ESPAÇO DE DISCUSSÃO 8: CRIMINOLOGIA CRÍTICA E MOVIMENTOS SOCIAIS

  

Artigo


 ALGUMAS RESPOSTAS PARA A CRIMINOLOGIA CRÍTICA: POR UM ENCONTRO COM DISCURSOS NEGROS[1]

SOME ANSWERS TO CRITICAL CRIMINOLOGY : FOR A MEETING WITH BLACK DISCOURSES

 

Laysi Da Silva Zacarias[2]

 Resumo: Esse estudo surge dos primeiros contatos com o campo de estudos da criminologia crítica e de uma primeira percepção sobre a cisão entre o debate político do movimento negro e a criminologia crítica. As reflexões propostas neste trabalho foram construídas por meio do estudo bibliográfico sobre a criminologia crítica; trabalhos sobre a luta política do movimento negro; e, em especial, das pesquisas de Ana Flauzina, Thula Pires, Felipe Freitas e Luciano Goés. Nas análises, encontrou-se que as divergências entre criminologia crítica e movimento negro se dão por desconhecimento do histórico, das pautas e histórico da disputa do movimento social em si, atravessadas pelo poder e privilégio da branquedade. Encontraram-se mais convergências que divergências propriamente ditas, entre as posições da criminologia crítica e movimento negro no que se referente ao sistema penal e relações raciais. Contudo, as divergências, em si parecem ser o fator determinante para o afastamento. Nesse sentido, o trabalho de Ana Flauzina, Thula Pires e Felipe Freitas e Luciano Goés se fazem fundamentais para essa aproximação.

Palavras-Chave: criminologia; movimento negro; democracia racial; racismo.

 

Abstract: The present study comes from the first contacts with critical criminology and the first perceptions about a splitting between political dispute of the black social movements and critical criminology. The reflection proposed in this study were build based bibliographic study on critical criminology, about political activism of black social movements and specially from the research’s Ana Flauzina, Thula Pires, Felipe Freitas, and Luciano Goés. In the analyzes, it was found that the divergences between critical criminology and the black social movement are due to unknowledge of the history of the black social movement, it is crossed by power and white privilege. There was more convergences than actual differences between the political positions of critical criminology and black social movement in relation to the penal system when linked to racial issues. However, the divergences appears to be a determining factor for this aloofness. In this way, the work of Ana Flauzina, Thula Pires,  Felipe Freitas, and Luciano Goés are fundamental.

Keywords: criminology; black social moviement; racial democracy; racism.

  1. INTRODUÇÃO

A interlocução desse trabalho é, especialmente, com homens negros e mulheres negras que o antecederam, com eles é compartilhado as ideias e reflexões, respeitando esse legado intelectual. Nesse sentido esse trabalho não é singular, mas sim um estado de polifonia[3]. Nesse sentido esse trabalho não é singular, mas sim um estado de polifonia[4]. Por esse motivo, o próprio título da presente trabalho no termo “Discursos Negros” faz referencia ao livro publicado em 2015 pela editora Brado Negro intitulado Discursos Negros: Legislação Penal, Política Criminal e Racismo.

Esse estudo surge dos primeiros contatos com o campo de estudos da criminologia crítica e de uma percepção inicial sobre a cisão entre o debate político do movimento negro e essa vertente criminológica. Essa última, inclusive, aponta críticas a estratégias políticas do movimento social. Tal percepção trouxe algumas indagações, entre elas, quais os sentidos dessa cisão e, em especial, se essa seria compreensível ou lógico. Nesse âmbito, deve-se ter em conta que as denúncias do movimento negro sobre o racismo, o lugar do sistema penal no processo de subalternização da população negra (tema que atravessa os estudos da criminologia crítica brasileira) e a desigualdade racial no Brasil não são recentes.

Nas leituras buscou-se aprofundar os estudos da criminologia crítica na Brasil e seu histórico, em seguida foram aprofundadas as leituras de grupo de pensadoras e pensadores, militantes e da área criminal, que analisaram a criminologia crítica e notaram que ela pauta-se (e reproduz) o mito da democracia racial. Com isso, denunciaram as ausências e os silenciamento desse campo teórico e, ao mesmo tempo, propuseram a construção de uma nova criminologia crítica, a qual “assumisse o racismo como uma variável substantiva da estruturação do sistema penal brasileiro” (Flauzina, 2006, p. 41)

            Assim, este artigo propõe identificar como a criminologia crítica, pautada no mito de democracia racial, se afastou do debate político do movimento negro e silenciou a centralidade do racismo na estruturação do sistema penal brasileiro. O trabalho propõe ainda uma reflexão inicial sobre a importância de teorias construídas por militantes da área criminal – como Ana Flauzina, Thula Pires, Felipe Freitas e Luciano Goés – que, problematizando as ausências sobre racismo, desigualdade racial e sistema penal no debate criminal brasileiro, têm possibilitado a emergência de uma nova criminologia crítica.

As reflexões propostas foram construídas por meio da revisão bibliográfica de estudos da criminologia crítica, da luta política do movimento negro; e, em especial, dos escritos de Ana Flauzina, Thula Pires, Felipe Freitas e Luciano Goés. Os trabalhos analisados foram: Corpo Negro Caído  no chão: O Sistema Penal e o projeto genocida do estado Brasileiro, de Ana Flauzina; Por um realismo marginal de Luciano Góes , Novas Perguntas Para A Criminologia Brasileira: Poder, Racismo E Direito No Centro Da Roda de Felipe Freitas e   Criminalização do Racismo: Entre a política de reconhecimento e meio de legitimação de controle social dos não reconhecidos de Thula Pires. A partir intersecções discursivas desses trabalhos, foram feitas a análise da proposta teórica e política de uma criminologia propriamente nossa, do racismo como estruturante do Estado brasileiro e das implicações dessas concepções em pesquisas em área de direito penal e criminologia.

O trabalho estrutura-se em duas seções. A primeira apresenta um breve panorama do da criminologia no Brasil, observando em especial o lugar da criminologia positivista na invenção do criminoso nato, e a crítica à criminologia crítica, que ao se distanciar do debate racial, acabou por silenciar a centralidade do racismo nos processos de subalternização e de criminalização da população negra no Brasil. Nesse momento, buscarei refletir, ainda, sobre as potencialidades da luta do movimento negro, em particular a partir da década de 1970, ao denunciar o mito de democracia racial (que ainda atravessa parte dos estudos da criminologia crítica). A segunda seção do artigo observa os avanços teóricos e políticos de novos(as) pensadores(as) da criminologia crítica, que propõem uma reflexão acerca dos processos de criminalização e do funcionamento do sistema punitivo no Brasil, a partir do diálogo com o debate racial construído na luta  do movimento negro.

  1. CRIMINOLOGIA CRÍTICA, DEMOCRACIA RACIAL E RACISMO: SILÊNCIOS E AUSÊNCIAS.

Na Europa do séc. XIX inicio do sec. XX é que se encontra o nascimento da criminologia. Naquele contexto, nos ensina Zaffaroni (2005), a burguesia, que usufruía das benesses das premissas do capitalismo, preocupava-se com o fato de o sistema penal não conseguir responder aos problemas de criminalidade. A principal deu-se em torno do fato de que as teorias, até então formuladas pelo classicismo, não identificam as causas da criminalidade e nem conseguiam combatê-la. A partir do século XIX, a resposta a esse anseio viria pela proposta teórica e política de olhar-se para o “delinquente”. Ou seja, pela construção de um novo campo teórico preocupado com a explicação das causas da “delinquência”. Inicialmente, a criminologia clássica, que propôs importantes críticas ao modelo capitalista. Em seguida, a criminologia positivista, a qual buscou a origem do “delinquente” nas supostas desigualdades existentes entre os grupos e sujeitos, em especial na superioridade moral e cultural do europeu branco. Sobre isso, escreve Luciano Goés (2015):

Destarte se as causas da criminalidade não poderiam ser direcionadas à estrutura social (erro do discurso policial), nada melhor para rechaçar àquela igualdade que orientou as críticas do Classicismo e promoveu a mudança na ordem social do que uma base “científica” para legitimar a desigualdade (BATISTA, V., 2011, p. 27) e o controle social da parcela disfuncional ao sistema. Nasceu assim a Criminologia, resultado da união dos discursos médico e policial, ciência legitimante do poder de punir (GOES, 2015)

No Brasil, a criminologia positivista emergiu a partir dos estudos do médico Nina Rodrigues, que recepcionou a tese do “criminoso nato”, desenvolvida, na Europa, por Lombroso[5], em sua obra “As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil”, publicada em 1894. O próprio Lombroso teria se referido a Nina Rodrigues como o apóstolo da antropologia criminal no novo mundo. Tendo como pano de fundo a criminologia positivista, em especial de influência da Escola Italiana, Nina Rodrigues em diálogo com os estudos da frenealogia[6] e outras ciências racistas, criou o conceito/ideai do criminoso[7]. Entendido por ele como um “degenerado” racial específico, enfraquecido psíquica e moralmente pela “mistura” racial. Ao mesmo tempo, o teórico também afirmou os negros, como moralmente inferiores, incapazes de autocontrole – atributo da brancura – e que, portanto, deveriam ter tratamento diferenciado no interior do direito penal. Cabe apontar que tal perspectiva, somado à do mito de democracia racial, influenciou nosso Código Penal, promulgado na década de 1940.

O Código Penal promulgado em 1941, e vigente até os dias atuais, foi elaborado tendo como pano de fundo o positivismo e a ideia de democracia racial. Enquanto o positivismo jurídico e democracia racial promoviam uma sociedade cega à cor, protegendo a imagem do sistema, o positivismo criminológico influenciava a atuação das agencias de modo a proteger os interesses das elites, através das medidas de controle e extermínio da população negra (PIRES, 2015).

No Brasil, portanto, desde os anos de 1920, o projeto de nação refletido no ordenamento jurídico, foi influenciado pelo positivismo criminológico e ao mesmo tempo pelo ideal de democracia racial, consolidado na década seguinte e forjado como a definitiva modalidade simbólica das relações raciais no Brasil (Flauzina, 2006). Na perspectiva de Flauzina (2006), a ideia de democracia racial nasceu da demanda de dominação da população negra, após o fim do sistema escravista, como forma de evitar o confronto político e social e de manter intactas as assimetrias raciais. O resultado disso foi o silenciamento histórico, que, por vezes, “impediu a enunciação do racismo” (p.37). Como projeto teórico, a democracia racial suplantou a raça da conjuntura social, impelindo que as análises teóricas sobre desigualdade sociais fossem construídas apenas por meio da categoria classe. Como resultado político, tal racionalidade silenciou o racismo como estruturante das instituições sociais e políticas, alocando-o no espaço privado das relações sociais e restrito às práticas de apenas alguns sujeitos.

A partir da década de 1950, o debate político do movimento negro contribuiu para problematizar o mito de democracia racial, por meio de reflexões que escancararam o racismo e as desigualdades raciais no Brasil. Momento em que começou a se construir, no Brasil, o campo teórico da criminologia crítica.

A criminologia crítica, surgida na década de 1960, como crítica à vertente anterior, teve o propósito inicial de suprir as lacunas sobre os processos econômicos e políticos da criminalização e do controle penal. Alessandro Baratta, seu maior expoente, propôs uma teoria materialista do desvio social e da criminalização. Preencher essa lacuna foi de suma importância, ao apontar o aspecto tangível do desvio social, a partir das formulações do labeling approach[8] e por romper com o ideal de criminoso nato da criminologia positivista, reconhecendo a ação do sistema penal como produtora dos sujeitos que persegue e controla.

No entanto, a criminologia crítica, de tradição marxista, ao privilegiar classe, em detrimento da raça na compreensão da ação seletiva do sistema penal – ou seja, alheia à dimensão estruturante do racismo no nosso país – não ampliou seu repertório analítico acerca dos fenômenos sociais brasileiros (FLAUZINA, 2006). Seus teóricos e teóricas, em sua maioria brancos(as), de classe média e alta e distantes do debate teórico e político racial que se construía no Brasil, acabaram por silenciar o racismo como fundamento das assimetrias sociais e da seletividade penal que buscavam explicitar. Nesse sentido, pode-se afirmar que a criminologia crítica também foi atravessada pela branquedade e pelo mito de democracia racial.

Sobre a relação entre classe e raça/racismo, cabe acionar as reflexões de Achille Mbembe (2014) e de Cardoso (2015). Mbembe observa que classe e racismo estão ligados de forma intrínseca, no entanto, seria incorreto compreender o racismo como sintoma ou resultado das lutas de classes. Ao contrário, faz-se necessário compreender o racismo como um dos fundamentos estruturantes das estruturas sociais e econômicas. Ou seja, findar com o racismo é condição necessária para revolucionar a estrutura econômica capitalista.

No mesmo sentido, Cardoso (2015), observa que não enfrentamos o racismo combatendo a pobreza, mas sim transformando a forma de representação do humano. Nesse sentido, essas abordagens teóricas – que entendem o racismo como um simples reflexo das estruturas econômicas – representam uma fuga ou um artifício que mantêm essas estruturas intactas.

Freitas (2016) aponta que a criminologia crítica identificou o negro como cliente preferencial do sistema penal, no entanto, não propiciou um debate aprofundado sobre racismo e direito penal:

ainda que autores/as pioneiros/as como Vera Malagutti (2003), Nilo Batista (2012), Gislene Nader (2000) entre outros/as tenham, em seus trabalhos, constatado que são negros as “vitimas preferenciais ” do sistema punitivo. Não se encontra na literatura criminológica nenhuma investida analítica que ultrapasse  a retomada da base escravocrata do sistema penal ou a referência (as vezes tímida, as vezes mais assumida) ao perfil da vitima e aos clientes preferenciais do sistema (FREITAS, 2016).

Na perspectiva do autor, o receio da perda de privilégios pode ser outro fator explicativo do por que a criminologia crítica parou de avançar. O racismo é um sistema de privilégios e hierarquias, e formular uma denuncia que abale as bases desse sistema importa na perda de tais privilégios, ao forçar a reflexão sobre nossos lugares sociais como resultados de uma sociedade desigual e racista.  Assim, as escolhas da criminologia critica estão estritamente ligadas as posições de poder e hierarquias a que estão inseridos, as quais refletem na hora da escolha teóricas e metodológicas que vai culminar na ausência de gênero e raça nas analises.

No entendimento de Flauzina (2006), a criminologia critica é um âmbito ainda subaproveitado para pensarmos o racismo e a desigualdade racial no Brasil. Daí a importância de criminólogos, que pautam o debate racial e não desconhecem a história de luta do movimento negro.

Importante observar que não estou afirmando que a criminologia crítica negue o racismo existente na sociedade brasileira. No entanto, esse campo teórico tem refletido pouco sobre os efeitos do racismo nos processos de subalternização social e de criminalização. E além dos fatores já expostos, compreendo que o afastamento da criminologia crítica do debate teórico sobre relações raciais e da luta política do movimento negro pode ser tido como outro fator que impossibilita seu avanço teórico e político.

  • O MOVIMENTO NEGRO E A CRÍTICA AO MITO DE DEMOCRACIA RACIAL 

 Nessa seção do artigo gostaria de trazer breves considerações sobre a luta política do movimento negro, que ao longo do século XX, em especial a partir dos anos de 1950, tem evidenciado a intrínseca relação entre racismo e desigualdade socioeconômica no Brasil, ao mesmo tempo, que tem denunciado o mito de democracia racial.

Aqui, compreendo o movimento negro como um movimento social constituído por homens negros e mulheres negras, que lutam contra o racismo e a discriminação racial em resposta às assimetrias raciais existentes no país. Tal luta é construída por meio de instrumentos e ações que abrangem diversas áreas como o direito, a saúde, a cultura e a educação. Aqui não há que se ater às divergências dentro do movimento, mas sim apresenta-las como existentes. As divergências existentes vão perfazer o âmbito de qual seria a mais eficiente estratégia para, de fato, mudar o cenário de desigualdade racial. Por outro lado, podemos encontrar um esforço uníssono dentro dessas divergências que vão confluir em como (re)significar o que se entende por negro (Gomes 2011; Rios, 2014 apud Catoia, 2016)

A partir do ano de 1945, período de redemocratização do país, houve importante momento de reorganização e discussão política do movimento negro,  marcado pela criação de novas organizações, por novo impulso da imprensa negra, com a publicação de diversos jornais de protesto pelo país. Ao mesmo tempo, foram realizados eventos nacionais que deram maior visibilidade à luta política do movimento negro, com destaque para a Convenção Nacional do Negro (1945), a Conferência Nacional do Negro (1949) e o I Congresso Brasileiro do Negro (1950) (Catoia, 2016). Entre os objetivos dessa luta política privilegiou-se a organização da população negra, na luta por direitos e na construção de propostas específicas, em diálogo com o Estado, como a interessantíssima criação de um sistema nacional de bolsas de estudo para estudantes negros no ensino secundário e superior (CATOIA, 2016).  Naquele momento, as denuncias do movimento negro já problematizavam o mito da democracia racial, ao evidenciar o preconceito racial e o racismo presente na sociedade brasileira e desestabilizar, dessa forma, a ideia de convivência harmoniosa entre os grupos raciais.

Na década de 1970, o movimento negro, retoma e amplia a luta política desenvolvida por coletivos nas décadas anteriores. Essa reorganização se deu no contexto da ditadura militar, momento em que se reforçava o discurso oficial da democracia racial, e que, portanto, contestar tal mito era visto como um ato subversivo.  Com o fim da ditadura militar, o movimento negro se fortaleceu e desenvolveu novas estratégias de mobilização, com destaque para a categoria raça como identitária e política, para a radicalidade da crítica ao discurso da democracia racial. Naquele contexto, em especial a partir da criação do Movimento Negro Unificado (1978), raça e classe se articula de nova forma, trazendo novos dilemas para a compreensão das assimetrias sociais no país, ao apontar o racismo como o fundamento dessas assimetrias (CATOIA, 2016).

A criminalização do racismo é uma pauta social desde a década de 40, contudo mesmo no movimento quanto a essa pauta não havia consenso, e dando um pulo histórico, é só na década de 80 que esta reinvindicação entra no texto constitucional[9]. Interessante identificar a exploração do caráter simbólico da legislação como resposta do Estado a esse grupo político descontente – medindo a capacidade de ação do Estado a responder uma situação especifica – bem como um instrumental usado pelo grupo insatisfeito defendendo seu interesse. Thula Pires aponta que:

pode-se encontrar no aparato normativo do Estado legislações que tenham apenas o intuito de representar compromissos dilatórios (exercendo a função de retardar  conflitos sociais iminentes: de um lado responde a demandas de pressões populares no sentido de regulamentação da dada medida; de outro, são criadas tantas dificuldades para a real implementação da norma que seus efeitos concretos ficam anulados) (PIRES, 2015)

Em matéria penal, o fetichismo da lei, a partir dessa dimensão simbólica, visa garantir status superior aos bens jurídicos aqui tutelados. E essa ideia é consequência da característica da moral hierarquizante que o direito traz. O direito ao dizer o que é licito ou ilícito disciplina o que pode ou não ser feito na sociedade, assim o que é licito é moral fazer, aquilo que é ilícito é imoral. Ademais, criminalizar uma conduta e estabelecer uma pena são compreendidas, em sua simbologia, como uma forma de atribuir valor ao bem tutelado pelo direito e essa é uma percepção constantemente presente no processo de construção da dimensão coercitiva da legislação antirracista, em que a pena deveria ser adequada ao dano decorrente da prática racista.

A criminologia critica e os movimentos sociais costumavam ser uníssonos, em meados dos anos 1960, quando da luta por uma sociedade igualitária. Entretanto os movimentos sociais decidiram colocar o direito penal em suas pautas, provocando críticas da criminologia crítica a essa estratégia política[10]. Cabe obervar que essas cisões ocorreram, não apenas com o movimento negro, na constituinte de 1987/88, mas também com os movimentos feministas e movimento de mulheres, em torno da construção da Lei Maria da Penha, e com parte do movimento LGBT, nas propostas de criminalização da LGBTfobia.

Compreender os sentidos da demanda pela criminalização do racismo, por parte do movimento negro, que não desconhecia os efeitos do sistema penal para a população negra, significa entender os efeitos simbólicos do direito penal, que atravessaram a luta política do movimento negro na construção da legislação antirracismo. Nesse sentido, Malaguti (1997) e Laurrauri (1991) nos dão algumas pistas sobre tal efeito nos movimentos sociais[11]

É notadamente sabido que a década de XIX e meados de XX o cenário do brasileiro se perfazia por disputas que tinham por centralidade formas de controle do estado, por exemplo, violências políticas decorrentes da luta pela libertação nacional e disputas pela distribuição de bens materiais. Nesse contexto afirma pesquisadora, inúmeros autores acreditavam que as prisões iam perder o sentido devido a falta não mais função econômica. Dessa forma, com as prisões acabando, o próximo passo era punir a classe dominante com o sentimento de  ‘derrubamos a ditadura e agora vamos punir os poderosos’. É nesse contexto que os movimentos sociais vão fazer uso do lado simbólico do direito penal (MALAGUTI,1997)

A criminalização do racismo foi pensada como estratégica, não apenas para a punição de práticas discriminatórias, mas também como forma de trazer a tona o racismo presente na  sociedade brasileira, impulsionando, de tal forma,  Dessa forma, então, uma discussão pública da nocividade deste ato.[12]Compreendo, portanto, a importância dessa proposta por entender o sujeito negro como um sujeito político, legítimo portanto, no debate sobre estratégias contra o racismo. Além disso, a criminalização do racimo possibilitou o aumento das denúncias sobre práticas discriminatórias e alterou, de alguma forma, a percepção sobre práticas, antes naturalizadas nos convívios sociais[13]. Acredita-se que essa percepção mudou não apenas a visão de negros(as) mas também de alguns brancos(as) que conseguem identificar tratamentos racistas, mesmo que não consigam desfazer dos privilégios da branquitude[14].

  1. NA CRÍTICA À CRIMINOLOGIA CRÍTICA: PERSPECTIVAS PARA UMA CRIMINOLOGIA NOSSA

 Estudos mais recentes da criminologia crítica têm trazido uma proposta de aproximação entre o campo da criminologia e o debate político construído pelo movimento negro. Buscarei nessa última seção do trabalho, refletir sobre os avanços teóricos e políticos resultantes dessa aproximação.

Inicialmente, importante observar que foi a partir das omissões da criminologia crítica – apontadas ao longo do artigo – que esses(as) novos(as) teóricos(as) construíram novas propostas teóricas para pensarmos os processos de criminalização e o funcionamento do sistema penal.  Entre os(as) novos(as) teóricos(as) da criminologia crítica destacam-se : Ana Flauzina, Thula Pires, Felipe Freitas e Luciano Goés[15].

Flauzina (2006) e Goés (2015) dialogam com a noção de margem desenvolvida por Zaffaroni (1998), para compreender o lugar subalterno, intencionalmente, reservado aos latino-americanos na dinâmica global capitalista, que impõe um quadro limitante das possibilidades de realizações desses povos. O diálogo com um pensador latino- americano insere-se num contexto, no qual teóricos da América Latina buscam, entre si, bases para a criação de um saber do Sul, que represente a contramão da vertente hegemônica dos conhecimentos do Norte.  Além disso, a experiência comum do colonialismo potencializa as análises teóricas dos nossos vizinhos na compreensão da realidade brasileira.

Os(as) pensadores(as) destacados(as) privilegiam, ainda, o diálogo com teóricos(as)  negros(as) – em especial com os(as) que pensam as relações raciais no Brasil –  para a construção de suas reflexões. Destes diálogos emergem, não apenas novas categorias analíticas, como importantes rupturas epistemológicas na produção de uma criminologia de fato crítica, que buscam evidenciar o racismo como estruturante do Estado brasileiro e, portanto, dos sistemas punitivos e os efeitos desse racismo para a população negra.

  • Racismo como Estruturante do Estado Brasileiro: Os Efeitos Sobre o Povo Negro

Entre as reflexões propostas por esses(as) autores(as) está o racismo como estruturante do Estado brasileiro. Nesse sentido, Flauzina (2006) observa que nos nossos sistemas periféricos, o racismo é fundamento da própria formação dos Estados, refletindo-se em sua estrutura e organização  (como os aparatos repressivos).

Na perspectiva da autora, não apenas o mito de democracia racial, mas também o Estado tem um lugar fundamental na (re)produção do racismo nas instituições sociais e políticas brasileiras. Assim, se a representação do negro será feita por meio da ideia de criminoso, será o racismo que irá espelhar a imagem do sistema penal. A tríade, nos termos de Flauzina (2006) preto, pobre e puta  – usada de forma indiscriminada por operadores do direito – vai cristalizar a real ordem dos fatores de preferência dos destinatários do sistema penal, fator esse que somente a  luta de classes não consegue abarcar. O próprio enunciado denuncia o alvo preferencial do sistema penal, bem como a sua contínua lógica de dominação, existente desde o período colonial escravista.

