depende da satisfação de necessidades humanas básicas tais quais desejo de contato, intimidade, expressão emocional, prazer, carinho e amor.

Sexualidade é construída através da interação entre o indivíduo e as estruturas sociais. O total desenvolvimento da sexualidade é essencial para o bem estar individual, interpessoal e social.

Os direitos sexuais são direitos humanos universais baseados na liberdade inerente, dignidade e igualdade para todos os seres humanos. Saúde sexual é um direito fundamental, então saúde sexual deve ser um direito humano básico. Para assegurarmos que os seres humanos e a sociedade desenvolva uma sexualidade saudável, os seguintes direitos sexuais devem ser reconhecidos, promovidos, respeitados e defendidos por todas sociedades de todas as maneiras. Saúde sexual é o resultado de um ambiente que reconhece, respeita e exercita estes direitos sexuais. O DIREITO À LIBERDADE SEXUAL – A liberdade sexual diz respeito à possibilidade dos indivíduos em expressar seu potencial sexual. No entanto, aqui se excluem todas as formas de coerção, exploração e abuso em qualquer época ou situações de vida. O DIREITO À AUTONOMIA SEXUAL. INTEGRIDADE SEXUAL E À SEGURANÇA DO CORPO SEXUAL – Este direito envolve a habilidade de uma pessoa em tomar decisões autônomas sobre a própria vida sexual num contexto de ética pessoa e social. Também inclui o controle e o prazer de nossos corpos livres de tortura, mutilação e violência de qualquer tipo. O DIREITO À PRIVACIDADE SEXUAL – O direito às decisões individuais e aos comportamentos sobre intimidade desde que não interfiram nos direitos sexuais dos outros. O DIREITO À IGUALDADE SEXUAL – Liberdade de todas as formas de discriminação, independentemente do sexo, gênero, orientação sexual, idade, raça, classe social, religião, deficiências mentais ou físicas. O DIREITO AO PRAZER SEXUAL – prazer sexual, incluindo autoerotismo, é uma fonte de bem estar físico, psicológico, intelectual e espiritual. O DIREITO À EXPRESSÃO SEXUAL – A expressão sexual é mais que um prazer erótico ou atos sexuais. Cada indivíduo tem o direito de expressar a sexualidade através da comunicação, toques, expressão emocional e amor. O DIREITO À LIVRE ASSOCIAÇÃO SEXUAL – significa a possibilidade de casamento ou não, ao divórcio, e ao estabelecimento de outros tipos de associações sexuais responsáveis. O DIREITO ÀS ESCOLHAS REPRODUTIVAS LIVRES E RESPONSÁVEIS – É o direito em decidir ter ou não ter filhos, o número e o tempo entre cada um, e o direito total aso métodos de regulação da fertilidade. O DIREITO À INFORMAÇÃO BASEADA NO CONHECIMENTO CIENTÍFICO – A informação sexual deve ser gerada através de um processo científico e ético e disseminado em formas apropriadas e a todos os níveis sociais. DIREITO À EDUCAÇÃO SEXUAL COMPREENSIVA – Este é um processo que dura a vida toda, desde o nascimento, pela vida afora e deveria envolver todas as instituições sociais. O DIREITO À SAÚDE SEXUAL – O cuidado com a saúde sexual deveria estar disponível para a prevenção e tratamento de todos os problemas sexuais, preocupações e desordens.

Conclui-se então que, a igualdade e não discriminação são fundamentais à proteção e promoção de todos os direitos humanos, incluindo a distinção de qualquer ordem, seja em razão da raça, cor, sexo ou qualquer outra, o que no campo dos direitos reporta a questões relacionadas a orientação sexual e identidade de gênero.

Nesta esteira, verifica-se que o desdobramento do direito à liberdade sexual, compreende a orientação sexual, identidade de gênero, requerem a proteção dos direitos humanos. Assim, toda violência cometida, seja física ou psicológica, que propicie atos de discriminação e exclusão, violam os direitos humanos do sujeito LGBT, violência que atenta a todos, incluindo não apenas a pessoa individualmente, mais toda a sociedade.

Os direitos sexuais, portanto, visam proteger os direitos de todas as pessoas no que diz respeito ao exercício pleno de sua sexualidade.

3 LEGALIDADE DA “LUTA” LGBT E IDENTIDADE SEXUAL.

Michel Foucault estudou sobre a identidade sexual, bem como sobre a luta de gêneros. Ele acredita na multiplicidade e no processo indefinido de metamorfose do indivíduo que, ao elaborar suas escolhas, faz de suas experiências uma vida diversificada, não se devendo portanto estabelecer uma identidade predefinida, não havendo resumir os indivíduos sociais a apenas um “padrão”, pois as pessoas, assim como os fatos sociais estão em constante mudança. Segundo Foucault:

“Isso está de acordo com minha identidade?”, então eu penso que fizeram um retorno a uma forma de ética muito próxima à da heterossexualidade tradicional. Se devemos nos posicionar em relação à questão da identidade, temos que partir do fato de que somos seres únicos. Mas as relações que devemos estabelecer conosco mesmos não são relações de identidade, elas devem ser antes relações de diferenciação, de criação, de inovação. É muito chato ser sempre o mesmo. Nós não devemos excluir a identidade se é pelo viés desta identidade que as pessoas encontram. (FOUCAULT, 1984).

Para Foucault, quem determina essa “identidade”, são os membros da sociedade discriminadora, que anuncia a necessidade de dizer quem somos na busca de uma verdade sobre o sexo.

Os direitos começaram a se igualar após o fim da Segunda Guerra Mundial, onde avanços na justiça mundial começaram a respeitar os direitos de cada um, regidos às normas e princípios das constituições, especialmente quanto aos direitos humanos, asseverando assim, a todos a dignidade e o acatamento às “diferenças”. Diante disso, é interessante afirmar que todos os direitos fundamentais se materializam a partir de políticas públicas, estas funcionando como concretização dos direitos sociais.

O movimento, conhecido como Neoconstitucionalismo, foi a princípio, uma reação ao positivismo kelseniano, que, em seu cerne, levaria em estima além da norma escrita, os valores e princípio da pessoa humana. Dirley da Cunha Júnior, traz, em seu livro o seguinte conceito a este movimento jurídico:

O Neoconstitucionalismo, também chamado de constitucionalismo contemporâneo, é um movimento que surge na Europa após a 2º Guerra Mundial, como superação do positivismo jurídico, dando ensejo a consolidação de um Estado Constitucional, fundado na centralidade da Constituição e dos Direitos Fundamentais. (CUNHA JÚNIOR, 2018)

Agora, se regressaria ao direito como banjo da moral, onde todos têm o mesmo valor, e fazem jus ao mesmo respeito e apreço independentemente de qualquer distinção, promovendo-se, pois, o princípio de equidade, como regulamenta a Declaração Universal Dos Direitos Humanos, documento designado para redimirem-se as ferocidades acontecidas durante o conflito militar global. “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos.” (ONU, 1948)[8]. Essa citação abre espaço para uma discussão pautada no direito à sexualidade e as ações afirmativas a ele atribuídas, bem como sua efetividade, de modo a corroborar e legitimar a luta pela igualdade.

Podemos nos referenciar em dois autores para explicar políticas públicas. Autores esses que trazem à tona um conceito importante para a manutenção de direitos a liberdade, bem como a igualdade. A princípio se destaca Sampaio e Araújo Jr. (2006), que afirma que “a política em si caracteriza-se como o diálogo entre sua formulação e sua implementação, ou seja, a interação entre o que se propõe executar e o que se realmente executa”. Entendido este tópico, podemos partir ao próximo. Explicar como se deve a formulação das mesmas, que segundo Souza (2003), se dá como o processo por meio do qual “os governos traduzem seus propósitos em programas e ações, que produzirão resultados ou as mudanças desejadas no mundo real”, que produzem efeitos a longo e a curto prazo.

Ainda hoje existem ideias adversas ao reconhecimento do direito à liberdade e igualdade, assim como a validade da luta pelo reconhecimento LGBT. Muitas vezes, essas considerações surgem como efeito de conservadorismos e patriarcalismos colhidos na primeira infância, a partir de omissões de diálogo, intervindo assim, na formação social das crianças. Essas diferenciações são por muitas vezes arbitrárias, onde:

Não existe uma razão suficiente para a permissibilidade de uma diferenciação quando todas as razões que poderiam ser cogitadas são consideradas insuficientes. Nesse caso, não há como fundamentar a permissibilidade da diferenciação. (ALEXY, 2015)

 “Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho. Todos se libertam em comunhão” (FREIRE,1998). Essa pode parecer uma frase de efeito, todavia, podemos assemelhá-la as realidades sociais já vividas, onde, mesmo que se veja historicamente “oprimidos”, as mudanças são necessárias a toda uma sociedade, liberdade de mente, de coletividade, onde todos se formem como sujeito histórico-transformadores.

            Podemos aqui lembrar que existem na Carta Magna de 1988, mais precisamente em seus artigos 3º, inciso IV – “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”, onde podemos observar o verbo “promover”, que transmite a responsabilidade a todos os atores sociais em fornecer o bem a todos, independentemente de qualquer circunstância. Já no artigo 5º, caput – “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade […]” podemos destacar o termo “todos”, dando ideia de que os princípios devem ser respeitados, de modo a promover a igualdade. Contudo, mesmo com tais leis, ainda não se estabeleceu a igualdade tão almejada.

Outro texto legislativo que assegura o direito dos LGBT´s é a resolução número 12 do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção de Direitos LGBT, órgão colegiado, integrante da estrutura básica da secretaria de direitos humanos da presidência da república (SDH/PR), criado por meio da Medida Provisória 2216-37 de 31 de Agosto de 2001 – que já é, por si, uma conquista, visto o tempo de luta e a importância dessa notificação- que determina o uso de nome social e de banheiros em instituições de ensino, diante do reconhecimento de gêneros, já em vigor, o que incitou muito a luta, redimindo-se, em muito a luta dos transexuais e transgêneros.

Deve-se ainda lembrar um” fenômeno” que tomou as redes no fim de 2017, a “cura gay”, que solicitava como o próprio nome diz uma cura aos homossexuais, como se a homossexualidade voltasse a ser doença psíquica, retomando os tempos de ideias pseudocientíficas do século 19. Esse dado causa tanta indignação porque é tão alarmante que, a título de informação, desde 1990 a Organização Mundial de Saúde a excluiu de sua lista de distúrbios mentais, mostrando assim que ainda não estamos tão perto da igualdade almejada, onde o que ainda se observa é a heterossexualidade como modo ‘normal’ de expressão da sexualidade, entretanto, hoje a prática se desvirtua desse conceito.

4 AÇÕES AFIRMATIVAS COMO ELEMENTO DE IGUALDADE:

Existem princípios jurídicos que se valem a proteção do direito a sexualidade, citando-se em especial a fase democrática desse direito, que rompe paradigmas quanto a dignidade, de modo a exaurir tratamentos excludentes. Tais princípios são a liberdade e igualdade, que, a partir do constitucionalismo clássico (positivado) e direitos fundamentais fomentam a dignidade. Podemos apontar, mesmo diante de tantos direitos adquiridos, ainda uma necessidade de maior abordagem desta temática, uma vez que direitos já forma adquiridos, entretanto a muito ainda a se fazer e lutar para que possa se ter “uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”, assegurando o direito de liberdade, segurança e bem estar, como prega a Constituição de 1988 em seu preâmbulo.

Liberdade e igualdade, nesse contexto, desdobram-se em inúmeros direitos, manifestações mais concretas de seus conteúdos na esfera da sexualidade. Tal perspectiva, efetivamente, agrega a esses direitos conteúdo jurídico suficiente a enfrentar uma série de situações envolvendo relações individuais e sociais onde a sexualidade e a reprodução humanas estão envolvidas de modo significativo. (RIOS, 2006)

Para garantir esses direitos, foram criadas as ações afirmativas, exemplo de política pública que está a fim de ressaltar a batalha os socialmente excluídos, combatendo os preconceitos e eliminando desigualdades acumuladas, histórico e socialmente falando, foram criados meios alternativos de modo a equalizar as oportunidades e manter a isonomia contida no preâmbulo da Constituição Federal. Esses meios podem ser chamados de ações afirmativas, que são:

A ação afirmativa consiste em um instrumento ou um conjunto de instrumentos utilizado para promover a igualdade de oportunidades no emprego, na educação, no acesso à moradia e no mundo nos negócios, onde se busca, através de prevenção, alcançar uma sociedade inclusiva, aberta à participação do indivíduo, garantindo-se o tratamento justo independente de raça ou gênero (Abdias Nascimento, 2005).

            Vale se ressaltar, ainda, que as ações afirmativas são diferentes das políticas apenas antidiscriminatórias, pois aquela tem um caráter profilático, onde se está a favor de indivíduos com alto potencial a discriminação segundo as estatísticas, ao contrário destas que apenas trabalham com sanções repressivas bem como conscientização a esses indivíduos. O principal objetivo dessas medidas seria, portanto, o combate às desigualdades bem como apresentar padrões democráticos a mesma.

Há de se destacar como mais recente conquista do movimento LGBT, em especial, na luta dos T (Transexuais, travestis, homens e mulheres transgêneros), a ADI[9] 4275 / DF que foi aprovada, por unanimidade, no Supremo Tribunal Federal (STF), que permitiu no dia 01/03/2018 a existência de troca indenitária sem haver necessidade da troca de sexo, bem como sem precisar assar por revisão médica e/ou psicológica, podendo a pessoa apenas ir ao cartório e trocar de nome, devendo, entretanto as instituições manter o sigilo quanto às trocas de nome, votaram assim Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Luís Fux e Carmen Lúcia. Além disso, ainda se afirmou que não deve ter idade mínima para poder se fazer essa troca. Ainda nesse tocante, Ministra Carmem Lúcia, presidente da corte, declarou:

Esse é um julgamento que marca mais um passo na caminhada pela ativação do princípio da igualdade no sentido do não preconceito. Continua havendo intolerância, discriminação, preconceito e todas as formas de manifestação, expressa ou velada.

Ministro Marco Aurélio, ainda no julgamento da ADI 4275 / DF se embasou no conceito de transexualidade por Maria Berenice Dias, ao dizer que não se assemelha à homossexualidade, mas sim “existe uma repulsa a genitália do órgão biológico”. Em sua decisão, ele ainda expõe:

É tempo de a coletividade atentar para a insuficiência de critérios morfológicos para afirmação da identidade de gênero, considerada a dignidade da pessoa humana. Descabe potencializar o inaceitável estranhamento relativo a situações divergentes do padrão imposto pela sociedade para marginalizar cidadãos, negando-lhes o exercício de direitos fundamentais.

Podemos citar, portanto, que tais medidas muito ajudam na promoção da igualdade, mas sozinhas não são suficientes. É necessário se abrir janelas ao novo, buscar novas formas de releitura das conjunturas, abrir-se ao coletivo, participar, efetivamente da democracia em busca de direitos em razão da efetiva participação popular.

5 LUTA POLÍTICA PELA EMANCIPÇÃO DE DIREITOS

Roberto Lyra Filho, no livro “O que é Direito” se expressou, em seu estudo, com o termo “Direito Achado na Rua” (LYRA FILHO, 1982), a intenção de Lyra, era resgatar a dimensão do direito que nasce da ação dos movimentos sociais. É relevante citar que este assunto se faz importante a diversas áreas jurídicas, tais como a filosofia, sociologia, ciência política, e se fundamenta com discussões feitas por movimentos sociais, pela força normativa que tem a sociedade civil quando se manifesta consciente e democraticamente buscando seus direitos.

O professor Roberto Lyra Filho desvincula, logo a início, direito de lei, onde diz que as perspectivas de Estado não correspondem a todo o contexto histórico de formas de governos, assim como as lutas e conquistas do povo por meio de movimentos sociais.
Esse horizonte de expectativas que é aberto (ou reforçado) pela Constituição Federal de 1988, permanece, de fato, indeterminado. São as práticas social e historicamente contextualizadas que delinearão esse processo de transformação da realidade. Podemos portanto inferir, que para se conseguir direitos almejados há de existir luta pela democracia bem como pelo respeito a coletividade. E esse direito não vai ser achado sentado, mas sim na rua, em meio a sociedade, de forma política.

6   EFETIVIDADE DAS AÇÕES AFIRMATIVAS

            Muito ainda se discute sobre os direitos LGBT no Brasil. Essa temática, nos últimos anos tem sido alvo dos noticiários, principalmente após fevereiro desse ano, quando a UFSB (Universidade Federal do Sul da Bahia) delimitou cotas a transexuais em sua pós graduação.

Essa política pública abre parâmetro para um estudo crítico e continuado das ações afirmativas às minorias, de modo a se fomentar discussões, que devem surgir desde o âmbito acadêmico, até a sociedade civil.

Diante dessa provocação, Keyla Sympson, presidente da ANTRA (Associação Nacional de transexuais e transgêneros), em entrevista ao portal G1 afirmou que é importante essa noção de políticas públicas, especialmente quando se dá acesso as pessoas ao Ensino Superior. Ela disse:

Acho emblemático que o ensino superior tenha essa preocupação. É emblemático e fundamental que se garanta esse direito. Entretanto, é preciso que o poder público também dê condições de que essas pessoas possam buscar uma vaga no ensino superior, garantindo a permanência delas no ensino fundamental. (SYMPSON, 2018)

Além da universidade baiana, outras instituições aderiram a essa política de inclusão, tal como a UFCA, Universidade Federal do Cariri, no Ceará, que promoveu, além de cotas para as transexuais, ações aos índios, negros e pessoas com deficiência, ressaltando assim que existem sim, modos de se ressalvar direitos de igualdade a todos.

Vale ressaltar portanto, que mesmo diante de direitos certificados, dados marcam o Brasil como o país que mais mata LGBTs no mundo, estando à frente de Estados com guerra declarada, mostrando, ainda a resistência ao respeito e aquiescência das “diferenças”. Visto isso, de acordo com Mattos:

Há de se reconhecer que já houve grandes avanços. Os Tribunais pátrios vêm, aos poucos, assegurando direitos aos homossexuais. Ocorre que os desafios ainda são grandes. Todo um histórico de preconceito e discriminação não se altera em pouco tempo e com decisões isoladas. (MATTOS, 2014).

O Estado vem, a partir de lutas constantes do movimento, reconhecendo a causa LGBT, bem como garantindo o direito a educação, que, além da liberdade e da sexualidade é fundamental a todo ser humano. Para tanto, o papel das políticas públicas, em face das ações afirmativas é de crucial importância.

Visto isso, muito ainda existe a ser feito para que se possa ter uma sociedade “fraterna, pluralista e sem preconceitos”, assegurando o direito de liberdade, segurança e bem estar, como prega, em seu preâmbulo, a Constituição da República Federativa do Brasil/1988.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Segundo a Constituição Federal de 1988, “todo poder emana do povo”. Visto isso, podemos concluir com base no que tratamos ao longo deste artigo, considerando a premissa da democracia participativa, do direito achado na rua, das manifestações populares como a parada gay, que embora seja garantido formalmente a igualdade entre os indivíduos, pois sendo todos como iguais na forma da lei, verifica-se que a igualdade material está muito longe de ser consolidada. Enfim, o direito à sexualidade, enquanto uma das expressões do direito à liberdade, notadamente no campo dos interesses da população LGBT, continua no campo das possibilidades formais.

Assim, as ações afirmativas servem de base para as minorias no campo das políticas públicas como forma de pelo menos minimizar a onda de intolerância, discriminação e preconceito contra o sujeito LGBT, que por excelência é individuo de primeira classe como qualquer outro, portanto o diverso é normal. Assim, a estética padrão do que se entende por “normal” é uma construção que procura colocar como subalternos todas as pessoas consideradas fora do padrão sejam elas pobres, negras ou homossexuais, podendo assim, o direito à sexualidade se fundamentar a partir de ações concretas no campo das políticas públicas, com a cobrança do Estado em defesa do status quo igualitário para todo e qualquer cidadão em face da sua condição humana, onde se tratam o direito e moral, estabelecida na Carta das Nações Unidas e na Constituição Federal de 1988.

Por fim, a efetivação do direito à liberdade; com ênfase ao direito à sexualidade, este enquanto premissa inata ao indivíduo, se constitui verdadeiro fiel da balança quando se reporta aos ditames de justiça social, garantindo a efetividade desses direitos. Entretanto, para isso, se torna fundamental uma luta popular, norteado entre outros pelo princípio da democracia participativa popular, tornando-se pois válido o direito à liberdade e igualdade, assim como a efetivação das ações afirmativas que em se tratando do indivíduo, se encontra no contexto dos direitos constitucionalmente previstos. Desse modo, não concebe uma sociedade que discrimina, exclua e desqualifica a cidadania tomando por base o preconceito e a intolerância.

Desse modo, conclui-se que o Brasil precisa rever suas práticas, sejam elas provenientes de ações institucionais, da própria sociedade e das pessoas individualmente. Todos, absolutamente todos, independentemente do sexo, raça, cor, orientação sexual, são pessoas, e devem portanto ser respeitadas e protegidas contra qualquer tipo de violência.

8 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros Editores, 2015.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988.

DURKHEIM, Emile. As Regras do Método Sociológico. Tradução de Pietro Macete. São Paulo: Martin Clarete, 2011.

FRANKENBERG, Hunter. A gramática da Constituição e do Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2007

LEITE, Inês Ferreira. Pedofilia, Repercussões das Novas Formas de Criminalidade na Teoria Geral da Infracção. Almedina Coimbra, 2004

LYRA, FILHO, R. O que é Direito. São Paulo: Brasiliense, 1982.

MATTOS, Fernando da Silva. “Direito a igualdade e a dignidade dos homossexuais no Brasil: Uma análise panorâmica da Jurisprudência.” Florianópolis: Grupo de Pesquisa de Antropologia Jurídica – GPAJU/UFSC, 2014.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

GIANNOTTI, Veto. “As reformas de base necessárias”. In: Brasil de fato. São Paulo, 10 de abril de 2014. Disponível em: <http://brasildefato.com.br/node/28091>. Acesso em: 1º/01/2015.

ONU. Carta das Nações Unidas. Disponível em: <http://www.onu.org.br/img/2014/09/DUDH.pdf> Acesso em 18/04/18.

WAS. Declaração Dos direitos sexuais. Disponível em: <https://psicologia.oswrod.psc.br/index.php/saiba-mais-was-declaracao-os-direito.> Acesso Em 25/03/18.

STF. Ação Direta De Inconstitucionalidade 4.275 Distrito Federal. Disponível em http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4.275VotoMMA.pdf. Acesso em: 20/04/2018.



A representação política das mulheres nas Assembleias Constituintes de 1934 e 1988: Um estudo comparativo sobre a sub-representação feminina na política [10]

The Political Representation of Women in Constituent Assemblies of 1934 and 1988: A comparative study on female underrepresentation in politics

 

Sofia Alvarez Dias[11]

Resumo: A proposta principal deste trabalho é de fazer um estudo analítico-comparativo acerca da atuação política feminina em dois momentos históricos fulcrais para a construção da democracia brasileira. A análise é canalizada na percepção de quais foram as formas de participação e inserção da agenda política das principais figuras políticas femininas que marcaram o âmbito político institucional, mais especificamente no legislativo, nas assembléias constituintes de 1934 e 1987. É preciso ainda colocar que a agenda política diz respeito à inclusão dos direitos das mulheres nas duas Cartas Magnas, isso seguindo o referencial de representatividade proposto por Hannah Pitkin, que sugere enquanto um regime político equilibrado aquele composto tanto por uma política de presença quanto de idéias. E a partir desta perspectiva desenvolver a problemática histórica da inserção direta das mulheres na cena política, sempre marcada por uma subrepresentatividade, não somente no Brasil, mas no mundo inteiro. Aqui me retenho apenas a análise da conjectura histórica brasileira, onde essa baixa representatividade das mulheres é recorrente, perseverando até os dias de hoje. Algumas trajetórias pessoais, de figuras políticas marcantes durante os períodos não são apenas reconhecidas, mas postas em destaque em relação ao ambiente de suas atuações.

Palavras-Chave: Mulheres; Atuação Política; Democracia.

Abstract: The main proposal of this work is to make an analytical-comparative study about female political performance in two key historical moments for the construction of Brazilian democracy. The analysis is channeled in the perception of the forms of participation and insertion of the political agenda of the main female political figures that marked the institutional political scope, more specifically in the legislature, in the constituent assemblies of 1934 and 1987.  It is also necessary to point out that the political agenda is concerned with the inclusion of women’s rights in the two Letters Magnes, following the framework of representativeness proposed by Hannah Pitkin, who suggests as a balanced political regime that composed both a policy of presence and ideas. It is from this perspective to develop the historical problematic of the direct insertion of women in the political scene, always marked by an underrepresentation, not only in Brazil, but in the whole world. Here I am only analyzing the Brazilian historical conjecture, where this low representation of women is recurrent, persevering to the present day. Some personal trajectories, of outstanding political figures during the periods are not only recognized but highlighted in relation to the environment of their performances.

Keywords: Women; Political action; Democracy.

  1. Introdução

 Ao falarmos de representatividade coloca-se em questão um dos conceitos e práticas pilares de um regime político democrático. Tal pilar pode ser estudado de acordo com diferentes perspectivas dependendo do grupo de interesse que se propõe analisar. O trabalho aqui desenvolvido coloca como principal proposta a compreensão de como se deu a presença das mulheres no âmbito político institucional em dois momentos críticos da história brasileira.

Esses dois momentos se assemelham pela vontade de democracia apesar de seu contexto político e época temporal se distanciarem em realidade. O primeiro é a assembléia constituinte que resultou na promulgação da Constituição de 1934, já o segundo refere-se à assembléia responsável pela consolidação da conhecida Constituição cidadã de 1988.

Porém, não é apenas ao processo político que levou a formulação das respectivas Cartas Magnas de 1934 e 1988 que se coloca este trabalho, meu objeto de estudo é específico à atuação das mulheres durante esses processos. Grupo com caráter historicamente reconhecido por sua marginalidade as mulheres, no entanto, nunca deixaram de deixar sua marca na política, mesmo que esta não tenha o mesmo reconhecimento da dos homens até na história do pensamento político.

Logo, aqui além de fazer o estudo da representatividade dessas agentes políticas, trago também a importância da lembrança destas para a história brasileira. Para isso, realizo na seção seguinte a esta introdução uma panorâmica conceitual acerca de ‘representação’, de modo a esclarecer a forma como este é conotado na ciência política e a forma como se aplica especificamente neste trabalho.

Em seguida mergulho nos momentos históricos selecionados para análise, de forma cronológica, e quebrados de acordo com seus respectivos marcos temporais.

  1. Discutindo o Conceito de Representação

Ao reconhecermos a representação política de determinado grupo social enquanto objeto de estudo é válido realizar a exposição do que se entende enquanto da interpretação de ‘representação’. Para tal exercício irei me valer aqui de alguns referenciais teóricos da ciência política, mais especificamente duas: Hanna Pitkin e Anne Phillips.

Ao trazer as autoras para o desenvolvimento do meu trabalho penso em enriquecer o conteúdo em exposição, entendendo que um objeto mais aprofundado é mais propício para análise. Mas tal aprofundamento esta longe de retratar todo o plano teórico de discussão em torno da representatividade política, até porque este não é meu objetivo aqui.

Em seu trabalho, Hanna Pitkin se propõe a uma reconstrução da história epistemológica da palavra ‘representação’, fazendo uma interseção de análise com sua história sociopolítica, com o interesse focado no entendimento da representação política. A partir disso, ela remonta um período de transformação no parlamento inglês do século XIV ao século XVII, entendendo que “para compreender como o conceito de representação entrou no campo da agência e da atividade política, deve-se ter em mente o desenvolvimento histórico de instituições” (PITKIN, 2006, p. 21, grifo meu).