Freitas (2015) aponta que olhar o racismo como estruturante do Estado nos possibilita compreender o processo de genocídio em curso contra a população negra no Brasil. Na perspectiva do autor, faze-se necessário compreendermos que o racismo estrutura nossas narrativas sobre humanidade. E, assim,  “não é só a bala da arma que mata, mas uma série de dispositivos físicos e simbólicos que vão impedindo a possibilidade de afirmação da humanidade negra em nossa sociedade” (FREITAS, 2015). Da mesma forma, as reflexões de Goés (2015) apontam o genocídio da população negra como decorrente de um projeto político de um Estado racista.  Zaffaroni (1991) conceitua o sistema penal periférico com um “genocídio em ato”, o qual implica o exercício de poder dos sistemas penais de nossa região marginal, que se caracteriza pela ausência de legalidade e arbitrária efetivação. Nesse mesmo sentido aponta Flauzina (2013), no Brasil, o genocídio está presente nas consequências tácitas do sistema penal.

Nos trabalhos de Flauzina (2006;2013), encontramos ideias do racismo como processo desumanizador, que aproxima ou afasta as pessoas do sentido de humanidade. Ou seja, o  racismo fundamenta os episódios mais recorrentes de genocídio contra a população negra. Nos termos da autora, o genocídio é a ponta final do racismo. Assim, o genocídio não pode ser compreendido apenas dentro dos conflitos declarados de guerra em que se evidencia grande quantidade de episódios violentos com o objetivo de exterminar certo contingente populacional.  E, para afastar os possíveis argumentos de que o termo genocídio viria a ser usado apenas como força de expressão, Flauzina trabalha com a Convenção para Prevenção e  Reparação, que conceitua o crime de Genocídio[16], que por definição, também existe o genocídio em tempo de “paz”:

Art. I – As Partes Contratantes confirmam que o genocídio, quer cometido em tempo de paz, quer em tempo de guerra, é um crime contra o Direito Internacional, o qual elas se comprometem a prevenir e a punir.

Art. II – Na presente Convenção, entende-se por genocídio qualquer dos seguintes atos, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, tal como:

(a)assassinato de membros do grupo;

(b) dano grave à integridade física ou mental de membros do grupo;

(c) submissão intencional do grupo a condições de existência que lhe ocasionem a destruição física total ou parcial;

(d) medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;

(e) transferência forçada de menores do grupo para outro grupo.

Homicídios irrefutáveis, situações que comprometem física e emocionalmente os indivíduos, debilidades forjadas para debilidades forjadas e morte, praticas de esterilização que evitam a reprodução da vida do segmento populacional, segundo denúncias de ativistas, e os segundo os estudos objeto de análise, se adéquam, perfeitamente, à realidade brasileira. Nesse sentido, de forma irrefutável, Flauzina (2006) argumenta que, de fato, o povo negro sofre genocídio. O racismo é indispensável para poder tirar a vida de alguém, para poder tirar a vida do outro. A partir da perspectiva marginal, entendemos o racismo como o motivo da morte.

Os(as) autores(as) estudados(as), ao falar sobre o tema, compartilham do mesmo entendimento de Abdias do Nascimento (1978), não só aquele caracterizado por mortes abruptas não justificáveis, mas o deixar morrer (sim, a ausência é genocídio), a articulação do branqueamento, por meio da miscigenação e a imposição da cultura eurocêntrica são faces do mesmo projeto político: o genocídio da população negra. Assim, entendendo que em maiores ou menores constâncias essas diferentes dimensões do genocídio se interseccionam, encontramos a criminologia.

Em 2012, Marildo Menegat – fonte de dados para os pesquisadores objeto de estudo –  pesquisou cerca de 600 mil mortes violentas no período de 1980 a 2003 e descreve:


[…] a imensa maioria são jovens de 15 a 25 anos e 52% são negros. Dos jovens negros que morreram nessa faixa de idade, 81,1% morrem por causas externas, ou seja, são vítimas da violência. Tudo indica que esta em curso um genocídio, que atinge principalmente a juventude, e, em especial, os jovens negros, exatamente aqueles que mais razões teriam para transformar esta sociedade. (MENEGAT, 2012: 50-51)

 

Assim, desde a Diáspora africana, o genocídio étnico tem feito parte de nossa história (negros em diáspora) e segundo Goés (2015) observou-se o genocídio em todos os sistemas penais identificados por Nilo Batista em 2002 (colonialismo-mercantilista, imperial-escravagista, republicano-positivista e o atual).

Goés (2015), ao trazer números atuais de mortes da população negra, deixa mais enfático os argumentos de que se trata de um genocídio. A partir disso, todas as facetas, elencadas por Flauzina, que foram expostos acima, tem exemplificações:

Esse autores(as) reforçam o que a luta política do movimento negro vem demonstrando: no nosso país, o racismo para além das relações pessoais é um fator estruturante, ele é atemporal. Temos em voga um conflito social que tem por resultado o genocídio decorrente de um projeto politico de extermínio explicito e implícito, que de tempos em tempos muda seus porquês, mas atravessa os mesmos corpos, nas palavras de Goés (2015):

Seguindo os dados dos homicídios no Brasil entre 2002 e 2011, Julio Jacobo Waiselfisz demonstra que em relação aos brancos há uma queda gradativa de 41% em 2002 para 28,2% em 2011. Em contrapartida, o genocídio negro se apresenta em uma escalada de 58,6% em 2002 para 71,4% em 2011, ou seja, “[…] a vitimização negra passa de 42,9% em 2002 – nesse ano morrem proporcionalmente 42,9% mais vítimas negras que brancas – para 153,4% em 2011, em um crescimento contínuo, ano a ano, dessa vitimização”.

Em nosso Direito Penal declarado a programação racial é demonstrada pelos dados oficiais que expõem sua “clientela”: os negros (pretos e pardos) representam, até junho de 2014, 67% da 4ª maior população encarcerada do mundo, o que significa que dois em cada três presos são negros. 

O sucesso do nosso “Direito Penal Paralelo”, outrora identificado por Lola Aniyar de Castro como “subterrâneo” , mas que há muito deixou de sê-lo pois seu resultado é produzido à luz do dia para quem quiser enxergar, um dos que mais mata no mundo, é representado pela postura policial racista responsável, em 2013, pela morte de 2.190 pessoas, sendo que quase 70% dessas mortes são de jovens negros, vítimas do racismo institucional que continua (des)velado, sendo 30,5 mais vezes vítimas de homicídios/extermínio do que os brancos . Em 2015, chegamos a marca de 82 corpos negros “triturados” diariamente , a mesma carne mais barata de sempre que segue sendo empilhada.

Sobre o tema aponta Thula (2015):

Denunciar o genocídio perpetrado contra a juventude negra pelas instituições publicas de justiça criminal e pelas instituições públicas de saúde.; mostrar que o mito da democracia racial é mantido para permitir que os negros permaneçam nos “espaços permitidos”; combater estereótipos responsáveis pela naturalização da inferioridade é pouco se não acompanhado de uma crítica mais vigorosa a toda e qualquer forma social ancorada na desigualdade

                No mesmo sentido, Achille Mbembe, nos ensina que, ao lutarmos contra essas barbáries as quais os negros estão sendo submetidos – a consequência é a que nenhum outro segmento étnico venha a sofrer o mesmo no futuro. Ou seja, aqui não pensamos em ganhos apenas para o povo negro, tenta-se sempre pensar nos ganhos que outros povos podem ter quando olhamos para essas violências de forma séria e honesta, tratando as de frente.

                O que se pode perceber a partir das leituras dos autores e autoras aqui privilegiados, vê-se que a vertente criminológica crítica se faz não permeável ao aprofundamento de uma racialização de questões que por si só já nasceram racializadas. O silencio frente a um genocídio nada mais é que participar dele, entendendo que no núcleo deste tipo encontramos o deixar morrer. O genocídio da ausência, do silêncio.

 

  1. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nas análises encontrou-se que as divergências entre criminologia crítica e movimento negro se dão por desconhecimento do histórico, das pautas e disputas do movimento social em si, atravessadas pelo poder e privilégio da branquedade. Contudo, encontraram-se mais convergências que divergências propriamente ditas, entre as posições da criminologia crítica e movimento negro no que se referente ao sistema penal e relações raciais. Contudo, as divergências em si parecem ser o fator determinante para o afastamento. Nesse sentido, os trabalhos de Ana Flauzina, Thula Pires e Felipe Freitas e Luciano Goés se fazem fundamentais para essa aproximação.

Em relação a reflexões sobre questões raciais e suas intersecções com o direito penal no Brasil, o movimento negro está com discussões mais aprofundadas e sérias daquelas propostas pela criminologia, por isso, propomos uma aproximação. Não há que se pontuar essa questão com o intuito de vangloriar-se, mas sim de chamar a atenção para o fato de que para a criminologia travar um debate sério sobre a temática racial no Brasil é necessário, sim, que esse campo teórico compreenda o debate político construído por ativistas negros.

Quanto às críticas que a criminologia faz ao movimento negro e sua pautas, encontra-se  um desconhecimento quanto o histórico, as pautas do movimento negro no nosso país que tem se renovado e rearticulado em torno de distintas estratégias e demandas, que não se limitam ao direito. Assim em relação à denuncia de um flerte do movimento negro com o punitivismo, em resposta apresentou-se no presente trabalho que a luta politica do movimento negro, ilustrado aqui pelo processo constituinte não teve a centralidade a criminalização, no sentido de obsessão punitivista do termo. Dentre um rol de propostas levadas pelo movimento negro para a Constituinte a pauta criminalização do racismo foi eleita e pinçada pela própria branquedade.

Por fim, ao analisar os trabalhos dos teóricos negros e negras, objetos desse estudo, vê-se que eles partem dos ensinamentos dos movimentos sociais negros, privilegiam epistemologias dissidentes, em especial autores negros e autoras negras. Com isso conseguem apontar as falhas e propor avanços teóricos e políticos. Os autores e as autoras aqui trabalhados não negam as contribuições da criminologia critica, mas pontuam o fato dessa vertente tentar dar uma contribuição as questões raciais e não conseguirem. É nesse sentido que se entende ser necessária – para além de que as posições do movimento negro e de teóricos críticos serem mais próximos que se pensam –  maior aproximação entre discursos da criminologia e movimento negro.

 

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo. Hucitec, 2000.

_______________ . Problemas na poética de Dostoievski. Rio de Janeiro. Forense: Universitária, 2010.

CATOIA, Cinthia de Cassia. De “coisa” a sujeito: o processo de construção da legislação antirracista no Brasil e na política do Movimento Negro .São Carlos, SP, 2016. Dissertação de mestrado, Universidade Federal de São Carlos. Disponível em: https://repositorio.ufscar.br/handle/ufscar/8041 . Acessado em: 13/03/2017.

DUARTE, Evandro Charles Piza. Criminologia e racismo: introdução à criminologia brasileira. Curitiba: Juruá, 2011.

FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do estado brasileiro. Brasília, DF, 2006. Dissertação de mestrado, Universidade de Brasília, 2006. Disponível em: http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/5117/1/2006_AnaLuizaPinheiroFlauzina.pdf. Acessado em 30/01/2017.

FREITAS, Felipe. Novas Perguntas Para A Criminologia Brasileira: Poder, Racismo E Direito No Centro Da Roda. Disponivel em: https://cadernosdoceas.ucsal.br/index.php/cadernosdoceas/article/view/252/218 .Acessado em: 30/01/2017.

GOES, Luciano. A Tradução de Lombroso na Obra de Nina Rodrigues: O racismo como base estruturante da criminologia brasileira. 1 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2016.

______  . Por um realismo marginal. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/por-um-realismo-marginal-racial-por-luciano-goes/ .Acessado em: 02/02/2017.

______ . Racismo, Genocídio e Cifra Negra: Raizes de uma Criminologia Antropofágica. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/racismo-genocidio-e-cifra-negra-raizes-de-uma-criminologia-antropofagica-por-luciano-goes/.Acessado em: 02/02/2017

LARRAURI, Elena. La herencia de La criminologia critica. Madrid: Siglo Veintiuno de España Editores,1991.

LÓPEZ, Laura Cecilia. O conceito de racismo institucional. Interface-Comunic., Saúde, Educ, v. 16, n. 40, p. 121-34, 2012.

MALAGUTI BATISTA, Vera. O proclamado e o escondido: a violência da neutralidade técnica. In Discursos Sediciosos. Crime Direito e Sociedade. Ano 2, numero 3, 1º semestre de 1997. Rio de Janeiro. Pp. 77-87

MBEMBE, Achille. Critica da Razão Negra. Portugal. Antigona, 2014.

MENEGAT, Marildo. Estudo sobre ruínas. Rio de Janeiro: Revan, 2012.

NASCIMENTO, Abdias do. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

OLIVEIRA JUNIOR, Almir de; LIMA, Verônica Couto de Araújo. Segurança pública e racismo institucional. In: Boletim de Análise Político-Institucional/Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. 4 ed. Rio de Janeiro: Ipea, 2013, p. 21-26.

PIRES, Thula Rafaela. Criminalização do Racismo: Entre a política de reconhecimento e meio de legitimação de controle social dos não reconhecidos. Tese de Doutorado. 3 de janeiro de 2013. 323. Tese- Universidade Pontifícia Católica do Rio de Janeiro.

SANTOS, Joel Rufino. O que é Racismo. 10 ed.  São Paulo. Abril Cultura: Brasiliense. 1984

SILVA, Hernani Francisco. Definições de Branquitude. Disponível em: http://www.geledes.org.br/definicoes-sobre-branquitude/#gs.XEetbt0. Acessado em : 02/02/2017.

WERNECK, Jurema et al. Racismo institucional: uma abordagem conceitual. Rio de Janeiro: Geledes, 2013.

ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Críminologia: aproximación desde um margen. Colombia: Temis, 1998.

______  . Las “clases peligrosas”: el fracaso de un discurso policial prepositivista. 2005. Disponível em <http://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/15174/13799>. Acessado em 02/02/2017.

______   Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 1991.



ESTUDOS DA TEORIA CRÍTICA RACIAL (CRITICAL RACE THEORY): SELETIVIDADE DO SISTEMA PENAL E A SUBALTERNIZAÇÃO DA POPULAÇÃO NEGRA NO ESTADO DE SÃO PAULO[17]

STUDIES OF CRITICAL RACE THEORY: SELECTIVITY OF THE CRIMINAL SYSTEM AND SUBALTERNIZATION OF THE PEOPLE OF COLOR

Inara Flora Cipriano Firmino[18]

 

 Resumo: A pesquisa propõe-se a fazer uma leitura da teorização da questão racial nos EUA por meio de um diálogo com discurso da Critical Race Theory (CRT). Esses pressupostos teóricos das relações raciais com a Suprema Corte, trazidos ao cenário nacional, facilitará o apontamento das mazelas do sistema escravagista para aplicação de políticas de controle sobre a população negra. A partir destes pontos iniciais, o objeto principal da pesquisa é a relação entre o racismo estrutural brasileiro e o direito (representado na análise dos julgados do Tribunal de Justiça de São Paulo, de 2003 a 2011), enquanto um possível instrumento de perpetuação de desigualdades étnico-raciais no contexto brasileiro. Por fim, apresentam-se reflexões sobre os fundamentos criminológicos positivistas deste sistema de justiça brasileiro por meio da obra do médico criminologista Nina Rodrigues. Vislumbra-se o entendimento de que o campo jurídico não traz respostas para o racismo, que é um problema social.

Palavras-chave: Critical race theory; Racismo estrutural; Injúria racial; Justiça criminal; Criminologia.

Abstract: The research proposes to make a reading of the theorization of racial issues in the United States through a dialogue with discourse of Critical Race Theory (CRT). These theoretical assumptions of race relations with the Supreme Court, brought to the national scene, will facilitate the appointment of the ills of the slave system for application control policies on the black population. From these starting points, the main object of research is the relationship between the Brazilian structural racism and the right (represented in the analysis of the judgments of the Court of São Paulo, 2003-2011), as a possible perpetuation of inequalities instrument ethnic-racial in the Brazilian context. Finally, it presents reflections on the positivist criminological grounds of Brazilian justice system through the medical criminologist Nina Rodrigues work. Understanding one glimpses that the legal field does not bring answers to racism, which is a social problem.

Key words: Critical Race Theory; structural racism; racial slur; criminal justice; criminology.

 

  1. Introdução

Esta pesquisa apresenta uma reflexão sobre a realidade de um racismo institucionalizado no âmbito do judiciário brasileiro ao estabelecer as condições para um diálogo com as observações da construção de um saber localizado nos EUA. A partir da experiência dos negros com o racismo norte-americano, submete-se a realidade brasileira à interlocução com a experiência da Teoria Crítica Racial (Critical Race Theory – CRT) e, diante da nossa história e das mazelas resultantes do período escravagista, pretende-se analisar de que forma os ensinamentos da CRT oferecem melhores instrumentos de compreensão do racismo brasileiro, com foco de análise o sistema de justiça do Estado de São Paulo.

Assim, o artigo resulta de uma parte do trabalho de conclusão de curso da pesquisadora e versa sobre, por meio da tradução da Teoria Crítica Racial, a contribuição do direito na perpetuação da desigualdade racial, servindo, por exemplo, como um instrumento de política criminal para a perpetuação das desigualdades.

Para trabalhar com o debate criminológico, a base de pesquisa foi a da nova geração de mulheres negras que trazem um aporte afrocentrado às discussões de direito. Destaca-se nomes como o das pesquisadoras Thula de Oliveira Pires, Ana Flauzina, Ísis Aparecida Conceição e a norte-americana Kimberlé Crenshaw, cujos trabalhos foram utilizados em oposição ao pensamento de Nina Rodrigues, um dos estudiosos da Escola Positivista italiana no Brasil.

Um dos objetivos do artigo é fomentar a discussão e trazer para o debate jurídico a forma com que a dinâmica das relações raciais vem sendo abordada pelo sistema criminal brasileiro. Para isso a utilização dos estudos da teoria crítica racial que permitirão uma análise contingente das normas, fazendo com que a pesquisadora se atente “à denúncia dos mecanismos jurídicos que, a despeito de uma aparente neutralidade e imparcialidade, produzem e perpetuam desigualdades” (PIRES, 2016, p. 70).

Não se busca aqui apresentar esta teoria como um argumento de autoridade, mas sim a ideia de tradução aparece com a intenção de fazer uma leitura nacional da teorização da questão racial no âmbito jurídico. Em outras palavras, o artigo deseja estabelecer as condições para um diálogo do direito brasileiro com as observações da construção de um saber localizado nos EUA.

O estudo da CRT nos remete ao fato de estarmos muito atrasados nos estudos da questão racial, principalmente no âmbito do direito, quando ainda pensamos no negro como sujeito principal do processo penal. Isto porque na década de 1970, advogados, ativistas e acadêmicos de Direito dos Estados Unidos perceberam que os principais avanços da Era dos Direitos Civis dos anos 1960 (Civil Rights movment) estancaram e, em alguns aspectos, estavam sendo revertidos. Nesta esteira, surge a Critical Race Theory movement (CRT), ou Teoria Crítica Racial – um movimento de ativistas e acadêmicos interessados em estudar e transformar a relação entre raça, racismo e direito (poder), para o enfrentamento da realidade. Os dois eventos fundadores do movimento foram (i) o protesto e boicote de estudantes e a organização de um curso alternativo sobre raça e direito na Harvard Law School, em 1981, e (ii) a Conferência Nacional de Critical Legal Studies em silêncio e raça.

O pressuposto da CRT corresponde a mais controversa e a menos compreendida reivindicação: a sociedade norte-americana e suas instituições, incluindo as instituições jurídicas, sofrem com o racismo. (BROWN, 2003, p.3). O racismo é endêmico na sociedade estadunidense, profundamente impregnada do ponto de vista jurídico, cultural e mesmo psicológico, na persistência de um processo histórico que resiste em admitir que essa “doença infectou quase todas as pessoas”. Enquanto a principal corrente de reforma dos direitos civis assume que o racismo é um produto da ignorância e que poderia ser superado com educação, os teóricos da Teoria Crítica Racial mantêm a posição de que o racismo é difundido e imutável, situando-se no coração da América. Embora os estudos da crítica racial apresentem algumas diferenças quanto ao objeto, argumentação, posicionamento e ênfases, isso, contudo, unifica-se em dois interesses comuns.

O primeiro é entender como a supremacia branca e a subordinação das pessoas de cor foi criada e vem sendo mantida na América e, em particular, examinar a relação entre essa estrutura social e os ideais professados de “Estado de direito” e “igualdade de proteção”. O segundo é o desejo de compreensão do vínculo polêmico entre a lei e o poder racial, porém com intuito de modificar tal vínculo. (CRENSHAW, 1996, p. 13).

O direito foi o campo discursivo particularmente fértil para o desenvolvimento do que se tornaria a CRT, com recurso a intersecções da raça com outros sistemas de opressão. Kimberllé Crenshaw diz que o elemento chave desta relação entre raça e direito está no caráter extremamente conservador da disciplina. Os ativistas demandavam que a elite institucional repensasse e transformasse sua concepção de neutralidade racial em face da funcionalidade das práticas utilizadas para manutenção do status quo.

Para conseguir alcançar críticas construtivas em face da ordem jurídica existente de um ponto de vista racial, a CRT utiliza-se de um método (descritivo e quantitativo) de análise e organização das noções jurídicas relativas ao racismo que encoraja juízes, estudantes de direito e juristas a adotar uma revisão crítica da lei e das disputas legais. Reinterpretam-se os direitos fundamentais à luz de suas limitações para demonstrar que na reparação da desigualdade racial as leis são minadas por preconceitos antes mesmo de serem completamente implementadas.

Neste sentido, o presente artigo encontra fundamento no questionamento da eficácia/efetividade da atuação do sistema de justiça ao criminalizar a prática de racismo, sendo que a justiça racial foi abraçada no Brasil, principalmente, em termos de exclusão racial, para a prática do status quo na sociedade brasileira, por tratar o exercício do poder racial como algo raro ou uma aberração, não se abordando a temática como de fato algo sistêmico ou arraigado.

Tomando por base a especificidade da condição do negro analisada pela CRT, procura-se trazer as principais referências da CRT para o âmbito do direito pátrio e, assim, revisar os padrões tradicionais adotados pelo sistema de justiça criminal em relação às noções de racismo, raça, preconceito, discriminação e injúria racial, pautada no discurso dominante de neutralidade (color blind), e que invalida ou deixa em desvantagem os clamores da população negra.

  1. Contextualizando a CRT à realidade brasileira

Há diferenças entre Brasil e EUA em termos de relações raciais, na formação e organização do movimento negro, bem como na natureza das relações raciais, que no Brasil não se deu por meio de políticas segregacionistas impostas pelo Estado, como se verifica na segregação norte-americana ou no apartheid sul- africano (ANDREWS, p. 52).

 Assim como nos Estados Unidos, anos após a abolição da escravatura, ainda é bastante sensível a degradação que o regime escravocrata e senhorial operou no Brasil, por não haver garantido aos antigos agentes de trabalho escravo[19], a assistência e a garantia que os protegesse na transição para o sistema de trabalho livre. Os senhores foram eximidos da responsabilidade pela manutenção e segurança dos libertos, sem que o Estado, a Igreja, que atuou para a não escravização e na catequização dos indígenas, ou qualquer outra instituição assumissem o ônus da escravidão. O liberto se viu convertido, de maneira repentina, em senhor de si mesmo e de seus dependentes, embora não dispusesse de meios materiais para realizar essa tarefa (FERNANDES, 2008, p. 29). As compensações individuais ou coletivas advindas com a transição de sistema econômico e com as migrações urbanas não alteraram a posição do negro e do mulato no sistema de relações econômicas e sociais. Ambos foram surpreendidos pela eclosão de uma ordem social competitiva e urbanizada, pautada por um peneiramento profissional, que não apenas os deixou à margem do processo de crescimento econômico, como contribuiu para que alguns destes jovens buscassem no crime uma saída rápida e compensadora (FERNANDES, 2008, p. 161-172).

 Tais acontecimentos históricos muito contribuíram para a realidade atual, na qual prevalece um contínuo e crescente conflito entre a exclusão e a inclusão, entre a subordinação e a liberdade; entre a riqueza e a pobreza individual ou coletiva e, dessa forma, o fosso de diferenças alarga-se assustadoramente (CANTELLI; RENAULT; VIANA, 2010, p. 309). Os principais argumentos colhidos da revisão teórica da CRT podem auxiliar no enriquecimento do debate e da produção nacional, sobre a desmistificação do Brasil como um país democrático, no que tange às relações raciais.

A identidade racial brasileira é marcada pelos sistemas colonial e escravagista, os quais ainda nos remetem, mesmo após a abolição, a uma desvalorização da figura do negro, baseada em teses da inferioridade biológica, corroborando com a perpetuação do racismo por toda a estrutura da sociedade brasileira[20]. O discurso racista conferiu base de sustentação para a exploração da mão-de-obra africana, a concentração de poder nas mãos das elites brancas locais no pós-independência e para a manutenção da exploração de um povo, pelas intransigências do capital. O racismo foi o “amparo ideológico”, em que o país se apoiou (e ainda se apoia), para fazer viável um “pacto social pautado no mito da democracia racial”, do qual a elite nacional nunca abriu mão (FLAUZINA, 2006, p. 98). O ideário antirracista entranhou-se na maneira de ser brasileira, de modo a se afirmar que raças não existem no país e que a cor da pele nada influencia em termos de oportunidade de vida e de classe social, mas, a negação da existência das raças subsiste ao tratamento discriminatório e na reprodução das desigualdades sociais entre as raças (GUIMARÃES, 2012, p. 65-66).

Esta negação de discriminação, que corrobora com o discurso de neutralidade judicial é criticada pela CRT, que se propõe a enfrentar os privilégios do sistema jurídico e doutrinário que enfraqueça a população negra; lutar contra as leis que não sejam neutras, mas sim concebidas como um reparo à supremacia branca e à subordinação dos negros[21].

Concretizou-se, então, no passar dos anos, uma naturalização da hierarquia racial, na qual o racismo assegurou a reprodução, quase que automática, da discriminação dos negros (PIRES, 2016, p. 280). O sociólogo norte americano Edward Telles acredita que, nessa perspectiva, o racismo deixou de ser um mito no Brasil para tornar-se uma realidade social, por ser “aceito” por diversos setores sociais.

É assim que a tensão existente entre harmonia racial e “embranquecimento” é acirrada pela impossibilidade ou incapacidade da classe dominante de reconhecer, de maneira horizontal, a igualdade entre todos nós diante da pluralidade de raças e cores existente do país. Essa tensão concretiza-se no processo de caracterização dos negros como seres subalternos.

Gayatri Spivak[22] retoma o filósofo Antonio Gramsci e sua relação com os estudos raciais para escrever sobre os subalternos. Para a autora, o termo não pode ser utilizado para se referir a todo e qualquer marginalizado, pois no entendimento de Gramsci o termo subalterno referia-se ao “proletariado”, cuja voz não pode ser ouvida.

Assim, ela argumenta que o termo subalterno descreve “as camadas mais baixas da sociedade constituídas pelos modos específicos de exclusão dos mercados da representação política e legal, e da possibilidade de se tornarem membros plenos no estrato social dominante” (SPIVAK, 2014, p. 13/14).

Eles não poderiam ser membros da sociedade, porque não eram considerados em suas individualidades. O que marca a despersonalização atribuída aos colonizados/subalternizados é a coletivização que o colonizador faz destes indivíduos, quando os vislumbra a partir da ideia de um corpo coletivo sem particularidades ou individualidades. Nessa perspectiva, o colonizado é quase um não humano e tende a se tornar um objeto para o colonizador.

  • Criminalização do corpo negro ou criminalização do racismo?

 

O abismo entre a justiça e a sociedade, principalmente das categorias subalternizadas, aumenta na medida em que o Sistema Jurídico se mostra conservador, racista, machista, com informações e recursos escassos para as demandas desta população. Assim, o pleno exercício da cidadania é, quando não restrito, negado a essas categorias.

Infelizmente, e essa é uma afirmação provocativa, o processo de democratização destas instituições não impediu a perpetuação de um pensamento racializado por entre os órgãos do Poder Judiciário por dois motivos: (a) os estereótipos e estigmas criados em torno da figura do negro na sociedade brasileira ainda é muito forte e (b) o racismo institucional, evidenciado na forma como a lei é aplicada pelos magistrados, e também reproduzido quando nos atentamos à falta de representatividade negra nesses órgãos.

Quando pensamos em políticas de reconhecimento[23], observamos que a população negra não tem acesso à justiça como, também, não faz parte do Sistema de Justiça. A vasta maioria dos membros do Poder Judiciário brasileiro, assim como, dos membros do Ministério Público vem da mesma categoria[24]: pessoas brancas e de classe média alta, que, por exemplo, atuam de maneira omissiva quando deixam de oferecer denúncia considerando que o caso de racismo não é importante ou, oferecem denúncia, prendem e auxiliam no genocídio da juventude negra, porque a criminalidade está relacionada ao genótipo e fenótipo da população negra. Nas palavras de Thula de Oliveira Pires (2016, p. 177):

A luta antirracista pressupõe uma mudança significativa não apenas no referencial simbólico que rege as relações sociais, mas também na atuação dos agentes públicos e instituições frente à questão. O direito enquanto instrumento de controle social reproduz as hierarquias morais, utiliza-se de categorias de sujeito que são contingentemente estabelecidas e a partir delas promove avaliações binárias, ao estabelecer noções de lícito/ilícito, legal/ilegal, entre outras.

Assim, da condição de Outro ao papel do inimigo, percebe-se que na esfera penal os pretos e pardos foram nitidamente o grupo social escolhido desde o início do processo de formação social brasileira como a alteridade a ser negada, excluída e invisibilizada. A ausência de neutralidade existente na elaboração normativa promoveu da época colonial aos dias atuais o deslocamento dos navios negreiros para as instituições carcerárias (PIRES, 2016, p. 177/178).

Na academia, principalmente nas faculdades de direito, a falta de reconhecimento também é evidenciada.  São poucos os intelectuais negros, e, por isso, ainda precisamos vencer a resistência do establishment acadêmico, o qual se mantém conservador ao ingresso dos estudantes e pesquisadores da população negra. O exemplo mais próximo que temos disso é a Universidade de São Paulo, que tem uma reação bastante negativa a ideia de conceder cotas raciais[25]. Discutir cotas nas universidades públicas significa repensar e avaliar a sua função social, que, por ser gerada por verbas do Estado, deveria formar lideranças que representassem a diversidade étnica e racial de nosso país (CARVALHO, 2003).

O que se tem, portanto, é que a necessidade de repressão do povo negro nasce das contradições do processo de abolição, pois, com a perda da ferramenta de controle que os senhores tinham sobre os corpos negros com a escravidão, houve a necessidade de se criar outras formas para controlar as culturas, religiões e costumes dos recém-libertos. Assim, para evitar que os negros influenciassem de maneira negativa, os brancos e seus costumes, foi necessário estabelecer políticas proibicionistas e o Estado foi quem assumiu o poder de controle sobre os corpos negros.

Então, para que se possa entender a relação entre racismo e direito, racismo e criminologia e entre sistema penal e controle racial, é preciso enxergar o afastamento do corpo negro dos aparelhos de controle estatal, ao mesmo tempo em que ocorre a desumanização e invisibilidade destes corpos.

Nossa sociedade teve, historicamente, sua constituição como um espaço onde as desigualdades expressavam-se tanto nas leis quanto nas normas sociais vigentes desde o período colonial. Assim, a Criminologia brasileira foi construída de maneira compromissada com nossa realidade histórica. Roberto Bergalli sintetiza os preceitos criminológicos com as seguintes palavras:

As ciências, sociologia e criminologia, emergiram como base de legitimação. Já o direito consistia apenas em uma técnica simples de aplicação da defesa social- da ciência criminológica- não garantia- com um maior ou grau de bondade- para estabelecer as relações entre os indivíduos, especialmente, e acima de tudo, destes frente ao Estado. A questão não era lutar pelo aperfeiçoamento das garantias, mas pela técnica do controle. Esta técnica imanente ao direito penal não tinha caráter generalizante – em grande parte igualitária, que lhe atribua abordagem das teorias absolutas da pena, e até certo ponto, também da teoria da prevenção geral. Tratava-se de individualizar, especificar e estabelecer regimes especiais e excepcionais. Por isso também não podia mais se basear na ideia de igualdade entre os homens. Era necessário discriminar, pois existiam homens determinados a serem ruins e outros a serem bons. Esta noção de especialidade e excepcionalidade produz efeitos a partir de então, e mesmo até agora, na técnica legal da segurança e da ordem pública (da defesa social), abandonando assim o princípio da igualdade (BERGALLI, 2015, p. 25).

Seguindo estas diretrizes, Nina Rodrigues, como um estudioso dos ensinamentos positivistas, esboçou um enquadramento de controle racial nos moldes brasileiros para uma sociedade mestiça estruturada por padrões europeus no período pós-abolição. A conversão absoluta de Nina Rodrigues ao campo da Medicina Legal deu-se com a publicação de “As Raças Humanas e a Responsabilidade Penal no Brasil”, de 1894. O livro foi dedicado aos criminólogos positivistas Lombroso, Ferri, Garófalo, nos seguintes dizeres: “em homenagem aos relevantes serviços que os seus trabalhos estão destinados a prestar a medicina legal brasileira, atualmente simples aspiração ainda” (RODRIGUES, 1957, p.21).

Este livro, fundamental para compreensão de Nina Rodrigues e a imputação do caráter de criminoso aos negros, tem como propósito apresentar as modificações que as condições de raça imprimiriam à responsabilidade penal, assim como criticar o Código Penal Brasileiro de 1890, por não apresentar um tratamento diferenciado para negros, índios e mestiços – produtos das chamadas raças inferiores. Seu argumento partia do pressuposto de que haveria uma diferença fundamental entre as raças no que se referia à sua constituição mental:

A concepção espiritualista de uma alma da mesma natureza em todos os povos, tendo como consequência uma inteligência da mesma capacidade em todas as raças, apenas variável no grau de cultura e passível, portanto, de atingir mesmo num representante das raças inferiores, o elevado grau a que chegaram as raças superiores, é uma concepção irremissivelmente condenada em face dos conhecimentos científicos modernos (RODRIGUES, 1957, p.28).

Sempre buscando referência nos dizeres positivistas, Nina Rodrigues utilizou longas citações de autores como Tarde e Garófalo para sustentar a razão pela qual o Código Penal deveria regulamentar a real condição dos cidadãos e dos não cidadãos brasileiros. Segundo ele a própria noção de crime se alterava conforme o tempo e a sociedade e se a ideia de crime se alterou ao longo do tempo, nada mais natural que a ideia de justiça se modificasse também.

Para que todos tivessem a mesma noção de justiça e responsabilidade, era necessário, então, que houvesse uma homogeneidade racial na população, o que era o nosso caso, já que as populações se encontravam em níveis distintos de evolução mental, graças à presença da população negra. Assim, Nina Rodrigues concordou com Tarde quando este afirmou que para se chegar à homogeneidade populacional era preciso que:

As inclinações naturais, quaisquer que sejam, tenham recebido, em larga escala, do exemplo ambiente, da educação comum, do costume reinante, uma direção particular que as tenha especificado […]. Quando a sociedade tem fundido assim à sua imagem todas as funções e todas as tendências orgânicas do indivíduo, o indivíduo não faz um movimento, um gesto, que não seja orientado para um fim designado pela sociedade. Além disso, é preciso que, em larga escala também, as sensações brutas fornecidas pelo corpo e a natureza exterior em face um do outro, tenham sido profundamente elaboradas pelas convenções, pela instrução, pela tradição, e convertidas deste modo em um conjunto de ideias precisas, de juízos e de prejuízos, conformes em maioria às crenças dos outros, ao gênio da língua, ao espírito da religião ou da filosofia dominante, à autoridade dos avós ou dos grandes contemporâneos. Depois disso, pense o que pensar o indivíduo, ele há de pensar com o cérebro social (TARDE apud RODRIGUES, 1957, p.45).

O que se pode observar é que, apesar de o Código penal não apresentar essa diferenciação de maneira explícita e direta, as leis nacionais sempre foram aplicadas de maneira diferenciada entre os brancos e os não brancos.

 Os preceitos de Nina Rodrigues corroboram com esta prática governamental no sentido em que ele acredita que crimes cometidos por indígenas, negros ou mestiços só poderiam ser analisados a partir de um ponto de vista racial que levasse em conta os valores morais e as noções de justiça vigentes nos seus respectivos grupos. Afirma Nina Rodrigues:

Ora, desde que a consciência do direito e do dever, correlativos de cada civilização, não é o fruto do esforço individual e independente de cada representante seu; desde que eles [índios, negros e mestiços] não são livres de tê-la ou não tê-la assim, pois que essa consciência é, de fato, o produto de uma organização psíquica que se formou lentamente sob a influência dos esforços acumulados e da cultura de muitas gerações; tão absurdo e iníquo, do ponto de vista da vontade livre, é tornar os bárbaros e selvagens responsáveis por não possuir ainda essa consciência, como seria iníquo e pueril punir os menores antes da maturidade mental por já não serem adultos, ou os loucos por não serem sãos de espírito (RODRIGUES, 1957, p.79).

Os negros africanos são o que são: nem melhores nem piores que os brancos: simplesmente eles pertencem a uma outra fase do desenvolvimento intelectual e moral. Essas populações infantis não puderam chegar a uma mentalidade muito adiantada e para esta lentidão de evolução tem havido causas complexas. Entre essas causas, umas podem ser procuradas na organização mesma das raças negríticas, as outras podem sê-lo na natureza do habitat onde essas raças estão confinadas. Entretanto, o que se pode garantir com experiência adquirida, é que pretender impor a um povo negro a civilização européia é uma pura aberração (RODRIGUES, 1957, p.114).

Nina apresenta três perguntas chaves para o entendimento de sua obra: Como exigir, questiona o autor, que todas as “diferentes raças encontradas no Brasil” respondam por seus atos perante a lei com igual plenitude de responsabilidade penal? É possível admitir que os índios e negros, bem como seus mestiços, tenham discernimento para decidir entre cometer ou não um crime? E, por fim, seria correto conceber que a consciência do dever e do direito destas raças seja a mesma da dos brancos?

Nina Rodrigues não respondeu a estas questões, mas os governos brasileiros, por meio da atuação do Poder Judiciário, desde o fim do período escravista, tendem a punir os negros de maneira mais severa, como se o fato de ser negro implicasse em responsabilidade penal diferenciada.

Assim, para o autor, um negro que cometesse um crime de honra, por exemplo, não poderia ser julgado da mesma maneira que um branco que tivesse cometido o mesmo crime. Suas aptidões mentais, suas formas de ver o crime e seus códigos de conduta eram outros. O branco deveria ser punido mais severamente que o negro, pois ele teria domínio sobre o código da civilização. Sua superioridade mental o obrigaria a ter consciência e pensar racionalmente sobre o crime que porventura viesse a cometer, diferentemente do negro, que seria acometido por suas emoções, que dominariam sua consciência, incapacitando-o para a racionalidade. O caso do indígena (puro) era o mesmo que o do negro.

Estudando este discurso da criminologia ao longo do seu processo de implementação no Brasil, é possível perceber como a utilização da ideologia de defesa social e das estratégias de controle social serviram para legitimar a institucionalização do racismo enquanto um instrumento de subalternização do corpo negro pelo sistema criminal nacional.

Essa ideologia da defesa social chegou ao Brasil e introjetou, nos meios leigos e jurídicos, uma concepção de criminalidade vastamente difundida até os dias de hoje. O “Judiciário incorporou o que poderia ser chamando de tecnologia penal normalizadora, com o advento e expansão do discurso da criminologia.” (RAUTER, 2013, p. 18). O problema centra- se no fato da incorporação do ideário ter acontecido no âmbito social de um país que acabara de sair de um modelo de economia escravagista, esse processo não aconteceu sem que o ônus da violência estatal recaísse sobre a população negra.

Ainda hoje podemos observar o aparato judicial como a instância que possibilita e assegura as condições de exploração que um grupo de indivíduos exerce sobre a camada subalternizada. Contudo sua atuação não deve ser entendida exclusivamente no sentido da repressão, da violência explicita da polícia ou da exclusão pelo encarceramento.

Nesta estruturação de bem estar comum em consonância com a ideologia da defesa social, que nosso Estado atual identifica-se com os ideais positivistas defendidos por Césare Lombroso e Nina Rodrigues. Neste ponto encontramos com a visão crítica da CRT compreendendo como foi construída da relação entre raça e direito na composição de nossa realidade.

O que se demonstra é que a base de sustentação do direito vem sendo as relações raciais como uma “reflexão da apropriação da temática racial na legislação brasileira” (PIRES, 2016, p. 69). O negro que é sujeito do sistema penal, e essa afirmação advém do fato de a população carcerária ainda ser composta majoritariamente por negros, também é o sujeito que demanda proteção judicial.

Recente pesquisa realizada por Gislene Aparecida dos Santos[26] e intitulada Nem crime, nem castigo: o racismo na percepção do judiciário e das vítimas de atos de discriminação sinaliza como os casos de racismo, que compõe uma amostra de processos jurídicos ocorridos na cidade de São Paulo, entre 2003 e 2011, foram percebidos pelo judiciário e pelas vítimas.

Gislene discute se a experiência de tomada da problemática racial pelo judiciário influenciou de maneira positiva, ou não, o sentimento de autorrespeito[27] e reconhecimento vivido pelas vítimas da lógica do sistema racial.

Como metodologia realizou-se pesquisa nas bases de dados do TJSP. Foram pesquisados inquéritos e processos de primeira instância nas bases eletrônicas de acesso aberto e, também, nos sistemas de consulta de acesso restrito e fechado. Buscou-se por: apenas os crimes contra pretos e pardos (negros); apenas os crimes de racismo ou injúrias raciais; apenas os casos de Primeira Instância; apenas os casos arquivados; casos ocorridos de 2003 a 2011; que não estivessem em segredo de justiça; e somente aqueles ocorridos na cidade de São Paulo.

Também foi realizada pesquisa na Secretaria da Primeira Instância (SPI) do TJSP, sendo localizados, eletronicamente, 1.100 documentos que mesclavam processos e inquéritos contra negros e não negros, injúria qualificada, racismo e injúria simples (não qualificada por preconceito). Da primeira fase de análise jurisprudencial do TJSP, destaco os seguintes resultados:

I.. Muitas condutas foram desqualificadas de injúria qualificada pelo preconceito para o tipo de injúria simples, afastando a análise da lide pela Justiça Comum e a encaminhando para os Juizados Especiais Criminais, que julgam os crimes de menor potencial ofensivo.

II.. Muitos dos casos analisados constaram como injúria e não como racismo. Entre os inquéritos, 73% foram tipificados como injúria contra 15% como racismo. Entre os processos, após desclassificação das tipificações solicitadas  pelos  ofendidos  e  reconhecidas  pelo  Ministério  Público,  53% foram tipificadas como injúria versus 7% tipificadas como racismo.

III.. Desses processos, uma pequena porcentagem foi julgada e recebeu sentença condenatória. Ou seja, a maioria dos inquéritos por injúria ou racismo foram encerrados durante a fase da investigação.

  1. IV. Para os inquéritos, observa-se a enorme quantidade de arquivamentos em razão da decadência do prazo para realizar a queixa-crime (que era de seis meses para crimes anteriores a 2009). Já entre os processos, observa-se um misto entre a desclassificação do crime de racismo tornando-o injúria racial; a decadência desses em razão da extinção do prazo para propor a queixa-crime e; também, a rejeição das denúncias por falta de provas que fossem consideradas consistentes. Ou seja, mesmo quando se admitia que os fatos eram suficientes para preencherem o tipo penal de injúria qualificada por preconceito ou racismo, em análises posteriores, verificava-se a inexistência de provas materiais do fato ou, ainda, recaíam em questões procedimentais que impediam o seguimento do process

A segunda fase da pesquisa, realizada pela metodologia de entrevistas, que foram realizadas por meio de dois modos operacionais: presencialmente ou por telefone, com o objetivo de que cada entrevistado contasse o que ocorreu de acordo com três categoriais formuladas pelas pesquisadoras: categoria acesso à justiça, categoria desrespeito/autorrespeito, categoria percepção do racismo.

Dentre todos os resultados colhidos, o de maior relevância para os objetivos da minha pesquisa é o padrão indicando pelas vítimas de que a lei existente não identifica como crimes raciais as ofensas que as vítimas apresentam/sentem como tal. Retoma-se aqui a ideia de o direito ser visto apenas como um instrumento de repressão no caso das categorias subalternizadas.

Restou demonstrado que as leis são consideradas irrelevantes pelo Judiciário, “que demonstraria insensibilidade diante das queixas feitas pelas vítimas negras”. Nesta argumentação consigo identificar a fragilidade do mito da democracia racial (color blind) ou do imaginário de neutralidade de um juiz, que julga de maneira equânime entre todos os cidadãos. O Poder Judiciário deixa de ser neutro, quando sua composição majoritária de homens e brancos, deve julgar as demandas da população negra sem olhar para os estigmas negativos criados sobre a população negra. Em outras palavras, o racismo é um fato normal e diário na vida da sociedade brasileira, manifestado de diversas formas (inclusive brigas de vizinhos), mas acaba sendo acobertado pelo mito da democracia racial e pela ideia de democratização do acesso à justiça.

Nos dizeres de Gislene, o desejo de que a raça “não conte” (…) torna evidente o modo como o Judiciário fez uso dos costumes sociais para minimizar e naturalizar as práticas de discriminação como atos não racistas.

O acesso a um judiciário inserido na realidade social e comprometido com o objetivo de realização da ordem jurídica justa exige uma postura de enfrentamento real do problema racial por cada membro desta instituição, que deve, através de respostas contundentes e adequadas às violações de direito e violência às identidades que a ato racista engendra, obediência ao compromisso constitucional de efetivação de garantias e direitos fundamentais a todos os cidadão, independente de raça, cor, sexo ou religião.

  1. Conclusões

A luta contra o sistema racista nacional pressupõe uma mudança significativa, não apenas no olhar social sobre a teorização das questões raciais, mas também na atuação do sistema judiciário no relacionamento com o social. A necessidade de se buscar uma teoria dos Estados Unidos para conseguir analisar a relação entre o direito e o racismo, demonstra o atraso das nossas instituições jurídicas em cuidar do racismo como um fenômeno social.

A interpretação equivocada, ou sem qualquer preocupação de análise da norma de acordo com o cenário histórico nacional, de normas de teor antirracista contribui para o esvaziamento das medidas de promoção da igualdade racial e para o entendimento de dificuldade de acesso à justiça da população subalternizada. Também se observa que esta interpretação comprova a ideia de perpetuação do controle realizado pelo Sistema de Justiça sobre os corpos da população negra.

O apelo às referências desenvolvidas pela Teoria Crítica da Raça permitiu a demonstração que o direito esconde e reafirma a estrutura dominante de inferiorização da identidade negra seu afastamento social por meio do aprisionamento. Usar oficialmente o direito para segregar não significa apenas elaborar normas jurídicas com caráter afirmadamente discriminatório, mas também negar o acesso à justiça àqueles caracterizados como subalternizados.

Identidade racial é algo atribuído de fora. É uma construção imposta a determinados grupos populacionais com determinadas características. Por isso, ser negro no Brasil ainda é uma desvantagem social. É fato que as pessoas com pele mais escura têm uma maior dificuldade de entrar no mercado de trabalho, porque o racismo tem um caráter estético. Então, precisamos repensar a forma como os padrões estéticos ainda são mantidos no ideário nacional e dos nossos julgadores.

Como nos EUA e no Brasil a questão de dependência do crack revela a responsabilidade dos governos na perpetuação de mitos e discriminações, tem-se que, ao longo dos anos, houve um aumento dos casos de encarceramento de negros e na negação de seus direitos civis- 1/3 dos  negros  do  sexo  masculino,  depois  do  ano  de  ano  de  2000, passarão  pelas  prisões  norte-americanas se as políticas de encarceramento permanecerem voltadas ao caráter racial.

O racismo institucional aparece mascarado pelo mito da democracia racial como um sistema generalizado de discriminações inscritas nos mecanismos rotineiros, assegurando a dominação e a inferiorização dos negros sem que haja necessidade de teorizá-la ou justificá-la pela ciência, além de constituir entrave claro à realização plena do acesso à justiça por parte da população afro-brasileira.

Assim, como restou evidente na pesquisa, não se acredita na força simbólica do punitivismo penal, pois para além de o sistema criminal ser perpetuador de desigualdades e de violência sobre a população negra, acredita-se que precisamos conhecer que de fato são os negros brasileiros, suas origens e identidade para que, assim, se poça pensar em políticas públicas em conjunto com outras medidas que sejam efetivas para uma integração do negro à sociedade.

O ambiente de pesquisa das universidades de direito também precisa modificar suas perspectivas de análise, deixando de enxergar o negro como objeto de análise, como o outro a ser estudado, porque acredito que essa postura também é uma forma de perpetuação do racismo institucional que cerca o sistema de ensino, principalmente as universidades públicas.

Então, se por um lado precisamos entender como os mecanismos de exclusão operam, nos também precisamos pensar o direito, especificamente o estudo dos direitos fundamentais (as relações entre direitos fundamentais e a ordem econômica; as relações entre as diferentes categorias de direitos fundamentais- direitos de 1ª, 2ª e 3ª gerações) devem ser vistos como forma de emancipação social. Pensar formas de políticas de inclusão de minorias raciais e sexuais não é uma opção política, mas sim uma obrigação estatal. Isso está em nossa constituição. É uma exigência das normas constitucionais.

O Brasil realmente é um país miscigenado, mas o grupo que controla as instituições brasileiras é homogêneo. A miscigenação do círculo do poder é um paço de importância para democratização da justiça brasileira e para uma justiça racial.

A criminologia, interpretada como um saber multidisciplinar, que ultrapassa as suas próprias circunscrições tradicionais do conhecimento, deveria abrir novas possibilidades de inserção, de outros campos de estudos, de novas formas de atuação no campo social. A inserção de discursos entendidos como críticos, nesses espaços de base criminológica consolidada, romperia paradigmas estabelecidos de maneira fixa, como no caso do paradigma racial.

Referências

  1. Livro (língua original)

ALVAREZ, Marcos César. Bacharéis, Criminologistas e Juristas: saber jurídico e nova escola penal no Brasil. São Paulo: Método, 2003.

BARROS, José D’ Assunção. A construção social da cor: diferença e desigualdade na formação da sociedade brasileira. 2ª ed.. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2012.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Crime de Racismo e anti-semitismo: um julgamento histórico no STF: habeas corpus nº 82.424/RS. Brasília: Editora Brasília Jurídica LTDA, 2004.