Essa transformação foi o maior envolvimento político de cavaleiros e burgueses dentro do parlamento, através de ação unificada foram capazes de aumentar gradualmente seu espaço de atuação política. Esses cavaleiros e burgueses atendiam respectivamente os interesses de suas comunidades e “não eram chamados de representantes por que a palavra ainda não tinha esse significado” (ibid, p.23).

O que se coloca como questão principal é que houve mudança na estrutura política através da maior agência de alguns atores, que estavam diretamente ligados a demandas sociais, este movimento deu estrutura e novo significado a palavra ‘representação’ e ‘representante’. Essa concepção colocada através da filosofia de linguagem por Pitkin apresenta a representação conectada a ideia de ação, mais especificamente de agir no interesse dos representados, de forma responsiva enquanto modo legítimo de representatividade política.

Essa concepção é questionada por Phillips apontando que para Pitkin “o que confere representatividade é a condição de responsividade”, esta responsividade trata de uma garantia de que o eleitorado está tendo de fato seus interesses atendidos, através de instrumentos como a responsabilização e prestação de contas (accountability). O questionamento de Phillips se coloca na possibilidade dessa canalização de representatividade em uma relação de prestação de contas institucionalizada – como começou com os burgueses e cavaleiros que respondiam diretamente suas comunidades – em uma minimização da importância dos representantes.

Segundo a autora “A mudança da democracia direta para a representativa mudou a ênfase de quem são os políticos para o quê (políticas, preferências, idéias) eles representam” (PHILLIPS, 2001, p. 271). Dessa questão urge a preocupação principal trabalhada por Phillips, que é o “sentimento de exclusão política amplamente sentido por grupos definidos por seu gênero, etnia ou raça” (ibid, p.272) e como tais grupos passam a demandar por presença política, essa preocupação dialoga diretamente com nosso objeto de estudo.

No trabalho de Phillips é colocada então um contra-movimento da representação política que é o desafio da histórica política de idéias (democracia representativa) por uma política de presença. A idéia de política de presença é desenvolvida no intuito de associar uma noção de representação mais equitativa no nível político a mecanismos de mudança, de modo que grupos marginalizados tenham acesso a esse espaço, como afirma a própria Phillips:

“(…) minha preocupação principal é com mecanismos mais especificamente políticos que associam representação justa com presença política e enfatizam mudanças no nível político: isto é, medidas que vêem o gênero, raça ou etnicidade dos representantes como alguma parte importante daquilo que os torna representativos e procuram alguma garantia de presença igual ou proporcional.”

(PHILLIPS, 2001, p. 278)

Essa questão é explorada com referenciais teóricos que também perceberam na intervenção deliberada por grupos sociais uma potência de transformação estrutural. Mas dentro de seu estudo a autora admite a política de presença enquanto controversa, e apresenta alguns dos argumentos que são usados contra a idéia, resumidamente são estes:

  1. Preocupação com estabilidade política
  2. “Balcanização da pólis” à mina coesão social
  3. Descompasso com os importantes desenvolvimentos da teoria política recente

No fim de seu trabalho Phillips expõe que não tem interesse em sobrepor uma política sobre a outra, isto é excluir a política de idéia em substituição da política de presença enquanto forma ideal de democracia, ao contrário, os principais problemas são apresentados quando estas são colocadas como “opostos mutuamente excludentes”, sendo na “relação entre idéias e presença que nós podemos depositar nossas melhores esperanças de encontrar um sistema justo de representação, não numa oposição falsa entre uma e outra.” (ibid, p.289). Logo, um bom sistema representativo seria aquele que busca certo equilíbrio.

  1. A Assembléia Constituinte de 1933

 3.1 Período Pré-Constituinte

Agora adentramos em uma análise específica da representatividade política das mulheres brasileiras com recorte temporal dentro do século XX, mas em dois períodos com contextos distintos, mas que se assemelham pelo fato de que em ambos se colocava em prática a proposta de (re)construção democrática pela elaboração e implantação de uma nova Constituição.

O primeiro caso a ser estudado é o da Constituinte de 1933, instaurada no Estado Provisório de Getúlio Vargas merece um olhar mais debruçado em sua conjuntura política por se tratar de período de turbulência política. Podemos começar com a Revolução de 1930, que deu lugar ao próprio estado provisório, foi um momento de quebra com a conservadora política do café-com-leite, acordo entre mineiros e paulistas, que teve seu fim a partir da união do Partido Republicano Mineiro com o Rio Grande do Sul criando a Aliança Liberal e lançando a candidatura de Getúlio Vargas. Após a derrota da chapa nas eleições, em outubro de 1930 um grupo liderado por Vargas chega ao poder após a destituição do presidente da República Washington Luís.

A partir daí, Vargas começou a governar e durante o Estado Provisório foi feita a revisão do antigo código eleitoral através do Decreto nº 21.076, de 24 de fevereiro de 1932, que se constituiu enquanto um dos atos políticos do Governo Provisório e:

regulamentava o alistamento e o processo eleitoral no país, nos âmbitos federal, estadual e municipal, trazendo uma série de inovações, dentre as quais se destacava o estabelecimento do sufrágio universal e secreto. Mais ainda, o novo código ampliava o corpo político da nação, concedendo direito de voto a todos os brasileiros maiores de vinte e um anos, alfabetizados e sem distinção de sexo. As mulheres brasileiras adquiriam assim, pela primeira vez e após árdua luta, cidadania política (…) (ARAÚJO, 2003, p.135, grifo meu)

No entanto, a demora em convocar a Constituinte começou a gerar insatisfação, sentimento este mais forte em São Paulo, onde somava-se à revolta dos fazendeiros que queriam reconquistar a influência perdida. A Revolução Constitucionalista explode em 1932, explicitando a oposição ao Governo Vargas através de uma Guerra Civil.

Em resposta a ‘contra-revolução’ constitucionalista, Vargas chama as eleições para uma nova Constituinte em 3 de maio de 1933. Esta constituinte analisaria um anteprojeto elaborado por uma comissão com 23 representantes selecionada pelo governo que foi convocada concomitantemente ao anúncio das eleições.

Nessa comissão foram chamas duas representantes do movimento feminista brasileiro: Natércia da Silveira e Bertha Lutz, que apesar de representarem a mesma pauta tinham conflitos relacionais, uma vez que no final da década de 20 disputaram a liderança do movimento de mulheres, mas “foi sobretudo o apoio irrestrito de Natércia ao candidato da Aliança Liberal à Presidência da República, em 1929, que provocou a ruptura entre ambas” (SCHUMAHER; CEVA, 2015, p.81).

Bertha Lutz nasceu em São Paulo no ano de 1894, precursora da liderança feminista no Brasil, já vinha fazendo intervenções em prol de mais espaço político para as mulheres desde a luta sufragista. Foi responsável pela origem da Federação Brasileira do Progresso Feminino (FBPF), entidade crucial para a luta política feminista na primeira metade do século XX.

A instalação da comissão do anteprojeto se deu em novembro de 1933, e a atuação ainda foi quebrada em uma subcomissão, que ficou de fato responsável pela elaboração do anteprojeto, essa nova dinâmica dificultou a inserção mais direta das pautas das categorias representadas. Alguns integrantes decidiram protestar a decisão, porém Bertha e outros 5 colegas entregaram sugestões formais ao anteprojeto (MARQUES, 2016).

As propostas de Bertha foram encaminhadas em um documento denominado “Os 13 princípios básicos: sugestões ao anteprojeto da Constituição” foram eles: (1) racionalização do poder, (2) organização da economia, (3) dignificação do trabalho, (4) nacionalização da saúde, (5) generalização da previdência, (6) democratização da justiça, (7) equiparação dos sexos, (8) consagração da liberdade, (9) proscrição da violência, (10) soerguimento da moral, (11) flexibilidade do direito, (12) dinamização da lei e (13) socialização da instrução.

Natércia da Silveira nasceu no Rio Grande do Sul em 1926 e foi a primeira mulher advogada do estado sulista. Participou do movimento sufragista e chegou a se filiar à FBPF, no entanto, a divergência pública com Bertha Lutz fez com que deixasse a entidade, após isso fundou a Aliança Nacional de Mulheres em 1931.

  • As Eleições de 1933

Para a composição dos deputados da Assembléia Constituinte foi convocada uma eleição geral, que também abarcaram disputas nas Assembléias Estaduais de todo o Brasil. Focaremos a análise nas candidaturas femininas à Assembléia Constituinte, a qual teria representantes de todo o país.

Entretanto, antes de adentrar na campanha eleitoral em si, é importante colocar a força política da Igreja nesse contexto político, um exemplo de sua presença colocada de forma organizada são as ligas eleitorais católicas, que tinham como objetivo distribuir cédulas e seduzir eleitores para suas respectivas legendas. Segundo Marques, “a igreja foi , ao lado de Vargas, uma poderosa força eleitoral em 1933 e uma presença ativa nos trabalhos de Assembléia Constituinte” (2016, p.44)

Esta força política da Igreja acaba por influenciar diretamente a pauta feminista, uma vez que na candidatura à Constituinte de Bertha Lutz, apoiada pela FBPF e em busca de capital político para atuar diretamente na formulação da Constituição optaram por “se dissociar da defesa do divórcio, realizando demonstrações públicas de apoio à Igreja” (ibid, p.45).

Outro aspecto que marcava a cultura política e atravessava a participação dos movimentos de mulheres era o clientelismo. Na Aliança Nacional de Mulheres, liderado por Natércia da Silveira, era mantida uma caixa de auxílio à mulher desamparada, entre outras propostas de cunho assistencialista, tendo a própria Natércia oferecido aconselhamento jurídico ao público determinados dias da semana. Já na FBPF, a prática de favorecimento direto com o eleitor não era costume, mas “assim se fazia política e, portanto, as feministas deveriam se ajusta a ela” (ibid, p.54), e pragmaticamente passaram a oferecer consultas médicas e horários de aconselhamentos jurídico – prestados por mulheres associadas – ao público.

A candidata a concorrer como deputada da Constituinte da FBPF foi Bertha Lutz, pelo Partido Autonomista que usou suas propostas ao anteprojeto de constituição para consolidar sua plataforma eleitoras, suas propostas se baseavam em justiça social e igualdade jurídica entre os sexos. Com 16.423 votos, Bertha foi a que chegou mais perto de ser eleita das sete candidatas pelo Distrito Federal, conseguindo a vaga de primeira suplente.

A única mulher eleita à Assembléia Constituinte foi Carlota Pereira de Queirós, eleita pela Federação dos Voluntários Paulistas. Carlota conseguiu ocupar uma das 22 cadeiras da representação de São Paulo após conseguir 176.916 votos. A médica paulista colhia os frutos políticos de sua atuação na contra-revolução de 1932, em que participou da coordenação dos esforços de voluntários para apoiar os soldados paulistas.

No que concerne a relação entre as duas únicas mulheres presentes na Constituinte, pode-se colocar da seguinte forma:

Carlota não partilhava do pensamento de Bertha sobre o papel da mulher na política, nem mesmo julgava o feminismo um movimento político necessário. Bertha, por outro lado, sabia que era possível e necessário estabelecer um bom entendimento com Carlota. (ibid, p. 60)

Candidatas à Constituinte no Distrito Federal:

3.3 Atuação das mulheres na Constituinte

A década de 1930 foi marcada não apenas de um processo de reconstitucionalização com fim em si mesmo, todo o panorama político de disputas que resultou na necessidade de uma nova Constituição perpassava também pela redefinição do Estado Nacional e da reorganização da vida política.

Esse contexto de renovação abre brechas para novas categorias buscarem seu espaço político, como as feministas e a classe trabalhadora. Desde que 15 de novembro de 1933 quando é instalada a Assembléia, até 16 de julho de 1934, com a promulgação da Constituição, o cenário é instável e o embate entre as forças políticas ali presentes, constante, demandando o máximo de agência das partes interessadas.

Na Constituinte, apenas a ativista Carlota Pereira de Queirós começou com o mandato oficial, integrando a Comissão de Saúde e Educação. Mesmo sem mandato direto, Bertha fez uso de sua influência política para poder transitar as propostas de emenda da FBPF.

De modo sintetizado, o lobby feminista em 1934, baseava-se essencialmente em três pautas: a igualdade entre os sexos, os direitos políticos femininos e os direitos sociais. O tema da igualdade entre os sexos, tendo no cerne de sua discussão o caráter jurídico, objetivando o reconhecimento de que homens e mulheres eram iguais perante a lei, foi central na ação política da FBPF, que teve bons resultados em suas negociações. Prova disso foi a redação final que o tema obteve na promulgação da Constituição:

Art. 113. (…)

1) Todos são iguais perante a lei. Não haverá privilégios, nem distinções, por motivos de nascimento, sexo, raça, profissões próprias ou dos pais, classe social, riqueza, crenças religiosas ou idéias políticas.

Essa afirmação era crucial, uma vez que “extinguiria a tutela dos maridos sobre as esposas, o que as impedia de exercer atividade profissional sem a anuência daqueles, de realizar contratos, de aceitar herança e muitas outras limitações (…)” (MARQUES, 2016, p.72).

O tema dos direitos políticos foi novamente uma luta para as feministas, mesmo com o código eleitoral de 1932 que para ter sua legitimidade confirmada precisava passar pela Assembléia Contituinte. Essa luta explica-se uma vez que o direito político – nessa época – deve ser relacionado ao serviço militar, uma vez que, ao se ter uma expansão da cidadania política em pauta, muitos associavam esta ao empenho da defesa em coletividade. Essa associação explica a imagem de cidadão-soldado que percorria o imaginário do pensamento político dos homens públicos brasileiros ao se debater assuntos constitucionais, ainda se atendo à Constituição de 1891, que em seus preceitos, excluiu o sufrágio dos analfabetos, mulheres, mendigos, soldados e religiosos, ela estabelecia:

Art. 70. São eleitores os cidadãos maiores de 21 anos, que se alistarem na fórma da lei.

  • 1º Não podem alistar-se eleitores para as eleições federaes, ou para as dos Estados:
  • 2º São inelegíveis os cidadãos não alistáveis. (Brasil, 1891)

Percebe-se a exigência da prestação do serviço militar para o exercício do voto que, para as mulheres da época, era classificado como voluntário, ficando assim uma lacuna na legislação. Nesse particular, as feministas foram surpreendidas pela atuação de Carlota, que ao discursar sobre o assunto afirmou “que a legislação ordinária poderia atribuir às mulheres a obrigação de prestar serviço social, à título de servir à pátria” (MARQUES, 2016, p.80), opção considerada também por Bertha dado o tom conservador do debate do tema.

Por fim, no que diz respeito aos direitos sociais, vale destacar três conquistas para as mulheres e garantidas legislativamente:

  1. Princípio da Igualdade salarial para igual trabalho
  2. Proteção à maternidade
  3. Permissão para que as mulheres desempenhassem trabalhos noturnos

Infelizmente essas conquistas duraram apenas três anos, até a instauração do Estado Novo, no qual foi outorgada uma nova Constituição no dia seguinte ao golpe, e extinguiu a Justiça Eleitoral, dissolveu o Parlamento, as Assembléias Estaduais e as Câmaras Municipais.

Nessa seção tentei mostrar de modo breve as lutas externas e internas que enfrentavam as mulheres no âmbito político, sem adentrar nas dificuldades de ação em uma sociedade extremamente conservadora, que viam na mulher o dever de “procriar, educar os filhos para bem servir à pátria e encarregar-se da administração e economia domésticas, eis as atividades que a sociedade e os valores tradicionais haviam reservado às mulheres, confinado-as ao espaço da casa e da vida privada” (ARAÚJO, 2003, p. 139)

  1. A Assembléia de 1987

 4.1 Tempo de Redemocratização

Aqui é também válido colocar em contexto a situação política do país, que vinha enfrentando uma ditadura desde 1964 com fortes aspectos repressivos. Um movimento de abertura política foi duramente conquistado e começou a dar sinais em 1979 com a anistia, o fim do AI-5 e a desestruturação do bipartidarismo formado pelo partido conservador Arena e o MDB, com ideais liberais e assim, o ressurgimento de partidos políticos de diferentes matizes.

O movimento feminista e de mulheres já vinha se organizando com fins políticos e ganhando força desde a década de 1970, essa estrutura mais organizada acompanhou um movimento internacional, em 1975, na I Conferência Internacional da Mulher, no México, a Organização das Nações Unidas (ONU) declarou os próximos dez anos como a década da mulher (ARAÚJO, 2010).  Na convocação de eleições diretas para governadores em 1982 as mulheres reinauguraram sua relação com o Estado e elegem 8 deputadas federais, além de 3 senadoras (SHUMAHER; CEVA, 2015).

Com o fim do regime militar, o então presidente José Sarney deu continuidade ao compromisso de promover a redemocratização do país e para isso enviou ao congresso a Emenda Constitucional 26/85, que convocava a Constituinte. Este foi considerado o ato político mais importante do governo Sarney, uma vez que essa convocatória tinha a promessa de um debate representativo popular no “instrumento fundante do Estado democrático, em termos de direitos, a Constituição Federal” (SILVA, 2008).

No intermédio até as próximas eleições, mudanças significativas ocorrem como o atendimento das demandas à criação de um órgão específico em agosto de 1985, com o lançamento do Conselho Nacional de Direitos da Mulher com autonomia administrativa, financeira e vinculado ao ministério da Justiça, e que iria adotar como uma de suas primeiras iniciativas, sob a presidência de Jacqueline Pitanguy, uma campanha nacional que ficou conhecida como “Constituinte sem mulher fica pela metade”, cujo objetivo era aumentar a representação feminina no Congresso Constituinte.

Esta campanha teve continuidade em 1986, quando o Conselho que mobilizou mulheres no país inteiro a fim de ouvir suas sugestões de mulheres de diversos segmentos para a Constituição.  O debate culminou em um encontro nacional em agosto de 1986, no qual foi elaborada a Carta das Mulheres aos Constituintes, lançando a 2ª fase da sua campanha, sob o slogan “Constituinte pra valer tem que ter palavra de mulher”. Por fim, a campanha saiu exitosa em seu propósito, sendo eleitas nas eleições de novembro de 1986, um total de 26 deputadas federais, triplicando a presença feminina na Câmara dos Deputados vis-a-vis o ano de 1982.

4.2 As Eleições de 1986

Já nas eleições no Brasil para a Assembléia Constituinte se percebe uma novidade, estas contaram com um número bastante mais elevado de mulheres candidatas em comparação aos pleitos anteriores, somente no Rio de Janeiro houve 48 mulheres foram incluídas nas listas registradas pelos partidos (TABAK, 2002). Este incremento é outra demonstração da força da organização do movimento de mulheres, que teve sua plataforma de demandas absorvida pela política institucional e também nos meios de comunicação de massa.

Além dos partidos políticos, outras esferas de poder já haviam reconhecido tais demanda e instaurado órgão específicos de assuntos das mulheres, como é o caso do próprio Conselho Nacional do Direito das Mulheres (CNDM) tanto na esfera federal como estadual, e além deste houve também a criação de delegacias femininas, “resultado da denúncia – tornada pública – da violência sexual contra a mulher, traduzida em casos extremos, no assassinato de mulheres por maridos que alegaram “legítima defesa da honra” e ficaram impunes.” (ibid, p.146).

Mas o crescimento do movimento social por um lado não garantia a circulação plena das idéias e mulheres que objetivavam representá-las. Segundo Fanny Tabak:

A falta de credibilidade numa candidatura feminina ficou algumas vezes patente, dentro e fora do partido. Dentro do partido, persistiu a tendência a “instrumentalizar” a mulher, isto é, utilizar o fato de que ela era candidata, para fazer as denominadas “dobradinhas” (união de dois candidatos a mandatos de níveis diferentes), para que, na prática, ela contribuísse, com seu esforço pessoal, para divulgar e ampliar a campanha de seu companheiro masculino. (2002, p.152)

A maior absorção da mulher no meio político-institucional pode ser interpretada, como resposta à demanda uma maior atuação política da mulher pelos movimentos sociais e uma maior participação na sociedade como um todo, mas essa absorção não era de fato levada a sério, e ficava ainda a percepção de que política é “coisa pra homem”, percepção esta que era apoiada por muitas vezes por mulheres, que não participavam do movimento de quebra de alienação à vida política.

Consequentemente, essa falta de credibilidade dificultava o acesso das candidatas aos recursos necessários para se realizar uma boa campanha, como propaganda televisiva e recursos financeiros.

Apesar dessa dificuldade em comum, é preciso ressaltar que as candidaturas das mulheres estavam longe de apresentar homogeneidade, enquanto algumas apresentam certa notoriedade, devido “prestígio ou posição do marido, que exerce um cargo público e dispõe, por conseguinte, de uma máquina administrativa, recursos financeiros, canais de propaganda, bases eleitorais, etc.” (ibid, p. 157). Enquanto outras derivam sua popularidade de movimentos sociais e comunitários nos quais exercem liderança em suas comunidades – alguns deles apresentam uma postura residual do clientelismo percebido nas campanhas de 1934. Essas diferenças ficam claras na fala de uma das deputadas eleitas, Mª de Lourdes Abadia (PSDB/DF) em um especial sobre a atuação das mulheres na Constituinte de 1988 realizado pelo Correio Braziliense:

Éramos tão diferentes. Entre as 26 havia duas filhas de ex-presidentes, várias esposas de governadores e eu e Benedita da Silva que vínhamos de favela. (…) Ainda assim, mesmo com todas as diferenças encontrávamos consenso. Mas não era fácil. Eu me lembro dos debates intensos que travamos sobre a legalização do aborto, por exemplo. Cristina Tavares e Sandra Cavalcanti protagonizaram embates memoráveis. A primeira era a favor do aborto. Já Sandra era católica fervorosa. (Correio Braziliense. Brasília, 28 de outubro de 2003)

Na fala de Mª Lourdes são colocadas as diferenças entre as mulheres eleitas para o mandato, e estas refletem uma amostra de todas as candidaturas, então a análise destas diferenças é ainda válida. Note-se que para além das especificidades da origem de cada representante, é apresentada também uma incompatibilidade de valores, ocasionando assim nos “embates memoráveis”, mas ainda nessa mesma fala, é delineada a forma de atuação, melhor analisada na próxima seção, que é a busca pelo consenso.

4.3 Atuação das mulheres na Constituinte

O resultado das eleições de 1986 pode ser considerado como uma vitória para o movimento feminista e de mulheres no Brasil da época, uma vez que teriam a chance de ter uma agência política no Congresso Nacional em um momento de redefinição dos preceitos constitucionais, poderiam atuar na elaboração e aprovação de leis ordinárias capazes de contribuir efetivamente na concretização de demandas e reivindicações.

Essa vitória, no entanto, deve ser colocada em perspectiva. Do elevado número candidatas femininas, apenas uma pequena amostra foi capaz de efetivar seu pleito em um mandato de fato, no Rio de Janeiro, por exemplo, das 48 candidatas apenas 5 obtiveram mais de 10 mil votos (TABAK, 2002). Um progresso real foi obtido comparativamente ao número de assentos ocupados às últimas legislaturas, em 1974 havia quatro mulheres no Congresso, em 1978 esse número subiu para oito, logo, ter 26 mulheres eleitas em 1986 é de fato, um avanço na ocupação do espaço político-institucional. No entanto, este número relativizado com o total de assentos na casa da época, que era 487 deputados, equivale a 5%.

Tabela 1. Total de Mulheres e Deputados Eleitos em 1982 e 1986 – Brasil

Fonte: IBGE – Dados populacionais, sociais, políticos e culturais: representação política

Fonte: IBGE – Dados populacionais, sociais, políticos e culturais: representação política

Essa conquista marcada pela contínua baixa representatividade denotava um cenário de desafio a ser enfrentado tanto pelas deputadas quanto pelo movimento feminista. As propostas pautaram-se pela Carta das Mulheres, lançada ainda em campanha eleitoral, e que possuía uma séria de pautas específicas relacionadas aos problemas de: família, trabalho, saúde, educação, cultura e violência. Além disso, foram enunciadas questões Nacionais e Internacionais.

Apesar das especificidades, no conjunto das 26 deputadas Constituintes havia algumas claramente identificadas com tais reinvidicações, algumas delas militavam ativamente em prol delas. Isso apresentou um diferencial no Congresso Nacional e se caracterizou na busca pelo consenso constante durante os trabalhos. Este pode ser percebido na fala da deputada Lídice da Mata (PCdoB/BA):

Cada uma teve a sua experiência, (…) Fomos eleitas num processo de vitória das mulheres. Pela primeira vez, elas passavam de meia dúzia na casa. (…) Nos organizamos como bancada feminina, usando uma forma de atuação unificada em torno de um programa de prioridade construído por nós. (…) Independentemente de diferenças políticas, ideológicas. (…) sempre buscávamos o consenso. (Correio Braziliense. Brasília, 28 de outubro de 2003)

A assembléia Nacional Constituinte funcionou no período de 1º de fevereiro de 1987 a 5 de outubro de 1988, data da promulgação do texto constitucional, sob a presidência de Ulysses de Guimarães, e durante os quase 20 meses de debates pode se perceber que a busca de consenso foi organizado de maneira prática, a se obter resultados tangíveis na proposta de emendas, através da articulação do CNDM, de representante do movimento feminista e da Bancada Feminista houve uma ação consolidada das mulheres que foi denominada a priori de forma pejorativa como Lobby do batom, sendo absorvida pela própria articulação que não se deixava abater pela oposição de seus projetos.

Essa atuação pode ser colocada enquanto exemplo de ação política para os movimentos sociais, atingindo cerca de 80 a 85% da agenda essencial. Segundo Rita Camata (PMDB/ES): “Nós aproveitamos sabiamente a ignorância dos homens. Alguns assuntos eles achavam que era bobagem, coisa de mulher, coisa menos” (ibid). Demonstrando habilidade em se aproveitar da marginalização do grupo feminino, mesmo como deputadas eleitas, de como a atingir seus objetivos.

As mulheres na Constituinte de 1987 atuaram incessantemente para expandir os direitos reconhecidos da mulher, tais como licença maternidade de 120 dias, o reconhecimento social da função social da maternidade por parte do Estado, assumindo responsabilidade pelo “cidadão-criança”, direito à posse da terra, igualdade de direitos e salários entre homens e mulheres e garantia de mecanismos que coibissem a violência doméstica.

Uma das maiores conquistas foi a igualdade entre homens e mulheres em direitos e obrigações, como reconhece a deputada Lídice da Mata em outra fala:

Para mim é difícil destacar o mais importante da Constituição. O artigo 5º, quando é colocada a igualdade de direito entre homens e mulheres, é o marco referencial. A partir daí, toda a Constituição foi transversalizada pela questão de gênero, pelo menos até onde conseguimos dar esse recorte. (Correio Braziliense. Brasília, 28 de outubro de 2003)

Uma organização dos dispositivos legais que contemplam a causa feminina na Carta Magna organizado por Marilene Snow e demonstra de forma sucinta as conquistas da articulação das mulheres na Constituinte:

Fonte: SOW, Marilene Mendes. A participação feminina na construção de um parlamento democrático. E-Legis. Brasília, n.05, p.79 – 94, 20

No entanto, o sucesso dessa ação política não veio sem desafios, alguns dos quais serão aqui expostos através das falas das deputadas coletadas no especial do Correio Braziliense:

Rita Camata (PMDB-ES): Tentavam desqualificar o nosso trabalho. Chamavam de bancada do batom, lobby das meninas, entre outros termos pejorativos.

Lídice da Mata (PCdoB-BA): Não foi fácil. Fomos ridicularizadas pela imprensa. Os jornais tentaram nos transformar nos bibelôs do Congresso Nacional. Elegiam uma musa, perguntavam as marcas das nossas roupas e dos nossos perfumes. Enquanto isso, os homens eram questionados sobre o futuro das relações trabalhistas.

Rose de Freitas (PMDB-ES): Lembra que tentaram nos jogar em conflito com isso? Na época, criaram uma briga da loura (Rita Camata) com a morena (própria Rose). Eu não gostava nem de ouvir essa história. Chegaram a colocar urna no plenário, eu mesma tirei de lá. (Correio Braziliense. Brasília, 28 de outubro de 2003)

Sem dúvida ter um movimento feminista e de mulheres mais consolidado no Brasil auxiliou na conquista de expansão do espaço político da mulher, mas sem uma organização institucional consolidada e uma boa articulação política na defesa de interesses em comum, acredito que o Lobby do Batom não teria tido o êxito que obteve, uma vez que a mulher enquanto agente político por vezes não recebia o respaldo da sociedade civil ou da própria política institucional.

  1. Conclusão

O Brasil hoje ocupa o 154º segundo o ‘Women In Politics: 2017’ consolidado pela International Parlamentary Union em parceria com a ONU que avalia a participação feminina na política em quase 200 países. Isso significa que depois do levantamento histórico feito neste trabalho a baixa presença das mulheres na esfera política é ainda um traço do quadro brasileiro.

Agora seguindo o propósito inicial de análise e percebendo os dois momentos acima descritos, que ao se considerar as constituintes de 1934 e 1988 a partir da ótica de articulação política das mulheres, é possível afirmar que houve um maior êxito nesta última, mas isso se explica majoritariamente pela maior atuação relativa que houve nesse segundo momento, além de um movimento feminista mais amadurecido e que garantiu maior força política.

Apesar dessa diferença de resultados finais, no que tange a conquista de direitos para as mulheres, é preciso sempre se levar em conta o contexto político da época e as forças conservadoras que fazem atuação contrária às propostas femininas e feministas. Porém algo que marca essas duas constituintes e as distingue das outras é a marcante representação das mulheres – relativamente – em prol de seus interesses, e essa marca é o me levou a escolha desses distintos processos políticos.

Importante destacar novamente, a dificuldade contínua que essas mulheres tiveram na defesa de seus ideais políticos, e isso se vale até os dias atuais. Algo marcante durante a Constituinte de 1988 é a consolidação da bancada feminina, sobrepondo suas diversas correntes partidárias e ideológicas, e formando junto ao CNDM e ao movimento social feminista da época uma tríplice aliança que fez com que avançassem as propostas da Carta às Brasileiras aos Constituintes de maneira excepcional.

Este tipo de articulação política é difícil de ver até nos dias de hoje, quando pautas de questão de gênero como aborto ou proposições educacionais que abordem gênero apresentam pouca movimentação nos espaços institucionais, mesmo quando debatidas por deputadas ou senadoras mulheres, apesar de apresentarem urgência social latente.

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VILLA, Marco Antonio. A História das Constituições Brasileiras. Editora Leya. São Paulo. 2011



Gênero e Violência no Ambiente Universitário: A construção de uma abordagem institucional em diálogo com instituições e movimentos de mulheres na universidade[12]

Gender and Violence on Campus: An institutional approach framing the dialogue among institutions and women’s movement at the university

 

Deíse Camargo Maito[13]

Elisabeth Meloni Vieira[14]

Maria Paula Panúcio Pinto[15]

Fabiana Cristina Severi[16]

 

 Resumo: O trabalho discute o processo de construção de uma abordagem institucional de enfrentamento da violência, discriminação de gênero ou por orientação sexual na Universidade de São Paulo (USP), acompanhado em razão de nossa pesquisa de mestrado. O trabalho busca explicitar como a abordagem institucional se deu a partir de um diálogo constante entre agentes da universidade e os movimentos de mulheres e os desafios para a implementação de tal abordagem.

Palavras-chave: violência contra mulheres; universidade; direitos humanos das mulheres.

 

Abstract: This paper discusses the process of building an institutional approach to coping with violence, gender discrimination or sexual orientation at the University of São Paulo (USP), accompanied by our master ‘s research. The paper seeks to explain how the institutional approach was based on a constant dialogue between university agents and women’s movements and the challenges for the implementation of such an approach.

Keywords: violence against women; university; women´s human rights.

1. Introdução

A proposta do presente artigo é apresentar o processo de construção de uma abordagem institucional de enfrentamento da violência ou discriminação de gênero ou por orientação sexual na Universidade de São Paulo (USP), observada em nossas atividades de pesquisa, conduzidas no contexto de um diálogo constante entre instituições e movimentos de mulheres desta universidade.

O enfrentamento à violência contra as mulheres no ambiente universitário emergiu como pauta na agenda de vários grupos de mulheres da universidade, sobretudo, quando, em 2014, foi concluído o relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) “para apurar violações dos Direitos Humanos e demais ilegalidades ocorridas no âmbito das Universidades do Estado de São Paulo ocorridas nos chamados “trotes”, festas e no seu cotidiano acadêmico”, chamada CPI dos Trotes (SÃO PAULO, 2015).

O Relatório final da CPI dos Trotes colocou em evidência casos de violências no contexto das relações universitárias que aconteceram, sobretudo, na USP. O episódio permitiu que identificássemos que a violência contra as mulheres neste ambiente se dá de muitas formas. Além disso, o relatório concluiu que as universidades são responsáveis pelas violações de direitos humanos, especialmente o direito das mulheres a viver uma vida livre de violência, em razão da omissão na apuração das denúncias e também da promoção indireta desses atos por meio de outras instituições dentro do ambiente universitário, as quais, a despeito de não fazerem parte de sua estrutura administrativa (como diretórios, centros acadêmicos e atléticas), integram seus cotidianos.

Diante da situação explicitada, de violação sistemática de direitos humanos das mulheres no contexto universitário, grupos de professoras, pesquisadores, servidoras e estudantes organizaram-se de diversas formas para buscar exigir da Universidade de São Paulo a construção de ações e políticas institucionais de enfrentamento a esse tipo de violência. A presente pesquisa foi estruturada em tal contexto, buscando construir parâmetros teóricos e normativos para a construção de respostas na universidade de enfrentamento da violência contra as mulheres, enfatizando a responsabilidade jurídica das instituições de ensino superior no enfrentamento desse problema.

A responsabilidade das universidades para este enfrentamento foi delineada nos termos da Convenção de Belém do Pará (BRASIL, 1994), que permitiu evidenciar como as universidades brasileiras podem ser responsabilizadas pela violência contra as mulheres que ocorrem em seus contextos. Essa possibilidade se dá pelo compromisso que o Brasil assumiu ao assinar esta Convenção em proporcionar às mulheres uma vida livre de violência, com a obrigação de prevenir, punir e erradicar a violência contra mulheres.

O direito a viver uma vida livre de violência, também protegido pela sistemática da Organização das Nações Unidas, ONU, inclui o direito de não sofrer violência institucional, que ocorre quando uma instituição provoca a violência na pessoa ou, tendo a responsabilidade de enfrentá-la, se omite (ONU, 1993).

Sabendo dessa possibilidade de responsabilizar as universidades pelas violações de direitos que nelas ocorrem, pessoas da comunidade universitária começaram a reivindicar que as universidades, ao invés de praticar violência institucional contra as mulheres, respondessem a esse problema de alguma forma, pois, todas se mostraram omissas e ineficientes quando acionadas.

Na USP, após o resultado da CPI dos trotes, professoras e pesquisadoras da instituição formaram a “Rede Não Cala”, que tem como objetivo “contribuir para o reconhecimento da violência sexual e de gênero como problema importante no contexto da vida universitária, bem como para seu enfrentamento, o que demanda ações de toda a comunidade e efetividade dos mecanismos institucionais” (NÃO CALA, 2016).

Em 2016, em decorrência do fato de que a USP tornou-se signatária do Programa HeforShe da ONU Mulheres (ONU, 2015), a reitoria da criou o escritório USP Mulheres. O HeforShe, traduzido para o português como ElesporElas, busca promover igualdade entre homens e mulheres pelo engajamento de homens na luta pela equidade entre os gêneros. Nesse sentido, a função primordial do escritório USP Mulheres é traçar políticas para concretizar ações para promover a igualdade de gênero no âmbito universitário e uma de suas prioridades é o enfrentamento à violência contra mulheres na universidade.

No campus de Ribeirão Preto, pela reivindicação de grupo de mulheres funcionárias, docentes e discentes desse campus, o Conselho Gestor criou a Comissão Para Apurar Denúncias de Violência Contra as Mulheres e Gêneros no Campus de Ribeirão Preto (CAV – Mulheres USP/RP).

Algumas Unidades localizadas nos campi da USP também criaram comissões com objetivos semelhantes, a exemplo da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP), que criou a Comissão de Violência de Gênero da FDRP e a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto que criou a Comissão de Direitos Humanos. Estivemos próximas a essas iniciativas e também engajadas na realização de seus objetivos e acompanhamos o processo de construção dessas três últimas e as respostas por elas criadas para o enfrentamento da violência contra mulheres na universidade.

Para acompanharmos essas iniciativas e, concomitantemente, estudá-las, nos utilizamos da observação participante, uma busca deliberada e premeditada de algo, que compreende notar e, metodicamente, registrar fenômenos sociais. Com ela descrevemos, explicamos e compreendemos eventos e comportamentos de forma interpretativa (VERGARA, 2012, p. 72-73).

O acompanhamento do processo social que ocorreu na USP na construção de políticas de enfrentamento à violência contra a mulher visava compreender e registrar este processo, mas também permitiu que subsídios calcados na realidade local pudessem ser fornecidos, já que a maioria dos documentos de políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres é original de outros países.

Um de nossos objetivos foi analisar tais processos e contribuir com o fortalecimento dessas iniciativas, ao reunir parâmetros normativos para a construção de políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres por parte da Universidade de São Paulo.

Na tarefa de pesquisa nos deparamos com o fato de o problema já ter sido investigado em universidades de outros países. Realizamos uma revisão bibliográfica de estudos americanos e europeus, bem como da análise de sua legislação relativa à temática, com o cuidado de não realizar transplantes jurídicos, tanto de normas quanto de estudos dos recortes sociais, que pode ocorrer quando normas são trazidas de outro ordenamento jurídico sem que seja feita uma reflexão sobre elas e as implicações que podem trazer na realidade sócio jurídica que recebeu tal norma (MALDONADO, 2012, p. 113).

Em algumas universidades, estrangeiras ou nacionais, há comissões, diretrizes, protocolos de enfrentamento, códigos de conduta e outras iniciativas para enfrentar essas violações (MORTEO, 2011; POTTER; KRIDER; MCMAHON, 2000; Christopher KREBS et. al., 2007; VALLS-CAROL, 2009).  Neste sentido, é possível dizer que a este tipo de violência é um fenômeno que se apresenta em muitos países.

Na Europa e na América Latina, existem iniciativas neste sentido, inclusive, encontramos pesquisas sobre boas práticas dialógicas de prevenção da violência contra mulheres na Universidade Autônoma do México e também em universidades no Reino Unido, que contam com uma política de prevenção da violência contra mulheres na universidade (MORTEO, 2011).

No entanto, entendemos que o delineamento dessas respostas não pode ser realizado sem pensar nas especificidades que aquelas sociedades têm em termos de configuração social e também a particularidade de seu ordenamento jurídico. O enfrentamento à violência contra mulheres em nosso país ainda está em construção e em disputa. Apesar de o Brasil contar com essa sistemática de proteção aos direitos humanos das mulheres, muitos órgãos internacionais, em seu trabalho de monitoramento de cumprimento dos tratados internacionais, verificaram que muitas obrigações por eles pactuadas não são cumpridas pelos países. No Brasil, pesquisas discutem que a busca por essa resposta institucional à violência contra mulheres, por muitas vezes, resulta, ela própria, na prática da violência institucional contra mulheres.

Assim, no diálogo com os grupos formados e essas institucionalidades, mostramos como a USP está construindo o enfrentamento da questão, apontando também suas necessidades e os próximos passos a serem tomados no enfrentamento da violência no contexto universitário.

2.         Abordagem sócio institucional da violência contra a mulher na Universidade de São Paulo

A Universidade buscou responder à questão da violência contra a mulher, seja através da organização de seus membros, seja pela criação de algumas estruturas. Apresentamos aqui as instituições e organizações estudadas durante a dissertação de mestrado que, em diálogo entre si e na pesquisa, buscaram enfrentar a violência contra as mulheres na Universidade de São Paulo.

  • Rede Não Cala! USP

Conforme mencionamos, a Rede Não Cala! USP formou-se após o resultado da CPI dos Trotes, sendo que professoras e pesquisadoras buscaram dar uma resposta a esta situação, enquanto membras integrantes da USP, com vistas a atender uma demanda das estudantes que não viam na universidade um acolhimento para as situações por elas vivenciadas, bem como a ausência de um posicionamento sistemático frente ao contexto de violência (MORENO, 2015).

A Rede, que inicialmente chamava-se “Quem cala consente”, mudou seu nome após discussões sobre o sentido da palavra. Segundo suas membras, este nome poderia reforçar um pensamento denominado “cultura do estupro”, no qual o estupro seria culturalmente aceito. Esse cuidado se deu porque, muitas vezes, as violências sexuais perpetradas na universidade se dão quando as mulheres estão sem a possibilidade de oferecer qualquer resistência, e o silencio delas na recusa da relação sexual é visto como consentimento pelos agressores. Percebemos aqui uma mudança provocada pelo constante diálogo da rede de professoras e pesquisadoras com os demais movimentos da universidade.

A Rede, enquanto coletivo de mulheres, propõe uma série de ações para que suas componentes realizem em suas unidades de trabalho, como formação de suas membras e pessoas externas a ela; constante diálogo com os serviços e outros coletivos existentes na universidade. Outra estratégia da rede é suas membras oferecerem disciplinas relativas a mulheres, gênero e sexualidade, para que tais questões sejam discutidas com os estudantes de forma ampla.

Algumas professoras da Rede, pela proximidade com a temática e reconhecida militância na universidade, foram chamadas a compor comissões sindicantes ou processantes em procedimentos administrativos para apurar a ocorrência de violências sexuais e de gênero dentro da universidade. Elas perceberam que em muitos desses procedimentos estavam em jogo relações de poder dentro das unidades, pois muitos deles envolviam seus pares: os professores. Isso coloca em destaque a necessidade de se enfrentar as relações de poder dentro da universidade.

Algumas integrantes se questionaram sobre a maneira de conduzir esses procedimentos, pois muitas delas não tinham formação jurídica e relativa a questões de gênero. Elas então, se perceberam perante um desafio que tinham que responder: como a universidade poderia dar uma resposta eficaz a estas violências de uma forma padronizada, considerando sua frequência significativa.

Assim, elas identificaram que em se tratando de violações destas naturezas, era necessário traçar um parâmetro para a condução e resposta adequadas a tais casos, para que as violações, analisadas por pessoas estranhas ao tema, não estivessem alheias a uma perspectiva de gênero no enfrentamento da violência contra mulheres.

  • Programa Heforshe e Escritório USP Mulheres

Esta iniciativa, diferentemente das outras estudadas, surgiu da realização de um convênio da USP com o programa ONU Mulheres, a participação do Programa Heforshe. Foi uma iniciativa que, apesar de provavelmente motivada pelas reivindicações dos movimentos na universidade, é uma resposta institucional da Universidade ao problema.

Para a implementação do programa, a reitoria criou o escritório USP Mulheres pela Portaria nº 6.766, de 10 de agosto de 2016. O escritório é um órgão administrativo interdisciplinar, que conta com profissionais de diversas áreas para realizar ações publicitárias, coordenar pesquisas e eventos relativos à igualdade de gênero e ao enfrentamento da violência contra as mulheres.

Dentre as atividades desenvolvidas pelo escritório, está a participação em um grupo de trabalho que está reformando o regime disciplinar da USP, pois a CPI o apontou como deficitário em relação à resposta da violência contra mulheres. Além deste trabalho, assessoras do escritório estão buscando, através de uma pesquisa, informações sobre a convivência na USP (USP MULHERES, 2018).

Além disso, a assessora do escritório, quando solicitada, auxilia na elaboração de documentos, materiais e outras ações no enfrentamento da violência contra as mulheres na USP.

  • Grupo Violência e Gênero em Ribeirão Preto

O Grupo Violência e Gênero em Ribeirão Preto foi uma resposta de algumas professoras e pesquisadoras da USP RP às violências que a universidade enfrentava. O grupo realizou o curso de Acolhimento à Violência de Gênero na Universidade, um curso de extensão voltado à capacitação das professoras, assistentes sociais, psicólogas do campus e estudantes para o enfrentamento à violência contra a mulher.

Esse curso também foi motivado pela estratégia da “Rede Não Cala” em realizar sua capacitação e pelas demandas relativas à violência contra a mulher ocorrida no campus. Com o objetivo de capacitar agentes que potencialmente lidariam com situações de violência de gênero, o curso foi aberto a membros de coletivos da universidade e pessoas da rede de assistência social da cidade.

Após o curso, uma das demandas do grupo foi a inexistência de informações e parâmetros para lidar com a violência e discriminação de gênero e sexual. Assim, algumas membras do grupo confeccionaram a cartilha sobre violência contra a mulheres (CAV Mulheres, 2017), publicado pela CAV-Mulheres que também foi adaptado pelo escritório USP Mulheres e replicado a toda universidade.

O grupo também foi um dos precursores da CAV-Mulheres que, após muito diálogo de algumas de suas membras com o conselho gestor do campus, permitiu sua criação.

  • CAV-Mulheres USP Ribeirão Preto

Como consequência da mobilização do grupo Violência e Gênero em Ribeirão, que realizou uma série de atividades de pressão política junto à administração central do campus, foi criada a Comissão Para Apurar Denúncias de Discriminação, Assédio e Violência Contra Mulheres e Gêneros no Campus da USP de Ribeirão Preto (CAV- Mulheres USP RP) pela Portaria do Conselho Gestor do Campus de Ribeirão Preto nº 8, de 11 de julho de 2016. Algumas das mulheres que estavam no grupo violência e gênero Ribeirão foram nomeadas para compor tal Comissão.

Segundo o art. 2º da Portaria do Conselho Gestor do Campus de Ribeirão Preto nº 8, de 11 de julho de 2016 (USP, 2016), as funções da comissão são a prevenção de ações de discriminação; triagem e acompanhamento das denúncias; proposição de protocolos para recebimento das denúncias; orientação sobre tipos de atendimento; apresentação de relatórios semestrais sobre suas atividades, manutenção de diálogo com outras Comissões do campus e proposição ao conselho gestor de medidas sobre o assunto.

Na tarefa de manutenção de diálogo com a comunidade universitária, representada por seus coletivos ou não e também com as instituições e comissões já existentes, como comissões de graduação de cursos, comissões de recepção de ingressantes, centros acadêmicos, coletivos de alunos, etc., muitas demandas surgiram como a forma que deveria se dar o atendimento e qual seria a competência da CAV-Mulheres. Neste sentido, viu-se a necessidade de criar um procedimento comum para o enfrentamento das questões que chegavam a esses órgãos.

Já na tarefa de atendimento dos casos de violência, a ausência de um procedimento para realizar os atendimentos e orientar como as instituições acionadas deveriam agir nos casos de violência, também surgiu a necessidade da criação deste procedimento.

  • Comissão sobre Violência de Gênero da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto

A Comissão Sobre Violência de Gênero da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP), que, conforme seu artigo 1º “terá por função propor políticas de enfrentamento à violência de gênero no âmbito da FDRP, bem como receber, analisar e investigar os relatos de violência de gênero ocorridos no contexto acadêmico da unidade”.

A função desta comissão à semelhante à CAV-Mulheres, mas seu âmbito de atuação é na Faculdade de Direito de Ribeirão Preto. Igualmente a ela, há na USP outras comissões voltadas a esta tarefa, que são denominadas comissões sobre violência de gênero ou comissões de direitos humanos das unidades.

A atividade e o acompanhamento desta comissão permitiram também identificar uma necessidade de criação de procedimentos para o atendimento e encaminhamento dos casos, bem como orientação para outros órgãos da universidade que enfrentariam a violência contra mulheres pelo nosso encaminhamento.

Conclusões

Durante a pesquisa de mestrado, que permitiu o estudo dessas instituições e o modo que se deu o diálogo entre elas, percebemos que é necessário, além de garantir o funcionamento delas, a normatização ou direcionamento de condutas para a administração pública.

Desta maneira, em outras ocasiões, iremos apresentar como que uma normatização foi elaborada também como produto da pesquisa empreendida em dissertação de mestrado. No entanto, descobrimos também que não é somente esta normatização que garante o cumprimento dela. Há outros fatores envolvidos para que elas sejam efetivas.

Como percebemos a limitação deste instrumento normativo, exteriorizado por parâmetros e diretrizes, agora desenvolvemos uma pesquisa de doutorado na qual investigamos as percepções dos agentes universitários sobre violência sexual e de gênero na universidade, por entender que esse é um dos fatores que irá influenciar diretamente na forma em que se dará o enfrentamento à violência e a discriminação de gênero e de orientação sexual.

Esperamos que com estas contribuições: mostrar as instituições da universidade voltadas para o enfrentamento da violência contra mulheres e gêneros; a construção de parâmetros para este enfrentamento; e investigar a percepção dos agentes institucionais sobre o tema, possamos contribuir para o enfrentamento da violência contra a mulher na universidade, levando em consideração todas suas especificidades.

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A (trans)reinvenção dos Direitos Humanos: limites e possibilidades do Direito e do Cinema diante da transexualidade.

The (trans)reinvention of Human Rights: limits and possibilities of Right and the Cinema before transsexuality.

Fredson Oliveira Carneiro[17]

Resumo: O presente trabalho objetiva discutir a proposta metodológica formulada por Joaquim Herrera Flores, do diamante ético, para sua possível aplicação em pesquisa a ser realizada com coletivos trans da cidade do Rio de Janeiro. O principal objetivo da pesquisa é contribuir com as lutas pelos direitos humanos da população de transexuais, travestis e transgêneros por meio do diálogo com lideranças dos movimentos trans em torno dos conceitos de dignidade, direitos humanos e representação social, política e midiática que são mobilizados em sua ação política. Para tanto, busca-se aqui a qualificação dessa proposta metodológica para conduzir a investigação de modo a garantir os melhores resultados de pesquisa, respeitados os limites éticos, políticos e ideológicos que envolvem a questão e os movimentos sociais organizados.

Palavras-chave: Transexualidade, Direitos Humanos, Direito, Cinema.

 

Abstract: The present work has the objective to discuss the methodological proposal formulated by Joaquim Herrera Flores, of ethical diamond, for its possible application in research that will be performed with trans groups of the city of Rio de Janeiro. The main goal of research is to contribute with to the human rights struggles of populations transsexuals, transvestites and transgender through dialogue with leaders of the trans movements around the concepts of dignity, human rights and political representation. For this, we seeks the qualification of this methodological proposal to conduct research to ensure the best search results, respecting the ethical, political and ideological limits which involve the issue and the organized social movements.

Keywords: Transsexuality, Human Rights, Right, Cinema.

 

Introdução

Pablo Picasso sugeria que a arte é como uma mentira que nos faz perceber a verdade, tendo a arte moderna se transformado em espaço da Política (in SCHAMA, 2010, p. 386). Partindo desse pressuposto e da necessidade de melhor compreender os conteúdos das produções culturais (HERRERA FLORES, 2005) proponho enquanto objeto dessa investigação o estudo de um dos dilemas em pauta em torno dos Direitos Humanos no Brasil contemporâneo que é o não reconhecimento legal dos direitos da população trans[18].

Destaque-se que as experiências trans (vivenciadas por pessoas travestis, transexuais e transgêneros) são aquelas vivências identitárias em conflito com as normas de gênero vigentes num dado momento da história. Segundo Berenice Bento essa experiência pode ser conceituada como a dimensão de identidade marcada pelo gênero e caracterizada por conflitos ou discordâncias potenciais “com as normas de gênero à medida que as pessoas que a vivem reivindicam o reconhecimento social e legal do gênero diferente ao informado pelo sexo, independentemente da realização da cirurgia de transgenitalização” (BENTO, 2008, p. 18).

Desse modo, compreendendo os limites jurídico-políticos colocados a esses direitos, em diálogo com a arte cinematográfica, que pode ser “transformada numa arma potente contra todo tipo de autoritarismo” (HERRERA FLORES, 2007), minha intenção é de comprometer o presente trabalho com a resistência democrática contemporânea, contrária ao conservadorismo na política, ao dogmatismo no direito e ao recalque na vida social. Dito isso, é importante destacar que todos os projetos de lei apresentados ao poder legislativo brasileiro com vistas a garantir direitos à população LGBT e criminalizar a homolesbobitransfobia enfrentaram forte resistência, em especial, por parte de parlamentares representantes de segmentos religiosos conservadores. No caso do poder judiciário [exceção contra-majoritária de nossa república conservadora e frágil democracia, mas não por isso menos elitista] há recente decisão favorável à retificação dos registros civis de pessoas trans sem a necessidade de cirurgia de redesignação sexual ou mesmo laudos médicos e psicológicos, o que, evidentemente, indica um avanço na conquista de direitos da população trans. Entretanto, a ausência de legislação mais abrangente ainda permanece gerando inúmeras situações de insegurança jurídica e desrespeito à dignidade e identidade de gênero dessa parcela da população.

Essas resistências institucionais são parte das disputas jurídico-políticas em torno dos conceitos de gênero, identidade de gênero e sexualidade travadas contemporaneamente em todo o mundo. Nessas disputas, surge, de um lado, a defesa dos Direitos Humanos e do reconhecimento de novos conceitos e direitos incorporados à gramática política nacional, e, de outro, a ascensão de movimentos conservadores detentores de amplos poderes políticos, econômicos e midiáticos contrários ao reconhecimento dos direitos dessa parcela da população.

Nesse quadro é que se inscreve a presente pretensão investigativa que, nesse instante de elaboração teórica, dedica-se a problematizar o diálogo em torno da metodologia que guiará a pesquisa em campo. Segundo o que já consegui divisar, a metodologia que parece melhor viabilizar o desvelo da maior parte dos elementos da realidade concreta da população trans é o diamante ético de Herrera Flores. Isso porque, por meio dessa proposta metodológica é possível melhor delinear o que significa dignidade, direitos humanos e representação para as próprias pessoas trans, em especial num momento posterior ao posicionamento favorável do Supremo Tribunal Federal aos seus direitos.

Aportes metodológicos: encontro com Joaquim Herrera Flores

Sendo assim, o objetivo desse artigo é debater os limites binários e abstratos em que se enquadra o Direito formal a partir de provocações interseccionais e decoloniais com os coletivos trans acerca dos lugares sociais de exclusão e vulnerabilidades em que essas populações se encontram. Em termos metodológicos, a opção pela proposta do diamante ético, de Joaquín Herrera Flores, se explica pelo fato de ser esse um esquema de conhecimento e ação que demonstra de modo evidente a interdependência entre os elementos que definem os Direitos Humanos no mundo contemporâneo (HERRERA FLORES, 2009).

É evidente que a opção pelo diamante ético enquanto esquema teórico-metodológico para a realização da pesquisa proposta para este escrito guarda relação ético-política com a aposta apresentada por Herrera Flores, de que os direitos humanos “constituem o marco para construir uma ética que tenha como horizonte a consecução das condições para que “todas e todos” (indivíduos, culturas, formas de vida) possam levar à prática sua concepção da dignidade humana” (HERRERA FLORES, 2009, p. 119). Sendo assim, vistos, necessariamente, em sua real complexidade, os Direitos Humanos são guia para as lutas sociais de diversos coletivos, entre eles os coletivos trans, num momento em que até mesmo a perspectiva emancipadora da modernidade está em questão. Tudo isso num quadro em que os conflitos entre a democracia liberal e o capitalismo neoliberal se acirram; o governo das finanças e o governo do povo se digladiam e o humanismo perde campo para o niilismo, como já nos apontou Achile Mbembe[19].