BROWN, Dorothy. Critical Race Theory: cases, materials and problems. American case book series, ed. Thomson West, 2003.

CANTELLI, Paula Oliveira; RENAULT, Luiz Otávio Linhares; VIANA, Márcio   Túlio. Discriminação. 2ª ed. São Paulo: LTr, 2010.

CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011.

CARVALHO, José Jorge de. As ações afirmativas como resposta ao racismo acadêmico e seus impactos nas ciências sociais brasileiras. Teoria e pesquisa 42 E43. Jan/ Jul 2013.

FERNANDES, Florestan. A integração no negro na sociedade de classes: ensaio de interpretação sociológica. Vol. 1, 5ª ed. São Paul: Globo, 2008.

GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Classes, raças e democracia. Ed. 2. São Paulo: Editora 34, 2012.

PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Criminalização do Racismo entre política de reconhecimento e meio de legitimação do controle social dos não reconhecidos. Brasília: Brado Negro, 2016.

RODRIGUES, Raymundo Nina. Os Africanos no Brasil. São Paulo: Madras Editora Ltda,

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil- 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

SCHWARCZ, Lilia Moritz; REIS, Letícia Vidor de Souza. Negras Imagens: ensaios sobre cultura e escravidão no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Estação Ciência, 1996.

2008.

  1. Livro (traduzido)

TELLES, Edward. Racismo à brasileira: uma nova perspectiva sociológica. Tradução Ana Arruda Callado, Nadjeda Rodrigues Marques e Camila Olsen. Rio de Janeiro: Relume Dumará/Fundação Ford, 2003.

III. Capítulo de livro

  1. Artigo de periódico

CRENSHAW, Kimberlé; GOTANDA, Neil; THOMAS, Kendall. Critical Race Theory: the key writings that formed the movement. Published in the United States by the new Ptess, New York, 1996.

 FULLIN, Carmen. Direito e Racismo: observações sobre a legislação penal antidiscriminatória no Brasil. Revista da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, vol. 6, 2000.

  1. Artigo de jornal
  1. Tese ou dissertação

CONCEIÇÃO, Ísis Aparecida. Os limites dos direitos humanos acríticos em face do racismo estrutural brasileiro: o programa de penas e medidas alternativas do Estado de São Paulo. São Paulo: Programa de Pós- Graduação (Mestrado em Direito do Estado) da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2009.

FLAUZINA, Ana Luíza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro. Brasília: Programa de Pós-Graduação (Mestrado) em direito da Universidade de Brasília, 2006.

VII. Texto de internet

ANDREWS, George Reid. O negro no Brasil e nos Estados Unidos. Disponível em: http://www.scielo.br/readcube/epdf.php?doi=10.1590/S010264451985000200013&pid=S0102-64451985000200013&pdf_path=ln/v2n1/a13v2n1.pdf&lang=pt

CRENSHAW, Kimberlé Williams. Twenty years of Critical Race Theory: looking back to move forward. Artigo publicado na Connecticut Law Review. Vol. 43, nº 5, July 2011. Disponível em: <http://connecticutlawreview.org/articles/twenty-years-of-critical-race-theory- looking-back-to-move-forward/>. Acesso em: 19/02/2018.

CRENSHAW, Kimberllé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. University of California, 2002.

CRENSHAW, Kimberlé; GOTANDA, Neil; THOMAS, Kendall. Critical Race Theory: the key writings that formed the movement. Published in the United States by the new Ptess, New York, 1996.

DELGADO Richard; STEFANCIC Jean. Critical Race Theory: an introduction. Seattle, Washington, 2010.

DELGADO, Richard; STEFANCIC, Jean. Critical Race Theory: An Annotated Bibliography. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/1073418.

DELGADO, Richard; STEFANCIC, Jean. Critical Race Theory: the cutting edge. Third edition, 2013.

 

VIII. Legislação

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 10/05/2015.

  1. Duas (ou mais) referências com mesmo autor e ano

 



DESACATO: ESTUDO SOBRE A FORMA CONTEMPORÂNEA DA REPRESSÃO NO BRASIL1

CONTEMPT: A STUDY ABOUT THE CONTEMPORARY FORM OF REPRESSION IN BRAZIL

 

Lucas Cardoso de Oliveira2

Resumo: O presente trabalho se presta a um exame sistemático sobre o Art. 331 do Código Penal brasileiro, numa tarefa da crítica por dois vetores: a análise dogmática de sua existência normativa a luz da moderna teoria do fato punível e um exame criminológico desta norma e como esta incide no tecido social. Além disso, expõe-se tal tipo penal ao entendimento de seu desacordo com a Comissão Interamericana de Direito Humanos e com o Pacto de São José da Costa Rica assinado pelo Brasil, além de uma crítica a criminalização do Desacato sob uma visão garantista apoiada na teoria constitucional e restritiva do bem jurídico, elementos ainda fundamentais na criação de um núcleo duro de direitos invioláveis na comunidade latino- americana, visto o largo histórico de repressividade, estrutural e imediata, no Brasil.

Palavras-Chave: Desacato; Repressão estrutural e imediata; Poder punitivo; Arbitrariedade; Bem-jurídico.

Abstract: The present work lends itself to a systematic examination of the Art. 331 of the Brazilian Penal Code, in a task of criticism by two vectors: the dogmatic analysis of its normative existence in the light of the modern theory of punishable fact and a criminological examination of this norm and as this affects the social fabric. In addition, this criminal type is exposed to the understanding of its disagreement with the Inter-American Commission on Human Rights and the Pact of San José of Costa Rica signed by Brazil, beside to a critique of the criminalization of contempt under a guarantee vision supported by the constitutional and restrictive theory of the juridical asset, still fundamental elements in the creation of a hard core of inviolable rights in the Latin American community, given the wide history of structural and immediate repression in Brazil.

Keywords: Contempt; Structural and immediate repression; Punitive power; Arbitrariness; Criminal juridical asset.

1 Trabalho apresentado ao Espaço de Discussão 8 – Criminologia Crítica e Movimentos Sociais do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

2 Lucas Cardoso de Oliveira, estudante de Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás (UFG). Bolsista CAPES, pelo Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC). Email: [email protected], telefone para contato: (62) 98156-6368

Introdução

 Para considerações iniciais se faz aqui necessário uma maior explicação sobre o objeto do presente trabalho. Apesar de nos situarmos este trabalho no campo teórico das ciências criminais lato sensu (criminologia, direito penal e política criminal), a criminalização, como fenômeno específico, não é o único foco desta empreitada teórica.  Junto a criminalização em si, será tido como objeto analisado a repressão.

Falar de criminalização nos levaria, irremediavelmente, a analisar categoricamente fenômenos de seletividade dos “filtros punitivos”, desde a criminalização primária (criminalização pelo legislador na forma de lei) até o encarceramento (como o instrumento de terror para os “casos mais duros”(SANTOS, Juarez Cirino dos, 2012, p. ((570)).

Para esta análise se parte de uma primeira análise sócio histórica da existência da repressão na sociedade e sua construção como um discurso de legitimidade ao poder repressivo em um Estado orientado dentro de um processo político-econômico da luta de classes. Posteriormente, nos valeremos de apontamentos sob aspectos dogmático-jurídicos da existência da “lei de desacato” no ordenamento jurídico brasileiro, frente a moderna teoria penal orientada pela dignidade da pessoa humana, liberdade e a estrutura normativa internacional de proteção dos direito humanos, representada no Brasil sob a forma da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

1)                            Controle social: Repressão imediata e Repressividade estrutural

 A repressão se diferencia da criminalização em alguns pontos constituintes elementares, sem permanecerem terminantemente em campos distintos do tecido social. Poderíamos separar a repressão em dois momentos essenciais: i) Repressividade estrutural ou total, que em termos gerais se apresenta como toda a utilização de força direta (uso de

Aparelho Repressivo de Estado) ou indireta (Aparelhos Ideológicos de Estado3). A força estatal enquanto forma histórica total não se encontra aqui limitada aos limites formais impostos pela pretensão democrática da legislação constitucional, ultrapassando seus limites de acordo com os processos de formação do uso de força de caráter estrutural e até mesmo politicamente reativo. Tal repressão encontra sua formação institucional mediada pelas formas de constituição da vida social estruturadas pelas relações econômicas de produção vigentes, resultando em efeitos gerais de controle da força de trabalho e gestão dos (historicamente) indesejáveis. Portanto, se baseia aqui numa estudo sóciohistórico da forma jurídica penal, visto que a transformação dos sistemas penais não podem ser explicadas apenas pelas demandas da luta contra o crime. Pois todo sistema de produção tende a descobrir formas punitivas que correspondem às suas relações de produção (RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto, 2004, p, 20).

A outra face, já contida no todo da repressão, se encontra na categoria da ii)  repressão imediata ou autoritária (controle social conjuntural). O caráter desta repressão, ainda que já formada no seio de uma sociedade que tem suas formas institucionais limitadas pelas forças concretas materiais contraditórias, é primordialmente o próprio caráter de repressividade arbitrária, posto em mãos dos órgãos estatais de controle social, capacitando assim a repressão do corpo social quando politicamente visto como necessário ou tornando a arbitrariedade cotidiano na atuação do uso do poder repressivo. Desta maneira, existe a emergência da ação política institucional autoritária em seu sentido mais sublime, ainda que o Estado que a exerce tenha a forma democrática proclamada. O elemento da arbitrariedade repressiva é a manifestação fática do poder punitivo sob proteção das formas jurídicas da “discricionariedade”, legitimadas pela necessidade dos órgãos de controle social exercerem o uso da força de acordo com a “proteção da ordem”, ao melhor estilo do autoritarismo vertical ultrapassado pela paradigma de estado constitucional-liberal4.

3 “Designamos por Aparelhos Ideológicos de Estado um certo número de realidades que se apresentam ao observador imediato sob a forma de instituições distintas e especializadas[…]” . Ver (ALTHUSSER,  Louis, 1996., p. 43). Para uma melhor compreensão de uma contemporânea crítica da ideologia ver ZIZEK, Slavoj. O Espectro da Ideologia. Um mapa da ideologia. Organização Slavoj Zizek; tradução: Vera Ribeiro. – Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.

4 A arbitrariedade repressiva aqui apontada corresponde a um cotejamento analítico do termo “Direito Penal Subterrâneo”, em que as manifestações de violência dos órgãos de controle não necessariamente agem de acordo com o movimento institucional da criminalização de controle social enquanto necessidade estrutural, porém são, pelas formas institucionais vigentes, protegidos (e até incentivados) na sua atuação autoritária. Sobre

Faz-se essa distinção que aponta para uma análise do sistema penal como um sistema não parcial, que condiz mutuamente (transversalmente) com um todo social contraditório e um sistema normativo positivo. Isso nos traz então o direito em duas dimensões de análise: i) uma análise da dogmática de tipificação criminalizadora dentro de um ordenamento jurídico que atende (ou, pelo menos, está deontologicamente direcionado a atender) a princípios Constitucionais voltados a um Direito Penal mínimo e democrático, como a (urgente) utopia criminalista tupiniquim racionalizadora do sistema penal. Sistema esse que representa ainda uma resposta legítima – e infelizmente necessária, acrescentamos – para certos problemas sociais(BARATTA, Alessandro, 1999, p.260). Além disso, tem-se por referência parâmetros fixados em tratados internacionais assinados pelo Brasil, que segundo o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) sob a matéria5; ii) outro prisma de análise se dá no sentido da identificação dos sentidos sócio-político que levam a constituição destas estruturas como tal e sua capacidade de repressividade que este tipo penal confere ao Estado, dando poder ao órgão repressor, não de criminalizar propriamente, mas de utilizar esse poder repressivo imediato a bem de seu arbítrio e protegido de respostas institucionais que acarretem mais largas consequências ou uma situação material que coíba o autoritarismo latente do Aparelho Repressivo de Estado.

Desta maneira, o Aparelho Repressivo Estatal (no caso, a polícia) não pode ser simplesmente compreendido por uma análise “pura” de suas funções institucionais positivadas sob forma de lei, mas um estudo que estende seu poder real com um tipo “autonomia” histórica frente às instituições superiores à polícia na hierarquia estatal no uso  do poder real na sua atuação no controle da vida social compartilhada, inclusive, e quanto ao presente objeto6, na repressividade a que chamamos de verticalmente autoritária. Portanto, aqui a legislação criminalizadora, não é vista em sua totalidade como a razão da repressão, mas constitui a condição de possibilidade na legitimação legal da atuação repressiva.

a atuação “subterrânea” Ver CASTRO, Lola Anyar de. Derechos Humanos, Modelo integral de la Ciência Penal y Sistema Penal Subterrâneo. Macaibo (Venezuela), 1983.

5 No Julgamento do Recurso Extraordinário (RE) n° 466.343/SP, Min. Relator Cezar Peluso, o Supremo reconheceu a interpretação que concede status supralegal aos tratados e convenções sobre direitos humanos.

6 “ A polícia não é, nesse momento, de forma alguma pensada como uma espécie de instrumento nas mãos do poder judiciário, uma espécie de maneira de aplicar efetivamente a Justiça regulamentada, não é um prolongamento da justiça, não é o rei agindo através do seu aparelho de justiça, é o rei agindo diretamente sobre seus súditos, mas de forma não judiciária […] É portanto o exercício soberano do poder real sobre os indivíduos que são seus súditos é nisso que consiste a polícia. […]” FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População: curso dado no Collège de France. 1° ed, Livraria Martins Fontes Editora Ltda., São Paulo, 2008.

2)                  Regras, metarregras e discricionariedades policiais na repressividade

 Outro elemento que ainda deve ser analisado na atividade policial para que se capte a essência de sua atividade de excessos perante a criminalização e tendo este como um filtro seletivo é, não só o conjunto de regras e procedimentos formais seguidos pela instituição policial, mas a interação das mesmas com as metarregras7 imbricadas na ação imediata do cotidiano policial. A categoria das metarregras da ação cotidiana policial figura como um abismo de insegurança factual entre as formas que amparam a própria atuação policial que flutua entre as formas procedimentais e discricionárias. Aquela carregando maior segurança e proteção contra o arbítrio Estatal; esta autorizando-o tacitamente.

As metarregras definem a maneira como os policiais dirigem a discricionariedade própria de sua atuação de repressão. Longe de serem procedimentos reforçados institucionalmente para a uma padronização da atuação e abordagem policial, as metarregras habitam os conceitos e preconceitos dos profissionais policiais que estes repetem consciente ou inconscientemente. Isto é levado então a uma instância macro da atuação repressiva que se dirige a uma clientela de estranhos (ZAFFARONI, 2007, p. 90) de sempre e em determinados casos serve a maneira autoritária de repressão inclusive de movimentações sociais organizados que incomodam estrutural ou conjunturalmente quem detêm o poder sobre a repressividade institucional imediata.

Seria uma miopia teórica se fazer desconhecer que houveram diversos avanços históricos quanto a diminuição da arbitrariedade policial no exercício da força. Porém, infelizmente a história da repressividade não se apresenta como uma progressão una de avanço ético-dogmático inconteste, mas uma multiplicidade descontínua de avanços e retrocessos legais no controle da atividade policial. Como um bom exemplo de uma infeliz regressão, tem-se a Súmula 330 do Superior Tribunal de Justiça que dispõe:  “É desnecessária a resposta preliminar de que trata o artigo 514, do Código de Processo Penal, na ação penal instruída por inquérito policial”. Isto na prática tira da horda judiciária a obrigação de maior atenção

7 Metarregras, neste contexto, serve de definição para o modo objetivo que as regras formais incidem sobre o sistema social. O termo aqui é apontado por DIETER, Maurício, Ver A Política Criminal Atuarial, em homologia conceitual a alguns conceitos da linguística contemporânea de SAUSSURE, Ferdinand de, onde se faz a distinção entre a “língua”– estrutura formal e geral da língua- e a “fala” -o modo real de manifestação  pela linguagem por sujeitos concretos.

frente ao fato trazido pelos órgãos policiais ao juízo, fazendo da ação policial medida dotada de caráter possivelmente repressivo, naquele momento, não contestável pela parte processada.

Desta forma, tem-se aqui contradição interna evidente do mesmo tribunal, que em certo momento define o inquérito policial como medida meramente administrativa, marginalizado o do princípio do devido processo legal, contraditório e ampla defesa (DIETER, 2012, p. 51), e em outro, o utiliza como medida segura para a instrução Processual Penal inequivocamente submetida aos princípios do devido processo legal, contraditório e ampla defesa.

Neste contexto, parecem aproximar-se as dimensões do Direito Penal, enquanto sistema de garantias individuais em vista da pretensão punitiva do Estado, e o Direito Administrativo, como normalização do funcionamento do Estado. E ao contrário do que há  de se imaginar, não ocorre aqui uma passagem de princípios e garantias do sistema Penal para o Administrativo, mas uma flexibilização do Penal em vista do Administrativo. Falando em outros termos, tem-se submissão de garantias pessoais ao sistema de funcionamento estatal.

3)                               Controle de convencionalidade do STJ: ‘Leis de desacato’ e o Pacto de São José da Costa Rica

 Foi julgada no Recurso Especial N° 1.640.084-SP (2016/0032106-0) caso concreto que trazia a 5° turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) caso concreto que apresentava condenação por Roubo (art. 157, CP), Desacato (art. 331, CP) e Resistência (art. 329, CP). Porém, o ponto aqui levantado se dirige mais especificamente a decisão quanto ao crime de Desacato.

O Superior Tribunal levantou a tese da incompatibilidade do tipo penal de Desacato com a Convenção Americana de Direitos Humanos, firmada no Pacto de São José da Costa Rica. Essa incompatibilidade decorre mais especificamente quanto ao Art. 13 da mesma, dispondo em seu texto:

Artigo 13 – Liberdade de pensamento e de expressão:

 Toda pessoa tem o direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito inclui a liberdade de procurar, receber e difundir informações e ideias de qualquer natureza, sem considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer meio de sua

 

  1. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito à censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para assegurar:

 o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas;

 

  1. a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas.

 

  1. Não se pode restringir o direito de expressão por vias e meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de frequências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de ideias e opiniões.

 

[…]”

 

O Pacto em seu Art. 13 contém princípios a serem seguidos na regulação da vida social de modo que as instâncias de controle social hajam com um proposta do uso do poder repressivo de maneira cautelar (ZAFFARONI, 2012, p. 30), visto que os aparelhos dotados  de força física legitimada pelo estado ainda se apresentam nas sociedades contemporâneas como um aparato institucional necessário na regulação da organização social. Porém no uso deste poder repressivo há sempre o risco de tais instituições através de um uso arbitrário da força culminando assim na repressão imediata, o que há de se apenas corroer a substância do Estado Democrático de Direito.

Dentro da proteção principiológica positivada neste tratado, há então a reafirmação da liberdade de expressão em um sentido mais amplo protegendo as formas de se expressar e mais importante, diretrizes gerais para coibir o autoritarismo no seio  das democracias constitucionais.

Vale a pena ressaltar que a institucionalidade brasileira por meio de Decretos, tais como aprovou, pelo Congresso Nacional, em 26 de maio de 1992, por meio do Decreto legislativo nº 27 e ratificou com o Decreto N° 678, de 06 de novembro de 1992 tal tratado, termos em que dispõe que esta Convenção “deverá ser cumprida tão inteiramente como nela

se contém”. Além disso, o Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário – RE 466.443-SP – julgando obteve o entendimento de que os tratados internacionais versando sobre Direitos Humanos não têm, no ordenamento jurídico brasileiro, caráter e validade supraconstitucional ou mesmo constitucional, mas validade supralegal.

Quanto a atuação judicial, foi do entendimento da Terceira Turma do STJ no julgamento do RE 1.640.084 – SP que haveria ali controle de convencionalidade8, ou seja, adequação de normas internas a tratados internacionais que versam sobre direitos humanos, já que estes tratados possuem status normativo supralegal. Inclusive, a partir do caso de Almonacid Arellano y otros v. Chile a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) passou a exigir que os tribunais internos dos signatários fizessem controle de convencionalidade para adequar seus ordenamentos jurídicos ao tratado assinado. Não houve aqui, portanto, então controle de constitucionalidade, sem perigo de usurpação de competência do Supremo Tribunal Federal. Desta maneira, como os tratados que versam sobre Direitos Humanos têm caráter expansivo de direitos fundamentais, estas devem paralisar a eficácia da norma criminalizadora da norma interna.

Neste sentido, foi decidido pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça pela o afastamento da aplicação do Art. 331, tipo penal de Desacato, sob o entendimento de que haveria incompatibilidade normativa do direito interno com tratado internacional que neste caso é ampliador de direito fundamental à liberdade. Tal situação é plenamente permitida pelo §2°, Art. 5º, da Constituição da República Federativa do Brasil, que positiva em seu texto, in verbis:

  • 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

 

Perpassados tais razões quanto a competência e legitimidade do STJ em julgar tal caso, se passa agora à substância da decisão. Primeiramente, cumpre em destacar que anteriores manifestações da CIDH foram todas favoráveis à prevalência do Art. 13 sobre o tipo sob análise. De acordo com entendimento da CIDH posto na aprovação do Princípio n° 11 sobre

8 Ver MAZZUOLI, Valério. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis. 2ª ed. v. 4. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 133-134.

a Liberdade de Expressão “as ‘leis de desacato’ concedem ao funcionário público uma maior proteção contra ofensas contra honra outorga-lhes injustificadamente um direito a proteção especial.” A concessão de proteção especial a um funcionário público é na verdade uma inversão da conduta democrática e republicana de um Estado, visto que os funcionários públicos, justamente por representarem, em suas ações, o próprio Estado, estão sujeitos a um maior escrutínio da sociedade civil9 de maneira geral.

É protegido o cidadão contra o cerceamento direto ou indireto das liberdades de expressão, é pois, vedado no ordenamento jurídico brasileiro a penalização, punição ou cerceamento prévio de expressões, porém a capacidade repressiva não atua tão somente de maneira aberta de censura. Esta censura pode assumir, para seus efeitos, momentos institucionais de repressividade que possibilitam o arbítrio estendido sobre atuação livre dos sujeitos-indivíduos, trazendo às situações de ação de civis perante ao Estado a possibilidade de prisões administrativas, ou em última instância, multas ou até mesmo cárcere.

Entre as situações legais de repressividade imediata que se encontram no ordenamento jurídico brasileiro tem-se a objeto o crime de Desacato.

Ora, o Art. 331 positiva que é crime “desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela” culminando em pena de detenção, de seis meses a dois anos. Pois bem, desacato “é qualquer palavra ou ato que redunde em vexame, humilhação, desprestígio ou irreverência ao funcionário. É a grosseira falta de acatamento, podendo consistir em palavras injuriosas, difamatórias ou caluniosas, vias de fato, agressão física, ameaças, gestos obscenos, gritos agudos, etc. Uma expressão grosseira, ainda que não contumeliosa, proferida em altos brados ou de modo a provocar escândalo, bastará para que se identifique o desacato”(HUNGRIA, 1959, p. 240).

As chamadas “leis de desacato” podem ser consideradas, então, leis que, em desacordo com o Art. 13 do Pacto de São José da Costa Rica, aprovam um tipo de censura indireta pois possibilita demasiado abuso do funcionário público frente à manifestações de quaisquer tipo, advindas de pessoas privadas no seio da sociedade civil. Manifestações estas que em meio a

9 Princípio n° 11 da Declaração de Princípios sobre a Liberdade de Expressão. Aprovado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos em seu 108º período ordinário de sessões, celebrado de 16 a 27 de outubro de 2000.

normalidade de um processo político natural que viriam indiretamente cerceadas, visto a possibilidade de que seja evocado tal tipo penal por um funcionário público, ocasionando prisões administrativas, ameaça de cárcere ou multa.

4)                       Desacato sob uma análise a partir do conceito de bem-jurídico;

 Ainda sob uma visão dogmática de um Direito Penal mínimo e de pretensão racionalizadora, um conceito necessário para analisar se definir critérios de criminalização é ainda o conceito de bem-jurídico.

Poderíamos tomar critérios políticos de análise um das relações sociais e como elas constituem o Estado e Direito na sua intencionalidade estrutural, ou seja, no seu caráter de classe, baseado na e segundo a luta de classes, numa sociedade baseada na contradição de capital/trabalho assalariado (culminando na categoria de repressividade estrutural). Porém, estes seriam argumentos sócio-políticos cabidos apenas para fins de formação política ou posição subjetiva engajada. Já o Direito positivo e doutrinariamente construído representa, na verdade, um espaço teórico autônomo de construção de conceitos e embasamento estritamente jurídicos. Entretanto, apesar de autônomo, figura ainda como espaço ideológico  a ser colonizado por uma máxima ampliação dos conceitos de dignidades da pessoa humana, que devem ser guiados por um tipo de responsabilidade ética de transcendência ao sistema penal em si. Portanto, aplicando nesta empreitada o conceito de bem jurídico como o critério e objeto da criminalização (SANTOS, 2012, p. 15). Com isso, tomamos a atual teoria do bem jurídico em sua vertente crítica – ou seja, transcendente ao sistema que tem como tarefa ético- política de limitar o poder punitivo do Estado. Esse objetivo só pode ser alcançado por meio de um instrumentário científico (NEUMAN, 2012, p. 519-520), e através dessa teoria desenvolver argumentos teóricos convincentes sobre a legitimidade ou ilegitimidade da criminalização. Mas como teoria científica há de haver uma transversalidade de critérios: em parte normativos e em parte analíticos para essa criminalização (NEUMAN, 2012, p. 520).