Nesse quadro conjuntural, lançar mão do diamante ético para compreender o problema quanto ao reconhecimento de direitos da população trans e sua representação fílmica, passa “pela ideia de que tanto a dignidade humana como os direitos não são elementos isolados e, também, não são dados com antecedência, mas sim construídos passo a passo pela própria comunidade ou grupo afetado” (HERRERA FLORES, 2009, p. 119). Isso significa que, em termos de historicidade, os direitos vistos sob essa perspectiva aparecem em movimento, diretamente relacionado com as lutas e movimentações sociais desses grupos, como não poderia deixar de ser, e já nos alertara Roberto Lyra Filho (LYRA FILHO, 1999). Assim, a metodologia que se propõe pode facilitar nossa compreensão em torno dos direitos gerados e revisados por seu intermédio, daí falar-se aqui em (trans)reinvenção dos Direitos Humanos, já que proponho lançar luzes à construção social de direitos promovida pelos movimentos sociais de pessoas transexuais, travestis e transgêneros.

Dada a sua caracterização enquanto sujeitos coletivos de direito que melhor evidenciam os constantes movimentos em torno da construção das identidades, sempre fluidas e complexas, as pessoas trans necessariamente apresentam desafios estruturais ao direito contemporâneo. Primeiro porque a reivindicação dos direitos das pessoas trans exige, necessariamente, debates acerca da influência do patriarcado e da dominação masculina nos corpos, sexualidades e gêneros não hegemônicos apontando para a insuficiência do binarismo como caracterização da experiência humana; em segundo lugar, porque além de expor os limites do sistema da cisgeneridade[20], as vivências trans pressupõe o movimento e o trânsito constante da construção dos padrões de sexualidade, gênero e identidade de gênero; e, em terceiro lugar, porque essas desestabilizações são acompanhadas, em sociedades de passado colonial escravocrata, de uma crítica contundente às desigualdades raciais e de classe que são reflexo do sistema de hierarquização social a nós legado pelo colonialismo formal e reproduzido pelo colonialismo do poder e do saber até os dias de hoje.

Esses três aspectos são eminentemente problemáticos para o direito moderno, tendo em vista que esse fenômeno social, em seu aspecto formal e tipicamente ocidental, só compreende a dinâmica das relações sociais a partir do binarismo tomado como uma estrutura pré-discursiva e a priori de todos os agentes da sociedade. Assim também porque, como se funda na dominação masculina como elemento central à sua constituição histórica, o direito é formulado, desde sempre, com o homem[21] como a medida de todas as coisas, o singular universalizado em relação ao qual as outras singularidades alterizadas são descaracterizadas e tornadas desiguais. Esses procedimentos se dão constantemente como “uma das realizações da razão imperial: a de afirmar-se como uma identidade superior ao construir construtos inferiores (raciais, nacionais, religiosos, sexuais, de gênero), e de expeli-los para fora da esfera normativa do ‘real’” (MIGNOLO, 2008, p. 291).

Exatamente por isso que os movimentos sociais de luta por direitos em conjunto com intelectuais orgânicos ou pensadoras/es comprometidas/os com a superação das desigualdades econômicas e assimetrias sociais fundantes de nossa realidade social [o racismo, o machismo e a homolesbobitransfobia] vêm traçando há algum tempo importantes críticas aos saberes indolentes, entre eles o saber jurídico e aos poderes instituídos. Deste modo, inúmeras questões são apresentadas ao campo jurídico a partir da realidade concreta das relações sociais que, em linhas gerais, podem ser assim colocadas: o direito tem raça/etnia? O direito tem orientação sexual/identidade de gênero? O direito tem gênero?

Como já havia nos mostrado Herrera Flores, num trabalho feito a partir de uma teoria crítica da sociedade, “o direito não reconhece nem garante expectativas sociais de um modo neutro. Sempre e a todo o momento é necessário ter presente a realidade do ‘poder’” (HERRERA FLORES, p. 140). É por meio da consciência de quem exerce o poder e determina quem é e quem não é o sujeito de direito que se pode melhor compreender os limites desse campo para a construção de alternativas sociais de cidadania e dignidade. Entretanto, como pode ser deduzido desse texto, suponho que sim, o Direito tem raça/etnia (branca), religião (cristã conservadora), orientação sexual/identidade de gênero (heterossexual e cisgênera), classe social (as elites) e gênero (masculino) e se constrói, hegemonicamente, com base e de modo contrário aos demais polos dessas oposições.

Assim, o Direito é um fenômeno social situado concretamente, fruto e organizador das relações de poder (político e econômico), constantemente refletido em relações sociais hierarquizadas e socialmente desiguais em constante conflito na mesma medida em que é formulado como discurso generalizado, abstrato e com pretensa neutralidade discursiva. Como sugere Eduardo Rabenhorst, embora haja o objetivo “de se fazer passar por um instrumento neutro, objetivo e assexuado, o direito parece já ter feito previamente uma opção pelos homens” (RABENHORST, 2010, p. 18). Ao que acrescentaria “pelos homens” brancos, heterossexuais, cristãos, ricos e cisgêneros.

Diamante ético: desafios para o Direito, possibilidades para os Direitos Humanos

Por todo o exposto até aqui, suponho que pensar a (trans)reinvenção dos Direitos Humanos nos desafia a buscar reconhecer os caminhos reivindicados pelo ativismo trans para a concretização material dos seus direitos humanos cuja realização histórica indica o caminho da construção da dignidade enquanto valor de melhoria de vida para esses grupos. Suponho que esse caminho, invariavelmente, apresenta alterações profundas à própria estrutura da institucionalidade estatal como também à matriz lógico-formal do pensamento jurídico contemporâneo, fundado, por sua vez, na longa tradição que formou nossa (des)ordem social. Num mundo em que as igrejas continuam dizendo o que é direito e o estado continua legislando acerca do que é pecado, muito precisará ser feito e dialogado com os movimentos trans em torno de seus Direitos Humanos, o que só poderá ser feito com outros caminhos de construção do conhecimento, que não aqueles da ciência social tradicional.

Sendo assim, e levando em consideração que com a metodologia do diamante ético o que se busca é gerar a capacidade de compreender uma dada situação social a partir de uma concepção materialista e relacional dos direitos humanos, proponho que sejam detalhados 4 (quatro) conceitos na pesquisa a ser desenvolvida, todos referenciados a partir da obra de Herrera Flores: Disposições e Práticas sociais no eixo material e Posição e Narrações no eixo conceitual do diamante ético. É importante atentar-se para o que diz Herrera acerca da primeira camada do diamante ético que

[…] constitui-se de categorias mais genéricas, que já vimos quando desenvolvemos a metodologia relacional: Teorias, Instituições, Forças produtivas e Relações sociais de produção. Estamos diante de um conjunto de elementos que compõem os processos sociais e econômicos. É possível entender o que são os direitos, ou levá-los à prática, sem conhecer as teorias que impulsionaram as lutas em benefício da dignidade ou as instituições que hipoteticamente garantem os resultados provisórios conquistados? (HERRERA FLORES, 2009, p. 127)

No que se refere a essas categorias mais genéricas, a essa pesquisa cabe maior espaço para as teorias e instituições. Isso porque parte essencial das lutas sociais dos coletivos de pessoas travestis, transexuais e transgêneros em todo o mundo vai de encontro às teorias, contemporaneamente questionáveis, de que as identidades trans são patológicas. Aqui, é importante abrir um breve parêntesis sobre os marcos normativos da patologização dessas identidades. Embora haja ampla revisão dos documentos e das teorias que sustentam a medicalização dos corpos trans e a sua patologização, há ainda duas grandes publicações que trazem orientações do diagnóstico transexual, com reconhecimento oficial em todo o mundo.

A primeira delas é o Manual de Diagnóstico e Estatísticas de Distúrbio Mentais (DSM) da Associação Psiquiátrica Americana (APA), que incluiu a transexualidade em seu rol no DMS-III, e atualmente está na sua 5ª versão. A segunda é o Código Internacional de Doenças (CID) da Organização Mundial de Saúde (OMS), em sua décima versão, em vigor desde 1993. E, aquele que é uma das mais importantes referências para profissionais das ciências médicas e psis[22] em todo o mundo o State of Care (SOC) do Harry Benjamin Internacional Gender Dysphoria Association (HBIGDA).

Berenice Bento entende que tais publicações corroboram com a prerrogativa de existir um universal e homogêneo perfil de sintomas que permitem o diagnóstico do verdadeiro transexual, estabelecendo uma certa “identidade”, a transexualidade, dada a classificação de patologia. Cada um dos documentos traz uma denominação para a transexualidade, sendo: “disforia de gênero” no SOC; “transexualismo” no CID-10; e “disforia de gênero” no DSM-V, termo inicialmente utilizado, mas substituído no DSM-IV por “transtorno de identidade de gênero” (TIG). Estas publicações têm algumas diferenças entre si, apesar de essencialmente construírem uma imagem quanto aos agentes transexuais, com base em indicadores de diagnóstico que desconsideram quaisquer variáveis que não a biológica.

O SOC traz um conjunto de orientações, dentro de um determinado parâmetro, exclusivamente voltadas para as questões referentes às disforias de gênero, articulando um certo consenso profissional internacional em relação às assim chamadas “desordens da identidade de gênero”, mas visando também ser um documento acessível ao público em geral. Se relaciona com as outras duas publicações à medida que confere reconhecimento a seus indicadores de diagnóstico. Sua fonte de inspiração ainda é Harry Benjamin, de modo que aponta e dá destaque ao procedimento cirúrgico transgenitalizador como a única alternativa para o tratamento da “disforia de gênero”. Apesar disso, independentemente de sua realização, os transexuais permanecem sendo considerados como pessoas doentes.

O CID-10 é uma convenção médica com reconhecimento internacional, cujo objetivo é indicar as características gerais e o código a ser utilizado nos diagnósticos. A publicação traz a definição de “transexualismo” como sendo transtornos de identidade sexual, a qual está classificada sob o código F64.0. As características trazidas pelo CID-10 são: (1) desejo de viver e ser aceito como indivíduo do sexo oposto, junto a um desconforto com o sexo anatômico e ao desejo de realizar intervenções médicas e cirúrgicas de redesignação sexual; (2) identidade transexual consistente pelo mínimo de dois anos; e (3) o “transexualismo” não ser sintoma decorrente de outro transtorno mental ou anomalia cromossomática. O documento não faz questionamentos sobre identidades de gênero e pressupõe ser comum a todas as pessoas transexuais o desejo pela intervenção cirúrgica.

O DSM-V, por sua vez, visa ser um guia para diagnósticos confiáveis, funcionando como um instrumento de controle social que, segundo Bento (2017), explica que o DSM é uma publicação sob eminente influência do discurso psicanalista de Robert Stroller. Ele funciona como uma das principais fontes de orientação diagnóstica para a psiquiatria, no que diz respeito a transexualidade. Em sua versão mais recente, o DSM-V, trouxe algumas consideráveis alterações em relação a sua versão anterior, sendo as mais notáveis a abertura do debate a público e a adoção de Disforia de Gênero como novo nome para o diagnóstico.

Tatiana Lionço (2006) afirma que tal publicação também apresenta caracterizações dos sujeitos transexuais, que teriam necessariamente certos comportamentos sociais e rejeição a sua genitália, resultando em uma vida sexual inativa. Todavia, para Bento (2017), o DSM não é capaz de apontar nenhum indicador objetivo que resulte no diagnóstico de “disforia de gênero”, que acaba sendo guiado pelas normas padrões de gênero aceitas socialmente. Traz ainda a crítica por ser um manual construído e revisado basicamente por profissionais norte-americanos com olhar voltado para a população transexual norte-americana, que teve expressiva participação no debate devido a abertura ao público proposta. Não obstante, aponta ainda que o grupo envolvido no debate e construção desse manual foi, predominantemente, composto por profissionais médicos e das ciências psi, em que pese envolver questões de ciências humanas em certos momentos.

Essas teorias são produções veiculadas internacionalmente pelas grandes corporações médicas, formam uma ampla rede de produção de capital e influenciam o modo como o próprio estado e o direito formal reconhecem os direitos humanos dessa população. Por esse motivo, muito da energia política mobilizadora é direcionada à crítica e desconstrução de postulados supostamente científicos e a práticas institucionais que dificultam ainda mais a vivência das múltiplas identidades trans.

Tendo isso em consideração, proponho, por meio do conceito de posição[23], no eixo conceitual, identificar o lugar que as pessoas trans ocupam nas relações sociais e os elementos determinantes dos modos como acessam ou não os bens materiais e imateriais diante desse quadro internacionalmente considerado. A partir da compreensão da posição e da noção da disposição desses sujeitos no seio social, buscarei suas narrações, ou seja, as formas como os coletivos trans definem a sua condição de existência e sua representação social, reverberada por meio do cinema e das instituições políticas, assim como as formas pelas quais esses coletivos desenvolvem a sua ação político-jurídica e sua participação nas relações sociais.

Como essa participação é subordinada aos poderes constituídos em nossa sociedade e as narrativas estão todas em disputa por legitimidade e reconhecimento, é importante se atentar para as narrações por meio das quais podemos melhor localizar os modos como os diversos coletivos sociais caracterizam seu próprio modo de ser e se movimentar no mundo. Não é demais referenciar que um dos problemas “do imperialismo colonial foi, entre outras coisas, negar a possibilidade dos povos oprimidos contarem entre si suas próprias narrações, suas próprias histórias” (HERRERA FLORES, 2009, p. 132). Por esse motivo, esse conceito é daqueles que possui a maior potencialidade nessa pesquisa, já que são as narrações que conduzirão o diálogo em torno da especificidade das vivências e pautas dos coletivos trans na cidade do Rio de Janeiro.

No eixo material, a seu turno, por meio do conceito de disposições[24], pretendo compreender as nuances da “consciência” da situação de vida que a população trans já desenvolveu acerca do lugar que ocupa no processo de acesso aos bens e a “consciência” de como os seus coletivos atuam dentro do referido processo (HERRERA FLORES, 2009). Ou seja, é a compreensão dos modos de como se dá a tomada de consciência dos lugares sociais que ocupam os sujeitos históricos tanto em uma dimensão econômica quanto política. Além disso, Herrera nos alertou que a disposição está relacionada com a questão da interculturalidade, tendo em vista a complexidade de formações culturais e étnico-raciais dos diversos grupos sociais de um mesmo país ou localidade.

Não por outro motivo, afirmava que “devemos desenvolver “disposições” que tenham em conta as diferentes formas de perceber, narrar e atuar no mundo; ou seja, as diferentes formas de lutar por uma vida digna de ser vivida” (HERRERA FLORES, 2009, p. 135). Por isso a proposta é a de que precisamos realizar uma “leitura contrapontística” da realidade, “na qual diferentes vozes sejam escutadas e levadas em consideração” (HERRERA FLORES, 2009, p. 136) para que possamos falar de dignidade não em sentido abstrato ou metafísico, mas sim como as possibilidades ou obstáculos que temos ao acessar os bens materiais e imateriais de nossa sociedade.

Ainda no eixo material busco, através da compreensão das práticas sociais dos coletivos trans, sistematizar as formas de organização e ação que têm sido formuladas em favor ou contra as diversas situações de violações aos seus direitos e ao acesso aos bens que se pretende obter nas frentes de luta organizadas pelo protagonismo transexual. Quanto a esse aspecto é importante identificar as práticas sociais dos movimentos sociais e populares, associações, organizações não-governamentais (ONGS), partidos etc dado que essa é uma das questões que mais contribuem para a fragmentação das lutas.

Até mesmo antes do questionamento de Lênin quanto ao que fazer, os modos de organizar as práticas sociais trazem à baila uma questão estrutural dos sujeitos políticos das transformações históricas. E, como sugere Herrera, essas práticas precisam ser avaliadas, “em primeiro lugar, com as políticas de reconhecimento dos direitos e, em segundo lugar, com ações comprometidas com a emancipação e a libertação humanas” (HERRERA FLORES, 2009, p. 143).

Por conseguinte, outra pretensão do trabalho em elaboração é a de compreender como os 4 conceitos formulados por Herrera Flores (posição e disposição; narrações e práticas sociais) confluem para a noção de dignidade humana desenvolvida por esses coletivos. Além disso, é importante sistematizar como esses coletivos pensam os modos como as violações dos seus direitos podem ser revertidas a partir de seus processos de luta por reconhecimento e acesso igualitário aos bens materiais e imateriais que os permitem levar as suas vidas adiante, respeitadas as suas formas particulares de existir e viver (HERRERA FLORES, 2009 e CARBALLIDO, 2013)[25].

 

 Conclusão

Assim, tendo em vista que o projeto mais abrangente da pesquisa anunciada está em fase de aprofundamento teórico-metodológico para, em seguida, passar pelo processo de qualificação anterior à entrada em campo, não há ainda resultados ou conclusões, apenas hipóteses, conforme descrito acima. Não por outro motivo, a proposta aqui esposada é a de trabalhar os aportes metodológicos presentes na obra de Herrera Flores para problematizar as melhores maneiras de abordar o tema de pesquisa jurídico-sociológico aqui descrito.

Em consequência, a opção pela apresentação dessa proposta de investigação no presente fórum de discussão leva em consideração a fundamental importância de passar os debates teóricos pelo crivo de nossos pares ainda na construção do caminho de pesquisa. Isso com a perspectiva de ampliar o controle metodológico e garantir maior grau de aprofundamento e relevância social, teórica e jurídico-política do trabalho final da pesquisa em curso.

Não desconsidero, por óbvio, que pensar o horizonte de emancipação social a partir das lutas da população trans é compreender a necessidade de enfrentar a hegemonia cultural balizada contemporaneamente pela absolutização dos fundamentalismos e disseminação de pânicos morais (MISKOLCI, 2007). Sendo essa hegemonia um dos principais campos narrativos a serem disputados nas lutas pela (trans)reinvenção dos Direitos Humanos contemporaneamente. Rita Laura Segato, refletindo sobre essa hegemonia cultural contemporânea, aponta para a centralidade da questão de gênero, que “longe de ser residual, minoritária e marginal […] é a pedra angular e eixo de gravidade do edifício de todos os poderes” (SEGATO, 2016, p. 15/16)[26].

Não por outro motivo anota a antropóloga argentina o quão surpreendentes têm sido as manobras que o poder político tem produzido nas Américas com uma investida familiar e patriarcal cuja reprodução se dá num retorno conservador ao discurso moral como fundamento para suas políticas antidemocráticas[27], que tem demonizado o que eles chamam de “ideologia de gênero”. Por isso, concordando com Herrera, para finalizar, suponho ser “necessária uma revolução cultural que reacenda de novo nos movimentos sociais a chama da imaginação utópica e da produção de sentidos emancipadores” (HERRERA FLORES, 2009, p. 144). Em termos literários, diria, com Hermann Hesse (HESSE, 1999, p. 73), que “quem quiser nascer tem que destruir um mundo”.

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 Limitações ao direito à cidadania, uma perspectiva feminista [28]

Limitations on the right to citizenship, a feminist perspective

Naiara Coelho[29]

 

Resumo: Este trabalho tem como objetivo analisar o direito à cidadania, a partir da perspectiva feminista. O estudo se orienta na busca de elementos que questionem a neutralidade sexual da possibilidade do exercício de cidadania, enquanto participação da esfera pública e engajamento político, utilizando como base teórica os estudos feministas. Portanto será fundamental à pesquisa a compreensão das categorias cidadania, gênero e patriarcado, bem como as conexões entre elas existentes. Como desfecho, busca-se apresentar as limitações do direito à cidadania das mulheres no brasil a partir da apresentação da história do movimento feminista brasileiro, bem como do processo de efetivação forma do direito à cidadania das mulheres.

Palavras-Chave: Direitos; Feminismo; Cidadania.

Abstract: This paper aims to analyze the right to citizenship, from the feminist perspective. The study focuses on the search for elements that question the sexual neutrality of the possibility of exercising citizenship, while participation of the public sphere and political engagement, using feminist studies as a theoretical basis. Therefore, the understanding of the categories of citizenship, gender and patriarchy, as well as the connections between them, will be fundamental to the research. As a conclusion, the aim is to present the limitations of the right to citizenship of women in Brazil, based on the presentation of the history of the Brazilian feminist movement, as well as the process of realization of the right to women’s citizenship.

Keywords: Rights; Feminism; Citizenship.

 Introdução

 O direito de cidadania é tema cada vez mais frequente em nossa sociedade, contudo pouco se fala de um grupo específico que tem esses direitos limitados: as mulheres. Mesmo diante da Constituição Federal de 1988, que foi inclusive apelidada de constituição cidadã, por prever direitos universais e indiscriminados, na prática, a mudança que se esperava acontece de forma bastante lenta.

 Em face da complexidade e da extensão que enredam o tema, o presente estudo versará sobre o exercício do direito de cidadania para as mulheres, apresentando as especificidades dos direitos das mulheres, as categorias de análise e a teoria feminista do direito.

Nessa perspectiva, inicia-se versando sobre o conceito de cidadania, discorrendo brevemente sobre seus diferentes entendimentos durante a história, bem como a mudança da percepção feminista. De posse do embasamento anterior, dedica-se o tópico seguinte ao exame da categoria gênero, por um prisma sociológico que demonstra a diferente situação das mulheres e homens dentro do sistema patriarcal. Neste, realiza-se um sucinto estudo sobre a terminologia gênero e o reflexo desse entendimento para compreender as diferentes necessidades e posicionamentos de cada um(a) cidadã(o), sem a pretensão de esgotar o assunto, visto não ser o objetivo do presente trabalho.

Na sequência dedica-se à apresentação do sistema de dominação das mulheres, o Patriarcado, expondo suas principais características, suas diferentes consequência e relação com a categoria gênero, bem como sua importância para a manutenção de privilégios masculinos. Para então apresentar o movimento feminista no Brasil e o percurso das brasileiras pela efetivação do seu direito à cidadania.

Encerra-se o trabalho, apresentando as reflexões extraídas do estudo.

 2. Lugar de mulher: a divisão entre Esfera Pública e Esfera Privada

 

            Ainda que o pensamento dicotômico seja uma das características do pensamento liberal clássico, Diane Lamoureaux (In Hirata, 2009), aponta que a origem da concepção individualizada de esfera pública e esfera privada decorre da dualidade entre necessidade/liberdade e relações políticas/relações naturais, postas por Aristóteles, na Grécia Antiga. Conforme o entendimento do filósofo, o tempo livro era uma condição de liberdade que possibilidade que os homens fossem seres públicos, pois se libertavam das necessidades da existência, encarregando outras pessoas da produção material da vida, essas pessoas, à época eram mulheres e escravos.

Com as demandas políticas das Revoluções Modernas – Francesa (1789) e Americana (1776), especificamente – a dualidade apresentada por Aristóteles foi redefinida, na modernidade, pela dupla lógica cidadania(participação)/soberania(poder público). Assim, conforme o pensamento político clássico difundido por Rousseau, os dualismos se dão primeiramente entre as noções de natureza/cultural e assim de homem natural/cidadão (Lamoureux In Hirata, 2009).

 A partir dessa ideia Rousseau, concebe-se um fundamento biologizante dos indivíduos pelo qual a mulher corresponde ao polo referente à natureza/homem natural, responsável pela vida e emocional e fisicamente mais fraca que os homens, enquanto que estes – os homens – são representantes da cultura/cidadão, por serem mais fortes, racionais e capazes. Assim seriam próprios da esfera pública, os homens e, próprias da esfera privadas, as mulheres (MIGUEL, 2012).

            Francis Olsen (1990), ao estudar a estrutura do pensamento moderno, afirma que o organizamos em complexos dualismo de pares opostos que dividem as coisas e esferas da vida como racionais/irracionais, razão/emoção, cultura/natureza, abstrato/concreto, homem/mulher etc. O desenvolver de seu raciocínio nos leva a compreensão de que esses polos são também sexualizados e hierarquizados, isso quer dizer que cada um desses polos possui um gênero que se representar por e nele e, ainda, que em comparação, haverá sempre um polo considerado superior.

            Essas esferas podem ser compreendidas então modo a divisão fictícia da organização da vida social – a vida privada e a vida pública. Nesse sentido Fraser (2015) explica que as sociedades modernas é dual e possui subsistemas: família – esfera privada e participação política – esfera pública. Essas esferas são apresentados por Pateman (1996) com diferenciações importantes, a esfera pública seria o lugar da razão, da independência, da reponsabilidade e objetividade, enquanto que a esfera privada, seria o local da intimidade, das relações concretas e da família.

            Essa argumentação que visou naturalizar a esfera doméstica como lugar próprio – único possível – para as mulheres, constitui um dos argumentos de restrição à cidadania das mulheres. Isso porque, o espaço de decisões, debate e opinião pública foi delimitado pelas características masculinas e, por muitos anos se apresentou como uma área impermeável para as mulheres.

 

  1. O direito à cidadania

 A cidadania é historicamente um direito restrito (HELD, 1987). Desde o conceito mais antigo de cidadania, este se trata de um privilégio de poucos. A exemplo da experiência ateniense – modelo parâmetro de democracia – na condição de cidadãos estavam apenas os atenienses homens, adultos, livres e não estrangeiros (HELD, 1987), assim, apesar da pluralidade de integrantes da comunidade, a composição dos cidadãos de Atenas era hegemônica, por ser conferida apenas a quem se enquadrasse em condições bastante específicas.

As transformações na concepção de vida política permitiram que Thomas H. Marshall (1949), ao teorizar a cidadania como a igualdade humana básica associada ao conceito de participação integral na comunidade, concluísse que esse direito faz parte de um desenvolvimento histórico composto por três elementos: civil (século XVIII), político (século XIX) e social (século XX). Conforme essa teoria, cidadania trata-se da prática dos direitos necessários à liberdade civil; da participação no exercício do poder político e, socialmente, de “tudo o que vai desde o direito a um mínimo de bem-estar econômico e segurança ao direito de participar (…) até levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade” (MARSHALL, 1949).

Dessa forma, a evolução das formas de exercício da cidadania permite que subsistam diferentes sentidos desse conceito: pode-se compreender como um conjunto de direitos e deveres; um sentimento de pertença a determinado território ou comunidade política e; uma prática exercida pela participação e representação políticas. Nestas últimas, a concepção tem como base as novas configurações de cidadania que, para além do sujeito que deposita seu voto a cada dois anos, durante toda a sua vida, expressa sua capacidade interferir no espaço público emitindo um julgamento crítico sobre as escolhas da sociedade e reclamando o direito a ter direitos (PEREIRA, In HIRATA, 2009).

Em um definição mais apurada, Pereira nos permite compreender que cidadania é:

uma prática de conflitos ligada ao poder e às lutas por reconhecimento dos atores considerados protagonistas de reivindicações legítimas. Ela também é ligada a uma prática consensual de participação e representação, bem como de formação de políticas públicas. (PEREIRA In HIRATA, 2009, p.39)

No Brasil o exercício do direito à cidadania se deu de diferentes formas ao longe de sua história, desde o início da colonização buscou-se dividir a sociedade em pessoas dignas de direitos e pessoas não dignas de direitos. Essa segregação além de demonstrar qual o grupo predominante na sociedade, também era propositalmente escolhida para manter este mesmo grupo no poder.

Esse fato fez com que cada momento histórico tivesse um grupo específico como portadores de direitos, ou pelo menos, de mais direitos do que outros. E, apesar da renovação destes grupos, não se pode dizer até hoje que essa garantia é hegemônica ou dada à maioria. O direito à cidadania é um direito de poucos, exercidos por um grupo pequeno e acessível a um grupo ainda menor.

 Apesar das diversas modificações legais que tiveram como objetivo abranger o status de cidadania, as diferentes teorias e sentidos não deram conta de modificar sua restrição mais básica, a de gênero. Colocadas numa posição de complementariedade e nunca como indivíduos em si, as mulheres não são vistas pela sociedade de forma individualizada, mas “como indivíduos mulheres, que escapam, pois, ao caráter universal do conceito de indivíduo e, portanto, de cidadão” (LEVINAS, 1997). A partir desta perspectiva, para a real compreensão do exercício da cidadania, as categorias gênero e patriarcado, tornam-se imprescindíveis, por isso serão vistas em seguida.

  1. A importância da categoria gênero para o entendimento do direito

Entendendo estes conceitos de cidadania, importante ressaltar que o exercício desse direito não é igualitário. Para cada cidadão há um efeito e uma determinada abrangência do que este conceito, como direito inerente traz. Essa distinção entre os indivíduos que acessam/não acessam, exercem/não exercem esse direito, se dá por diversas questões, alguns que podemos resumir pelas categorias: gênero, raça/etnia e classe.

Entende-se que é a partir e com base nas características de cada uma dessas categorias que a sociedade de organiza, desenvolve e se mantem. Para a análise que se pretende neste estudo, utilizaremos com maior veemência a categoria gênero, o que torna necessário a explicação do conceito.

Diferente da categoria sexo, que é definida biologicamente, a partir dos órgãos sexuais com que cada pessoa nasce, o gênero é entendido como uma construção social, uma caracterização histórica que se constitui diferenciando o que pode ser denominado como feminino e como masculino. Assim, Louro (1996, p. 10) afirma que o conceito de gênero tem como característica predominante a não essencialização do feminino e do masculino, ou seja, entender que o que os caracteriza não é natural, universal ou imutável, pois masculinidade e feminilidade são socialmente determinados.

A análise de Louro sobre o tema é relevante ao estudo, porque pretende evitar as padronizações e o engessamento da ideia de gênero. A autora demonstra que, por ser construção social, a representação do que é gênero dependerá da sociedade que se analisa e do tempo histórico a que pertence, fazendo com que o conceito seja sempre atual e de necessária readequação, o que lhe torna aberto, justamente para ser sempre inclusivo e não essencialista.

Também refutando o essencialismo biológico, Saffioti (2004, p.110) apresenta a categoria gênero como uma alternativa ao que denomina como “anatomia do destino”: a predestinação determinada de indivíduos macho ou fêmea, em condição imutável e permanente definida pelos órgãos genitais.

O termo “destino” utilizado pela autora, também reflete um distanciamento entre a vivência social e as mudanças históricas dos indivíduos, fazendo acreditar que estamos predestinadas a determinado sexo e nenhuma questão social nos influiria. Louro, ao discutir o tema, ressalta que todo o nosso meio está direcionado ou direciona a um gênero, nesta perspectiva conclui:

Acredito que cabe ainda, aqui, uma outra problematização. Muito frequentemente toma-se gênero num sentido restrito, ou seja, como uma aprendizagem de ‘papéis’ masculinos ou femininos (concepção que parece se ligar a um paradigma de identidade de gênero). […] Podemos, no entanto, pensar que o gênero (assim como a classe ou a raça) é mais do que uma identidade aprendida (é mais do que uma aprendizagem de papéis), sendo constituído e instituído pelas múltiplas instâncias e relações sociais, pelas instituições, símbolos, formas de organização social, discursos e doutrinas. Pensando assim, devemos entender que essas diversas instâncias sociais são instituídas pelos gêneros e também os instituem; elas são ‘generificadas’ (LOURO, 1996. P. 11/12).

Por isso além, de entender o gênero como uma categoria de construção social, observa-se que a diferenciação entre os gêneros causa também uma desigualdade entre o que é identificado como feminino e por masculino, onde o que se relaciona ao masculino é valorizado e ao que se refere ao feminino é desvalorizado.

Portanto, a partir do entendimento de que gênero e sexo não se confundem e de que gênero é construção social, a sessão seguinte se dedicará ao sistema estrutural de hierarquização entre os gêneros que acompanha o correr da história da civilização humano: o patriarcado.

 

  1. Patriarcado e Dominação masculina

A escolha de se adotar o Patriarcado como conceito primordial, se dá pela necessidade de compreender que as desigualdades, mais do que dentro de uma categoria (Gênero), fazem parte de um sistema de relações que permeiam toda a vida social humana. Trata-se, portanto, de um ponto de vista político, que entende as dominações como intrínsecas às relações sociais.

            Weber, ao diferenciar as várias formas de dominação na sociedade, classifica a dominação patriarcal como aquela que provem de relações pessoais, diretamente ligadas à autoridade do chefe da comunidade doméstica (WEBER, 2004). Essa forma tem como característica principal a especificidade de sua manutenção que se dá não apenas as leis postas, mas pela tradição segundo a qual o chefe, homem, tem em relação aos demais membros da família o poder de propriedade, em especial, em relação às mulheres.

Assim, entende-se que o patriarcado tem como principal característica a superioridade masculina em troca da inferioridade feminina. Este é o sistema pelo qual os homens se organizam para, segundo Saffioti (2004), dominar/explorar mulheres, por questão que lhe interessem, e somente pelo fato desses indivíduos serem mulheres.

Esse conceito foi utilizado, na década de 60, pelas feministas nos estudos sobre as mulheres, com objetivo político de denunciar a dominação das mulheres pelos homens e, assim, analisar as relações dela resultantes (SAFFIOTI, 2009). Este entendimento é mais tarde reelaborado pela teoria feminista, quando se agrega, além da dominação, a dimensão da exploração das mulheres.

Abrangendo as dimensões de dominação e exploração Hartmann traz o Patriarcado como um conjunto de relações de dominação e exploração que resultam em outra forma de violência, a opressão. Para a autora o patriarcado se define como um acordo entre homens para manter as mulheres sobre seu domínio, assegurando assim o a solidariedade masculina e a colocação das mulheres como objetos de satisfação sexual, além de reprodutora de herdeiros, de força de trabalho e outras reprodutoras (HARTMANN, 1979, apud SAFFIOTI, 2004).

            A análise de Hartmann nos permite compreender que o Patriarcado pressupõe o estado e lugar das mulheres como o espaço reprodutivo, privado e doméstico. O âmbito das relações alheio à esfera pública e à assim, a vida política, e de participação pública, onde se concentra o trabalho não remunerado, as funções de cuidado e de reprodução da vida.

            Nesse sentido, Saraceno (1995), explicitando o papel da mulher no sistema patriarcal, traz a dinâmica da relação familiar e a precarização da vida das mulheres, colocada como uma forma natural de se viver. Conforme a autora, as dependências da mulher em relação ao homem, no patriarcado, são muitas e repercutem diretamente na possibilidade do exercício do direito à cidadania, seja a dependência econômica ou a irrestrita disposição no cuidado de familiares e serviços domésticos, o acúmulo de funções reprodutivas diminui a possibilidade de a mulher alcançar a sua própria cidadania que não se reduz ao voto, mas também na disponibilidade para o engajamento e participação (SARACENO, 1995).

            A intenção em revelar as diferentes formas de manifestação do patriarcado às mulheres é demonstrar os meios utilizados para essa dominação. Nem sempre a dominação patriarcal se dá pelo uso da violência física, as agressões também se apresentam de forma estrutural, motivo pelo qual mais esse sistema se naturaliza e perpetua nas mais variadas dimensões, como na construção e exercício do direito, tal qual esse estudo se propõe a analisar.

Percebe-se a partir do exposto que o patriarcado é o regime pelo qual, além de subordinada, a mulher tem seus direitos suprimidos pela ação dos homens e da sociedade que a vê e coloca em um lugar distinto de onde os homens estão, os locais mais precários, afastados e de pouca ou nenhum reconhecimento.

            Kritsch lembra que o patriarcado transpassa as mais diversas relações entre os gêneros, seja no erotismo, socialização ou na definição biológica dos sexos, ele repousa em “sobre interpretações culturais incrustadas em ideias e práticas que conferem a tais diferenças valor e significação” (KRISTSCH In BENHABIB, 1987, p. 198).

Dessa forma, verifica-se por que são muitas as barreiras visíveis e invisíveis é preciso que a mulher passe para que exerça seus direitos. A naturalização da mulher nas posições de cuidadora, faxineira, cozinheira, educadora e companheira sexual, fazem com que sua carga de tarefas diárias seja tão extensa, que não haja, dentro das vinte e quatro horas do dia, um espaço para si e seus próprios direitos.

            Uma das categorias utilizadas pelas feministas para questionar essas opressões foi a discussão sobre a divisão entre esfera pública e esfera privada que, para além do que as primeiras provocações feitas pelo lema “o pessoal é político”, conforme Miguel:

capta de maneira sintética e aliciadora o fato de que as fronteiras convencionais entre o público e o privado servem, em primeiro lugar, parar mascarar formas de dominação que possuem um impacto maiúsculo em todas as dimensões a ação política, o questionamento que o feminismo promoveu quanto ao significado da política foi mais profundo e mais crucial do que leva a cabo o movimento operário quando, já no século XIX, pôs em xeque a separação entre o econômico e o político.” (MIGUEL, 2002, p. 55)

Assim, além dos papéis impostos, percebe-se que a dominação patriarcal também se realiza no impedimento das mulheres acessarem outros direitos, como o exercício da cidadania. A possibilidade de abandonar a função de mãe, esposa e cuidadora, para exercer um serviço público de decisão e autonomia, não é aceito pelo Patriarcado e, por isso, impede-se inclusive essa possibilidade.

Isso porque, a própria construção de quem é o cidadão pressupõe a disponibilidade e o engajamento que não se estimula nas tarefas definidas como femininas, para Fraser (2002):

Tal como Habermas entende, o cidadão é fundamentalmente um participante do debate político e da formação da opinião pública, significa isso que a cidadania, a seu ver, depende decisivamente das capacidades de consentir e falar, capacidade de participar do diálogo em igualdade de condições com outros. Mas essas são capacidades que se acham ligadas à masculinidade no capitalismo clássico de dominação masculina. São capacidades negadas às mulheres de diversas maneiras e julgadas estranhas à feminilidade. (…) Significa, diz Carole Pateman que ‘as mulheres vêem seu discurso… persistente e sistematicamente invalidado na decisiva questão do consentimento, questão que é ´fundamental para a democracia. [Mas] se as palavras das mulheres sobre consentimento são habitualmente reinterpretadas, como podem elas participar do debate entre cidadãos’?. (FRASER In MIGUEL, 2002, p. 52.).

            Vistas as posições sociológicas acerca do tema, a sessão seguinte se dedicará a expor o ponto de vista da teoria feminista do direito acerca da construção dos direitos das mulheres e suas implicações.

  1. O movimento feminista no Brasil

             A partir de uma análise bastante geral, pode-se dizer que o movimento de mulheres que lutaram pela própria participação dos espaços públicos teve dois grandes momentos, no Brasil. Um foi na década de 1930, quando foram eleitas as primeiras mulheres, e o outro foi na década de 1970, principalmente, como resistência política ao regime militar (PINTO, 2003).

            Esses dois momentos fazem parte da história do movimento feminista brasileiro, por constituírem o momento entendido como as duas primeiras ondas do feminismo no Brasil (PINTO, 2003). O termo onda (BITTENCOURT , 2015), apesar das divergências, tem como objetivo explicar que esses períodos se tratam de momento em que o feminismo e a reivindicação de mulheres por seus direitos está em destaque dentro das demais discussões. Ainda, significa que os períodos que não constituem a onda, não sugere que não existe, apenas que se trata de um período de recuo e menor visibilidade.

            Além dos dois períodos mencionados, há a terceira onda que ocorre em 1980/90, já no período democrático do Brasil. E cada um deles têm fundamental importância para se entender como se dão as novas configurações do direito à cidadania das mulheres brasileiras, quando pleiteando cargos político eletivos.

A primeira onda feminista, ocorrida em 1930, ainda que protagonizado por mulheres, não tinha como objetivo a real desestruturação do patriarcado, uma vez que, apesar da pauta progressista, não questionava a subalternidade da mulher em relação aos homens (FERREIRA, 1996). Foi inspirado e semelhante ao feminismo liberal, nascido com as sufragistas francesas: mulheres de classe média alta, que lutavam por um direito individualizado e não agregavam mulheres de outras realidades – como as negras, pobres, não escolarizadas, etc.

Ainda assim, é inegável sua positiva repercussão no âmbito brasileiro, como um todo. Estudando a trajetória de Bertha Lutz, uma das mulheres de maior destaque desse movimento, Raquel Soihet apresenta o feminismo utilizado por Bertha como “estratégico” (SOIHET, 2006). Bertha Lutz era uma mulher como poucas brasileiras na década de 30, havia estudado na Europa, obtido nível superior na área da saúde, vinda de uma família com privilégios econômicos e culturais, viria a ser a primeira mulher a assumir um cargo público no Brasil e, com todos os seus privilégios e contatos, utilizou-se do seu aparato social para reivindicar a cidadania das mulheres.

            Dentre os ganhos da primeira onda feminista, destaca-se o fato de, em 1932, o Código Eleitoral brasileiro tornar expressamente admissível que mulheres pudessem votar e serem votadas, em âmbito nacional. Contudo, a conquista somente foi plena em 1946, quando, na Constituição federal do Brasil, deixou de existir diferentes condições eleitorais para homens e mulheres (TSE, 2017).

            Os principais motivos para o momento de recuo da primeira onda feminista, está a instauração do Estado Novo em 1937, após o Golpe de 1930 e a manutenção do movimento feminista dentro das características inicias apresentadas: apenas entre mulheres da alta sociedade brasileira. Sem chegar aos grupos populares de mulheres, o movimento não conseguiu criar novas forças e teve um grande período de pouca atuação.

Essa onda pode, conforme Pinto (2003), ser caracterizada pelo feminismo liberal. Essa vertente se desenvolveu ao longo do século XIX, reivindicando o direito ao voto, a igualdade no matrimônio e a educação das mulheres. O movimento apontou a necessidade de permitir às mulheres o desenvolvimento de suas capacidades humanas por meio do acesso aos direitos que só os homens podiam desfrutar. (JARAMILLO, 2000). Desse modo, a extensão dos ideais liberais − liberdade e igualdade de tratamento − às mulheres, foi um ponto fundamental.

A segunda onda feminista, ocorrida em 1970 tem como fator decisivo o contexto em que o Brasil estava inserido (PINTO, 2003). Neste período, o país sofria com a repressão do auge do Regime Militar, ao mesmo tempo em que vivia a industrialização do país, a eclosão de movimentos culturais e a reorganização da esquerda para resistir à ditadura.

As mulheres, então, constituíram uma frente de organização, desde o início se mostrava um movimento heterogêneo: ressurgiram as feministas que na década de 1930, surgiam as militantes de esquerda, as representantes de movimentos populares e sindicais, cada grupo com suas especificidades de luta (SOARES, 1998).

A industrialização do país desencadeou as demandas das trabalhadoras pobres e, daí a luta pelas creches, fez com que dentro dos partidos de esquerda e sindicatos, as mulheres lutassem pelo direito de decidir e participar das estratégias políticas da mesma forma que os homens e a repressão/tortura fez surgir a união entre mulheres que buscavam por seus filhos, pais e maridos (TELES, 1999). Portanto, não é possível traçar um perfil das feministas da década.

No mesmo período foi proclamada a década da Mulher, pela Organização das Nações Unidas e, posteriormente declarado o Dia Internacional da Mulher, fatos importantes que geraram o encontro e agenda comum das mulheres de diversos segmentos, além de dar nova força à luta das mulheres (TELES, 1999). Mais do que datas oficiais e simbólicas, surgiam jornais e revistas com o objetivo primordial de falar das especificidades da mulher e de suas lutas (FERREIRA, 1996).

Esses meios de comunicação criados por mulheres para falar sobre mulheres e sobre o feminismo tiveram como objetivo criar uma nova imagem de mulher. Em contraposição à imagem construída no início do século, da mulher voltada para o lar, confinada ao espaço privado, essa “nova mulher” deveria, segundo o discurso feminista dos jornais da década de 70, trabalhar fora de casa e, além disso, militar pela transformação da sociedade, em pé de igualdade com os homens (FERREIRA, 1996).

Academicamente, o grupo mais organizado na década de 1970 e concentrava em São Paulo realizando estudos sobre a mulher, através da Fundação Carlos Chagas, onde havia um grande número de profissionais preocupadas com a situação da mulher, reunidas no Departamento de Pesquisas Educacionais, local que se tornou um importante núcleo aglutinador de pesquisadoras e feministas (CORREA, 2001).

            Nesse momento nascem novos embates dentro do movimento feministas: a relação dispare entre pesquisadora e militante, a marginalização das pautas LGBT, o debate sobre o feminismo racial as relações de classe e, enfim, a desconstrução da luta da Mulher (antes tão universalizada quanto o homem), para a luta das Mulheres, compreendidas cada uma dentro de suas singularidades (CORREA, 2001).

            Esse momento pode ser, conforme Pinto (2003), caracterizado pelo feminismo socialista (ou marxista), que insere no debate a discussão da relação entre a desigualdade de gênero, a exploração sexual e a estrutura econômica capitalista. Esta perspectiva permite identificar tanto no capitalismo, quanto no Direito, uma reprodução do patriarcado, quando da divisão sexual do trabalho. Assim, o trabalho assalariado conferido ao homem e o cuidado doméstico, à mulher, justificaria a sujeição da esposa ao marido na esfera familiar.

            A década seguinte – 1980, onde se inicia a terceira onda feminista, foi marcada pelo lema feminista “o pessoal é político”. Isso porque, após um contato com os feminismos estadunidense e europeu (historicamente mais avançados na luta), o feminismo passou a levantar como compromissos questões do âmbito privado, antes consideradas supérfluas. À exemplo, surgiram questões sobre sexualidade, violência doméstica, aborto, entre outras. Além desse lema marcante, surge a profissionalização do feminismo, por meio do trabalho em ONG’s e departamentos governamentais sobre as mulheres (FERREIRA, 1996).

            Ademais, a década de 1980 trouxe historicamente uma grande mudança ao país: a volta das eleições diretas e a redemocratização do país. Tendo em vista a estruturação do movimento feminista nos anos anteriores, a sessão seguinte tratará especificamente da atuação desses movimentos no campo das eleições.

  1. A participação das mulheres na política

 A participação formal e regulamentada das mulheres na política surgiu após diversas manifestações sobre a sua necessidade. Um exemplo apontado por Pinto (2003) ao contar a história do feminismo no Brasil, é da criação do Partido Republicano Feminino, em 1910, por Gilka Machado e Leolinda Figueiredo, que o fizeram antes mesmo que qualquer legislação permitisse que as mulheres votassem ou fossem votadas.

Apenas em 1929, ainda sem respaldo legal, foi eleita a primeira prefeita do Brasil e da América Latina, Alzira Soriano. Indicada ao cargo por Bertha Lutz, advogada feminista que compunha a luta das mulheres pelos direitos políticos, Alzira, apesar do pouco tempo de mandato, iniciava uma nova história política brasileira.

A década de 1930 foi marcada pela regulamentação do direito de votar e ser votada das mulheres no Brasil. Resultado, sobretudo, da luta feminista influenciada pelo movimento sufragista que se organizava na Europa desde a Revolução Francesa. O sufragismo no Brasil foi representado por mulheres de classe média alta, intelectuais e que, apesar de lutar pelos direitos políticos das mulheres, não contestava o patriarcado, pois viam nos direitos políticos a complementação dos direitos que as mulheres necessitavam (PINTO, 2003).

            A Constituição que regia o momento político não proibia as mulheres de votarem, mas também não as elencavam como cidadãs. Longe de um esquecimento, a ausência das mulheres enquanto cidadãs na legislação brasileira, é entendida por Pinto (2003),  se deu pela lógica patriarcal de que as mulheres não compõem os espaços públicos de decisão. Essa realidade muda, em 1932, quando o Código Eleitoral é reformado e, apesar da Constituição Brasileira, as mulheres passam a ter seu direito de votar e ser votada.

Numa trajetória de pouca representação, a luta das mulheres seguiu sendo barrada pelos momentos de perseguição política e combate ao comunismo que tomou o Brasil nas décadas seguintes (PINTO, 2003). Assim, tomado de uma fase sem muitas transformações, ressurgiu fortemente a luta pelos direitos políticos no período de redemocratização do país, que resultou nas primeiras eleições diretas no Brasil, após o período ditatorial.

Os anos seguintes marcaram aumento no número de mulheres eleitas, mas nunca de forma realmente significativa. Mesmo com a promulgação da Constituição de 1988, que teve um grupo importante de mulheres reivindicando por seus direitos, houve pouco reflexo no número de eleitas.

            O fim da ditadura e a criação de novos partidos políticos como estratégia eleitoral possibilitou a articulação das mulheres como forças políticas necessárias para o momento. A visibilidade dos movimentos de mulheres e a possibilidade de conquistar um novo perfil de eleitor/as (visto que, somente nesse momento, eram consideradas também as eleitoras), fez com que as surgissem as primeiras candidatas brasileiras a serem eleitas na redemocratização do país (PINTO, 2003).

As eleições de 1982 ano foram gerais – elegeram-se governadoras(es), senador(a), deputada(o) federal, deputada(o) estadual, prefeita(o) e vereador(a)– os partidos que compunham os políticos da ditadura se dividiram e rearticularam, a oposição foi feita, principalmente, pelos antigos exilados, representantes sindicais e de camadas populares.

No que tange as mulheres, de maneira geral o quadro era este: as mulheres compunham 46,1% do eleitorado brasileiro, foram registradas 78 candidatas na esfera estadual e 82 na esfera federal. Contudo, o número de mulheres eleitas permaneceu baixo: 0 senadora, 0 governadora, 8 deputadas federais e 28 deputadas estaduais (PIMENTEL, 1983).

Os anos seguintes marcaram aumento no número de mulheres leitas, mas não de forma realmente significativa. Mesmo com a promulgação da Constituição de 1988, que teve um grupo importante de mulheres reivindicando por seus direitos, houve reflexo no número de eleitas.

A partir da Plataforma de Beijing, onde se firmou o compromisso de inserir mulheres na política, e considerando esse fato uma desigualdade a ser combatida, em 1995, foi criada a cota para inclusão de mulheres na política. Por meio desta legislação, fixando a necessidade de todos os partidos terem entre aso/os candidatas(os), pelo menos 20% de mulher. Porém, o percentual se mostrou baixo para o pretendido, por isso, em 1997, elevou-se a cota para 30%, para qualquer eleição do Poder Legislativo, e assim permanece, conforme a lei (Lei 9.504, de 1997).

Além da garantia de registro do mínimo de mulheres, esta lei impõe que seja aplicado, no mínimo, 5 do Fundo Partidário na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres e determina que, no mínimo, 10% do tempo de propaganda partidária gratuita no rádio e na televisão seja destinado à promoção e à difusão da participação política feminina (BRASIL, s.d.).

Ainda assim, o Brasil permanece com os mais baixos índices de mulheres na política. Conforme o Inter-Parlamentary Union (IPU, 2017), o Brasil ocupa a 154 posição entre os 193 países analisados. São 11% na Câmara de Deputas(os) Estaduais, 9,9% na Câmara de Deputas(os) Federais, 17% no Senado e 3,7% entre as/os Governadoras(es).

Além do panorama geral é importante destacar que a primeira mulher a ocupar o mais alto escalão eletivo do país, o fez em 2011, foi reeleita em 2014, contudo, sofreu processo de impeachment e cumpriu apenas parte de segundo mandado. Esse procedimento, apesar de constitucionalmente previsto, é visto por muitas feministas que estudam a política brasileira, com alto teor sexista (BASTOS, s.d.).

Nas eleições municipais de 2016, apesar de ter ocorrido redução quanto ao número de mulheres que se candidataram a prefeita – 31,60% em 2016, em comparação com 32,57% em 2012 (TSE, s.d.), e o pequeno aumento nas câmaras de vereadores – 32,79% em 2016, em comparação com 31,83% em 2012 (TSE, s.d.) – é relevante o fato de que, em 56 municípios de 17 estados, apenas mulheres se candidataram ao cargo de chefe do executivo. O estado como maior número de cidades nessa situação foi o Rio Grande do Norte. Estado referência quanto aos direitos políticos das mulheres, em oito municípios (Lucrécia, Frutuoso Gomes, Ouro Branco, Serra Caiada, Santa Cruz, São José do Campestre, São Vicente e Taboleiro Grande), apenas mulheres se candidataram ao cargo de prefeito (TSE, s.d.).

Desse modo, mostra-se evidente a necessidade de aprimoramentos de estudos e estratégias político-sociais para a eliminação dessa forma de desigualdade que afeta tão negativamente a democracia brasileira.

 

Considerações finais

Diante da análise exposta, verifica-se que os direitos das mulheres não são exercidos como os direitos dos homens, uma vez que o direito é o resultado de mecanismo de poder constituído no patriarcado. Assim, não é possível dissociar o direito da dominação de mulheres.

A primeira compreensão que pode ser destacada é a necessidade de reconhecer a diferente entre os sexos e, assim, a necessidade de superar as desigualdades que tem como objetivo a inferiorização das mulheres. A importância de se compreender que homens e mulheres são diferentes e que essas diferenças são historicamente utilizadas para impedir, limitar, controlar, restringir, reprimir e moderar o direito das mulheres em suas mais diversas vertentes. Isso porque essa subjugação afeta todas as relações e instituições sociais, como o direito.

Em decorrência dessa primeira conclusão, outro entendimento a se destacar é que relações e instituições representam diferentes gêneros e, para que não haja hierarquização entre eles, é importante que sejam questionados desde a sua base, como faz a teoria feminista com o direito.

Assim, percebe-se que o direito a cidadania reflete as restrições de gênero definidas pelo patriarcado, como subjugação da mulher a esfera privada, às categorias dominadas e a inferiorização destinada ao gênero feminino.

A análise do direito então, pretendendo ser crítica, não poderá ignorar as categorias de gênero e patriarcado, através da perspectiva crítica, uma vez que são essa as bases de questionamento para a pseudo neutralidade sexual frente ao exercício de direitos.

            A partir do breve estudo apresentado, verifica-se que ainda há muito a se fazer para que o direito seja um instrumento de garantias e liberdades para as mulheres, motivo pelo qual pesquisas como essa mostram a necessidade de seguirem questionando.

Referências

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Politicas publicas para mulheres: Reflexões sobre o PNPM e a consolidação de direitos, participação e poder

Ana Paula de Oliveira dos Santos[30]

Daiane Machado[31]

Talita Albuquerque e Facco[32]

Resumo: Apesar de vivermos um Estado Democrático de Direito, temos uma sociedade profundamente desigual. A Constituição Federal de 1988 veio com intuito de minimizar as desigualdades e implementar direitos sociais.  A efetivação de tais direitos se concretiza, muitas vezes, pela implementação e execução de políticas públicas. Políticas estas, voltadas a atender demandas de determinados grupos sociais. A busca por direitos e sua efetivação marca a história da organização das mulheres, a garantia destes, em muitos casos, consegue ser consolidada através de políticas públicas que buscam a equidade entre os sexos. As políticas públicas têm relação direta com as agendas dos governos vigentes sendo perceptível que a cada troca ou alteração de mandatos estas acabam, por sua vez, também sofrendo alterações. O PNPM – Plano Nacional de Políticas para Mulheres – (implementado no governo de Luis Inácio Lula da Silva, lançado no ano de 2004, sofrendo grandes cortes no atual governo Michel Temer), nos possibilita analisar na prática a importância da existência de políticas públicas para os grupos mais vulneráveis através de dados concretos.

Palavras chaves: Politica Publicas. Mulheres. PNPM.

1.       INTRODUÇÃO

 

O nosso país possui um modelo Democrático de Estado, e por isso, porta a atribuição de algumas funções importantes na sociedade, como promover o bem-estar social e garantir direitos básicos dos cidadãos. O instrumento maior que garante que estas atribuições sejam exigíveis é a Constituição da República. A partir dela, se tem mecanismos que permitem a efetivação de direitos essenciais e a busca de novas conquistas sociais.

Um dos principais mecanismos para a potencialização dos objetivos traçados na Carta Magna, são as Políticas públicas, que será o tema de início do presente artigo. Trataremos a respeito dos motivos do surgimento das políticas públicas, seus objetivos e os resultados buscados, bem como a forma com que são aplicadas.