Na atuação desta cruzada teórica de racionalização do direito penal tem-se como premissa teórica básica que tal ramo do direito dar-se-á munida legitimidade de punição única e exclusivamente se atender a princípios basilares do Estado Democrático de Direito, baseado sempre no respeito a Direitos Fundamentais. Ou seja, taxativamente, o atendimento

de tais princípios é condição de possibilidade da responsabilização penal e, consequentemente, da legitimidade da punição nesta quadra da história. Desta forma, cada uma destas implicações deônticas que compõem o direito penal enunciam-se como uma condição sine qua non da responsabilização (FERRAJOLI, 2002, p. 84). Portanto, isto não quer dizer que satisfeitas tais condições seja obrigado a punir, mas elas são garantias necessárias, sem as quais a ilegitimidade da punição seria pujante. Funcionam, desta maneira como garantias negativas em relação ao poder punitivo do Estado.

A enunciação de tais princípios pode ser bem demonstrada pelos já conhecidos dez princípios das garantias (exceto a pena, porque esta não é uma garantia, mas o fim da pretensão punitiva saciada) de Luigi Ferrajoli que em sua versão em latim dispõem que:

 A1 Nulla poena sine crimine/ A2 Nullum crimen sine lege/ A3 Nulla lex (poenalis) sine necessitate/ A4 Nulla necessitas sine injuria/ A5 Nulla injuria sine actione/ A6 Nulla actio sine culpa/ A7 Nulla culpa sine judicio/ A8 Nullum judicium sine accusatione/ A9 Nulla accusatio sine probatione/ A10 Nulla probatio sine defensione.

Tais princípios podem ser vertidos em axiomas fundamentais reguladores da pretensão punitiva, respectivamente:

 1) princípio da retributividade ou da consequencialidade da pena em relação ao delito; 2) princípio da legalidade, no sentido lato ou no sentido estrito; 3) princípio da necessidade ou da economia do direito penal; 4) princípio da lesividade ou da ofensividade do evento; 5) princípio da materialidade ou da exterioridade da ação; 6) princípio da culpabilidade ou da responsabilidade pessoal; 7) princípio da jurisdicionaridade, também no sentido lato e no sentido estrito; 8) princípio acusatório ou da separação entre juiz e acusação; 9) princípio do ônus da prova ou da verificação; 10) princípio do contraditório ou da defesa, ou da falseabilidade. (ROSA, Alexandre Morais da, 2013, p. 28).

Para tanto, como forma racionalizadora, precisamos do bem jurídico como a quebra inclusive das teorias consensualistas protoautoritárias de que a pretensão da punibilidade  deve advir apenas da simples prescritividade normativa da norma penal positiva, sem uma devida hermenêutica tomando como o ponto de Arquimedes interpretativo a Constituição e uma teoria restritiva do bem jurídico. Isto implica que como critério, esta teoria nos traz que toda lesão a um bem jurídico deve ter sua correlata punição, mas que nem toda lesão deve ter

sua punição através do direito penal, pois não nem todas são objeto da proteção penal (SANTOS, 2012, p. 15). Temos aqui então revelada a chave teórica que deve orientar os princípios da fragmentariedade e da subsidiariedade.

Aduz parte da Doutrina que “todo funcionário público, desde o mais graduado ao  mais humilde, é instrumento da soberana vontade e atuação do Estado”, daí a maior proteção que lhe instaura a lei penal (HUNGRIA, 1959, p. 420). Portanto, se identifica também, por parte da Doutrina, que o bem jurídico propriamente tutelado é, primeiramente, a Administração pública, investida e personalizada em seus agentes, funcionários públicos. Porém aduz a mesma corrente doutrinária que o objeto do crime não é o funcionário público desacatado (GRECO, 2017, p. 1710). Percebe-se, nesta toada, que o prestígio da Administração, se torna arbitrariamente objeto da proteção penal, pois, na situação fática de seu aparecimento, figura como mera configuração de poder entre pessoa privada e representante do Estado.

Neste caso, o bem jurídico fica suspenso sob uma intencionalidade normativa que não pode coadunar com a estrutura do Estado Democrático de Direito e Direito Penal mínimo, pois acaba por inverter a lógica da atuação Estatal frente à sociedade. O Estado soberano não pode ser apresentado como um semblante a quem todos devem máxima vênia, sob risco de controle penal recaindo sobre si. Deve sim, pôr-se a serviço das pessoas, e não o contrário, e desta forma, estar disposto a enfrentar, através de seus agentes (aos quais investe seu poder e autoridade), maior escrutínio da sociedade. Vale ressaltar que nesta toada o Art. 331 se contrapõe ainda às bases humanismo moderno de que o Estado existe para a sociedade, e jamais o contrário, sob pena de inferir em esferas elementares de uma sociedade republicana, democrática e livre.

Ora, o conceito de bem jurídico, deve se prestar a conter excessos do Estado, servindo como um conceito-limite a pretensão punitiva que deve expressar uma negatividade social tal que merece ser objeto de proteção penal. Para que seja objeto de proteção penal tal negatividade deve carregar uma profunda lesividade inscrita numa gama de direitos fundamentais que precisam de meio de proteção imediata. Então se propusermos de forma taxativa as ofensas graves a bens jurídicos fundamentais como critério da criminalização, a utilização de proteção especial ao funcionário público que em sua atuação goza de poder e autoridade a ele investida pelo próprio Estado, a criminalização primária (legislativa) se faz anacrônica e de uso de poder repressivo de maneira retrógrada e autoritária.

5)                  Breve excerto para além de uma discussão dogmática;

Agora, vale-se aqui para avaliar as dinâmicas sociais de repressão imediata que este tipo carrega consigo. Portanto, não mais o bem jurídico é nosso objeto, mas a própria capacidade que o Estado investe a si de reprimir, ainda que temporariamente, cidadãos de maneira discricionária.

Grande parte disso ocorre, pois o tipo penal em tela descreve situação fática que exige demasiado esforço intelectual com grande carga de subjetivação necessária através do objeto do crime, ou seja, o funcionário público e/ou autoridade policial. Desta maneira, é deixada nas mãos deste a prerrogativa de proclamar contra outrem medida imediata e claramente desproporcional; de opor medida imediata de prisão administrativa a quem supostamente o desacata. A manutenção de tal Art. 331, ao invés proteger um bem jurídico definido de lesividade identificável, serve para sustentar um tipo de autoritarismo à brasileira do serviço público frente à sociedade, onde cada funcionário público aquele que se sente desacatado pode invocar a cláusula absolutista máxima do L’Etat c’est moi10, em vista no aparente respaldo imediato, exercido discricionariamente (leia-se, de maneira arbitrária), com o referido artigo do Código Penal.

Ainda que seja reconhecida pela jurisprudência pátria a atipicidade nos casos quando a palavra ou ato ofensivo resultar de crítica ou reclamação a forma de atuação funcional do funcionário público11, goza o poder público de discricionariedade para efetuar a prisão daquele que supostamente desacata autoridade pública. Desta maneira, ainda que a criminalização, como um fenômeno institucional completo, não seja exaurida (desde a prisão administrativa até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória) tem-se uma ameaça constante quando se entra em contato com o funcionário público.

Tornam-se, portanto, as repartições públicas verdadeiros semblantes de uma moral da Administrativa difusa que é “protegida” de maneira muito concreta, uma  vez que as autoridades públicas, que deveriam servir a sociedade, estão na verdade dotadas de grande

10 RE nº 1.640.084 – SP (2016/0032106-0), Relator Ministro Ribero Dantas. “Com todas as vênias, a existência de tal normativo em nosso ordenamento jurídico é anacrônica, pois traduz desigualdade entre funcionários e particulares, o que é inaceitável no Estado Democrático de Direito preconizado pela CF/88 e pela Convenção Americana de Direitos Humanos. Ademais, a punição do uso de linguagem e atitudes ofensivas contra agentes estatais é medida capaz de fazer com que as pessoas se abstenham de usufruir do direito à liberdade de expressão, por temor de sanções penais, sendo esta uma das razões pelas quais a CIDH estabeleceu a recomendação de que os países aderentes ao Pacto de São José abolissem suas respectivas leis de desacato.”

poder repressivo que pode inclusive ser utilizado para repressão por razões pessoais e, infelizmente, por razões políticas. Faz se assim que o tipo penal inverte a ordem necessária de sua existência: de instrumento institucional de regulação de uma ordem democrática e livre, se torna seu algoz.

CONCLUSÃO

 Frente ao exame feito, pode-se dizer então que o crime de Desacato, positivado no Art. 331, do Código Penal, é uma tentação autoritária que ainda vigora no Brasil, como um tipo de espectro de nosso passado histórico. Muito assusta que o nosso passado histórico ditatorial, em consonância com grande parte da América Latina, ainda resiste sob algumas formas institucionais que ainda vigoram contraditoriamente sob o espírito democrático da ordem jurídico-legal pós-Constituição da República Federativa do Brasil de 1998.

Apesar de que com a promulgação da Constituição Cidadã foram incorporadas ao ordenamento jurídico brasileiro fundamentos de um Estado que protege a liberdade de expressão, é mantida lei que dota a atuação estatal de ampla capacidade repressiva e autoritária, alçada na discricionariedade do poder público e na inversão da legitimidade de punir (baseada em bens jurídicos), em desfavor ao humanismo mais clássico de defesa do indivíduo contra a arbitrariedade estatal.

Inobstante a decisão prolatada pelo STJ no Recurso Especial n° 1.640.084, foi trazida novamente ao debate na decisão do Habeas Corpus nº 379.269 / MS prolatada pela 3ª Seção do STJ. Situação essa onde novamente foi aceita a figura típica do crime de desacato, criando-se assim a normatividade de um ‘precedente’, portanto temos ainda no nosso ordenamento jurídico tal tipo que traz novamente consigo um descompasso elementar em relação Estado Democrático de Direito.

BIBLIOGRAFIA

ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado. Editorial Presença/Martins Fontes, Lisboa.

11 RHC 9.615/RS, Rel. Ministro EDSON VIDIGAL, QUINTA TURMA, julgado em 8/8/2000, DJ

25/9/2000.

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 1999, 2ª edição, p. 260.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 13/01/2018.

CASTRO, Lola Anyar de. Derechos Humanos, Modelo integral de la Ciência Penal y  Sistema Penal Subterrâneo. Macaibo (Venezuela), 1983.

COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão. Aprovado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos em seu 108º período ordinário de sessões, celebrado de 16 a 27 de outubro de 2000. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/s.convencao.libertade.de.expressao.htm.

DIETER, Maurício. A Polícia Criminal Atuarial: A criminologia do fim da história.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2002.

FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População: curso dado no Collège de France. 1° ed, Livraria Martins Fontes Editora Ltda., São Paulo, 2008.

GRECO, Rogério. Código Penal: comentado. 11. ed. – Niterói, RJ: Impetus, 2017. HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. v. 9. Rio de Janeiro: Forense, 1959.

NEUMANN, Ulfrid. Bem Jurídico, Constituição e os Limites do Direito Penal. In: Direito Penal como crítica da Pena. Marcial Pons, São Paulo, 2012.

MAZZUOLI, Valério. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis. 2ª ed. v. 4.  São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.

ROSA, Alexandre Morais da. Guia Compacto de Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Editora Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2013.

RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e Estrutura Social. Instituto Carioca de Criminologia / Editora Revan, 2º edição.

SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal. Parte Geral. 5.ed. – Florianópolis: Conceito Editorial, 2012.

ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Pacto de San José da Costa Rica – Convenção Americana de Direitos Humanos. Conferência Especializada Interamericana de

Direitos        Humanos,      em      22      de      novembro      de      1969.      Disponível em: <http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/sanjose.htm> .

ZAFFARONI, Eugênio Raúl. A Palavra dos Mortos. Conferências de Criminologia Cautelar. Volume 1. Editora Saraiva, 2012.

                     . O inimigo no direito penal. 2º ed, Editora Revan, Rio de Janeiro, 2007.

ZIZEK, Slavoj. O Espectro da Ideologia. Um mapa da ideologia. Organização Slavoj Zizek; tradução: Vera Ribeiro. – Rio de de Janeiro: Contraponto, 1996.



CRISE DO CAPITAL E PRODUÇÃO DE MORTES NO BRASIL: APROXIMAÇÕES SOBRE SUA RELAÇÃO[28]

CAPITAL CRISIS AND THE PRODUCTION OF DEATHS IN BRAZIL: A VIEW ON THEIR RELATION.

João Guilherme Leal Roorda            [29]

Resumo: O presente trabalho apresenta hipóteses de trabalho para compreender a produção acelerada de mortes violentas no Brasil nos últimos 40 anos. Em primeiro lugar, proponho compreender a produção massiva de mortes no Brasil como forma de “controle social punitivo” paralelo ao sistema penal oficial. Em seguida, identifico no racismo o elemento ideológico que permite a sua continuidade, atentando pela forma como ele aparece mediado pelas categorias de “bandido” e “trabalhador”. Por fim, busco apontar algumas funções desempenhadas por esta forma de controle punitivo, percebendo sua complementariedade com o sistema penal oficial na produção ideológica de aderência das classes trabalhadoras aos novos modos de regulação, bem como eliminação do excesso de população.

Palavras-chave: Criminologia crítica. Sociologia da violência. Homicídios. Crise. Racismo.

 

Abstract: This paper presents a series of working hypothesis to understand the accelerated production of violent deaths in Brazil in the last 40 years. Firstly, I posit that the mass production of deaths in Brazil is a form of “punitive social control”. Then, I identify racism as the ideological elemento that allows it’s continuity, paying attention to the way that it appears mediated by the categories of “bandido” and “trabalhador”. Lastly, I try to demonstrate some functions of this form of punitive social control, perceiving how it complements the oficial criminal system in the production of ideological adherence of the working classes to the new modes of regulation, as well as a way of eliminating the surplus population.

Keywords: Critical criminology. Sociology of violence. Homicides. Crisis. Racism.

Introdução

Darcy Ribeiro, em passagem já consagrada de seu O Povo Brasileiro, afirmava que o Brasil sempre foi, e continua sendo, um moinho de gastar gente. A nossa história periférica, que é também a história da América Latina como um todo, esta imensa e secular instituição de sequestro (ZAFFARONI, 2001), é uma história de massacres.

Anualmente, os relatórios World Health Statistics, da Organização Mundial da Saúde comprovam nossa fidelidade a esta tradição. O mais recente, divulgado em 17 de maio de 2017, traz as taxas de homicídio de todos os países membros da OMS relativas ao ano de 2015. Segundo o levantamento, o Brasil é o nono país mais violento do mundo, com uma taxa de homicídio de 30,5 mortes violentas para cada cem mil habitantes, ficando atrás apenas de Honduras, El Salvador, Venezuela, Colômbia, Belize, Guatemala, Jamaica e Trinidad e Tobago (OMS, 2017, p. 82). Considerando que a mesma Organização considera epidêmicas taxas de homicídio superiores a 10 mortes por cem mil habitantes, pode-se considerar a situação brasileira verdadeiramente trágica.

A situação no Estado do Rio de Janeiro é igualmente preocupante. Relatório divulgado pelo Instituto de Segurança Pública apontou que a taxa de letalidade violenta  no Estado, em 2015, foi de 30,3 mortes por 100 mil habitantes, número bastante próximo da média nacional apurada pela OMS (ISP, 2016, p. 6). Dentre essas mortes, 84% foram qualificadas como homicídios dolosos e 13% como homicídios decorrentes de intervenção policial (os famigerados autos de resistência). As mortes preterdolosas, lesão corporal seguida de morte e latrocínio, totalizam apenas 3% das mortes violentas no Estado. A situação é ainda pior nas regiões da Baixada Fluminense, com uma taxa de 45,4 mortes por cem mil habitantes, e na Grande Niterói, 34,9 mortes por cem mil habitantes. Na capital a taxa é de 25 mortes por cem mil habitantes, enquanto que no interior é de 24,1.

Em que pese não estar refletido nas estatísticas oficiais, o grupo que forma a maior parte das vítimas desta violência letal são os jovens homens negros. A campanha Jovem Negro Vivo, da Anistia Internacional, aponta que mais de 70% das vítimas de homicídio no Brasil são negras. Diversos coletivos que integram os movimentos negros vêm denunciando esta alta letalidade como verdadeiro genocídio do povo negro.

A criminologia crítica brasileira pouco se ocupou dessa questão. Corremos muitas vezes o risco de cair no negacionismo. Foi necessário que vozes provindas da militância negra (por todos, FLAUZINA, 2017) tomassem o microfone acadêmico para escancarar o genocídio em curso. Enquanto isso, desenvolveu-se entre nós toda uma sociologia da violência e do controle, emaranhada em tradições microinteracionistas e funcionalistas, com seus “ethos guerreiro” e “sociabilidade violenta” e que acaba ao final sempre recaindo na etiologia do comportamento criminoso.

Este texto é um exercício de imaginação sociológica e tem por objetivo apresentar uma agenda de pesquisa alternativa, firmemente assentada nas sólidas conquistas teóricas da criminologia crítica, propondo algumas hipóteses de trabalho a partir da observação da realidade[30] da cidade do Rio de Janeiro.

A criminologia dos massacres

É possível compreender a dificuldade teórica da criminologia crítica de lidar com os massacres. Uma das conquistas irreversíveis da criminologia crítica é a negação de qualquer caráter ontológico do conceito de crime, que passou a ser compreendido como processo de criminalização, primário ou secundário. Como, então, abordar, como objeto de uma investigação criminológica crítica, algo que é contingente do jogo de forças em um dado momento político? Tomar as definições legais como ponto de partida coloca o pesquisador perigosamente próximo das criminologias da ordem[31] (SCHWENDINGER, 2014, p. 97).

A sociologia da violência lidou com o problema ao proporem como seu objeto de estudo a “letalidade violenta” ou “violência letal”. No entanto, a noção de violência também precisa ser construída pelo pesquisador. Tomar as definições usuais de violência como ponto de partida também leva ao risco de uma perspectiva de governo da miséria. De fato, os realistas de esquerda acabaram, muitas das vezes, por colaborar com o fortalecimento do sistema penal. As criminologias de mercado (CURRIE, 2017), sempre ligadas aos movimentos de crítica criminológica, de Bonger a Currie, também não conseguiram fugir de uma perspectiva que poderia facilmente ser chamada de epidemiológica[32].

Ao mesmo tempo a criminologia crítica em seus momentos iniciais trabalhou com a violência enfocando, no entanto, não na chamada violência interpessoal, mas na violência institucional, compreendida como violência provinda do próprio sistema capitalista (SANTOS, 1994) ou como violência perpetrada pelo Estado (numa época em que as ditaduras de segurança nacional abundavam por aqui), em especial pelo sistema de justiça criminal. De toda forma, como Zaffaroni (2016) notou em trabalho pioneiro sobre letalidade policial, também nesses casos o objeto de estudo precisa ser construído.

Há, no entanto, um dado da realidade do qual não se pode fugir: os cadáveres. Os mortos são, para Zaffaroni (2011), a única realidade da qual a criminologia não pode fugir. Tal qual um horizonte possível da teoria crítica é partir do ponto de vista dos vencidos, para a crítica criminológica podemos partir do ponto de vista dos mortos. Podemos contar nossas histórias tristes partindo dos nossos mortos. E a história dos nossos mortos é a história de longos e sucessivos massacres. Daí a inevitabilidade de uma criminologia dos massacres.

Essa perspectiva apresenta algumas dificuldades ou riscos. A mais evidente delas é como situar a vítima no discruso criminológico sem recair num discurso revitimizante ou criminalizante. A vitimologia enquanto campo da criminologia surge, na tradição positivista, como culpabilização da vítima (CASTRO, 2010, p. 56-58). O interesse dos primeiros vitimólogos era justamente entender por quais razões determinadas pessoas são mais suscetíveis à vitimização e aplicou-se a esse campo de estudo exatamente os mesmos métodos da criminologia. Se a criminologia positivista estigmatizava o criminoso, a vitimologia correspondente também estigmatizava a vítima[33].

Por outro lado, é frequente o uso retórico daquilo que Zaffaroni (2011) chamou de vítima-herói, aquela que é apresentada como abandonada pelo sistema de justiça criminal, protetor exclusivamente dos “bandidos”. Não são raros os casos em que se busca heroicizar a vítima para avançar demandas punitivas, desde que, é claro, se trate de um cidadão de bem. Por vezes, tal como no famoso caso do “médico da Lagoa” é preciso que os próprios parentes se insurjam contra a instrumentalização da vítima.

Essas abordagens decorrem de uma visão política conservadora e uma lente criminológica míope que a corresponde. Um pensamento crítico deve partir da vítima não por tomá-la como mártir de um justiçamento. A potencialidade do ponto de vista dos mortos é que eles representam a negatividade do mundo. Sua vida interrompida é a negação das possibilidades não vividas, dos caminhos que poderiam ter sido percorridos, mas não foram. E essa é, por definição, a tarefa de uma Teoria Crítica: apontar o possível não realizado no mundo.

Um novo ponto de vista, uma nova pergunta

Em The Left Hand of Darkness, romance de ficção científica de Ursula Le Guin, existe um grupo religioso, os Handdarrata, que possui a capacidade de responder a qualquer pergunta feita a eles, inclusive predizendo o futuro. O detalhe é que eles respondem exatamente a pergunta formulada, o que significa muitas vezes que a resposta dada não é a resposta buscada. Uma história contada no livro diz que uma vez um indagador, querendo saber quanto tempo seu amante, doente, viveria, perguntou “por quanto tempo Ashe Berosty irá viver?” (how long will Ashe Berosty live?). A resposta dada: “mais do que você” (longer than you). Ao retornar para casa com a resposta, seu amante fica enfurecido com a inutilidade da resposta e arremessa nele uma panela, matando-o. Duas semanas depois Ashe também morre.

Em uma determinada passagem, o líder dos Handdarrata diz ao protagonista do livro que o ponto de todo trabalho deles é justamente demonstrar a inutilidade de se fazer perguntas erradas. A premissa é válida também na investigação científica. Um conhecimento obtido por uma pergunta errada pode não ser de todo inútil. O indagador sabe que seu amante viverá mais tempo que ele. Porém, permanece sem saber o essencial: quanto tempo ele irá de fato viver. Pode ser interessante, do ponto de vista da produção de conhecimento, trocar a pergunta. Mudar a pergunta implica uma mudança de ótica, implica olhar por um lado que a pergunta anterior não dava conta. Foi a mudança na pergunta que possibilitou a reviravolta teórica impulsionada pelo labeling. Não mais “por que as pessoas desviam?”, mas “por que as pessoas são consideradas desviantes?”.

No campo da investigação sobre mortes violentas também é possível uma mudança na pergunta. Ao invés do tradicional “por que as pessoas matam?” podemos propor “por que as pessoas são mortas?”. Ou, melhor, no contexto latino-americano melhor seria perguntar: “por que ocorrem os massacres?”. Essa mudança de pergunta tem algumas vantagens. Em primeiro lugar evita, desde logo, qualquer tensionamento sobre as “causas do crime e da criminalidade”, os “motivos dos criminosos”. Não há incursões ao psicologismo, atavismos, teorias sobre assassinos seriais (serial killers), sociabilidade violenta, ethos guerreiro. Abandonamos qualquer tentativa de aproximação com a criminologia etiológica e rompemos, assim, com qualquer premissa que se aproxime do positivismo criminológico (nas suas variantes psicologia, antropologia e sociologia criminal).

O importante, aqui, é compreender quais são os mecanismos que produzem a massa de corpos descartados, como esses mecanismos se estruturam, quais os elementos ideológicos que permitem a sua operatividade e qual função esses mecanismos desempenham na dinâmica capitalista, isto é, por que eles aparecem como economicamente necessários[34].

Ou seja, a mudança da pergunta sai do ponto de vista do “criminoso” e assume o ponto de vista da vítima. Não na fórmula pós-moderna que pretende “dar voz” aos vitimizados (eles e elas têm a sua voz própria que não precisa de intermediações autorizadas). Assume o ponto de vista da vítima no sentido de se adotar um ponto de vista sociológico que busca compreender porque aquelas pessoas são vitimadas massivamente pela violência letal. Isto significa então indagar quais as razões que permitem as mortes humanas em massa, o nosso genocídio diário que já não é mais a conta gotas.

O presente trabalho tem por objetivo apresentar algumas hipóteses desenhadas para dar conta desse problema teórico, que serão abordadas nas próximas seções. Primeiro, proponho compreender a produção massiva de mortes no Brasil como forma de “controle social punitivo” paralelo ao sistema penal oficial. Em seguida, identifico no racismo o elemento ideológico que permite a sua continuidade, atentando pela forma como ele aparece mediado. Por fim, busco apontar algumas funções desempenhadas por esta forma de controle punitivo, percebendo sua complementariedade com o sistema penal oficial.