Num segundo momento, será dado enfoque nas políticas para mulheres,  relatando um pouco da luta histórica deste setor pela institucionalização da igualdade de direitos entre os gêneros, e atualmente, como as políticas públicas contribuem para o avanço nas garantias de direitos das mulheres.

Posteriormente, direcionaremos o estudo de políticas públicas para as mulheres à uma análise do Plano Nacional de Política para Mulheres, o PNPM, quanto ao seu surgimento, sua criação, a forma com que é prevista no Plano Plurianual implementação, e as mudanças sofridas desde a época de sua criação até os tempos atuais, principalmente após a mudança no cenário político Brasileiro e a criação da Medida Provisória 726/2016.

2.       POLITICAS PÚBLICAS NO BRASIL

A desigualdade social é um problema que afeta a muitos anos a sociedade, e está presente de várias formas, podendo ser manifestada pelo gênero, raça e ou classe.

No século passado, até meados da década de 20, a grande maioria da população vivia no campo, e a economia era majoritariamente baseada na agricultura. A partir daí, cada vez mais, o país foi se tornando importante dentro da área industrial e a população passou a migrar massivamente para as cidades, gerando aglomerações nos grandes centros. Esta grande mudança de estrutura deu ampliação considerável a vários modos de desigualdades sociais já existentes até então no Brasil.

De acordo com Oliveira (2014, p. 437), “a aglomeração e a concentração das massas em grandes cidades, o abandono do campo, a universalização da educação, saúde e cultura, fazem com que grandes contingentes busquem as melhorias sociais.”

O Estado brasileiro, por seu caráter democrático, dispõe na Constituição da República de 1988, o compromisso firmado de proteção dos direitos individuais e coletivos da população, declarando direitos fundamentais, como a garantia de isonomia entre todos os cidadãos, determinando alguns mecanismos que tornam possível a diminuição de desigualdades e a efetivação destes direitos, por meio de ações, projetos e programas, impondo deveres e finalidades de acordo com as necessidades da população.

Foi a partir daquele documento jurídico e político brasileiro acima citado, que o debate acerca das políticas públicas intensificou-se […] Isso porque, os direitos fundamentais, na sua grande maioria, demandam ações concretas do Estado (na figura dos três poderes) para que os cidadãos possam usufruí-los, e esta ação do Estado passa pela normatização através do Direito, com edição de leis, decretos, atuação do Poder Judiciário, contratações públicas, entre outras medidas. Assim, em rápidas palavras, está a explicação pela qual o os operadores jurídicos apoderam-se e apropriam-se do tema políticas públicas. (COSTA et. al. 2015)

O Estado recebe arrecadações de receita da população por meio de taxas, impostos, contribuições de melhoria, tributos, etc, e com isto, tem o dever de realizar em contrapartida a administração destes recursos para promover o bem-estar social, utilizando as ferramentas necessárias para a melhoria da qualidade de vida da sociedade.

Para tanto, a lei determina ao Estado conjuntos de medidas denominados de Políticas Públicas. Elas surgem com o intuito de resolver e suprir as necessidades desiguais da sua população, de responder às funções atribuídas ao Estado pela sociedade, de trazer medidas para efetivação dos direitos fundamentais garantidos na Constituição, e também orientar o gasto dos recursos públicos.

Conforme trata Succhi,2012 as políticas públicas, podem ser caracterizadas como diretrizes elaboradas com objetivo de enfrentar um problema público. Elas possuem dois elementos essenciais: intencionalidade pública e resposta à um problema público, ou seja, pode se dizer que as políticas públicas são a forma de resolver um problema entendido como coletivo e relevante.

É possível encontrar várias definições distintas a respeito do conceito de políticas públicas:

Mead (1995) a define como um campo dentro do estudo da política que analisa o governo à luz de grandes questões públicas e Lynn (1980), como um conjunto de ações do governo que irão produzir efeitos específicos. Peters (1986) segue o mesmo veio: política pública é a soma das atividades dos governos, que agem diretamente ou através de delega- ção, e que influenciam a vida dos cidadãos. Dye (1984) sintetiza a defini- ção de política pública como “o que o governo escolhe fazer ou não fazer”.3 A definição mais conhecida continua sendo a de Laswell, ou seja, decisões e análises sobre política pública implicam responder às seguintes questões: quem ganha o quê, por quê e que diferença faz. (Apud. SOUZA, p. 24, 2006)

Este conjunto de medidas possui grande importância na formalização dos direitos e na efetivação do exercício das garantias básicas previstas na Constituição, e contribuem na histórica busca da verdadeira democracia no Brasil.

As políticas públicas, possuem um ciclo de vida, que vai desde a identificação da necessidade de sua existência até o seu fim. Este ciclo consiste nas seguintes etapas: Identificação do problema – o problema é a diferença entre a situação real e a situação ideal; Formação da agenda – eleição dos problemas relevantes para resolução; Formulação de alternativas – fase em que se constrói estratégias alcançar os objetivos traçados; Tomada de decisão – momento em que se designa quais os métodos serão utilizados para enfrentamento do problema; Implementação – etapa na qual são produzidos os efeitos da política pública; Avaliação – julgamentos quanto ao desempenho do projeto posto em prática; e Extinção – é o fim da “vida” da política pública, e pode se dar pelos seguintes motivos: por se perceber como resolvido o problema que a originou, quando elas são percebidas como ineficazes e quando o problema origem perde importância e sai das agendas políticas. (SECCHI, 2012)

Para que sejam eficazes os objetivos que estas ações almejam alcançar, é necessário que se reconheçam as peculiaridades presentes em cada setor vulnerável alvo das políticas públicas. Um exemplo disso, é o que trataremos adiante no presente trabalho, ao falarmos de políticas públicas para mulheres. Neste caso, por exemplo, é necessário o reconhecimento de que os homens possuem grande vantagem nos papéis dentro do corpo social em relação às mulheres. Para que se possa implantar uma Política Pública que garanta a igualdade entre homens e mulheres, é de fundamental importância que se identifique essa discrepância, e a partir disto se criem os mecanismos necessários para abonar tais desvantagens.

Para que as desigualdades de gênero sejam combatidas no contexto do conjunto das desigualdades sócio-históricas e cultuais herdadas, pressupõe-se que o Estado evidencie a disposição e a capacidade para redistribuir riqueza, assim como poder entre mulheres e homens, classes, redistribui riquezas, raças, etnias e gerações. Para tanto, é necessário compreender que as políticas públicas com recorte de gênero são as que reconhecem a diferença de gênero e, com base nesse reconhecimento, implementam ações diferenciadas dirigidas às mulheres. Esta configuração faz com que a mobilização, para dar maior visibilidade a esse problema, passe a se tornar um compromisso social que os governos devem necessariamente assumir, tomando para si a reponsabilidade de enfrentar as desigualdades de gênero em suas mais diversas formas de manifestação. (BLEY, 2014, p. 337)

Fato é que as políticas públicas são grandes aliadas das minorias no combate a problemas que as tornam prejudicadas dentro da sociedade, e trazem possibilidades para que essas desigualdades sejam abonadas por meio de ações estatais.

3.                      A LUTA DAS MULHERES POR POLITICAS PÚBLICAS

A discussão sobre politicas publicas perpassa também por uma discussão social que justifica e garante a implementação destas, ao falar em social faz-se necessário que as politicas publicas tenham um recorte de gênero também. Quando falamos em gênero usamos este como um conceito aberto, não sendo resumido em categorias de análises, mas partindo da leitura do que foi chamada por Safiotti de “categoria histórica” e desta forma é recebido por várias instancias e podendo ter diversas interpretações: organizações sociais, divisões e atribuições, identidade subjetiva e também a construção social do feminino e do masculino (SAFIOTTI, 2015).

Assim quando falamos em um recorte de gênero para as politicas públicas, queremos delimitar nosso estudo às politicas publicas que se destinam as mulheres, e elas surgem da luta das próprias mulheres por direitos e a necessidade de sua efetivação.

Tal luta por direitos e participação politica é difícil de ser datada, pois há experiências de organização e resistência já no período revolucionário da Rússia, que debatiam temas como “igualdade de direitos, sufrágio, condições das operárias e camponesas, amor livre, casamento maternidade, divisão de tarefas domésticas, aborto, prostituição etc.” (SCHNEIDER, 2017, p.12). Porem muitas escritoras e muitos trabalhos, tendem a marcar como os anos 60 e 70 a eclosão dos movimentos feministas, que a partir deles puderam ser explicitadas as contradições entre o acesso e efetivação de direitos entre homens e mulheres (BANDEIRA, 2005, p. 14).

Muitas lutas e reinvindicações das mulheres foram necessárias para saíssemos do patamar da Declaração Mundial dos Direitos dos Homens, até chegarmos às iniciativas nacionais para a implementação de politicas voltadas às mulheres, podendo citar alguns marcos legislativos como a Convenção sobre a Eliminação das de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (CEDAW – 1979), a IV Conferência Mundial sobre a Mulher que aconteceu em Bejin em 1995, a Conferência de Direitos Humanos de Viena no ano de 1993, a Conferência contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância no ano de 2001 em Durban. (BANDEIRA, 2005). Podendo ainda citar a nível nacional a Lei Maria da Penha, que regula sobre os casos de violência doméstica, e direitos trabalhistas como a licença maternidade.

Mesmo, que por vezes, não há um consenso, ou diria uma hegemonia entre os movimentos feministas sobre as reivindicações, no que tange a busca de politicas publicas muito do que se espera pode ser destacado em:

A formulação de uma política pública, que supõe exigências diretas sobre o Estado, tem sido buscada por muitas feministas. Os temas englobados nessas exigências são a igualdade de status para as mulheres, a remoção da discriminação sexual, a introdução de regulamentos contra assédio sexual e a introdução de cotas que garantam a representatividade feminina. (STROMQUIST, 1996, p. 28)

A implementação de politicas publicas voltada para as mulheres também encontra a sua justificativa no que foi conceituada como a feminização da pobreza, que é resultado de estudos realizados pela Estadunidense Diane Pearce, onde explica sobre o fenômeno da participação da mulher no mercado de trabalho, onde a ela são destinados os trabalhos mais precários e com piores remunerações e a participação maior no mercado informal de trabalho (NOVELLINO, 2016).

Especificamente sobre o mercado de trabalho e também sobre a divisão sexual do trabalho, os trabalhos que são destinados para as mulheres e aqueles que são para os homens e o que isto representa nas estruturas sociais, trazemos as reflexões que são feitas pela Kergoat, Que nos permitem compreender como acontece a intensificação das diferenças sociais existentes entre os sexos.

A participação da mulher no mercado de trabalho aumenta, mas as  segmentações, horizontais e verticais, entre empregos masculinos e femininos, perduram. As desigualdades de salário persistem, e as mulheres continuam a assumir o trabalho doméstico. A meu ver, no entanto, isso não representa nenhuma aporia ou contradição interna às relações sociais de sexo, mas aponta para o fato de que o capitalismo tem necessidade de uma mão‑de‑obra flexível, que empenhe cada vez mais sua subjetividade: o trabalho doméstico assumido pelas mulheres libera os homens e, para as mulheres de alta renda, há a possibilidade de externalização do trabalho doméstico para outras mulheres. (KERGOAT, 2010, p.92)

Logo a proposição de politicas públicas, tem por finalidade de criar mudanças estruturais na sociedade, mesmo entendendo que por vezes serão de cunho reformador, a mitigar as diferenças, sendo assim responsabilidade do Estado a redistribuição de riqueza, de poder e de oportunidades e para que assim possam ser combatidas as desigualdades sociais através de práticas de cidadania para que a justiça de gênero se concretize (SILVEIRA, 2004).  O estudo das politicas publicas para mulheres será direcionado para o estudo do Plano Nacional de Politicas Para Mulheres (PNPM) que vigorou durante os anos de 2013 a 2015, como ele surge, quais são os desafios a serem superados por ele e as mudanças que ocorreram no programa no último período.

4.      CONSIDERAÇÕES SOBRE O PLANO NACIONAL DE POLÍTICAS PARA MULHERES

O Plano Nacional de Política para as Mulheres foi criado a partir da Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres da Presidência da República (SPM -PR), com intuito de ser um instrumento formal para efetivar políticas públicas, incentivar a participação social e política democraticamente, para que de fato pudesse ser exercido o direito constitucional a igualdade entre homens e mulheres.

No ano de 2004, foi realizado, a partir de articulações e debates municipais e estaduais, a I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres (CNPM), onde foram elaboradas as diretrizes e princípios do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres. Durante o processo de elaboração, antes mesmo da Conferência várias entidades se envolveram para discutir as diretrizes, desde o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), o qual foi criado em 1985, e apesar de muitas mudanças nas atribuições, na época ainda integrava a SPM, e tinha como importante atribuição apoiar a Secretaria em suas articulações com diversas instituições da Administração Pública Federal e com a sociedade civil, o processo de elaboração contou ainda com a participação das coordenadorias e secretarias de políticas para as mulheres de estados e municípios.

O PNPM foi aprovado por meio do Decreto nº 5.390, de 08 de março de 2005, o qual também instituiu o Comitê de Articulação e Monitoramento, com a função de acompanhar e avaliar periodicamente o cumprimento dos objetivos, metas, prioridades e ações definidos no PNPM. E conforme definido em seu artigo 4º, composto por representantes de onze ministérios e secretarias especiais, além da representação da sociedade civil através do CNDM, e coordenado pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, com atribuições para: I. Estabelecer a metodologia de monitoramento do PNPM; II. Apoiar, incentivar e subsidiar tecnicamente a implementação do PNPM nos Estados, Municípios e Distrito Federal; III. Acompanhar e avaliar as atividades de implementação do PNPM; IV. Promover a difusão do PNPM junto a órgãos e entidades governamentais e não-governamentais; V. efetuar ajustes de objetivos, linhas de ação, ações e metas do PNPM; VI. Elaborar relatório anual de acompanhamento das ações do PNPM; VII. Encaminhar o relatório anual ao Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e à Câmara de Política Social, do Conselho de Governo, para análise dos resultados do PNPM; e, VII. Revisar o PNPM, segundo as diretrizes emanadas das Conferências Nacionais de Políticas para as Mulheres.

O I Plano Nacional de Política para as Mulheres, lançado em dezembro de 2004, com proposta de execução até 2007, aprovou 239 diretrizes, as quais se traduziram nas 199 ações que passaram a compor o PNPM. Entre as ações propostas, definiram-se prioridades para serem implementadas já em 2005, desde as quais, autonomia, igualdade no mundo do trabalho e cidadania; Educação inclusiva e não-sexista; Saúde das mulheres, direitos sexuais e direitos reprodutivos; Enfrentamento da violência contra as mulheres; e Gestão e monitoramento do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres.

Através de estudo do Relatório de Implementação de 2005, foi possível observar a materialidade das ações e as transformações práticas já no primeiro ano de execução do Plano. O relatório traz ainda em sua conclusão, uma importante análise do por que se falar em igualdade de gênero quando o assunto é o orçamento público:

As discussões sobre gênero e desenvolvimento têm se concentrado, mais recentemente, no âmbito da política econômica, considerada o ponto de entrada mais promissor para a integração da perspectiva de gênero. Nesse sentido, uma das áreas mais importantes é o orçamento de um país que, à primeira vista, parece ser um instrumento neutro em relação às desigualdades entre homens e mulheres, não comportando, usualmente, nenhuma menção particular a qualquer um dos sexos. Entretanto, essa aparente neutralidade de gênero pode ser descrita como “cegueira em relação ao gênero”, pois o orçamento nacional normalmente ignora os papéis socialmente diferenciados, as responsabilidades e as capacidades de homens e de mulheres, assim como geralmente passa por cima dos diferentes impactos que as políticas públicas exercem sobre ambos. (BRASIL, 2006, p. 96).

É necessário que de fato hajam políticas públicas voltadas para a perspectiva de gênero, para que possa haver igualdade entre homens e mulheres, e assim os resultados atingidos por meio do orçamento devem beneficiar a população como um todo. Para tanto, o PNPM tem por fim não apenas buscar a implementação de um programa direcionado apenas para as mulheres, se não um programa que seja capaz de alterar a realidade das desigualdades. Considerando que o nosso planejamento orçamentário se dá por meio do Plano Plurianual(PPA),torna-seindispensávelqueasdiscussõeseaçõesapontadasnoPNPM, sejam consideradas na elaboração do PPA. Pois deve-se ter em conta que aimplementaçãodo PNPMvaialémdocumprimento

A implementação do PNPM e o seu das ações propostas, se não da necessidade de tornar concreto a proposta de transversalidade de gênero nas políticas públicas com transparência e controle social. Possibilitando assim, que sejam elaborados planos municipais e estaduais de políticas para as mulheres, com estratégias de atuação em longo prazo, de acordo com a realidade de cada local, dando incentivo a organização e desenvolvimento das mulheres, atendendo as necessidades de gênero, levando em conta também as desigualdades de raça e etnia. Assim “[a] Política Nacional para Mulheres, que fundamenta os planos governamentais, deve orientar-se pelos princípios da igualdade na diversidade, equidade, autonomia das mulheres, laicidade do Estado, universalidade, participação e solidariedade” (BRASIL, 2006).

O III Plano Nacional de Política para as Mulheres, objeto de análise deste trabalho, da mesma forma que os outros dois que o antecederam, foi fruto de formulação coletiva e dos debates entre a Secretaria de Políticas para as Mulheres, o Comitê de Monitoramento e Articulação do PNPM e o Conselho Nacional de Política para as Mulheres. Em dezembro de 2011 foi realizado a III Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, com a participação de 2.125 delegadas, e de onde foram apontadas as resoluções de caráter geral para a concretização do PNPM 2013/2015. Os princípios orientadores apontados no Plano giraram em torno de políticas capazes de proporcionar a autonomia das mulheres em todas as dimensões da vida, igualdade efetiva entre homens e mulheres, respeito a diversidade e combate a todas as formas de discriminação, a universalidade dos serviços e benefícios ofertados pelo Estado e a participação ativa das mulheres em todas as fases das políticas públicas. Uma questão que merece atenção, foi que nesse Plano reforçou-se o compromisso com o eixo que trata do enfrentamento do racismo, sexismo e lesbofobia, preocupação levantada na 3ª Conferência, devido a sua pertinente relevância.

O Plano Nacional de Políticas para as Mulheres foi construído por meio de articulação entre as resoluções da 3ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, e as disposições contidas no Plano Plurianual de 2012/2015, pois algumas metas já estavam previstas no PPA, o qual previa a destinação para ‘Políticas para as Mulheres: Enfrentamento à Violência e Autonomia”, de R$ 266,1 milhões. O PPA levou em consideração como indicadores, a Taxa de frequência à creche ou escola de crianças de 0 a 3 anos de idade; a Razão entre a taxa de atividade de homens e mulheres de 16 anos ou mais de idade e a Proporção de municípios com serviço especializado de atendimento às mulheres em situação de violência.

Assim, para cada ação prevista no PNPM, foi referenciado de acordo com o objetivo previsto no PPA. Por exemplo, no PNPM, uma das linhas de ação apontadas, é a “Promoção da autonomia econômica das mulheres por meio da assistência técnica e extensão rural, do acesso ao crédito e do apoio ao empreendedorismo, ao associativismo, ao cooperativismo e à comercialização, com fomento a práticas de economia solidária”, donde, uma das ações previstas é “incentivar o acesso de mulheres às incubadoras e empreendimentos econômicos solidários e fortalecer a rede de mulheres na economia solidária”. Os órgãos apontados como responsáveis seriam o Ministério do Trabalho e do Emprego e a Secretaria de Políticas para as Mulheres, e o objetivo referenciado no PPA, é o 0931

Promover autonomia econômica das mulheres urbanas, do campo e da floresta considerando as desigualdades entre mulheres e homens, as desigualdades de classe e raça, desenvolvendo ações específicas e exclusivas e contribuindo para a modificação da desigual divisão sexual do trabalho, com ênfase nas políticas de erradicação da pobreza e na garantia da participação das mulheres no desenvolvimento do país (PPA 2012/2015 p. 27)

4.1 Reforma Ministerial pela MP 726/2016 e o impacto nas politicas publicas das mulheres

É notório que a politica brasileira no ano de 2016 sofreu bruscas mudanças, o afastamento da representante máxima do executivo nacional trouxe consigo diversas reestruturações na administração publica e orçamentaria. Destacamos uma das medidas tomadas pelo presidente, naquele momento interino, a MP 726/2016 que regulava sobre a reforma ministerial e a redistribuição de suas competências.

Das mudanças trazidas pela reforma ministerial nos dedicaremos aos apontamentos da extinção do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos. Esta Medida Provisória ficou regulamenta pela Lei 13.341 de 29 de setembro de 2016, que tem a seguinte previsão:

Art. 1º Ficam extintos:

VI – O Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da juventude e dos Direitos Humanos.

[..]

Art. 6º Ficam transferidas as competências:

IV – do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos para o Ministério da Justiça e Cidadania, ressalvados aqueles com competências relativas a políticas para a juventude;

 

Sob decreto publicado no Diário Oficial da União (DOU) de 23 de junho de 2016 a presidência transferiu as dotações orçamentárias[33] no valor de R$ 12. 927,981,00 do então extinto Ministério supracitado, para os orçamentos da Presidência da República. Tais medidas do governo geraram diversas.

Para efeito de corte imediato de gastos, a Lei no 13.341/2016 eliminou cinco cargos de ministro, três cargos de secretários-executivos e um cargo de secretário-especial, além do cargo de chefe da Casa Militar. Paralelamente, o Decreto no 8.785/2016 (Brasil, 2016d), editado no mesmo dia, impôs a redução de 3.384 cargos do Grupo de Direção e Assessoramento Superior (DAS) e 823 funções gratificações e cem gratificações. (IPEA, 2016, p.23)

O impacto da implementação da MP 726/2016 apresenta uma reestruturação na configuração do governo (FERREIRA et al, 2016). Mesmo considerando que a reforma ministerial pela dada MP, e a transferência das dotações orçamentárias, são consideradas legais dentro do ordenamento jurídico brasileiro, se faz necessário fazer uma leitura que leve em consideração os aspectos políticos e sociais e como tais alterações afetam as politicas publicas e consequentemente quem elas representam, fato este explicito com a retirada do Ministério que é objeto da presente reflexão.

[…]as políticas voltadas para as mulheres, negros e direitos humanos, tiveram seu status ainda mais rebaixado na reforma ministerial de 2016, ao terem sido alocadas no segundo escalão (secretarias especiais) do Ministério da Justiça e Cidadania. Desde então, fica enfraquecida sua participação em instâncias decisórias interministeriais, em que essas agências atuavam para induzir suas pautas transversais em meio às políticas setoriais, como Saúde, Educação, Cultura etc. Reforçando essa tendência, com a extinção do Ministério das Mulheres, da Juventude, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, o Decreto de 22 de junho de 2016 (Brasil, 2016h) transferiu sua dotação orçamentária prevista para 2016 para a Presidência da República. Ocorre aí um efetivo retrocesso dessas pautas, e das políticas públicas que delas derivam, à mesma configuração institucional do início dos anos 2000. (FERREIRA et al, 2016, p.25)

As reformas ministeriais que aconteceram nos últimos anos no Brasil, não somente no ano de 2016, tiveram como objetivo a redução de gastos e a reorganização estrutural da administração publica, porem tais mudanças ainda são insuficientes para a solução da crise fiscal e econômica enfrenta no país. Ao que tange a MP 726/2016 é uma evidente alteração de governo e do que ele representa, sendo uma resposta a uma agenda politica a ser respondia (FERREIRA et al, 2016).

Ainda no conturbado maio de 2016 aconteceu a 4ª CNPM, reunindo em torno de três mil mulheres, que tiraram como definição da conferência a continuidade das conquistas nas politicas e também na proteção dos direitos da mulheres. Foi também no momento em que aconteceu a conferência que as presentes fizeram a previsão de recursos especiais para ações direcionadas às mulheres indígenas, quilombolas, mulheres negras, ciganas e de povos e comunidades tradicionais (SPM, 2016). Porem estas propostas não conseguiram ser efetivadas pois dias depois, conforme acima apresentado, o presidente retirou as dotações orçamentárias do Ministério responsável pela execução do projeto.

5.      CONSIDERAÇÕES FINAIS

Buscamos analisar as políticas públicas sob uma perspectiva de gênero, que vise a equidade nas mais diversas áreas para mulheres e homens. Porém cabe destacar que a implementação de políticas públicas não se dá somente na vontade dos governantes, tem por trás delas muita história de luta e de organizações sociais que reivindicam suas pautas junto aos governos. Temos então o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres como um grande exemplo de políticas voltadas para um determinado grupo que ainda está em patamar de desigualdade social. O PNPM é um projeto considerado ainda muito recente, quando levamos em consideração a estrutura social que vivemos, que é permeada por uma desigualdade de classes, de gênero e também de raça, uma sociedade que ainda é essencialmente machista e patriarcal, um projeto que teve seu início em 2004 e sofreu bruscas alterações, em especial no ano de 2016, não foi possível mudar pela raiz o problema de desigualdade econômicas, sociais e também de violência, que enfrentam as mulheres brasileiras. Destacamos que o PNPM é um projeto que buscava mudanças a longo prazo, o que é positivo uma vez que havia compreensão de que tais mudanças na sociedade requerem tempo para alcançar a eficácia pretendida, porém como ele não teve o tempo necessário para continuar existindo, acabou se tornando insuficiente para seu objetivo fim. A medida tomada pelo presidente, tem sua previsão e interpretação dentro da discricionariedade a ele garantida, mas o que chamamos atenção é para o preço político que decisões como esta acarretam. Temos cada vez mais presente o discurso de recuperar a situação econômica e orçamentária do país, porém as atitudes que são tomadas pelo poder executivo é a de alterações legislativas que afetam principalmente grupos mais vulneráveis, como neste caso as mulheres. Com as diversas mudanças ocorridas no cenário político nacional do ano de 2016 trouxe consigo impactos diretos nas políticas de gênero, como alvo de nosso estudo trouxemos um breve relato da reforma ministerial dada pela MP 726/2016, a extinção do Ministério das Mulheres trouxe consigo o rebaixamento da pauta para uma pasta dentro de outro ministério. Consideramos que ainda há muitos avanços que precisam ser galgados para o fim das desigualdades entre os sexos, que este é um período histórico que precisará ainda mais da organização das mulheres para a efetivação dos seus direitos, e é primordial que sejam garantidas políticas públicas que tenham como objetivo a equidade, o fim da violência e a efetivação dos direitos, pois as mulheres são a maior parte da população brasileira e ainda temos as piores condições de trabalho e de sobrevivência.

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As significações produzidas pelo TJ/SP sobre “violência baseada no gênero” na Lei Maria da Penha – uma primeira análise[34]

The meanings produced by TJ/SP about “gender-based violence” in Maria da Penha Law – an initial analysis

Juliana Fontana Moyses[35]

Resumo: O objetivo do presente artigo é o uso do critério “violência baseada no gênero”, por julgadores e julgadoras da 2ª Instância do Tribunal de Justiça de São Paulo, para o enquadramento ou não de determinada violência como “violência doméstica e/ou intrafamiliar contra a mulher”, no âmbito da Lei Maria da Penha. A partir do conceito de “tecnologia de gênero”, é possível analisar o direito como uma tecnologia de gênero, ou seja, um instrumento que, através de seus discursos e práticas, produz identidades e significações de gênero. Assim, quero verificar como tal critério é entendido pelos julgadores e julgadoras, de modo a entender quais diferenças de gênero estão sendo produzidas. A partir do método de análise de conteúdo, e da adoção de uma perspectiva feminista, pude concluir que, que quando houve a discussão acerca do que seria “violência baseada no gênero”, na maioria dos julgados, a engenharia de gênero do direito serviu para construir definições de gênero conformes ao contexto de assimetria de poder que levou à violência em primeiro lugar, reforçando-a.