O massacre como controle social punitivo

Tradicionalmente, a investigação social sobre a violência opera com a categoria desvio (ou crime) para se referir aos homicídios. Assim, pautado na pergunta “por que as pessoas desviam?”, essa sociologia da violência, nas suas variações mais ou menos legitimadora da punição, acaba caindo no erro fundamental de grande parte da sociologia do desvio:

[a pesquisa científica] aceitou a premissa do senso comum segundo a qual há algo de inerentemente desviante (qualitativamente distinto) em atos que infringem (ou parecem infringir) regras sociais. Aceitou também o pressuposto de senso comum de que o ato desviante ocorre porque alguma característica da pessoa que o comete torna necessário ou inevitável que ela o cometa. Em geral os cientistas não questionam o rótulo “desviante” quando é aplicado a atos ou pessoas particulares, dando-o por certo. Quando o fazem, aceitam os valores do grupo que está formulando o julgamento (BECKER, 2008, p. 17).

Esse problema é comum a qualquer concepção de desvio, seja estatística (desvio como variação aritmética), patológica (desvio como doença), funcionalista (desvio como ato disfuncional ao todo social) ou liberal (desvio como violação de norma social). Não importa qual a perspectiva que se adote, ao analisar o homicídio como comportamente desviante damos contorno de anormalidade ao fenômeno. Além disso, o contrapomos às instâncias formais de controle social, que em alguma medida falharam na sua prevenção.

As múltiplas concepções de desvio não apenas são pouco úteis, como também podem constituir em obstáculos epistemológicos para a compreensão do fenômeno. As abordagens patologizantes e funcionalistas, em especial, além de excessivamente moralistas, impedem a investigação sobre a funcionalidade dos homicídios em larga escala para a manutenção da ordem social. Ao pressupor o seu caráter patológico, operam como instância ideológica que vende a ordem dada como inerentemente positiva.

Proponho, ao contrário, que devemos compreender os homicídios em massa no Brasil como instância de controle social, e não como ações desviantes. Zaffaroni (2012, p. 31) nos dá uma dica por onde começar: os homicídios massivos são cometidos pelo poder punitivo:

Además, los crímenes de masa son cometidos por este mismo poder punitivo descontrolado, o sea, que las proprias agencias del poder punitivo cometen los crímenes más graves cuando operan sin contención (grifo no original).

Às mortes provocadas pelos agentes que integram o poder punitivo, que em outro lugar ele chamou de “mortes institucionais” (muertes anunciadas, p. 30-31), somam-se uma série de outras mortes que ele chamou de “mortes anunciadas”: “mortes extra-institucionais”, causadas por agentes do poder punitivo sem relação direta com suas funções (que poderiam abarcar a atividade das milícias); “mortes parainstitucionais”, causadas por grupos de extermínio; “mortes contrainstitucionais”, que são as mortes dos próprios agentes do poder punitivo (majoritariamente policiais) em relação direta com suas funções; e “mortes metainstitucionais”, que são aquelas causada em conflitos de pessoas não integrantes do sistema penal, porém em larga medida determinadas por ele (mortes de presos por outros presos e conflitos entre empresas varejistas de drogas, principalmente).

De fato, a grande maioria da violência letal no Brasil se enquadra neste universo. Em recente estudo sobre as motivações nos casos de mortalidade violenta no Rio de Janeiro, Renato Dirk e Lílian de Moura (2017, p. 68) analisaram 447 mortes ocorridas no ano de 2014, tendo conseguido identificar as motivações diretas de 68,4% dos casos. Suas análises mostram que ao menos 44% das mortes violentas estão relacionadas com a atuação de milícias, grupos de extermínio, empresas varejistas de drogas e da própria Polícia Militar. Os pesquisadores apontam que esse número é provavelmente ainda maior, principalmente aquelas mortes relacionadas com a milícia. De todo modo, se considerarmos somente as mortes com motivos identificados, o número sobe para 64,3% das mortes violentas.

Desde a sua inserção na América Latina, e em especial no Brasil, a pena pública vem convivendo com regimes privados de punição e controle, complementando-o, mais do que propriamente combatendo-o[35]. Além disso, é uma das principais categorias da criminologia crítica latino-americana a noção de sistema penal subterrâneo, isto é, a atuação ilegal, porém completamente normalizada, das agências do sistema de justiça criminal (CASTRO, 2010, p. 97-101). É uma constante latino-americana, portanto, a existência de um sistema penal público oficial (aparente) ao lado de um sistema penal público subterrâneo e sistemas penais privados.

Não pretendo afirmar que os diversos sistemas penais operativos na realidade latino-americana atuem em perfeita harmonia e união. Pelo contrário, a existência mútua de poderes punitivos sem dúvida gera contradições que não permitem um controle central e coordenado. No entanto, do ponto de vista do controle social, os diversos sistemas operam com a mesma funcionalidade. A identidade entre os selecionados pelos processos de criminalização, vitimização e policização é um forte indicativo.

Ideologia da negação

As práticas sociais, em geral, necessitam de um conjunto de ideias e racionalizações que permitem a sua continuidade. No caso dos massacres, é necessária a existência de mecanismos de negação que permitem que as pessoas convivam com o massacre e continuem perpetrando-o. Partindo das técnicas de negação trabalhadas por Sykes e Matza (1957), Stanley Cohen (2005) desenvolve alguns diferentes mecanismos de negação que permitem a continuidade de grandes atrocidades e massacres. Em sua divisão, ele distingue entre os mecanismos de negação dos perpetradores individuais e os mecanismos de negação institucional.

Dentre os mecanismos empregados pelos perpetradores individuais, ao menos três são de interesse para a compreensão dos nossos massacres. A negação de conhecimento (p. 99-108), que se dá quando os perpetradores não conhecem a extensão completa de seus atos. Está marcado por um sistema de compartimentalização dos atos e de cegueira moral deliberada, típico de uma estrutura burocrática, onde o indivíduo isolado pode se colocar numa posição de desconhecer deliberadamente aquilo para o que contribui. A negação de responsabilidade (p. 109-115), que está ligada às estratégias de defesa que se remetem à obediência hierárquica ou à necessidade da ação por razões de autodefesa. Por fim, a negação da vítima (p. 116-118) transfere para a vítima a responsabildiade pela violência, em geral reduzindo ou abstraindo completamente a sua humanidade.

Já os mecanismos de negação institucional em geral assumem três formas. A negação literal (p. 124) quer convencer de que nada de relevante aconteceu ou acontece. A negação interpretativa (p. 125-126), que implica apresentar o ocorrido sobre outra lente, incluindo tratando mortes específicas como casos isolados. Por fim, pela negação implicatória (p. 129-130) os atos passam a ser plenamente justificados, o que ocorre muitas vezes às custas da própria vítima.

As mortes massivas no Brasil se dão numa rede complexa de mecanismos de negação, que elidem a responsabilidade, tanto individual, tanto institucional do ocorrido. A burocratização das agências do sistema de justiça criminal (Zaffaroni, 2001) permitem que seus integrantes, principalmente juízes e membros do Ministério Público, permaneçam alheios ao que se passa. A legítima defesa, através dos autos de resistência, se tornou a forma jurídica perpetuadora da política de extermínio levada por policiais (D’ELIA FILHO, 2015). Se é difícil ocultar a ocorrência de mortes, muitas vezes procede à sua naturalização, como um dado normal da vida, sem necessidade de registro[36]. Os policiais são chamados de maçãs podres, os “milicianos” e “traficantes” de marginais e o problema se torna uma mera questão de indivíduos corrompidos.

O elemento central, neste complexo, é a negação da vítima. É a construção da figura do inimigo, de pessoas como perigosas ou parasitárias que permite a expansão desenfreada do poder punitivo massacrante (ZAFFARONI, 2006). O inimigo aparece como o outro eliminável, que não guarda o mesmo nível de humanidade. Não é difícil perceber quem é, em nossa margem, o sujeito eliminável, a vida matável.

Ao menos desde Abdias do Nascimento, a militância negra vem enfatizando a existência de um projeto genocida da população negra em curso no Brasil. Em nossa margem, o extermínio físico de milhares de pessoas é apenas o desdobramento final desta longa empresa negadora de identidade e humanidade (FLAUZINA, 2017). A estratégia oficial é a negação do genocídio, aquilo que está por baixo é a afirmação do negro como um “não ser”. O racismo a determinação mais concreta da produção de mortes não apenas no Brasil, mas no mundo em geral:

Enquanto instrumento, a raça é, portanto, aquilo que permite simultaneamente nomear o excedente, associando-o ao desperdício e à despesa, sem quaisquer reservas. A raça é o que autoriza localizar, entre categorias abstractas, aqueles que tentamos estigmatizar, desqualificar moralmente e, quiça, internar ou expulsar. A raça é o meio pelo qual nos reificamos e, baseados nessa reificação, nos transformamos em senhores, decidindo desde logo sobre o seu destino, de maneira a que não sejamos obrigados a dar qualquer justificação (MBEMBE, 2014, p. 70).

Ocorre que, sendo o racismo antinegro no Brasil fundamentalmente um racismo por denegação, ele não aparece sempre explicitado, ainda que cimentado na estrutura social. Especificamente no caso do extermínio físico ele aparece mediado pelas figuras do “trabalhador” e do “bandido”. A figura mítica do bandido, encarnada nos corpos negros de “traficantes” ou, em menor medida, “milicianos” passa a ser o elemento de neutralização do massacre, autorizado e plenamente justificado. O bandido é a representação de todo o mal que se assola por sobre as “comunidades carentes”, “abandonadas pelo Estado”. Um inimigo que aparece construído de forma acromática, mas cuja coloração está desde o início já definida[37].

Produções de mortes e crise

Esta mediação que permite negar o papel que a raça efetivamente desempenha na seleção dos corpos matáveis não é apenas uma “falsa consciência”, uma mentira bem contada. Seus efeitos são reais e assimilados como reais pela parcela da população a que se destina os sistemas de justiça criminais, públicos ou privados. O papel desempenhado por ela é, ao final, bastante úteis para a reprodução social do capital e para a superação de suas crises.

Há, fundamentalmente, duas principais formas de compreender as crises periódicas do capital: as teorias centradas na queda tendencial da taxa de lucro e as teorias da sobreacumulação e subconsumo.

Para aqueles que, seguindo as indicações de Marx nos Livros I (2013) e III (2017) dO Capital, entendem que o segredo está na queda tendencial da taxa de lucro, o desdobramento da competição capitalista implica em uma maior acumulação de capital constante, em oposição ao capital variável, diminui a taxa de mais-valia e, por consequente, a taxa de lucro, resultando em crise. Já para aqueles como Rosa Luxemburgo, a crise do capital se dá pela incapacidade dos mercados internos realizarem toda a mais-valia produzida, sendo necessário um mercado externo para a sua completa realização.

Seja como for, para uns ou para outros muitos dos resultados são os mesmos. A fim de evitar as crises eminentes o capital precisa recorrer a mecanismos de compensação, ou contratendências, que permitem que o capital continue se acumulando por mais tempo. Marx (2017, p. 271-280) deu algumas indicações de quais poderiam ser essas contratendências como o comércio exterior, a financeirização da economia, o aumento do exército industrial de reserva e a precarização do trabalho.

De fato, desde a crise de 1973 todas essas causas foram acionadas de maneira acelerada. As finanças passaram a ocupar um lugar central, sendo possível falar em um regime de acumulação financeirizado (DÖRRE, 2015, p. 574-575) cuja uma das principais características é a sua globalização e sua derrubada de fronteiras. Ao mesmo tempo, as características desse modelo na regulação do mercado de trabalho é o desmantelamento de redes de proteção social e a precarização do trabalhador (DÖRRE, 2015, p. 582). Nas economias dependentes, que já eram marcadas pela precarização, esta situação tende apenas a piorar. Os subempregos e as economias informais geram um imenso exército industrial de reserva sempre disponível e cada vez maior, embora pouco utilizado.

Essa alteração no modo de regulação, no entanto, exige uma expropriação contínua de direitos e o alto nível de precarização pode ter por resultado a agitação social e a não aceitação das condições cada vez mais precárias de trabalho. Neste momento, a produção de mortes, de um lado, funciona como um mecanismo de less eligibility (RUSCHE, 1978 que garante a hegemonia estatal junto às classes trabalhadoras, ao reforçar que para elas a opção de sujeito trabalhador, portanto precarizado, seja melhor que a opção de sujeito “bandido”, logo matável.

A criação da identidade do sujeito trabalhador em oposição ao sujeito bandido possui força nas classes trabalhadoras e muitas vezes é a retórica de familiares que reclamam a injustiça de alguma morte ou prisão. Por ocasião da chacina ocorrida em agosto de 2015 em Osasco as falas de familiares das vítimas foram muitas no sentido de afirmar o caráter trabalhador do morto: “Era um trabalhador. Saiu para comprar salgadinho para a irmã e não voltou”; “Ele nunca deu problema com a polícia, gostava de ficar em casa com a mulher, que está grávida de três meses”; “Não usava drogas, era um homem trabalhador”[38]. Recentemente, após a prisão de 159 pessoas acusadas de envolvimento com a milícia em Santa Cruz, manifestações parecidas: “Que que meu filho vai dizer pra mim? Oh mãe, o que adiantou a senhora me impor para estudar?”; “E é um menino do bem, trabalhador, todo mundo gosta dele”; “carteira assinada, trabalhou na sexta-feira, o dia que ele foi no show de pagode”[39].

Os sistemas de justiça criminais, portanto, permanecem sendo estruturas disciplinares por excelência, mesmo no regime precarizado e financeirizado do capital. É preciso escolher as amizades, os caminhos, não se envolver nos caminhos fáceis. Ser trabalhador. Aceitar o subemprego e a precarização. O nível maior de exploração impõe, tal qual impôs nas colônias, um nível maior de violência, explícita:

Nos países capitalistas, entre o explorado e o poder interpõe-se uma multidão de professores de moral, de conselheiros, de “desorientadores”. Nas regiões coloniais, ao contrário, o gendarme e o soldado, por sua presença imediata, por suas intervenções diretas e frequentes, mantêm contacto com o colonizado e o aconselham, a coronhadas ou com explosões de napalm a não se mexer. Vê-se que o intermediário do poder utiliza uma linguagem de pura violência. O intermediário não torna mais leve a opressão, não dissimula a dominação. Exibe-as, manifesta-as com a boa consciência das forças da ordem. O intermediário leva a violência à casa e ao cérebro do colonizado (FANON, 1968, p. 28) (grifo no original).

No momento financeirizado do capitalismo, o modo de regulação é, no entanto, flexível. A estrutura de poder não precisa ser centralizada e única (DÖRRE, 2015, p. 579). Para o capital efetivamente não importa se a violência é praticada pelo Estado ou por terceiros. De modo que a letalidade não é, nem precisa, ser realizada pelo Estado, mas pode ser privatizada:

La clave del control letal está en el fomento de las contradicciones y conflictos entre los proprios sectores excluidos y, como máximo, entre estos y la faja más baja incorporada a la clase media inferior.

La selectividad punitiva no sólo opera en la criminalización, sino también en le victimización y en la policización. Víctimas, victimarios y policizados pertenecen a estos sectoren en toda la región.

Estos procesos son perfectamente funcionales al modelo de sociedad excluyente: en la medida en que los excluidos se maten entre ellos, la violencia les impide tomar consciencia y coligarse y, por tanto, tener un protagonismo político coherente conforme a sus intereses (ZAFFARONI, 2015, p. 64-65).

Uma hora, no entanto, não tem jeito. As condições de reprodução do capital por vezes chegam a um limite que se demanda a destruição de capital existente (MARX, 2017, p. 293). São os momentos de crise. Nesta hora é preciso destruir não apenas o capital constante, o excedente de capital, mas também o excesso de população. A crescente exclusão de pessoas do mundo das mercadorias torna as suas vidas, para um modo de produção marcado decisivamente pelo fetiche das mercadorias, supérfluas e elimináveis e sua eliminação permite resolver o problema do excesso de população.

Referências bibliográficas

ADORNO, Theodor W. “Introdução à controvérsia sobre o positivismo na sociologia alemã”. In: Os Pensadores – Adorno – textos escolhidos. São Paulo: Nova Cultural, p. 109-189, 1996.

BATISTA, Nilo. Pena pública e escravismo. Capítulo criminológico. Maracaibo, v. 34, n. 3, p. 279-321, 2006.

BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

____. “O positivismo como cultura”. Passagens, v. 8, n.2, p.293-307, 2016.

BECKER, Howard Saul. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Trad. Maria Luiza de Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

CASTRO, Lola Anyiar. Criminologia de los derechos humanos: criminologia axiológica como política criminal. Buenos Aires: Del Puerto, 2010.

COHEN, Stanley. Estados de negación: ensayo sobre atrocidades y sufrimientos. Buenos Aires: Universidad de Buenos Aires, 2005.

DIRK, Renato; MOURA, Lílian de. “As motivações nos casos de letalidade violenta da Região Metropolitana do Rio de Janeiro”. Cadernos de segurança pública, Ano 9, n. 8, p. 64-74, 2017.

DÖRRE, Klaus. “A nova Landnahme: dinâmicas e limites do capitalismo financeiro”. Trad. Carolina Alves Vestena e Iasmin Goes. Direito e Práxis, v. 06, n. 12, p. 536-603, 2015.

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Trad. José Laurênio de Melo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.

FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro. 2ª ed. Brasília: Brado Negro, 2017.

MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política: Livro I: o processo de produção do capital; Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013.

MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política: Livro III: o processo global da produção capitalista. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2017.

MARX, Karl; ENGELS Friedrich. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas. Trad. Rubesn Enderle, Nélio Schneider e Luciano Cavini Martorano. São Paulo: Boitempo, 2007.

MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Trad. Marta Lança. Lisboa: Antígona, 2014.

PAVARINI, Massimo. Control y dominación: teorias criminológicas burguesas y proyecto hegemónico. Trad. Ignacio Muñagorri. Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 2002.

RUSCHE, Georg. “Labor Market and penal sanction: thoughts on the sociology of criminal justice”. Crime and social justice, n. 10, p. 2-8, 1978.

SANTOS, Juarez Cirino. As raízes do crime: um estudo sobre as estruturas e as instituições da violência. Rio de Janeiro: Forense, 1984

SCHWENDINGER, Herman e Julia. Defenders of order or guardians of human rights?. Social Justice, v. 40, n. 1-2, p. 87-117, 2014.

SYKES, Gresham M.; MATZA, David. “Techniques of neutralization: a theory of delinquency”. American sociological review, v. 22, n. 6, p. 664-670, 1957.

D’ELIA FILHO, Orlando Zaccone. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2015.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La palabra de los muertos: conferencias de criminologia cautelar. Buenos Aires: Ediar, 2011.

____. O inimigo no direito penal. Trad. Sergio Lamarrão. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

____. Em busca das penas perdidas. 5ª ed. Trad. Vania Romano Pedrosa, Amir Lopez da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 2001.

____. “Violencia letal em América Latina” Cuadernos de Derecho Penal, n. 13, p. 57-76, 2015.

____. Muertes anunciadas. Buenos Aires: Punto de Encuentro, 2016.

____. Crímenes de massa. 2ª ed. Buenos Aires: Madres de Plaza de Mayo, 2012.



A SUPERAÇÃO DA LÓGICA DO “COMPREENDENDO MENOS E CONDENANDO MAIS”[40] PELAS MÃOS[41] E LENTES[42] DA JUSTIÇA RESTAURATIVA

OVERCOMING THE LOGIC OF “UNDERSTANDING LESS AND CONDEMNING MORE” BY THE HANDS AND LENSES OF RESTORATIVE JUSTICE

 

Clara Welma Florentino e Silva[43]

 

Resumo: O artigo aborda o pensamento criminológico após a mudança do Estado de bem-estar social para o período pós-moderno e neoliberal. Neste contexto, situam-se os sentimentos de insegurança e impunidade, estimulados pela mídia, e o desenvolvimento de soluções de controle de criminalidade, por meio do endurecimento de penas e tipificação de condutas. Contrapõem-se essas ideias com o hiperencarceramento e os estudos criminológicos sobre a ineficácia da pena privativa de liberdade. Trabalha-se, pois, a necessidade de desenvolver outras formas de punição, a fim de superar a crise do sistema penal tradicional. Por fim, trabalha-se a ideia de que a Justiça Restaurativa poderia ser outra forma de censura (diferente da pena), avaliando criticamente suas potencialidades e limitações histórico-temporais.

Palavras-Chave: Justiça restaurativa; movimento restaurativo; teoria restaurativa; criminologia crítica; hiperencarceramento.

Abstract: This paper approuches the criminological thinking after the change from the welfare state to the post-modern and neoliberal period. In this context, feelings of insecurity and impunity, stimulated by the media, and the development of crime control solutions, through the hardening of penalties and the criminalization of conduct, are situated. These ideas are countered by the hyperincarceration and the criminological studies on the ineffectiveness of the prison. This sinalize that is necessary to develop other forms of punishment in order to overcome the crisis of the traditional penal system. Finally, we work on the idea that Restorative Justice could be another form of censorship, critically assessing its potential and historical-temporal limitations.

Keywords: Restorative justice; restorative movement; restorative theory; critical criminology; hyperencarceration.

  • Introdução

O pensamento criminológico sofreu profunda transformação na mudança do Estado de bem-estar social para o período pós-moderno e neoliberal que o sucedeu. Garland (2008, p.60) aborda como as ideias criminológicas que caracterizaram o período pós-guerra teriam sido uma mistura de psicologia da anormalidade e teorias sociológicas, como a anomia, privação relativa, teorias das subculturas e rotulacionismo.

Assim, Garland (2008, p.60-61) caracteriza o período que se inicia em 1970 como uma época em que teorias distintas passaram a emergir e influir na política governamental, prevalecendo teorias de controle, que concebem a delinquência como problema não de privação, mas de controle inadequado – controles sociais, situacionais, autocontroles.

Essa transição deixou vários sinais de mudanças, até então inimagináveis, destacando-se o declínio do ideal de reabilitação; o ressurgimento de sanções retributivas e da justiça expressiva; mudanças no tom emocional da política criminal; o retorno da vítima; a prioritária proteção do público; politização e novo politismo; reinvenção da prisão; transformação do pensamento criminológico; expansão da infraestrutura de prevenção do crime e da segurança da comunidade; comercialização do controle do crime; novos estilos de gerência e de rotinas de trabalho e uma “perpétua” sensação de crise (GARLAND, 2008, p. 49-68).

Atualmente, muito se fala sobre um sentimento generalizado de insegurança e impunidade e que a solução para a diminuição da criminalidade no Brasil passaria pelo endurecimento das penas existentes e pela tipificação de novas condutas.

Essa sensação coletiva está intrinsecamente relacionada a essas mudanças sociais iniciadas a partir do final do século XX. Carolina de Medeiros (2015, p. 25) trabalha em sua obra como essas transformações sociais, somadas à dinâmica exclusiva e competitiva da globalização das forças produtivas, aos vários perigos e à célere circulação de informações influenciaram a criação de uma “sociedade do risco” e tornaram frequentes advertências globais que incutem medo e insegurança na população.

Esse medo e essa vulnerabilidade pairando sobre a cabeça da população e sendo constantemente fomentados pela mídia influenciaram para que medidas punitivas recrudescedoras fossem constantemente usadas em promessas eleitoreiras e até implementadas como política criminal em momentos estratégicos.

Dessa forma, constrói-se no imaginário popular a ideia de que a criminalização de condutas é a melhor estratégia – ou mesmo a única identificada – para lidar com os problemas sociais que mais incomodam a população.

Zaffaroni (2013, p.194) trabalha de forma brilhante como as pessoas aceitam essa construção da realidade na esperança de que se reduza o nível de angústia que gera a violência difusa. Explicita, ainda, como essa angústia é convertida em medo pela criminologia midiática, na medida em que esta apela a uma criação da realidade através de informação, subinformação e desinformação, aliada a preconceitos e crenças baseadas em uma etiologia criminal simplista, assentada na “causalidade mágica”[44].

Este artigo trabalha inicialmente a ideia popular de impunidade, trazendo alguns dados estatísticos para colaborar na análise sobre a existência de hiperencarceramento no Brasil.

Em seguida, aborda a ineficácia da pena privativa de liberdade e a necessidade de se trabalhar outras formas de punição, a fim de superar a crise do sistema penal tradicional.

Aponta-se, por fim, a ideia de que a Justiça Restaurativa pode ser uma alternativa penal e outra forma de censura (diferente da pena), sendo necessário avaliá-la criticamente. Essa análise, como se explica a seguir, deve ser consciente de suas limitações histórico-temporais.

2- A falácia da impunidade e a (in)eficácia das ações de criminalização

Ao contrário do que se pode pensar assistindo aos telejornais, a ideia de impunidade somente tem espaço nos discursos midiáticos de intolerância e de supressão de direitos, fundamentando-se estas falas numa defesa social alicerçada na violência. As estatísticas, na verdade, apontam para um hiperencarceramento nacional, com efeitos sociais drásticos, sobretudo na reprodução da violência.

A análise estatística é limitada na descrição da realidade, sobretudo quando se trata de violações de direitos humanos (entre as quais se inclui a privação massiva, racista e classista da liberdade), no entanto, traz importantes contribuições na produção de conhecimentos na área (PIMENTA, 2016, p.52).