Palavras-Chave: Lei Maria da Penha; violência de gênero; análise de conteúdo; tecnologia de gênero.

Abstract: The purpose of this article is to analyse the use of the criteria “gender based violence”, by judges of the 2nd Instance of the Court of Justice of São Paulo, when framing certain violence as “domestic and/or intrafamiliar violence against woman” under the Maria da Penha Law. Using the concept o“gender technology”, it is possible to analyze law as a technology of gender, that is, an instrument that, through its discourses and practices, produces gender identities and significations. Thus, I want to verify how such a criteria is understood by the judges, in order to understand what gender differences are being produced. Using the method of content analysis and the adoption of a feminist perspective, I could conclude that when there was discussion about what would be “gender-based violence”, in most of the decisions, the gender definitions constructed were consistent with the context of asymmetry of power that led to violence in the first place, reinforcing it.

Keywords: Maria da Penha law; gender violence; content analysis; gender technology.

1.   Introdução

O objetivo do presente artigo é o uso do critério “violência baseada no gênero”, por julgadores e julgadoras da 2ª Instância do Tribunal de Justiça de São Paulo, para o enquadramento ou não de determinada violência como “violência doméstica e/ou intrafamiliar contra a mulher”, no âmbito da Lei Maria da Penha.

Em seu artigo 5º, a Lei Maria da Penha determina que “(…) configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial (…)” (destaquei), desde que ocorrida no âmbito da unidade doméstica, no âmbito familiar, ou em qualquer relação íntima de afeto.

O critério “violência baseada no gênero”, foco deste artigo, é um dos requisitos para que determinada conduta seja enquadrada como violência doméstica e familiar contra as mulheres, no âmbito da Lei Maria da Penha. No Tribunal de Justiça de São Paulo foi editada até uma súmula sobre isso, a Súmula 114:

Súmula 114: Para efeito de fixação de competência, em face da aplicação da Lei nº 11.340/06 (Lei Maria da Penha), tanto o homem quanto a mulher podem ser sujeito ativo da violência, figurando como sujeito passivo apenas a mulher, sempre que fique caracterizado o vínculo de relação doméstica, familiar ou de afetividade, além da convivência íntima, com ou sem coabitação, e desde que a violência seja baseada no gênero, com a ocorrência de opressão, dominação e submissão da mulher em relação ao agressor (grifei).

O que busco compreender é: o que é “violência baseada no gênero” no entender dos julgadores e julgadoras? Quais características do caso em questão são utilizadas para aferir “dominação e submissão em relação ao agressor”? Partem os julgadores e julgadoras de estereótipos relacionados a gênero para tanto?

Tais perguntas são importantes pois a partir do conceito de “tecnologia de gênero”, abaixo abordado, é possível analisar o direito como uma tecnologia de gênero, ou seja, um instrumento que, através de seus discursos e práticas, produz identidades e significações de gênero. Assim, quero verificar como tal critério é entendido, de modo a entender quais diferenças de gênero estão sendo produzidas.

Além disso, pela Convenção pela Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW), os Estados signatários têm a obrigação de tomar medidas para modificar padrões socioculturais baseados em ideias estereotipadas de homens e mulheres. A Recomendação Geral n° 33 do Comitê CEDAW, por sua vez, trata do acesso à justiça às mulheres e afirma que os Estados devem adotar práticas que garantam a boa qualidade da prestação jurisdicional, como a adoção de práticas sensíveis a gênero e a abstenção de uso de estereótipos de gênero.

Assim, e a partir de uma perspectiva feminista abaixo explicitada, analiso um pequeno número de acórdãos, buscando identificar que tipo de significações e diferenças de gênero estão produzindo.

2.   O Direito e a Criação de Gênero

É importante compreender o que os julgadores e julgadoras entendem por “violência baseada no gênero” pois, além das obrigações de eliminar as discriminações contra as mulheres e de emitir julgamentos livres de estereótipos de gênero, bem como adotar abordagens sensíveis a gênero, todas determinadas pela Convenção CEDAW e por suas Recomendações Gerais n° 33 e 35, as decisões judiciais (na verdade, o próprio Direito) têm o poder de afirmar e oficializar representações sobre seus objetos, representações estas que justamente poderão reafirmar as discriminações contra as mulheres, ou contribuir para sua eliminação.

Rebecca J. Cook e Simone Cusak, em sua obra “Estereotipos de Género: Perspectivas legales transnacionales” (2010), afirmam que estereótipos referentes a homens e mulheres (“estereótipos de gênero”) ocupam um papel central na perpetuação e legitimação da subordinação feminina. Elas afirmam que os estereótipos de gênero são a base da estrutura desigual da sociedade, e que, portanto, é possível chegar à emancipação feminina com a sua eliminação, destacando, em sua obra, o papel do Direito para tal eliminação.

As autoras explicam que os estereótipos consistem em visões generalizadas ou preconcepções sobre os membros de determinado grupo, sobre suas características ou papeis. O ato de estereotipar é algo que todas as pessoas fazem, gerando “imagens mentais” que condicionam nossa percepção de mundo, prescrevem comportamentos e limitam a formação e as expressões de identidades, o que leva a impactos negativos e discriminações em relação a determinados grupos. O estereótipo que prescreve que homens devem ser provedores (de recursos) e mulheres devem ser cuidadoras primárias (da casa e da família), por exemplo, limita as suas oportunidades de atuar e se desenvolver fora destes papeis, limitando suas identidades (COOK; CUSAK, 2010, p. 11-16).

É importante analisar e nomear os estereótipos justamente para desnaturalizar suas descrições e prescrições, ou seja, é importante explicitar que determinadas “imagens mentais” são construções simplificadas acerca de determinado grupo, e a partir disso, estudar suas consequências, reconhece-los como negativos e discriminatórios, e assim proceder à sua eliminação e/ou remediação. Não é por outro motivo que as autoras afirmam a importância de nomear os estereótipos: “a menos que a estereotipação de gênero lesiva se diagnostique como um mal social, não será possível determina seu tratamento, nem conseguir sua eliminação”[36]3 (COOK; CUSAK, 2010, p. 56).

O Direito, para as autoras, tem um papel importante na nomeação dos estereótipos, na medida em que representa a palavra pública, oficial, universal, que tem o poder de impor seu ponto de vista. Deste modo, pode reconhecer determinada experiência (no caso, os estereótipos) como nociva, e proclamar que faz jus à reparação legal (COOK; CUSAK, 2010, p. 54-55).

O poder do Direito em oficializar determinado ponto de vista ou estereótipo é abordado por Carol Smart (2000), que realiza um mapeamento de teorias feministas sociojurídicas, analisando como interpretaram a relação entre Direito e gênero, para em seguida afirmar o Direito como criador de gênero (SMART, 2000).

Smart explica que a investigação feminista sobre o Direito ocorreu em três fases identificáveis, relacionadas às seguintes frases: “o direito é sexista”, “o direito é masculino” e “o direito tem gênero”. A fase da noção de que “o direito é sexista” consistiu na noção de que o Direito diferencia homens e mulheres, sendo que estas são tratadas de forma desvantajosa, com direito a menos recursos no casamento ou no divórcio, no julgamento por padrões diferentes (por exemplo, relacionados à promiscuidade), entre outros exemplos. O uso da alcunha “sexista” servia justamente para assinalar tais práticas como indesejáveis: para esta perspectiva, o problema consiste na diferenciação, devendo-se buscar eliminar a diferença sexual presente no direito, o que levaria ao fim das discriminações em relação às mulheres.

Tal perspectiva, segundo Smart, é problemática no sentido de que pensar que as mulheres são injustiçadas por serem tratadas diferentemente dos homens frequentemente leva à ideia de que a solução seria trata-las como aos homens, com a consequência de que estes seguiriam sendo a medida pela qual as mulheres deveriam ser julgadas. Insistir nesta ideia levaria à ideia de que a solução então seria “julgar as mulheres de acordo com os estandares das mulheres”, o que não elimina a opressão quando o padrão utilizado é a mulher branca de classe média. Ademais, esta perspectiva ignora que a diferença sexual não se encontra apenas no Direito, mas sim, faz parte da linguagem binária e do significado; para eliminar tal diferenciação, seria necessário pensar em uma cultura sem gênero, o que é um problema muito mais profundo (SMART, Op. Cit., p. 34-36).

A fase “o direito é masculino” advém da observação de que a maioria de operadores do direito são homens, além de que os valores fundantes do Direito, como neutralidade e objetividade, são valores masculinos, apesar de serem ditos universais. Assim, a utilização de critérios “objetivos e neutros” para o julgamento das mulheres ainda assim significaria julgá-las de acordo com valores masculinos (SMART, Op. Cit, p. 36-37). Smart afirma que tais observações são importantes, porém, este enfoque supõe que o direito serve aos interesses de todos os homens, tomados como categoria unitária, o que não necessariamente é verdade, em especial levando-se em conta as intersecções da divisão homem/mulher com outras formas de diferenciação e discriminação, como a divisão por raça, classe social, idade, religião, entre outras (SMART, Op. Cit., p. 37-38).

A partir destas noções, as investigações feministas chegaram à noção de que “o direito tem gênero”, que, ao não presumir inexoravelmente que “qualquer coisa que o direito faça, sempre explora a mulher e favorece o homem”[37] (SMART, Op. Cit., p. 39), é possível analisar como o direito plastifica determinadas versões da diferenciação de gênero, sem partirmos de uma diferenciação própria. O direito é pensado, assim, não como um sistema capaz de impor a neutralidade de gênero, mas sim como uma tecnologia de gênero, que através de seus discursos e práticas cria as diferenças de gênero e as “formas muito específicas de diferenças polarizadas” (SMART, Op. Cit., p. 39-41).

O termo “tecnologia de gênero” é usado por Teresa de Lauretis (1987), que pretende desconstruir a ligação entre gênero (papeis e significações) e diferença sexual (diferenças entre homens e mulheres), ou seja, desconstruir a ideia de que as expressões de gênero seriam existentes a priori nos corpos, frutos das diferenças sexuais, afirmando que são, na verdade, frutos das significações atribuídas a estes corpos[38]5.

Esta autora afirma que o gênero representa uma categoria, dentro da qual os indivíduos são encaixados e considerados pertencentes, e a partir da qual os indivíduos se relacionam com outras categorias. Assim, “gênero representa não um indivíduo e sim uma relação, uma relação social; em outras palavras, representa um indivíduo por meio de uma classe” (LAURETIS, 1987, p. 211). Retomando o conceito “sistema sexo-gênero”, a autora afirma que gênero não é uma condição natural, e sim consiste em significações dadas à relação social entre os sexos biológicos, de forma interligada a fatores econômicos e políticos de determinada sociedade. O “sistema sexo-gênero”, assim, é um sistema “que atribui significado (identidade, valor, prestígio, posição de parentesco, status dentro da hierarquia social etc) a indivíduos dentro da sociedade”. A atribuição de valores, identidades e hierarquias para o que se entende por “masculino” e “feminino”, portanto, é a construção do gênero (LAURETIS, Op. Cit., p. 211-212). Compreendo os “estereótipos de gênero” aos quais se referem Cook e Cusack como elementos de significação que constroem o gênero.

Smart utiliza o conceito de “tecnologia de gênero” para analisar o direito como uma estratégia criadora de gênero. A autora afirma que, partindo-se do pressuposto de que o gênero não é algo existente a priori nos corpos, e sim é construído a partir de significações atribuídas aos corpos, a Mulher advém à existência por meio destas significações, entre as quais ela inclui o discurso jurídico. A partir de leis, regulamentações, criminalização de determinadas condutas e outras estratégias, o Direito tanto constrói vários tipos de mulheres (a criminosa, a prostituta, a infanticida, etc), quanto constrói a Mulher em contraposição ao Homem (SMART, Op. Cit., p. 41-44).

Smart conclui que o reconhecimento do direito como tecnologia criadora de gênero não pode nos silenciar contra isto ou nos fazer abandoná-lo como um lugar de luta. Ela afirma que o direito continua sendo um centro válido para a análise feminista teórico e política, e que, se o direito produz diferenças de gênero e de identidade, estas não são necessariamente monolíticas (SMART, Op. Cit., p. 48-49).

A partir desta noção, Carmen Hein de Campos defende que se pode pensar numa disputa política dentro do direito, buscando a reconstrução dos sujeitos e definições, o que pode ser visto na Lei Maria da Penha: Campos afirma que esta Lei realiza um deslocamento discursivo, excluindo o uso da palavra “vítima”, e reconstruindo a mulher que sofre a violência como em um estado transitório, “em situação de violência”, não definido pela vitimização. Da mesma maneira, a LMP, ao colocar a possibilidade das mulheres também comporem o polo ativo da violência, rompendo a identidade fixa heteronormativa, reconhecendo a existência de mulheres lésbicas (pois pode ocorrer a violência entre mulheres que se encontram ou se encontraram em “relação íntima de afeto”), bem como rompendo a noção de que mulheres são apenas vítimas (CAMPOS, 2011, p. 6). São exemplos, portanto, da LMP sendo utilizada como criadora de gênero em significados distintos dos significados tradicionais, patriarcais e heteronormativos, o que indica a possibilidade de utilização do direito para “abrir fissuras” e desafiar as noções de gênero hegemônicas e discriminatórias existentes no contexto social.

Por outro lado, este processo não se dá sem resistências: Campos afirma que os deslocamentos discursivos promovidos pela LMP são frequentemente contrapostos por interpretações e concepções conformes ao status quo e aos discursos tradicionais (CAMPOS, Op. Cit., p. 6-7). Um exemplo disso pode ser visto no trabalho de conclusão de curso de Flávia Passeri Nascimento, o qual verificou, entre outras conclusões, que na maioria dos acórdãos analisados, os julgadores e julgadoras não aplicavam a Lei Maria da Penha em  casos de mulheres agredidas por mulheres, mesmo quando estas eram suas esposas/namoradas (NASCIMENTO, 2015), negando o descolamento discursivo acima referido, e cristalizando uma identidade heteronormativa atribuída ao gênero.

Assim, é o que se busca analisar no presente trabalho: entender, no recorte realizado (o uso do critério “violência baseada no gênero”), quais significados de gênero estão sendo produzidos pelos entendimentos adotados pelos juízes e juízas. Esta compreensão é relevante para que se dispute e negocie a produção de tais significados e diferenças, procurando produzir significados de não subordinação/inferioridade das mulheres em relação aos homens, que permitam enfrentar a violência doméstica e intrafamiliar contra as mulheres. Em outras palavras, para que se possa “abrir fissuras” no direito.

Para isso, é necessário enfrentar as seguintes questões: qual perspectiva estou adotando a respeito da violência doméstica e intrafamiliar contra as mulheres – ou seja, quais “fissuras” procuro abrir? E para fazê-lo, qual metodologia de julgamento “com perspectiva de gênero” poderia produzir tais significados de gênero de não subordinação/inferioridade? Tais questão são abordadas na próxima seção.

3.      Julgamento com Perspectiva de Gênero

No meu trabalho de conclusão de curso (MOYSES, 2015), utilizei um texto de Cecília MacDowell Santos e Wânia Pasinato Izumino, que identificam três principais correntes de perspectivas feministas sobre a questão da violência doméstica e intrafamiliar contra as mulheres. A primeira corrente enxergaria esta violência como expressão da dominação masculina, que seria hegemônica e destituiria totalmente as mulheres de autonomia; estas seriam, portanto, “cúmplices” da violência que sofrem, na medida em que, sem autonomia, meramente reproduzem a estrutura de gênero, sendo instrumentos para a perpetuação da dominação masculina (SANTOS; IZUMINO, In. MOYSES, Op. Cit., p. 31).

A segunda corrente seria a perspectiva marxista-feminista, que vincula a exploração patriarcal com a capitalista e a racista (Saffioti, expoente desta corrente, fala em um sistema tríplice capitalista-racista-machista), na qual o masculino é privilegiado e socializado para dominar, e as relações afetivas são estruturadas dentro deste paradigma (homens dominam, mulheres se submetem). Segundo as autoras, Saffioti não enxerga as mulheres como cúmplices ou despidas de autonomia, afirmando que elas não consentem com a violência, mas que na organização social, não tem poder suficiente para consentir (SANTOS; IZUMINO, In. MOYSES, Op. Cit., p. 31-32).

A terceira corrente, por fim, relativiza a ideia de dominação masculina: Maria Filomena Gregori afirma que não via as mulheres em situação de violência como “simplesmente dominadas pelos homens”, criticando a pressuposição de que homens sempre seriam algozes e mulheres sempre seriam vítimas. Santos e Izumino concordam ser necessária esta relativização da alocação das mulheres como “meras vítimas”, até para ressaltar suas ações de resistência e de postura ativa, inclusive para conduzir suas ações em processos, buscando determinados resultados (a condenação ou absolvição do agressor, por exemplo). Porém, ressaltam que a análise desta terceira corrente deixa de analisar a relação de poder, inserida em um determinado contexto social, em que ocorre a violência, negligenciando o contexto de discriminação sofrido pelas mulheres (SANTOS; IZUMINO, In. MOYSES, Op. Cit., p; 32-33).

A perspectiva que adotei à época, e que adoto neste trabalho, é a perspectiva de Heleieth Saffioti, para quem a organização social se estrutura em uma simbiose patriarcado- racismo-capitalismo, organizando os membros da sociedade de modo a conferir mais ou menos poder aos indivíduos conforme se encaixem nestas categorias, e determinando uma relação de dominação-exploração entre as diferentes categorias. As mulheres, então, encontram-se em uma posição de subalternização em relação aos homens, estando as mulheres negras e pobres em uma maior condição de subalternização (SAFFIOTI, 1987, p. 60-67).

Assim, em tese, seria necessário que, no enfrentamento da violência doméstica e intrafamiliar contra as mulheres, fossem disputados os significados produzidos, de modo a produzir significados que levem em conta não apenas subordinação das mulheres aos homens, mas também às subordinações das mulheres entre si, por motivos de raça, classe, sexualidade, identidade de gênero, entre outras características. Em outras palavras, é preciso buscar que se produzam significados que não levem à subordinação das mulheres.

A questão a ser enfrentada é como, nos casos de violência doméstica e intrafamiliar contra as mulheres, produzir significados que levem em conta a estrutura de subordinação de gênero que faz com que as mulheres sofram, com uma frequência assustadora, violência de pessoas que conosco convivem, se aparentam, ou se relacionam intimamente, ao mesmo tempo em que não produzem significados essencializantes, no sentido de serem as mulheres eternas vítimas, sem autonomia.

Esta questão foi nomeada como “o dilema da diferença” por Martha Minow, citada por Fabiana Severi (2016), a partir de perguntas como: “como seria possível garantir um tratamento especial para as mulheres sem cairmos em novas dicotomias, hierarquias ou essencialismos e, assim, reproduzirmos os efeitos negativos da diferença?” (MINOW, In. SEVERI, 2016, p. 586).

Severi explica que, para Minow, o dilema da diferença se baseia em três falsos pressupostos: a ideia de que a diferença é intrínseca aos sujeitos (quando na verdade ela é relacional, ou seja, produzida em relação a um referencial tido como normal), o uso de normas referenciais não declaradas (ou seja, não se explicita o que se considera “normal”), e a ideia de imparcialidade (na qual o julgador ou julgadora desconsidera qualquer perspectiva que não seja a sua, pois somente a sua seria imparcial) (SEVERI, Op. Cit., p. 580-590).

A autora explica que, para Minow, é possível enfrentar o “dilema da diferença” a partir da análise de cada caso concreto, buscando-se compreender se o tratamento diferente para aquele determinado grupo tem efeitos remediadores da desigualdade, ou se os estigmatiza e promove ainda mais diferenças. Para isso, é preciso considerar o ponto de vista daquele determinado grupo (sem, contudo toma-lo como verdade absoluta ou negar a pluralidade de pontos de vista dentro de um mesmo grupo), e evitar a falsa imparcialidade (SEVERI, Op. Cit., p. 591-592). Severi destaca alguns exercícios propostos por Minow:

desafiar qualquer atribuição pré-definida da “diferença”; duvidar de palavras, categorias e conceitos que damos como certos no cotidiano das práticas decisórias e olhar para as consequências do uso de tais palavras, categorias e conceitos; prestar atenção às perspectivas concorrentes em um determinado problema, àquilo que comumente “desistimos” ou deixamos de lado e àquilo que comumente “abraçamos” nos processos decisórios; contestar a associação comum entre diferença e inferioridade; avaliar não a diferença, mas o tratamento comumente dado a ela; considerar os indivíduos ou grupos envolvidos na situação em questão em meio aos arranjos sociais que fazem com que as características em questão para a construção das diferenças pareçam se importar. (SEVERI, Op. Cit., p. 592).

Severi também se refere ao trabalho de Alda Facio, que propõe uma metodologia para análise do direito com perspectiva de gênero. Esta autora, que parte do pressuposto de que as mulheres estão socialmente subordinadas aos homens, propõe seis passos para esta análise: em primeiro lugar, (1) cada pessoa deve tomar consciência da subordinação das mulheres de acordo com sua experiência pessoal. Depois disso, deve identificar no texto legal: (2) as várias formas em que se manifesta o sexismo, (3) quais as mulheres presentes ou invisibilizadas, (4) em quais estereótipos o texto se baseia. Por fim, deve (5) analisar o impacto que aquele texto tem na vida das mulheres, e (6) ampliar e coletivizar a consciência do que é o sexismo (SEVERI, Op. Cit, p. 593-595).

Em outras palavras, e tentando utilizar os conceitos propostos por estas duas autoras, uma análise do direito com perspectiva de gênero deve, com base num entendimento anterior sobre o sexismo e a estrutura de desigualdade de gênero, analisar o texto (ou a decisão judicial), procurando ver que significações são atribuídas às mulheres ali representadas (ou invisibilizadas), se estas são consequentes de uma estrutura de desigualdade e subordinação, e, se houver um tratamento desigual a um grupo, se traz como consequência o aprofundamento da desigualdade ou um remédio para ela. É o que tentarei realizar na análise dos julgados selecionados.

4.   Análise dos Julgados

  • Formação da Amostra

Para a seleção de julgados para a análise, realizou-se uma pesquisa no site do Tribunal de Justiça de São Paulo, com as palavras chave: “violência doméstica” E gênero. Limitou-se a análise aos acórdãos julgados entre 01/11/2017 a 30/11/2017, e publicados até 05/12/2017, para garantir um baixo número de acórdãos, possibilitando uma análise mais detida. Foram encontrados 38 acórdãos que correspondiam a esta pesquisa.

Os dados destes acórdãos foram numerados e tabulados em categorias como: número do processo, data do julgamento, órgão julgador, classe e assunto (informações extraídas do próprio site). Tais informações constam no Anexo 1 – Tabela 1. Com isso, foram descartados 6 acórdãos, cujos assuntos eram “roubo majorado” (5) e “roubo triplamente majorado” (1), pois não tratavam de violência doméstica. Em seguida, foi verificada a frequência com que aparecia a palavra “gênero” nos acórdãos restantes, seu tipo de uso, e os respectivos trechos. Desta leitura, foram excluídos mais 3 acórdãos, em que a palavra “gênero” era utilizada como sinônimo de “tipo”. Dos 29 acórdãos restantes, 25 aplicaram a Lei Maria da Penha, e 4 a afastaram.

O método utilizado para a análise das decisões foi o método da análise de conteúdo, conforme explicado por Bardin (1977). A partir da leitura dos trechos em que aparecia a palavra “gênero”, foram analisados os argumentos utilizados para a aplicação ou afastamento da LMP no tocante do objeto deste trabalho, ou seja, qual critério utilizado pelos juízes e juízas para entender uma violência como “ação ou omissão baseada no gênero”.

4.2.         Resultados

4.2.1 Aplicação da Lei Maria da Penha – sem análise do critério “violência baseada no gênero”

Dos 25 acórdãos que aplicaram a Lei Maria da Penha, em 3 deles[39] a existência de violência doméstica já era um pressuposto aceito das instâncias inferiores, de modo que não discutiram o que faria aplicar a LMP à violência em questão. Já em 18 deles[40]7, a LMP foi aplicada, a partir dos critérios da vítima ser uma mulher, e de ter uma relação doméstica, íntima de afeto ou intrafamiliar com o agressor ou agressora; nestes acórdãos, a existência destes dois critérios era o suficiente para o juiz ou a juíza entender a violência em questão como a violência prevista pela LMP, sem que eles procurassem argumentar se se tratava de violência “baseada no gênero” ou não. Em diversos destes acórdãos, a descrição da conduta do agressor ou agressora afirmava que este ou esta havia cometido a violência “prevalecendo- se das relações domésticas”, sem que, contudo, o significado de tal expressão fosse explicada. Parece ser uma tautologia à violência se dar em âmbito doméstico, mas não foi possível concluir com certeza.

Em alguns destes, estes critérios fazem presumir uma relação de vulnerabilidade entre a mulher e seu agressor ou agressora: o acórdão n° 13 afirma que a relação de parentesco e convívio entre agressor e vítima, bem como o histórico de agressões passadas, permitiria “presumir de vulnerabilidade decorrente de vínculo doméstico descrito no artigo 5º da Lei n° 11.340/06”, ao passo que os acórdãos n° 8 e 10 utilizam o fato (já pressuposto por eles) de se tratar de violência de gênero pressupõe uma vulnerabilidade que faz com que seja necessário dar mais peso à palavra da mulher.

4.1.2 Aplicação da Lei Maria da Penha – com análise do critério “violência baseada no gênero”

Nos 4 acórdãos restantes em que houve a aplicação da LMP[41], os juízes e juízas sentiram a necessidade de explicar o porquê de se enquadrar a violência em questão no escopo da LMP. Nestes três, ficou bastante clara a associação da violência doméstica e intrafamiliar contra a mulher e uma concepção de vulnerabilidade e fragilidade associada à própria condição feminina, de modo até essencializante. Isto se percebe, por exemplo, no acórdão n° 2, em que a mulher em situação de violência era uma senhora idosa, e o agressor foi seu filho:

Ainda que não se possa invadir o âmago do agente, para dele extrair seu intuito e sentimentos em relação à vítima, no caso, os indícios bem apontam a ocorrência de violência de gênero, pois como referido na denúncia (fls. 135), os parentes das partes envolvidas deram conta que a idosa, além de abandonada pelo filho, era vítima de maus tratos por ele perpetrados, condição que relega, sem dúvida razoável, que os fatos têm fundamento na fragilidade da condição de mulher e idosa da vítima (grifei).

Neste trecho, percebe-se que o julgado aborda a violência de gênero como sendo lastreada em uma motivação específica e consciente do agressor, uma vez que se refere ao âmago do agente (“seu intuito e sentimentos em relação à vítima”) como algo que poderia motivar a violência de gênero. Contudo, a intenção do agente não é levada como único indício de violência de gênero: o julgado também se refere a uma fragilidade decorrente das condições de ser mulher e de ser idosa.

O julgado n° 5, por sua vez, afirma que a violência de gênero necessariamente está atrelada a uma relação de subordinação e de vulnerabilidade, a qual foi verificada a partir da oposição de forças entre o agressor e a mulher em situação de violência:

É cediço que, para se aferir a competência da Vara Especializada de Violência Doméstica e Familiar contra Mulher, necessário verificar além da conduta baseada no gênero (relação de subordinação ou de vulnerabilidade), a ocorrência da violência em âmbito familiar (…). Nesse contexto, verifica-se que as condutas narradas na queixa-crime se amoldam ao artigo 5º da lei nº 11.340/06, pois perpetradas no âmbito da família, em evidente oposição de forças, relacionada ao gênero das partes. (grifei)

De acordo com o último trecho grifado, a oposição de forças entre agressor e vítima foi expressamente considerada como relacionada ao gênero de cada um. O julgado produziu, portanto, a noção de mulher essencialmente frágil e homem essencialmente forte.

Por fim, o julgado n° 11 nega a ideia de que seria necessário demonstrar a vulnerabilidade da mulher em situação de violência em relação ao agressor, pois as mulheres sempre estariam nesta condição:

A Lei Maria da Penha instituiu proteção especial à mulher em razão do gênero, justamente por ser ela o elo mais frágil do relacionamento, sujeita há tempos a todo o tipo de abuso por parte do homem, consagrando o pacífico entendimento de que o princípio da igualdade exige que se tratem igualmente os iguais e, desigualmente, os desiguais. A dominação do gênero feminino pelo masculino é fato antigo e corriqueiro, baseado nas relações sociais patriarcais que, desde sempre, desandam no emprego de violência física ou psíquica, de forma que absolutamente despicienda eventual demonstração da vulnerabilidade da mulher perante o homem (…). Nessa ordem de idéia, impondo ter em mente o amplo reconhecimento do fato que, uma vez marcadas, em uma sociedade machista e patriarcal como a nossa, as relações de gênero, pelo desequilíbrio de poder, a concretização do princípio isonômico (art. 5º., I, da Lei Maior), nessa esfera relações de gênero reclama a adoção de ações e instrumentos afirmativos, voltados, exatamente, à neutralização da situação de desequilíbrio. (…)”. (trecho do  voto da Min. Rosa Weber). (grifei)

Neste julgado, vê-se um esforço de se compreender a violência como resultado de relações sociais patriarcais marcadas pelo desequilíbrio de poder, que têm origem “antiga” (“[mulher] sujeita há tempos a todo tipo de abuso por parte do homem”) e marcam a organização social atual (“em uma sociedade machista e patriarcal como a nossa”). Vê-se o enfrentamento do dilema da diferença com a afirmação da necessidade da adoção de um tratamento especial para as mulheres (“ações e instrumentos afirmativos”) para reequilibrar uma situação de desigualdade.

4.1.3 Afastamento da Lei Maria da Penha – com análise do critério “violência baseada no gênero”

Dos 4 acórdãos que afastaram a Lei Maria da Penha, todos eles buscaram desconstruir a violência ocorrida como violência doméstica, com base na ideia de que a violência em questão não teria sido cometida por “motivo de gênero”.

O julgado n° 4 confirma a sentença recorrida e repete seus fundamentos, afirmando não ser possível afirmar que a violência se deu por questão de gênero:

[trecho da sentença recorrida]: “…em que pesem os argumentos da acusação e a despeito da gravidade dos fatos, a questão apresentada em juízo não se enquadra no conceito de violência doméstica e familiar contra a mulher nos termos do artigo 5° da Lei 11.340/06. E isto porque para que haja a subsunção do fato concreto à legislação específica, não basta que a conduta retratada nos autos simplesmente envolva a vítima do sexo feminino, mas sim, é preciso que os fatos ocorram em face da mulher, em um determinado ambiente e com a finalidade de retirar-lhe direitos aproveitando-se da sua hipossuficiência. No entanto, verte-se dos autos que o réu e as vítimas não residiam no mesmo local e nem tampouco eram parentes ou se consideravam ‘aparentados’, tal como alegou o Ministério Público (…). E como se os elementos acima não fossem suficientes para o afastamento da competência deste Juízo para processar e julgar o feito, não há qualquer elemento nos autos que demonstre a existência de uma relação verticalizada de poderes entre o réu e as vítimas ou mesmo que as condutas tiveram como nexo causal as diferenças de gênero…” (grifei)

Neste trecho, percebe-se que, apesar do fato de que o agressor e as vítimas não terem relação intrafamiliar ou doméstica, a ausência de “motivação de gênero” também foi usada como critério para afastamento da LMP. Percebe-se neste trecho o entendimento da violência de gênero como imbuída de uma motivação consciente do agressor em retirar direitos da mulher “aproveitando-se da sua hipossuficiência”, e que a agressão não teria por motivação as diferenças de gênero. Ainda, afirma-se não haver uma “relação verticalizada de poderes entre o réu e as vítimas”.

O entendimento da violência de gênero como derivada de uma motivação consciente do agressor aparece também no acórdão n° 14, em que se afirma que a conduta do autor teve por motivo a vingança, o que afastaria a LMP:

Isso porque o Ministério Público denunciou […] por ter matado […] por vingança,  em razão de ter sido por ela chamado de estuprador. O mero fato de matar mulher com quem tinha relacionamento não se subsume ao art. 5º, “caput”, da Lei n. 11.340/06 (grifei)

Neste acórdão, muito embora o agressor e a vítima tivessem relação íntima de afeto, a Lei Maria da Penha foi afastada porque o motivo do agressor foi vingar-se, e não especificamente causar-lhe mal por ser uma mulher.

Também no acórdão n° 18, afirma-se que o motivo da agressão do irmão em relação às irmãs era de caráter patrimonial, o que afastaria a LMP:

Entretanto, como bem colocado pelo Ministério Público, não se verifica a violência doméstica prevista na Lei nº11.340/06. “O investigado negou os fatos. Em petições juntadas nos autos principais e apensos, alegou que divergências entre ele e as irmãs decorria de desentendimento patrimonial familiar e negocial, de forma a não se verificar a violência domésticas prevista na Lei nº11.340/06. Sua  alegação está amparada por diversos documentos; por outro lado, as vítimas não especificaram o motivo pelo qual o acusado agira de forma ameaçadora e agressiva, de forma que ganha sustentação a versão do acusado a respeito da motivação. Neste ponto, portanto, verifica-se que os fatos atribuídos não se sustentam na divergência de gênero, nem na subjugação doméstica, mas sim em interesses financeiros e patrimoniais, de forma que deve ser afastada a incidência da lei nº11.343/06 (grifei)

Por fim, o acórdão n° 27 afasta a LMP pelo fato de a agressora e a mulher em situação de violência serem cunhadas:

Na espécie, não me parece razoável a conclusão acerca da vulnerabilidade ou da hipossuficiência da vítima em relação à agressora baseada no gênero, tratando-se agressões ocorridas entre familiares ligados pelo vínculo do cunhadío, relação que não guarda as características da “violência doméstica” exigidas pela lei especial, pelo que não se cogita da incidência da Lei Maria da Penha (grifei)

Neste julgado, fica clara a ideia de que, para aplicação da LMP, deve haver condição de vulnerabilidade ou hipossuficiência da vítima em relação ao agressor ou agressora. No caso, o único critério para o julgador afirmar não existir esta condição é o tipo de relação entre a mulher e sua agressora (cunhadas). Produziu-se, assim, o significado de que relações entre cunhadas nunca serão marcadas por vulnerabilidade ou hipossuficiência, invisibilizando mulheres que porventura estejam em situações de violência com suas cunhadas.

5.   Conclusão

A partir dos julgados selecionados, é possível tecer algumas conclusões acerca do tema. Em primeiro lugar, percebe-se que na maioria dos julgados analisados, não foi realizada a discussão explícita sobre o que seria a violência baseada no gênero. A grande maioria dos julgados que aplicavam a Lei Maria da Penha à violência em questão, pareciam se satisfazer com o fato de a pessoa agredida ser uma mulher, e de esta ter uma relação doméstica, inframiliar, ou íntima de afeto com a pessoa agressora. A existência destes dois requisitos, por vezes com a adição do não explicado “prevalecendo-se de relações domésticas”, parece ter sido o suficiente para convencer os julgadores e julgadoras da existência de uma “ação ou omissão baseada no gênero”. Pelo pequeno número de julgados analisados, não pude concluir nada a respeito dos raciocínios utilizados pelos julgadores e julgadoras.

Nos julgados em que há a discussão sobre o que torna ou não determinada violência uma violência baseada no gênero, apareceu a caracterização da violência como um intuito consciente, em que o agressor ou agressora quer se aproveitar da condição de vulnerabilidade da mulher para agredi-la, ou quer agredi-la especificamente por ser mulher, devendo esta intenção estar explícita. Este intuito foi considerado essencial para a caracterização de violência baseada no gênero em três acórdãos (n° 4, 14 e 18), e considerado um dos elementos para caracterização desta violência em um acórdão (n°2).

Estas perspectivas não levam em conta a estrutura social de subordinação das mulheres da qual deriva a violência contra elas, colocando foco nos indivíduos dentro de uma relação individual de violência e exigindo a demonstração de um intuito consciente e explícito. Retomando os conceitos de Cook e Cusack, se partirmos do pressuposto que significamos o mundo e desenvolvemos nossa identidade a partir de “imagens mentais” das quais não nos damos conta de produzir, exigir a demonstração de uma violência conscientemente e explicitamente baseada na ideia de subordinação de gênero é tarefa quase impossível. Utilizando a metodologia de Facio, percebo que exigência de tal critério invisibiliza todas as mulheres em situação de violência cujo agressor deixar de clamar que a está agredindo especificamente por ser mulher – o que significa invisibilizar quase (se não) todas as mulheres em situação de violência, inviabilizando a aplicação da Lei Maria da Penha, e por consequência, o próprio combate à violência doméstica e intrafamiliar contra as mulheres.

Semelhante a esta perspectiva, apareceu a ideia de que é necessária a existência da vulnerabilidade da mulher em relação ao agressor ou agressora (acórdãos n° 2, 5 e 27). Esta ideia também foca nos indivíduos, ignorando a existência de uma estrutura social de subordinação. No acórdão n° 2, a vulnerabilidade da mulher em situação de violência em relação ao agressor foi afirmada diante não apenas dos maus tratos que sofria, mas também “da fragilidade da condição de mulher e idosa da vítima”. Já no acórdão n° 5, foi considerado que a oposição de forças entre os gêneros determinada essa vulnerabilidade, produzindo-se a noção de mulher essencialmente frágil e homem essencialmente forte. Em ambos os acórdãos (embora com mais força no n° 5), foi adotada uma perspectiva de fragilidade inerente à condição feminina que, embora possa ter sido positiva nos casos concretos, também reproduz a ideia de que mulheres são essencialmente frágeis e mereceriam um tratamento diferenciado por conta desta fragilidade. O dilema da diferença, portanto, neste caso teve por resultado a cristalização de um estereótipo de gênero.

No acórdão n° 27, por sua vez, considerou-se que o tipo de relação entre a mulher em situação de violência e sua agressora (cunhadas), por si mesmo, já demonstrava não haver vulnerabilidade ou hipossuficiência entre elas, significando que a violência ocorrida não seria “violência doméstica”. Com tal significação, foram invisibilizadas mulheres que porventura estejam em situações de violência com suas cunhadas.

Por fim, no julgado n° 11, apareceu a ideia de que as mulheres estão vulneráveis dentro de uma relação doméstica, intrafamiliar ou de afeto devido à estrutura de assimetria de poder que gera esta violência e a subordinação feminina. Há o reconhecimento explícito da assimetria de poder entre homens e mulheres, e da necessidade de adoção de medidas desiguais justamente para equilibrar essa assimetria de poder. Pude verificar neste julgado o enfrentamento do “dilema da diferença”, adotando-se o ponto de vista remediador da desigualdade.

Pude concluir, portanto, que quando houve a discussão acerca do que seria “violência baseada no gênero”, a maioria dos julgados definiu a violência doméstica como resultado de um agressor especificamente intencionado ou uma mulher especificamente vulnerável. Houve também a produção de que as mulheres seriam intrinsecamente frágeis e vulneráveis, e apenas um acórdão enfrentou a questão de modo a contemplar a pré-existência de uma estrutura de desigualdade e a necessidade de adotar medidas para remediá-la. Percebi, então, que nestes julgados, a engenharia de gênero do direito serviu para construir definições de gênero conformes ao contexto de assimetria de poder que levou à violência em primeiro lugar, reforçando-a.

É claro, pelo pequeno número de julgados em que houve a possibilidade de realizar esta análise, e também pelo pequeno número total de julgados analisados, não se pretende expandir esta conclusão como representativa do comportamento judiciário em geral. Esta foi uma primeira tentativa de análise, com base nos pressupostos teóricos expostos, que, espero, poderá servir de subsídios para incursões mais profundas sobre o tema.

 Referências

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<http://www.cnj.jus.br/images/programas/lei-maria-da-penha/cartilha_maria_da_penha.pdf > Acesso em 17 fev. 2014.

CAMPOS, Carmen Hein de. Razão e Sensibilidade: Teoria Feminista do Direito e Lei Maria da Penha. In: CAMPOS, Carmen Hein de (org). Lei Maria da Penha comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Rio de janeiro: Editora Lumen Juris, 2011, p. 1-12.

                                                . Disposições preliminares – artigos 1º, 2º, 3º e 4º. In: CAMPOS, Carmen Hein de (org). Lei Maria da Penha comentada em uma perspectiva jurídico- feminista. Rio de janeiro: Editora Lumen Juris, 2011, p. 173-184.

CIDH, Convenção Interamericana para Prevenir, punir e Erradicar a Violência contra a Mulher. Disponível em: <http://www.cidh.org/Basicos/Portugues/m.Belem.do.Para.htm> Acesso em 02 out. 2015.

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ANEXO 1 – Tabela 1

  

Tabela 1
(fonte: autora)
Número do Processo Data Julgamento Órgão Julgador Classe Assunto Aplicou a LMP
1 0014592-

59.2017.8.26.0000

27/11/2017 Câmara Especial Conflito de jurisdição Decorrente de violência doméstica Sim
2 0031905-

33.2017.8.26.0000

27/11/2017 Câmara Especial Conflito de jurisdição Crimes Previstos no Estatuto do Idoso Sim
3 0018043-

92.2017.8.26.0000

27/11/2017 Câmara Especial Conflito de jurisdição Violência Doméstica contra a Mulher Sim
4 0071813-

54.2011.8.26.0050

28/11/2017 4ª Câmara de Direito Criminal Recurso em sentido estrito Decorrente de violência doméstica Não
5 0029960-

11.2017.8.26.0000

27/11/2017 Câmara Especial Conflito de jurisdição Difamação Sim
6 0114071-

45.2012.8.26.0050

29/11/2017 4ª Câmara Criminal Extraordinária Apelação Decorrente de violência doméstica Sim
7 0002531-

65.2014.8.26.0197

09/11/2017 6ª Câmara de Direito Criminal Apelação Decorrente de violência doméstica Sim
8 3001713-

73.2013.8.26.0431

14/11/2017 3ª Câmara de Direito Criminal Apelação Ameaça Sim
9 2184392-

51.2017.8.26.0000

14/11/2017 4ª Câmara de Direito Criminal Habeas Corpus Ameaça Sim
10 0007733-

18.2014.8.26.0037

01/11/2017 7ª Câmara de Direito Criminal Apelação Contravenções penais Sim
11 0002020-

35.2015.8.26.0358

09/11/2017 13ª Câmara de Direito Criminal Apelação Decorrente de violência doméstica Sim
12 0018423-

08.2014.8.26.0005

09/11/2017 8ª Câmara de Direito Criminal Apelação Ameaça Sim
13 0000547-

26.2017.8.26.0590

23/11/2017 9ª Câmara de Direito Criminal Recurso em sentido estrito Decorrente de violência doméstica Sim
14 0012832-

78.2016.8.26.0269

01/11/2017 7ª Câmara de Direito Criminal Recurso em sentido estrito Homicídio qualificado (feminicídio) Não
 

 

15

 

 

0000547-

09.2016.8.26.0219

 

 

28/11/2017

 

 

3ª Câmara de Direito Criminal

 

 

Apelação

 

 

Decorrente de violência doméstica

 

 

Sim

16 0034474-

18.2013.8.26.0462

22/11/2017 12ª Câmara de Direito Criminal Apelação Decorrente de violência doméstica Sim
17 0005829-

55.2014.8.26.0168

01/11/2017 7ª Câmara de Direito Criminal Apelação Ameaça Sim
18 0003709-

31.2014.8.26.0300

29/11/2017 12ª Câmara de Direito Criminal Recurso em sentido estrito Decorrente de violência doméstica Não
19 3001901-

79.2013.8.26.0653

22/11/2017 7ª Câmara de Direito Criminal Apelação Ameaça Sim
20 0004366-

23.2014.8.26.0445

30/11/2017 6ª Câmara de Direito Criminal Apelação Decorrente de violência doméstica Sim
21 0000388-

27.2015.8.26.0599

14/11/2017 16ª Câmara de Direito Criminal Apelação Decorrente de violência doméstica Sim
22 0006053-

29.2015.8.26.0565

23/11/2017 6ª Câmara de Direito Criminal Apelação Ameaça Sim
23 0014502-

06.2015.8.26.0361

09/11/2017 14ª Câmara de Direito Criminal Apelação Sequestro e cárcere privado Sim
24 0001221-

78.2015.8.26.0006

13/11/2017 2ª Câmara de Direito Criminal Apelação Decorrente de violência doméstica Sim
25 3007778-

96.2013.8.26.0136

22/11/2017 7ª Câmara de Direito Criminal Apelação Decorrente de violência doméstica Prejudicado
26 0001918-

09.2016.8.26.0542

28/11/2017 16ª Câmara de Direito Criminal Recurso em sentido estrito Homicídio qualificado (feminicídio) Sim
27 0001197-

52.2015.8.26.0070

30/11/2017 15ª Câmara de Direito Criminal Apelação Decorrente de violência doméstica Não
28 0015930-

41.2015.8.26.0161

29/11/2017 7ª Câmara de Direito Criminal Apelação Ameaça Prejudicado
29 0007566-

87.2014.8.26.0073

01/11/2017 7ª Câmara de Direito Criminal Apelação Contravenções penais Sim
30 0000417-

81.2016.8.26.0263

14/11/2017 3ª Câmara de Direito Criminal Apelação Decorrente de violência doméstica Prejudicado
31 0002881-

88.2014.8.26.0347

14/11/2017 16ª Câmara de Direito Criminal Apelação Decorrente de violência doméstica Sim
32 0020416-

67.2016.8.26.0506

27/11/2017 2ª Câmara de Direito Criminal Recurso em sentido estrito Homicídio qualificado (feminicídio) Sim
33 0002786-

47.2010.8.26.0590

14/11/2017 3ª Câmara de Direito Criminal Embargos de declaração Roubo Majorado Prejudicado
34 0003517-

45.2012.8.26.0114

14/11/2017 3ª Câmara de Direito Criminal Apelação Roubo Majorado Prejudicado
35 0063319-

98.2014.8.26.0050

14/11/2017 3ª Câmara de Direito Criminal Apelação Roubo Majorado Prejudicado
36 0011728-

49.2012.8.26.0606

14/11/2017 3ª Câmara de Direito Criminal Apelação Roubo Majorado Prejudicado
37 3032701-

19.2013.8.26.0224

14/11/2017 3ª Câmara de Direito Criminal Apelação Roubo Majorado Prejudicado
38 0029654-

62.2006.8.26.0506

14/11/2017 3ª Câmara de Direito Criminal Apelação Roubo triplamente majorado Prejudicado

NOTAS:

[1] Trabalho apresentado ao Espaço de Discussão 5 – Gênero, sexualidade e direitos, do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[2] Graduado em direito pela UNEB.

[3] Mestre e especialista em direito pela UFPE, graduada em direito pela UNICAP, professora da UNEB e da UNIFG

[4] Vale ressaltar que a linha de pesquisa, dentro da temática central do grupo, a qual pertencem os autores deste artigo é em Direito e Sexualidade, bem como se pode evocar a localidade do referido grupo, que sedia suas reuniões em Brumado, no Campus XX- DCHT da UNEB (Universidade do Estado da Bahia).

[5] Ao longo desse periódico será explicado esse termo, que, em sua essência abrange vários sentidos e vários conceitos

[6] A exemplo podemos citar o Diadorim, núcleo de gênero e sexualidade da UNEB. “Esse grupo de pesquisadores atua no campo de estudos sobre “Corpo, Gênero e Sexualidade”, com especial atenção para os estudos sobre homossexualidade e teoria queer. (vide site)

[7] “No geral, o suicídio é a terceira principal causa de morte entre os jovens de 15 a 24 anos, e os jovens LGB tentam o suicídio a taxas significativamente mais altas do que os heterossexuais. Poucos estudos, no entanto, examinaram se o ambiente social de um jovem contribui para a probabilidade de ele tentar o suicídio”.

[8] Este é o artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, elaborada por representantes de diferentes origens jurídicas e culturais de todas as regiões do mundo, em assembleia na ONU em 1948.

[9] Vale se ressalvar, a título de informação, que ADI significa Ação Direta de Inconstitucionalidade, tendo ela por finalidade declarar que uma lei ou parte dela é inconstitucional, ou seja, contraria a Constituição Federal.

[10] Trabalho apresentado ao Espaço de Discussão 5 – Gênero, sexualidade e direitosdo 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[11] Mestranda no Programa de Estudos Pós-Graduandos de Política Social – UFF.

[12] Trabalho apresentado ao Espaço de Discussão 5: Gênero, sexualidade e direitos do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[13] Doutoranda na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto; Mestra pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto; Advogada, formada pela Universidade Estadual de Londrina; [email protected].

[14] Professora Associada e Pesquisadora Sênior na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto/USP.

[15] Professora Doutora no Departamento de Ciências da Saúde da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto/USP.

[16] Professora Associada na Faculdade de Direito de Ribeirão Preto/USP.

[17] Graduado pela Universidade Federal da Bahia, mestre em Direitos Humanos pela Universidade de Brasília e doutorando pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. É membro dos grupos de pesquisa “O Direito Achado na Rua” e “Direito e Cinema” e da Associação dos Advogados dos Trabalhadores Rurais da Bahia.

[18] Quando me refiro à população trans, faço constar o grupo social formado por pessoas transexuais, travestis e transgêneros.

[19] “Achile Mbembe: ‘A era do humanismo está terminando’”. Disponível em http://www.ihu.unisinos.br/564255-achille-mbembe-a-era-do-humanismo-esta-terminando%3E. Acesso em 30 de dezembro de 2017.

[20] A cisgeneridade, segundo nos indica Viviane Vergueiro, é uma categoria proposta com vistas a “produzir uma leitura crítica sobre a construção normativa das identidades de gênero corporificadas como algo a ser derivado (através de distintos dispositivos de poder) de um cistema ‘sexo/gênero’ que tem sua normalidade produzida através da naturalização da pré-discursividade, binariedade e permanência para os corpos e identidades de gênero” (VERGUEIRO, 2016, p. 45).  Em outra passagem de seu trabalho, aponta Vergueiro que “a cisnormatividade, ou normatividade cisgênera – que exerce, através de variados dispositivos de poder interseccionalmente situados, efeitos colonizatórios sobre corpos, existências, vivências, identidades e identificações de gênero que, de diversas formas e em diferentes graus, não estejam em conformidade com seus preceitos normativos” (VERGUEIRO, 2016, p. 43).

[21] Sendo esse homem: branco, cisgênero, heterossexual, cristão, proprietário, chefe de família etc.

[22] Referência aos campos da psiquiatria, psicologia e psicanálise.

[23] Herrera alerta que “as pessoas e grupos terão uma visão diferente dos direitos humanos em função de suas posições. Por ‘posição’ entendemos o lugar material que ocupamos nos processos de divisão social, sexual, étnica e territorial do fazer humano. Tal posição – que pode ser subordinada ou privilegiada por tais processos de divisão do fazer humano – determinará a forma a partir da qual acessamos aos bens necessários para viver com dignidade” (HERRERA FLORES, 2009, p.130).

[24] Sobre o conceito de disposição, Herrera afirmava: Com esse elemento queremos indicar o “conjunto de atitudes sociais (sejam individuais ou coletivas) sob o qual se toma consciência da posição que se ocupa nos processos materiais (processos produtivos do valor social) nos quais estamos inseridos”. Essa “tomada de consciência” nos permitirá, como veremos mais adiante, adotar uma postura emancipadora ou conservadora de prática social. Se “somos conscientes” de que somos explorados ou excluídos dos benefícios sociais que produzimos com nosso trabalho cotidiano, poderemos aceitar e assumir passivamente a situação que vivemos ou resistir a ela e nos esforçar para colocar em prática propostas alternativas (HERRERA FLORES, 2009, p.132).

[25] Formulada nesses termos, penso que essa investigação atinge os objetivos apresentados por Herrera quando em síntese afirmava: “Já comentamos que uma metodologia relacional não implica necessariamente entender o objeto sob “todas” suas relações ou conexões. Mas sim saber escolher que relações ou conexões queremos elucidar de um fenômeno, sem nos esquecer de sua integração na totalidade do real. Do mesmo modo, sabemos que, aceitar uma posição relativista não supõe afirmar a igual validade de todos os pontos de vista, mas sim a importância do contexto e das experiências discrepantes. Partindo dessas duas advertências metodológicas, nosso diamante pode ser usado para o ensino e a prática dos direitos de diferentes modos: 1) escolhendo relações concretas entre diferentes elementos (por exemplo, ideias, valores, práticas sociais); 2) estudando camadas inteiras (a posição, a disposição, a narração e a historicidade de um determinado direito ou prática social); 3) entrecruzando diferentes camadas do diamante (por exemplo, as relações entre determinadas políticas de desenvolvimento dos direitos e as relações sociais de produção que predominam em espaços ou instituições concretas)”. (HERRERA FLORES, 2009, p.145).

[26] Em tradução livre do autor.

[27] Como elenca: “Macri en Argentina, Temer en Brasil, el «No» uribista y corporativo en Colombia, el desmonte del poder ciudadano en México y Trump en los Estados Unidos” (SEGATO, 2016, p. 15).

[28] Trabalho apresentado ao Espaço de ED 5 – Gênero, sexualidade e direitos do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[29] Mestranda pelo Programa de pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD), da Universidade Federal Fluminense (UFF). Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná.

[30] Educanda do Curso de Direito, UFPR, Turma Nilce de Souza Magalhães, e militante do Movimento Sem Terra – MST/PR;

[31] Educanda do Curso de Direito, UFPR, Turma Nilce de Souza Magalhães, e militante do Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB/PR;

[32] Educanda do Curso de Direito, UFPR, Turma Nilce de Souza Magalhães, e militante do Movimento Sem Terra – MST/RS;

[33] As transferências de dotações orçamentárias estão previstas na Lei 13.242 de 2015 que regula sob a Lei Orçamentária de 2016, em seu artigo 52 prevê “O Poder Executivo poderá, mediante decreto, transpor, remanejar, transferir ou utilizar, total ou parcialmente, as dotações orçamentárias aprovadas na Lei Orçamentária de 2016 e em créditos adicionais, em decorrência da extinção, transformação, transferência, incorporação ou desmembramento de órgãos e entidades, bem como de alterações de suas competências ou atribuições, mantida a estrutura programática, expressa por categoria de programação, conforme definida no § 1o do art. 4o, inclusive os títulos, descritores, metas e objetivos, assim como o respectivo detalhamento por esfera orçamentária, grupos de natureza de despesa, fontes de recursos, modalidades de aplicação e identificadores de uso e de resultado primário.

[34] Trabalho apresentado ao Espaço de Discussão 5 – Gênero, Sexualidade e Direitos do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[35] Mestranda na Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP/RP)

[36] Tradução livre. No original: “a menos que la estereotipación de género lesiva se diagnostique como un mal social, no será posible determina su tratamento ni lograr su eliminación”.

[37] Tradução livre. No original: “cualquier cosa que el derecho haga, siempre explota a la mujer y favorece al hombre”

[38] A autora afirma que tenta pensar o conceito “tecnologias de gênero” usando o conceito de Foucault de “tecnologias sexuais”, pelo qual a sexualidade não é algo existente a priori nos corpos, e sim, fruto das significações atribuídas a eles. Ela afirma que o próprio Foucault não analisa a questão do gênero, teorizando a sexualidade a partir do referencial masculino, como referencial universal (LAURETIS, 1987, p. 208-209)

[39] Acórdãos n° 3, 9 e 26

[40] Acórdãos n° 1, 6, 7, 8, 10, 12, 13, 16, 17, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 29, 31 e 32

[41] Acórdãos n° 2, 5, 11 e 15