Reconhece-se, pois, a limitação da análise quantitativa e mesmo sua superficialidade neste trabalho, dada a natureza deste. No entanto, os dados estatísticos serão aqui usados apenas como instrumento para ratificar o já demonstrado por vários trabalhos anteriores. Com isso, quer-se fortalecer a premissa da qual se parte para propor a experimentação restaurativa.

A tabela abaixo apresenta dados do sistema prisional referentes a 31 de dezembro de 2014, trazidos pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), em seu Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN)[45]:

Tabela 1:Pessoas privadas de liberdade no Brasil em dezembro de 2014[46]

População Prisional 622.202
Sistema Penitenciário Estadual 584.758
Secretarias de Segurança/ Carceragens de delegacias 37.444
Sistema Penitenciário Federal 397
Vagas 371.884
Déficit de vagas 250.318
Taxa de ocupação 167%
Taxa de aprisionamento 306,22

Fonte: Infopen, dez/2014; Sesnap; Secretarias de Segurança Pública; IBGE, 2014

A mesma fonte indica que a população do sistema prisional brasileiro, nos últimos 14 anos (contados da data em análise), teve um aumento (de 167,32%) muito acima do crescimento populacional. O levantamento citado conclui que esse crescimento reflete tanto ou mais a política criminal hegemônica dos agentes públicos do que mesmo uma mudança nas tendências de ocorrências criminais no Brasil.

Ao contrário do que se afirma nas rodas de conversa, seja por desconhecimento, seja por má-fé, institutos como penas pecuniárias, suspensão condicional da pena ou livramento condicional (substitutivos penais) não representam impunidade ou “pouco tempo de cadeia”, mas, na verdade, instrumentos que falharam na tentativa de evitar o hiperencarcramento.

O hiperencarceramento é um fato e o levantamento apontado (produzido pelo Executivo Nacional) indica que esse crescimento no número de prisões reflete muito mais uma política criminal do que o aumento no cometimento de crimes no Brasil.

A tentativa de conter esse fenômeno mundial contou no Brasil com a criação das penas restritivas de direitos (inseridas no Código Penal pela Lei nº 7210/84), a criação dos Juizados Especiais Criminais e dos institutos da transação penal e da composição civil (Lei nº 9099/95) e a instituição da possibilidade de suspensão condicional do processo, entre outros.

Nenhum desses mecanismos foi ou tem sido capaz de conter o avanço do movimento político criminal de prisionalização no Brasil, tampouco seus efeitos como a superlotação e a reprodução da violência. Percebe-se claramente como a possibilidade de um controle penal descarcerizado não diminuiu (nem mesmo estabilizou) o nível de encarceramento. Mais adiante far-se-á referência às expectativas surgidas quando do advento da alteração legislativa, realizando-se breve análise sobre os resultados práticos diferentes do esperado pela aludida mudança legal.

Essa também é a conclusão de Augusto Amaral (2015, p.19), que diz não haver muita possibilidade de erro ao afirmar que a institucionalização das penas e medidas alternativas não diminuiu os níveis de encarceramento no Brasil, ao contrário, a curva permanece crescente, gradual e constante. Essa curva estatística retrata a falácia do discurso bem intencionado de defesa dos instrumentos substitutivos para diminuir o impacto das políticas punitivistas.

Leis que tipificam novas condutas e que endurecem a punição têm convivido com outras que tentam conter o hiperencarceramento no Brasil. No imaginário popular, entretanto, parece vencer a crença na pena (e o desejo por mais punição), ainda que se reconheça a ineficácia do sistema penal.

Zaffaroni (2015, p.14-15) aborda a deslegitimação do sistema penal e a crise do discurso jurídico penal, afirmando que sempre se soube que o discurso penal latino-americano é falso. Entretanto, anuncia que a diferença qualitativa neste momento crítico reside no fato de que não é mais possível sair desse impasse com o argumento da transitoriedade dessa situação e continuar apresentando-a como resultado de meros defeitos conjunturais de nossos sistemas penais (defeitos que seriam produzidos por nosso subdesenvolvimento e recuperáveis mediante um desenvolvimento progressivo). O autor afirma, inclusive, que hoje temos consciência de que a realidade operacional de nossos sistemas penais jamais poderá adequar-se à planificação do discurso jurídico-penal, e de que todos os sistemas penais apresentam características estruturais próprias de seu exercício de poder que cancelam o discurso jurídico-penal e que, por constituírem marcas de sua essência, não podem ser eliminadas sem a supressão dos próprios sistemas penais.

Embora eu tenha dúvidas de se, coletivamente falando, já podemos falar em uma consciência dessa realidade, a constatação trazida pelo autor de que a seletividade, a reprodução da violência, a criação de condições para maiores condutas lesivas, a corrupção institucionalizada, a concentração de poder, a verticalização social e a destruição das relações horizontais ou comunitárias não são características conjunturais, mas estruturais do exercício de poder de todos os sistemas penais (Zaffaroni, 2015, p.14-15) representa importante avanço.

As conclusões do autor nos provocam o questionamento sobre a incoerência entre a ineficácia da pena privativa de liberdade e a permanência na sua adoção como meio principal de controle das condutas tipificadas como crime.

A reincidência penal é mais um elemento que demonstra como a pena não serve para evitar o crime, mas não tem servido suficientemente para se pensar outras formas de censura ou, pelo menos, para diminuir a prisionalização criminalizante.

Victor Pimenta (2016, p.134) trabalha a ideia de retroalimentação dos processos de encarceramento pelo próprio sistema penal, na medida em que este atrai indivíduos estigmatizados, sobretudo aqueles já marcados por experiências de prisionalização. Assim, desenvolve a ideia de como o instituto da reincidência diz mais sobre o funcionamento dos órgãos policiais e do sistema de justiça criminal e sua atuação contra sujeitos mais vulneráveis aos processos de criminalização e aprisionamento do que sobre a degeneração moral ou inclinação natural de alguns indivíduos ao crime, como é tratado pelo senso comum e pela criminologia midiática.

A ideia de que o discurso jurídico penal não consegue e não tem como conseguir seus objetivos declarados foi exaustivamente trabalhada por autores como Zaffaroni (2015) e Alessandro Baratta (2011). Assim, esse trabalho parte desse referencial teórico para demonstrar erros cometidos na assunção de políticas criminais e a necessidade de se trabalhar alternativas à problemática criminal.

O endurecimento das penas ou a criação de novos tipos penais não têm servido senão como política eleitoreira. O aumento do número de prisões não conseguiu sequer diminuir a sensação de “impunidade” e insegurança.

Georg Rusche e Otto Kirchheimer (2004, p.265) relatam que no curso de sua pesquisa se depararam frequentemente com a concepção de que a política penal é um tipo de válvula usada para regular o fluxo da criminalidade. Explicam como a introdução de novos métodos ou graus de punição tem sido acompanhada do argumento de que o crescimento da criminalidade é resultado de uma liberalidade excessiva, e vice-versa, que a taxa de criminalidade pode se inclinar para baixo através da intensificação da punição. No entanto, esclarecem que nenhum esforço sério foi feito para provar esta relação através de uma investigação precisa e a discussão fica comumente limitada a observações gerais sobre a conexão entre o mal-estar social e político, o enfraquecimento da autoridade do Estado e a frequência do crime.

Assim, as estatísticas demonstram que a ideia de impunidade carece de justificativa, dado o crescimento extraordinário do número de presos. Também não se consegue demonstrar como o aumento da punição poderia reduzir a criminalidade, já que mesmo com o hiperencarceramento não se conseguiu evitar a reincidência (prevenção especial) ou ressocializar os indivíduos (ressocialização), tampouco evitar o cometimento de delitos por agentes primários (prevenção geral).

Nesses termos, as estatísticas apresentadas confirmam as ideias trazidas pelos autores acima apresentados, caracterizando a falácia do discurso jurídico penal. Resta-nos a alternativa de analisar as falhas que a política criminal adotada comete, para usá-la no desenvolvimento de propostas que, de fato, possam atender aos objetivos sociais de convivência harmônica e equilibrada entre todos os indivíduos.

Nesse sentido, importante analisar as palavras de Alessandro Baratta (2011, p. 197), quando defende a adoção do ponto de vista das classes subalternas como garantia de uma práxis teórica e política alternativa:

(…) a atenção da nova criminologia, da criminologia crítica, se dirigiu principalmente para o processo de criminalização, identificando nele um dos maiores nós teóricos e práticos das relações sociais de desigualdade próprias da sociedade capitalista, e perseguindo, como um de seus objetivos principais, estender ao campo do direito penal, de modo rigoroso, a crítica do direito desigual. Construir uma teoria materialista (econômico-política) do desvio, dos comportamentos socialmente negativos e da criminalização, e elaborar as linhas de uma política criminal alternativa, de uma política das classes subalternas no setor do desvio: estas são as principais tarefas que incumbem aos representantes da criminologia crítica, que partem de um enfoque materialista e estão convencidos de que só uma análise radical dos mecanismos e das funções reais do sistema penal, na sociedade tardo-capitalista, pode permitir uma estratégia autônoma e alternativa no setor do controle social do desvio, ou seja, uma “política criminal” das classes atualmente subordinadas (BARATTA, 2011, p.197).

Eis um desafio que se coloca diante da sociedade: construir uma estratégia de atuação com base nesses estudos. Não se pode perder o momento histórico em que o país reforma o Código de Processo Civil, ampliando as possibilidades de adoção de medidas dialógicas e consensuais, mesmo extrajudiciais, na solução de conflitos, bem como em que o Conselho Nacional de Justiça aprova resolução com diretrizes para implementar e difundir a prática de Justiça Restaurativa no Poder Judiciário. Devemos aproveitar o incentivo a práticas dialógicas para resolução de conflitos e combater os discursos falsos e maliciosos de impunidade no Brasil.

Não se trata (ainda) de um momento de ruptura na adoção do modelo tradicional, mas da oportunidade de dialogar sobre as práticas restaurativas, ampliando estudos e pesquisas nessa seara e avançando no desenvolvimento dessas técnicas. Mostra-se, pois, imprescindível o debate e a experimentação dessas práticas insurgentes que trabalham a responsabilização e o empoderamento dos indivíduos.

Pretende-se, pois, trabalhar neste artigo a ideia de aplicação de Justiça Restaurativa na solução de conflitos, a fim de fortalecer estratégias de resistência que possam contribuir para a construção de uma política criminal alternativa à política de prisionalização vigente.

3- A prática restaurativa

Uma das definições mais usadas para caracterizar a justiça restaurativa (JR) é a de Marshall (1996, p.37), que a entende como “um processo pelo qual as partes envolvidas em uma específica ofensa resolvem, coletivamente, como lidar com as consequências da ofensa e as suas implicações para o futuro”.

Embora a conceituação seja bastante controversa, essa referência costuma aparecer na maioria dos estudos sobre o tema. Atualmente e cada vez mais essa definição é criticada com o argumento de que a justiça restaurativa não pode ser resumida a um processo, e que a justiça tem de ser restaurativa nos seus meios, fins e intenções (ROSENBLATT, 2014).

Petronela Boonen (2011, p. 237-238) define sinteticamente Justiça Restaurativa a partir de seu procedimento:

Pensar sobre os procedimentos da JR é uma oportunidade e um convite para retomar não só o lugar, mas também o sentido da justiça. A JR é um modo de restaurar a justiça através da participação da comunidade. A ideia original é de que vítima e ofensor, após preparação separada em pré-círculos, se encontrem face a face. Neste encontro, o ofensor tem a possibilidade de assumir seu ato, sua responsabilidade e os procedimentos para restauração dos danos. A vítima e o ofensor tem espaço para expressar suas emoções, sua percepção sobre os efeitos deste ato, que pode ser um crime. As comunidades de afeto também são convidadas a expressar-se. Este encontro objetiva que os envolvidos todos se coloquem e ofereçam sugestões para restaurar a situação através de intervenções assumidas pelo agressor e por outros presentes para reparar o dano (Boonen, 2011, p. 237-238).

Apesar da análise do procedimento da JR não ser o mais importante quando pensamos esse instituto, até porque ele pode sofrer inúmeras modificações para adaptar-se ao caso concreto, é sempre uma questão que desperta interesse. Questionamos como seria essa “nova forma de fazer justiça” e o passo-a-passo parece inicialmente tranquilizar essa inquietação.

No entanto, destaco que a ideia de inserir os sujeitos e a comunidade na resolução do conflito é o ponto que mais parece ter aptidão para transformar a realidade social e para vencer a ilusão da pena.

A compreensão da complexidade desse desafio traz consigo inúmeros questionamentos, entre eles como evitar a apropriação da Justiça Restaurativa pelo controle penal e a extensão da rede de controle.

Essa preocupação é justificada, sobretudo considerando o que aconteceu com a previsão legal de medidas cautelares diversas à prisão, que passaram a ser direcionadas para situações que antes não ensejavam tratamento penal, deixando incólume o instituto da prisão, que continua a agigantar-se.

Raffaella Pallamolla (2009, p. 141, apud LARRAURI, 2004, p. 462) traz alguns exemplos de situações em que há um maior risco de extensão do controle penal, como aquelas em que se dá prioridade ao sistema penal na decisão sobre quais casos estão aptos a ingressar num processo restaurador; as situações em que os acordos alcançados nas conferências restaurativas não são valorados pelo juiz na fixação da pena e as situações em que os processos restaurativos não constituem alternativa à pena de prisão.

Essas questões precisam ser consideradas, a fim de que se evite a ampliação da rede de controle e o uso indevido da justiça restaurativa.

Analisando a posição da justiça restaurativa em relação ao sistema de justiça criminal, Fernanda Rosenblatt (2014) destaca que a maioria dos programas restaurativos funciona às margens do sistema de justiça criminal ou, quando muito, situam-se em algum estágio do procedimento criminal tradicional, mas sem que isso importe numa significativa reformulação do processo penal (2014, apud SHAPLAND, ROBINSON e SORSBY, 2011). Fernanda Rosenblatt (2014) acrescenta que, embora de um modo geral os restaurativistas concordem sobre a influência da crítica abolicionista no surgimento da justiça restaurativa, muitos são os que hoje negam possuir a justiça restaurativa uma essência eminentemente abolicionista.

Outra questão que se coloca é que muitas experiências não representam novos modelos de administração de conflitos, pois fundados e exercidos dentro da mesma lógica do processo tradicional. Citam-se como exemplo os programas no Rio Grande do Sul analisados por Daniel Achutti (2006) em sua dissertação de mestrado.

Essas experiências, segundo ele, não poderiam ser consideradas mecanismos alternativos aptos a comprovar a crise do sistema penal tradicional. A linguagem, a estrutura funcional e a imposição das decisões judiciais seriam as principais características pelas quais os projetos por ele analisados teriam se tornado meros apêndices do sistema, com a ampliação do controle penal sem apresentar inovações que pudessem alterar de forma significativa o modo como os conflitos eram administrados (ACHUTTI, 2009, p. 106).

Ainda assim, Achutti (2009, p. 106-107) acredita que a justiça restaurativa teria potencial para ser considerada um modelo distinto de gerenciamento de conflitos, em virtude de suas características, de seus objetivos, de sua forma de processamento, da construção coletiva de suas decisões e, principalmente, da sua linguagem.

Novas apostas precisam ser feitas para que se possa de alguma forma alterar a realidade, não se podendo limitar aos círculos acadêmicos. Para tanto, um marco sociológico desconstrucionista tem que se fazer presente, não apenas em relação ao conceito de “crime” – sobre o qual se concentram as criminologias críticas – mas também diante da noção de “pena” (GIAMBERARDINO, 2015, p. 230).

Tampouco a crença na possibilidade de se construir uma via alternativa na solução de condutas criminalizadas deve ser fantasiosa. A busca por novas soluções deve ser consciente de que não existem respostas prontas para todos os conflitos e nem mesmo um método perfeito e adequado para substituir o que hoje se entende por justiça retributiva.

Embora acredite na importância da utopia para saber por onde caminhar, como já dizia Eduardo Galeano (2001), a experimentação prática da Justiça Restaurativa deve dar-se com coragem para construir criticamente uma alternativa penal, mas sem ilusões.

Defende-se, pois, a necessidade de incrementar programas que adotem práticas restaurativas, bem como continuamente avaliá-los e aperfeiçoá-los, a fim de que eles possam contribuir para a redução da incidência do sistema penal.

Ao apresentar a proposta restaurativa, norteia-se pelas “regras de cautela de bom senso metodológico” trazidas por Garland (2008, p. 70-71), não se podendo tratar uma proposta ou iniciativa como se fosse uma política consolidada. O autor destaca que qualquer análise sobre eventos recentes e sobre seu significado estrutural deve ser levada a termo com certo grau de cuidado.

A cautela é importante, pois, ainda não há no Brasil políticas restaurativas consolidadas. Assim, uma análise precipitada de um fenômeno em construção pode atrapalhar ou mesmo impedir o desenvolvimento dessas alternativas penais. A constatação, como a citada acima, de que práticas tidas como restaurativas têm sido realizadas na mesma lógica do processo tradicional não devem prematuramente barrar o desenvolvimento da proposta restaurativa. Ao contrário, devem permitir sua análise crítica e seu aperfeiçoamento.

Garland (2008, p. 72), objetivando escrever uma história do presente e apresentar um relato estrutural de como o controle do crime e a justiça criminal estão organizados atualmente (leia-se, à época em que escreveu, no ano de 1955), entende necessário mapear as condições sociais de existência subjacentes ao controle do crime contemporâneo e identificar regras de pensamento e ação que moldam suas políticas e práticas. Nesse intento, o autor enumera algumas dificuldades comuns a este trabalho e realiza reflexões úteis, como se vê a seguir:

Uma das dificuldades de um projeto como este é como discutir a mudança num complexo campo de práticas, discursos e representações. Falar-se em “estrutura” e em “mudança estrutural” é frequentemente totalizante demais, muito “tudo ou nada”. Bem assim é a justaposição de uma “racionalidade” em outra, como a alegação de que uma “nova penologia” está substituindo uma “velha penologia”, ou de que a modernidade está sendo desalojada pela pós-modernidade. Um campo complexo, multidimensional, que se submeteu a um processo de transição revelará sinais de continuidade e descontinuidade. Conterá múltiplas estruturas, estratégias e racionalidades, algumas das quais terão mudado e outras, não. Precisa-se discutir a mudança tendo-se em conta estas complexidade e variação, evitando-se o apelo a dualismos simplificadores e o falso essencialismo que estes implicam (GARLAND, 2008, p. 72).

A mudança estrutural que se almeja, dada sua complexidade, terá que se submeter a um processo de transição, com sinais de continuidade e descontinuidade. Dessa forma, é necessário estudar as práticas existentes, o quanto de continuação ou ruptura elas apresentam e como podem ser aprimoradas, a fim de que possam avançar nesse complexo processo de transição.

Não se pode esquecer que a proposta restaurativa é aqui buscada dentro de um intento maior, de ruptura com o ideal de prisionalização e de controle do crime. No entanto, nasce muitas vezes dentro da estrutura do Judiciário e sobretudo dentro de uma sociedade que cada vez mais carrega a esperança punitivista.

Se Garland, ao fazer uma análise da “história do presente”, expressão que intitula seu capítulo primeiro[47], alerta para os perigos de uma análise míope, muito mais cuidado deve ter-se ao fazer a análise proposta nesse trabalho, já que esta se projeta para o futuro. É, pois, mais arriscado avaliar o contexto presente para sugerir uma realidade futura, ofuscada pela miopia da análise do tempo em que se vive e por certa previsão do que pode ser.

Nesse sentido, pode-se exemplificar com as ponderações de Vera Regina de Andrade (2012, p. 328) sobre a Lei nº 12.403/11. A autora avaliou, à época, que a reforma produzida por essa lei estaria vocacionada a interferir na cultura judicial brasileira de ordenar prisão cautelar dos que são presumidos inocentes pela Constituição Federal, tendo como base a subjetividade do magistrado a respeito da gravidade do fato. Para tanto, justificava no art. 309 trazido pela reforma, que elencava então nove medidas cautelares diversas da prisão, para serem aplicadas prioritariamente à prisão preventiva, que passava a ser subsidiária. Vera Andrade analisava que a mensagem da lei era clara no sentido de não se poder prosseguir com tamanha “trivialização judicial” da prisão cautelar e concluía que, nesse sentido, a reforma estaria apta a produzir impacto, sim, na superpopulação carcerária.

O exemplo demonstra como essa “cultura do controle” apresentada por Garland pode frustrar nossas expectativas de mudança estrutural. Avalio que a manutenção da mentalidade encarceradora na sociedade em geral fez com que o encarceramento no Brasil continuasse a crescer de forma alarmante, a despeito de alterações legislativas como a citada por Vera Andrade.

No entanto, alterações legislativas nesse sentido são importantes, pois representam certo freio frente à mentalidade punitivista e encarceradora, trazem elementos que podem subsidiar juízes, promotores e defensores com ideias progressistas e, pelo menos, trarão mais dificuldade aos julgadores no momento de justificar prisões desnecessárias.

Na prática, os juízes passaram a decretar as mesmas prisões, aplicando medidas cautelares diversas somente para casos em que anteriormente não ensejavam intervenção penal. No entanto, isso não deve desestimular avanços na legislação, mas apenas conscientizar de sua insuficiência e da necessidade de se trabalhar a mentalidade da população sobre o crime.

As teorias retributivas da pena não devem ser rejeitadas mecanicamente por argumentos utilitaristas, devendo ser analisadas em suas contradições internas e afastadas as justificações morais que sustentam o merecimento (GIAMBERARDINO, 2015, p. 230).

Neste trabalho, segue-se, pois, o raciocínio de André Giamberardino, para quem não deve ser tomada a sério qualquer proposta de institucionalização de práticas restaurativas que signifique a sua cooptação pelo sistema penal, descaracterizando-as como limite ao discurso punitivo. Acrescenta o autor não se opor à possibilidade estratégica de essas práticas restaurativas conviverem em paralelo, apostando na gradual e inevitável deslegitimação do sistema punitivo decorrente da compreensão, por todos, de que práticas de censura sem punir e sem destruir o outro são possíveis (GIAMBERARDINO, 2015, p. 231).

Ademais, não se trata de querer importar uma técnica estrangeira sem avaliar o contexto brasileiro, ou, de forma mais ampla, a realidade latino-americana, mas entender que, a despeito das especificidades, existem grandes semelhanças na forma como se desenvolve a “cultura do controle”. Isso fez com que a obra de Garland (2008) que aborda a realidade dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha fosse reconhecida nas vivências de leitores de muitos lugares do mundo, inclusive do Brasil.

Trata-se, sobretudo, da necessidade de apostar em outras técnicas de censura, cujo envolvimento dos sujeitos que vivenciaram a conduta tipificada (sujeitos criminalizados e vitimizados) e daqueles a quem esta conduta direta ou indiretamente afeta possa trazer maiores benefícios e lidar melhor com a questão.

4- Considerações finais

Os efeitos da influência da criminologia midiática são muitos e devastadores. De um lado, alimenta uma sociedade amedrontada e insegura; de outro, gera uma parcela estigmatizada e criminalizada da sociedade (antes de qualquer decisão judicial), o principal alvo do controle policial e penal. Essa parcela corresponde à atingida pela ideia de “causalidade mágica” ou “causalidade especial”, como defendido por Zaffaroni e analisado linhas atrás.

As prisões continuam superlotadas e mesmo assim ainda cresce o número de presos (provisórios e “definitivos”). Pensa-se em construir novos presídios, talvez para encarcerar todo brasileiro preto e pobre. Pensa-se em criminalizar a corrupção, criminalizar o consumo de drogas, criminalizar a manifestação popular, criminalizar a luta por reforma agrária. Pensa-se em aumentar as penas dos tipos já existentes. Pensa-se em continuar adotando as mesmas políticas fracassadas, na “esperança” de alcançar resultados diferentes.

Os estudos e as estatísticas acima citados indicam o fracasso da pena, que não alcança seus objetivos declarados de prevenção geral e especial e ressocialização. Insiste-se na pena como resposta estatal aos fatos tipificados como delito.

É, pois, nesse momento, que se faz imperiosa a análise crítica do sistema posto e a ousadia da aposta em novas propostas. Entre essas novas ideias, coloca-se a Justiça Restaurativa, como algo em construção, e, portanto, inacabada e suscetível de releituras e de adaptações. Coloca-se, entretanto, a Justiça Restaurativa como o que de mais concreto se tem na busca por uma alternativa ao hiperencarceramento e à redução da incidência do sistema penal.

 

Referências

 

ACHUTTI, Daniel Silva. Justiça restaurativa e abolicionismo penal: contribuições para um novo modelo de administração de conflitos no Brasil. 2012. 279 f. Tese (Doutorado em Ciências Criminais) – Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. 2012.

ACHUTTI, Daniel Silva. A crise do processo penal na sociedade contemporânea: uma análise a partir das novas formas de administração da justiça criminal. 2006. 127 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Criminais) – Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. 2006.

AMARAL, Augusto Jobim do. Cultura da Punição: a ostentação do horror. 2ª ed. Forianópolis: Empório do Direito, 2015.

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan, 2012.

BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan, 2011.

BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.

BOONEN, Petronela Maria. A justiça restaurativa, um desafio para a educação. São Paulo: Programa de Pós-Graduação (Doutorado) em Educação da Universidade de São Paulo, 2011.

CRUZ, Rafaela Alban. “Justiça restaurativa: um novo modelo de justiça criminal”. In: Tribuna Virtual IBCCRIM. São Paulo, ano I, Ed. nº 02, março de 2013, p. 78-81. Disponível em: http://www.tribunavirtualibccrim.org.br/artigo/11-Justica-Restaurativa:-um-novo-modelo-de-Justica-Criminal. Acesso em: 07/10/2017.

GALEANO, Eduardo. Las palabras andantes. Buenos Aires: Catálogos S.R.L., 2001

GARLAND, David. As Contradições da “Sociedade Punitiva”: O Caso Britânico. Tradução de Bento Prado de Almeida Neto. In: Revista de Sociologia e Política, Curitiba. n. 13, novembro de 1999, p. 59-80.

GIAMBERARDINO, André Ribeiro. Crítica da Pena e Justiça Restaurativa: a censura para além da punição. 1. ed. Florianópolis: Empório do Direito Editora, 2015.

LARRAURI, Elena. Tendencias actuales en la justicia restauradora. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 51, 2004, p. 67-104.

MEDEIROS, Carolina Salazar L´Armée Queiroga de. Reflexões sobre o punitivismo da Lei Maria da Penha com base em pesquisa empírica numa Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Recife. Recife: Programa de Pós-Graduação (Mestrado) em Direito da Universidade Católica de Pernambuco, 2015.

PALLAMOLLA, Raffaella da Porciuncula. Justiça Restaurativa: da teoria à prática. São Paulo: IBCCRIM, 2009.

PIMENTA, Victor Martins. Por trás das grades: o encarceramento brasileiro em uma abordagem criminológico-crítica. Brasília. Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (Mestrado) da Universidade de Brasília, 2016.

ROSENBLATT, Fernanda Fonseca. “Em busca das respostas perdidas: uma perspectiva crítica sobre a Justiça Restaurativa”. In: CONPEDI, 2014. Disponível em: < http://publicadireito.com.br/artigos/?cod=adc4b51b49fc307a>.  Acesso em: 06/06/2017.

RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. Traduzido por: Gizlene Neder. Rio de Janeiro: Revan, 2004.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A questão criminal. Traduzido por: Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2013.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Traduzido por: Vania Romano Pedrosa, Almir Lopez da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991.



 MACONHA E CRACK EM DOIS TEMPOS DE UM CONTROLE RACIAL: A CONSTRUÇÃO DO PROIBICIONISMO E OS ATUAIS INDESEJÁVEIS NO BRASIL[48]

WEED AND CRACK IN EACH TIME OF RACIAL CONTROL: THE CONSTRUCTION OF PROHIBITIONISM AND THE NEW UNDESIRABLE

Vinícius de Assis Romão[49]

 

Resumo: O artigo debate como as relações raciais marcam a política criminal de repressão à maconha e ao crack, no Brasil. Inicialmente, estuda-se o papel político e o discurso acadêmico de médicos empenhados na campanha proibicionista entre o início da década de 1910 e fim da década de 1930, que capitanearam a campanha de criminalização da maconha. Juntamente às posturas do estado brasileiro em âmbito nacional e internacional, apresenta-se uma leitura sociorracial da construção do proibicionismo no pós-abolição da escravidão, que teve a maconha como carro-chefe. Em seguida, estuda-se a estratégia atual de controle de usuários de crack, que assume uma centralidade na política criminal de drogas a partir de 2010. Analisa-se as dinâmicas prático-discursivas de ações governamentais em São Paulo em 2017, no entrelaçamento de tratamento e punição, em um novo cenário de articulação médico-jurídica e assistencial que mobiliza o racismo institucional em novos códigos. A faceta do tratamento dos usuários articulado ao contexto bélico que blinda as agências criminalizantes é analisada entre permanências e rupturas com o período da proibição da maconha. A partir do enfoque racial pretende-se ampliar o olhar sobre a subjugação dos usuários que potencializa dinâmicas de controle próprias, em dois tempos de uma história.

Palavras-chave: Maconha; Crack; Racismo; Proibicionismo; Política Criminal.

Abstract: The paper focuses on how the racial relations defined the repressive criminal policies of marijuana and crack cocaine in Brazil. First, I study the political role played by physicians, as well as their academic discourse, involved in the prohibition campaign, between the 1910s and the 1930s, demanding the criminalization of marijuana. Together with the positions taken by the brazilian government in the national and international spheres, I present a socioratial reading of the construction of prohibitionism in the post-abolition, that had marijuana as it’s flagship. Next, I study the current strategy of control of crack cocain users, that takes a central position in the drug criminal policy beginning in 2010. I analyze the practical discourse dynamics of the government actions in São Paulo in 2017, in the interlacing of treatment and punishment, in a new scenario of medical, juridical an assistentialist articulation that mobilize institutional racism in new coding. The treatment of drug users in articulation of the belic context that protects the criminal justice agencies is analyzed between continuities and ruptures with the period of marijuana prohibition. From a racial framework I intend to expand our understanding of the subjugation of drug users that potencializes dynamics of control, in two periods of a history.

Keywords: Weed; Crack; Racism; Prohibitionism; Criminal Policy.

1 INTRODUÇÃO

O artigo parte da questão-problema que indaga como as relações raciais marcam a política criminal de repressão à maconha e ao crack, no Brasil, em dois momentos históricos específicos. Objetiva-se estudar as dinâmicas raciais na proibição da maconha no início do Século XX e suas permanências e descontinuidades na persecução penal de usuários de crack na atualidade.  A partir da historicização das diversas chegadas da maconha no Brasil (FRANÇA, 2015) e sua perversa associação com os africanos escravizados, o trabalho se propõe a fazer um resgate da construção do proibicionismo, tomando como base a ideia de que o proibicionismo, ao difundir um medo maior que a ameaça funciona como um mecanismo indutor e justificador de políticas autoritárias (BATISTA, 2003a).

O trabalho toma como referencial teórico-metodológico a criminologia crítica, objetivando se debruçar sobre as novas nuances das demandas por ordem contemporâneas (BATISTA, 2011) relativas ao proibicionismo, bem como as permanências das estratégias de controle do início do século XX, que pariram o proibicionismo no Brasil e preparam terreno para a consolidação do modelo bélico, hegemonizado da segunda metade deste século até o presente (BATISTA, 1998). Assim, ao trabalhar a punição em uma postura metodológica de história social das ideias (BATISTA, 2003ab), o intuito é desenvolver uma metodologia que trabalhe a realidade concreta de forma historicizada, estudando possíveis continuidades e descontinuidades. Ou seja, revelando as possibilidades de o passado contribuir para compreender no presente (BLOCH, 2001) o eixo central da reconfiguração – ou não – de estratégias de controle racial.

O elemento empírico do situa-se, em um primeiro momento, na do papel político e do discurso acadêmico de médicos entre o início da década de 1910 e fim da década de 1930, que guiaram a argumentação moral e os debates em prol da criminalização da maconha no brasil, bem como as posturas do estado brasileiro diante das convenções internacionais acerca de substâncias ilícitas daquele período. A pesquisa se debruça ainda sobre os primeiros decretos coesos com a política criminal emergente e que preparam terreno tanto para a elaboração do artigo 281 do Código Penal de 1940.

De outro lado, observa-se as especificidades na estratégia atual de controle de usuários de crack, através da atuação política que norteou mais uma grande operação em São Paulo, em 2017, com repercussão nacional, onde circundou diversos aspectos em torno da política anticrack que vem se construindo atualmente. Neste ponto, estuda-se as dinâmicas prático-discursivas de ações governamentais na mescla ou na pretensa distinção entre tratamento e punição, em um cenário de intensa articulação médico-jurídica em que supostamente o racismo institucional é mobilizado com outras categorias entre velhos e novos métodos de subjugação racial na conjuntura bélica que afeta a medicina, o direito e a própria assistência social.

2 PROBICIONISMO E CONTROLE RACIAL: PARA ALÉM DA ADJETIVAÇÃO

A primeira lei a criminalizar a maconha, elaborada no Rio de Janeiro, em 1830, foi especialmente voltada para o controle dos corpos negros, já que era difundido no meio social que a planta era fumada majoritariamente pelos escravizados. Curiosamente, de acordo com Vera Malaguti Batista (2003a), a década de 1830 no Brasil representou um período de intenso pânico das insurreições escravas, na esteira da revolução haitiana e outros episódios de luta e resistência negra. Para se ter uma ideia, de acordo com um censo realizado em 1834, no Rio de Janeiro, local que primeiro criminalizou a maconha, pelo menos 44,4% da população total era composta por escravizados (CHALHOUB, 2011). A partir desse período o controle da população negra será gradativamente intensificado, através, sobretudo, do poder punitivo.

Luiza Saad (2013) estudou a carreira e a produção do médico e criminólogo Rodrigues Dória, contemporâneo de Nina Rodrigues e tradutor da criminologia positivista europeia do fim do século XIX. Sob o paradigma etiológico e biologizante, ele encarnou o projeto de nação no pós-abolição, que via o negro como obstáculo ao ideal de civilização brasileira. Tratou especificamente do uso de maconha como um traço degradante indicativo da inferioridade e da periculosidade dos negros, muito próximo ao discurso da profilaxia social.

O discurso proibicionista tem permanências racistas que antecedem bastante a empreitada da declaração e concretização da guerra às drogas encabeçada pelos Estados Unidos e cujo modelo bélico foi exportado em massa para outras partes do mundo, com destaque para a América Latina (DEL OLMO, 1990; BATISTA, 1998). No contexto estadunidense, Michelle Alexander (2012) disseca a origem política do modelo de guerra às drogas que veio a se consolidar em boa parte a geopolítica internacional, demonstrando sua articulação com o movimento da lei e ordem para o controle das populações negras e pobres, servindo como grande expoente do grande encarceramento contemporâneo.

Como bem constatado por Maria Lúcia Karam (2009), a criminalização de “coisas” nada mais é que a medida autoritária para expansão do espectro de criminalização que mira sujeitos determinados. Entre os discursos periculosistas sobre o “pito do pango” em meados do século XIX, a maconha no início do século XX, a “cola” dos anos 1990 e do crack a partir dos anos 2000, o que ressalta é o racismo como elemento conformador da dinâmica dos nossos sistemas penais (FLAUZINA, 2008), e consequentemente como o cerne da construção do estereótipo criminal para os usuários negros (BATISTA, 2003b).

Compreender como a raça se insere como grande âncora da seletividade (FLAUZINA, 2008) e como um fator determinante (ALEXANDER, 2012) também na guerra às drogas parece ser uma chave de leitura fundamental, no propósito de compreender no presente compreender no presente as estratégias de controle racial. Uma vez que conformação da clientela do sistema penal se dá pelo racismo, que também controla o potencial de intervenção física do sistema e estrutura o sistema penal a agir pela violência (FLAUZINA, 2008), então, faz-se necessário politizar a categoria raça. O racismo, às vezes sutil, nunca o foi na violência policial, nas palavras de Kabengele Munanga (2003). É no campo penal que está a exposição mais evidente da violência contra a corporalidade negra: na suspeição; nas abordagens incisivas; no encarceramento desproporcional; e na promoção de mortes abruptas (FLAZUINA, 2008).

 Muitos códigos do empreendimento penal ainda estão por decifrar, a partir da categoria raça, diferente das categorias gênero e classe já mais trabalhadas ao longo da criminologia crítica. Neste contexto, a pesquisa se aproxima das abordagens teórico-metodológicas que vêm reescrevendo e aprofundando a historiografia do proibicionismo e da declarada “guerra às drogas” transnacionalizada pelos Estados Unidos, acirrada entre as décadas de 1970 e 1980, enquanto controle de grupos racializados – seja pela narrativa da invocação da escravidão ou pelo estudo da centralidade das relações raciais como elemento conformador dos sentidos e práticas penais (BATISTA, 2003ab; REIS, 2005; ALEXANDER, 2012; SAAD, 2013; HART, 2014; VALOIS, 2016).

3 POLÍTICA CRIMINAL COMO PARTE DA POLÍTICA SOCIAL

Nilo Batista (1998, p. 01-02) recorda uma importante lição de Heleno Fragoso sobre a importância de se olhar a política criminal como parte de uma política mais ampla, ou seja, como uma relação de continuidade que a torna imbricada direta ou indiretamente com outros setores públicos, que contribuem com “critérios silenciados ou negados pelo discurso jurídico”. E, neste contexto, não só a política criminal contemporânea é dependente de outras políticas sociais e articulações no campo teórico e político-institucional, como justifica Batista, mas também a política criminal que se gestou no início do Século, decorrente das primeiras intervenções contra os consumidores de ópio, bem antes da cristalização da marca da guerra no modelo de combate “ao tráfico” transnacionalizado da virada entre as décadas 1970 e 1980.

No desafio de perceber as marcas da guerra na política criminal, Nilo Batista (1998) discorre sobre o modelo sanitário, que se percebe mais nítido a partir de 1914, quando há uma coerência programática, após a assinatura da Conferência Internacional do Ópio de 1912, que visando, conter um suposto crescimento vertiginoso do ópio, almejou controlar seus derivados, como a cocaína.  O Decreto nº 4.294/1921, então, alterou o Código Penal de 1890, para incorporar estas substâncias entre as genericamente tidas como venenosas, com um emblemático adendo: a qualificação de efeito “entorpecente” e a previsão de internação em “estabelecimento correcional adequado”. Ainda segundo Batista, em setembro de 1921, surgia o sanatório para toxicômanos do Distrito Federal, pelo Decreto 14.969 de 1921.

O que se depreende com clareza de tais normas é uma concepção sanitários de controle do tráfico que se alimenta do desvio da droga de seu fluxo autorizado. As drogas estavam nas prateleiras das farmácias ou nos “stocks” de uma indústria que apenas suspeitava de seu futuro sucesso comercial, e boticários, práticos, facultativos, fieis de armazém e funcionários da alfândega são os personagens que abastecem de opiáceos ou cocaína grupos reduzidos e exóticos, intelectuais, filhos do baronato agroexportador educados, na Europa, artistas: um hábito com horizonte cultural bem definido (BATISTA, 1998, p. 5)

Nesta conjuntura, a embriaguez pelo álcool, enquanto substância venenosa entorpecente, e estigmatizada em classes negras e populares, vai ser absorvida pelas primeiras experiências de internação compulsória. Exemplo emblemático disto é o caso do escritor negro e subvalorizado em vida Lima Barreto, duas vezes internado em circunstâncias lastimáveis – detalhadas em seu Diário do Hospício e retratadas no inacabado Cemitérios dos Vivos (BARRETO, 2017) – sendo a última delas um gatilho para sua prematura morte, em razão de suicídio.

É curioso observar como, no caso da maconha, há um tratamento diferenciado também pelo fato do afastamento moral e hierarquizante da classe intelectual com essa substância vista como quase que “enraizada” nos afro-brasileiros. Um dos eixos discursivos se impulsionava no medo de “contaminação de outros setores” da sociedade brasileira.  França (2015) destrincha o forte receio de que a cannabis se tornasse um “vício elegante”, ou seja, que adentrasse aos costumes das classes brancas hierarquizadas dos do Brasil, degenerando seus valores morais. O autor destaca como a erva, inclusive, está ausente da produção literária brasileira da época, algo completamente distinto da Europa Ocidental, que vira acadêmicos relatarem a potência intelectual que atingiram pelo haxixe, como Walter Benjamin, e pela cocaína, como Sigmund Freud (FRANÇA, 2015).

Importante retomar a figura de Rodrigues Dória, criminólogo positivista, primeiro professor de Medicina Legal da Faculdade Livre de Direito da Bahia, presidente do Estado de Sergipe, Deputado Federal e fundador da Sociedade Baiana de Medicina Legal, reconhecido por seu diálogo teórico com Cesare Lombroso e pela influência mútua contemporânea que dividiu com Nina Rodrigues, então professor da Faculdade de Medicina da Bahia. Dória foi tido como um dos intelectuais mais influentes na campanha proibicionista da maconha, inclusive, pelas suas sucessivas participações em congressos internacionais, nos Estados Unidos e na Europa. E isto simboliza que os argumentos depreciadores sobre negros e uso de cannabis não se bastavam em si próprio,mas se destinavam à consolidação do proibicionismo, que veio em seguida:

A proibição do comércio da planta, preparada para ser fumada, poderá restringir a sua disseminação progressiva. Sei que em alguns estados do norte as violências cometidas durante a embriaguez da maconha têm levado as autoridades policiais a proibir a vendagem da erva nas feiras. Em Penedo, segundo informações que me deram, essa proibição tem dado resultado, quase extinguindo as brigas provenientes da embriaguez pela maconha. (DÓRIA, 1958)

3.1 O MODELO PROIBICIONISTA DA DÉCADA DE 1930

Na década de 1930 a política criminal se endurece de vez no Brasil, quando, enfim, a campanha moral pela proibição da maconha ganha eco internacional e acirra as dinâmicas de controle racial internas. Importante observar, portanto, que o Estado Novo, conhecido pela burocratização estatal, que viria a compilar legislações trabalhistas e criminais, se estabelece com essa carga teórico-política das demandas proibicionistas da Primeira República, ainda que o discurso sobre a mestiçagem majoritariamente viria a se reconfigurar no denunciado mito da democracia racial (NASCIMENTO, 2016).

Ressalte-se, em tempo, que não cabe singularizar o papel dos juristas e dos médicos, enquanto formadores do pensamento social brasileiro, na política criminal em torno do proibicionismo das drogas:

De fato, a proibição da maconha não parece ter sido uma obra planejada e largamente discutida antes do decreto. Pelo que indicam as fontes, a proibição se deu com base em argumentos pouco sólidos e com respaldo científico praticamente inexistente, mas a influência médica, o conservadorismo e o pânico moral abriram espaço para o surgimento desse projeto que buscou criminalizar, mais do que a planta, os que faziam uso dela. Os anos seguintes à proibição serviram para que as próprias estratégias de repressão fossem sendo desenvolvidas e adaptadas de acordo com o que se buscava. (SAAD, 2013) (grifamos)

Em paralelo a esta conjuntura oriunda da Primeira República, há uma seriação de convenções internacionais, às quais o Brasil buscou se submeter prontamente, desde as primeiras recomendações sobre opiáceos e derivados de cocaína na virada para o século XX, quando não se registrava nem se reclamava qualquer conflito social sobre estas substâncias. Neste sentido, a importância da década de 1930 se deve também à emblemática Convenção de Genebra de 1925, que se destinava a revisar a Convenção de 1912, para discutir contornos da proibição de opiáceos.

França (2015) destaca como o Egito suscitou um alarde em relação ao haxixe, argumentando que havia um intenso vício acerca desta substância em seu país. Seguindo a construção argumentativa pautada em uma difamatória e falsa mitologia negativa, nas aspirações racistas e na distorção entre simples uso e uso problemático, Pedro Pernambuco Filho, médico psiquiatra representante do Estado brasileiro na Convenção, então bradou que, no Brasil, a maconha era mais perigosa que o ópio, nos outros países (FRANÇA, 2015).

Este apelo moralista em torno da cannabis endossado pelo Brasil, levou à criação, no seio da Convenção de 1925, de uma subcomissão formada por Egito, Brasil, Grã-Bretanha, Índia, França e Grécia, para discutir a proibição da cannabis. Disto, resultou na realização da Convenção de Genebra de 1931, regulamentando as duas convenções anteriores, da qual o Brasil, se tornou signatário (BARROS; PERES, 2012).  Em que pese não ter havido uma imposição de criminalização, André Barros e Martha Peres (2012) e Jean França (2015) destacam como esta convenção já continha uma ideologia proibicionista. Não foi à toa que o Brasil, apressadamente, sancionou o Decreto 20.930 de 1932 que criminaliza o usuário e pune todo e qualquer induzimento e instigação ao uso. O novo diploma normativo amplia a multiplicação de verbos, incluindo a posse ilícita como alvo de punição, e traz a cereja do bolo: a maconha é incluída entre as substâncias ilícitas entorpecentes”.

Segundo Nilo Batista (1938), ocorre “o aproveitamento de saberes e técnicas higienistas, para as quais as barreiras alfandegárias são instrumento estratégico no controle de epidemias, na montagem de tal política criminal”. O Decreto 20.930/1932 ainda converteu a drogadição em doença de notificação compulsória. Tudo isto se torna mais emblemático ao vermos que o Decreto 20.931/1932, de seis meses depois, determina o novo regime de exercício da medicina, concentrando de uma vez à fiscalização e habilitação da hegemonização também duramente empenhada pelas elites brancas desde o século XIX, valendo-se igualmente de discursos racistas que já haviam logrado a criminalização do curandeirismo no Código Penal de 1890 (art. 158), à custa da inferiorização de saberes afro-brasileiros (ZAFFARONI; BATISTA, 2011).

Jean França (2015) aprofunda a questão, relatando como boa parte dos psiquiatras envolvidas na campanha moral (BECKER, 2008) da proibição, não estavam satisfeitos com a legislação que consideraram branda e lacunosa, por suposta leniência aos dependentes. Somente em 1938, o Dec-Lei 891/1938, art. 29, § 1º, alterado sob justificativa de mais uma Convenção de Genebra, os contempla com a demandada internação compulsória, “quando comprovada a necessidade de tratamento ou quando for conveniente à ordem pública” (grifamos). E Nilo Batista (1998) acrescenta:

A alta do paciente não era uma decisão médica, em que pese dependesse de atestado médico, mas uma decisão judicial, similar a um alvará de soltura (concedida a alta, notificava-se a política, para efeito de vigilância) – como é hoje nas medidas de segurança.

3.2 O PAPEL DA MEDICINA NA CONSTRUÇÃO DA POLÍTICA CRIMINAL PROIBICIONISTA

No período pós-abolição da escravidão negra, a classe intelectual brasileira, representada sobretudo por médicos e juristas – e logo em seguida por engenheiros, que tiveram papel fundamental nas reformas urbanas do início do século XX – estava imbricada nas reflexões e proposições de um projeto de nação (SCHWARCZ, 1993). O ideal de civilização moderna, espelhado nos países euro-ocidentais, era o carro-chefe dos debates sobre a autoafirmação da nova república, que deveria se distanciar da trajetória de outrora e todos os seus males.

Deste período, destacam-se diversos debates acerca dos limites e possibilidades para se atingir esse objetivo civilizatório. Em razão disso, médicos e juristas, que ocupavam também os principais cargos políticos do então Estados Unidos do Brasil, assumiam a posição de pensadores multitudinários, através de discursos analíticos sobre a sociedade como um todo.

As tentativas de “civilizar” o país, importando elementos eurocêntricos, atravessaram dos discursos de embranquecimento da nação, dos pleitos higienistas no campo da saúde pública, do uso da prisão no controle de circulação e permanência no espaço público (ROORDA, 2016) até a inferiorização biológica das raças não-brancas (ZAFFARONI; BATISTA, 2011). É o período da remoção de pobres de áreas centrais para construção de largas avenidas, perseguição a cortiços e culpabilização dos pobres e negros pelo atraso civilizatório do país. Época em que se gestava em um controle diferenciado da circulação negra desde meados do século XIX – com o grande crescimento populacional urbano, bem como de negros livres e libertos e de escravos de ganho no Brasil. O sonho de um sistema médico-policial de controle estava em seu auge, inclusive, em razão da criação da Liga Brasileira de Higiene Mental em 1923 (BATISTA, 2003a).

Os centros de algumas grandes cidades antigas brasileiras experimentaram um denso processo de urbanização na virada do século XIX para o século XX, sob o paradigma da modernização civilizatória, pautada em visões colonizadas que protagonizaram estes eventos – nos quais “o racismo e o medo (do outro) estavam muito acentuados”, com intensa remoção dos trabalhadores para as periferias das cidades (NEDER, 1997). Carlos José Ferreira dos Santos (2000) nos lembra como São Paulo vivenciou o modelo sanitarista de higienização urbana, especificamente no local então denominado Várzea do Carmo, “um dos espaços mais ricos em manifestações socioculturais dessas camadas ‘indesejadas’ pelo poder público”.

A centralidade das ideias que permeavam esses debates – ainda que divergentes, como no caso do papel da miscigenação para o processo civilizatório de Silvio Romero e Nina Rodrigues (DUARTE, 2017) – ressalta a negação do negro enquanto sujeito (FANON, 2008; CARNEIRO, 2006). No enfrentamento aos legados contra o progresso civilizatório, elementos culturais de resistência coletiva do povo negro no Brasil ou elementos pejorativamente associados a afro-brasileiros e africanos foram colocados no eixo central da demanda por ordem, como o samba o candomblé e a capoeira (FARIAS ET AL, 2015).

Em razão disto, torna-se fundamental perceber o empreendimento moral (BECKER, 2008) para a criminalização da maconha como mais uma faceta do controle racial que se repaginava da ordem escravocrata para a ordem republicana, que emergia no ápice das interlocuções entre as teorias raciais.

A droga, então, enquanto categoria genérica e estigmatizada ganhava os primeiros contornos de consolidação moral para legitimar uma empreitada proibicionista articulada de uma forma dura e até então inédita. Para construir esta cruzada moral legitimadora e constituidora da política criminal que se desenharia a partir da década de 1930, é possível perceber algumas discursivas, ao se analisar textos dos mais destacados médicos. Alguns textos importantes – sobretudo referentes às décadas de 1920 e 1930 – foram compilados pelo Ministério da Saúde (1958), em uma publicação do Serviço de Educação Sanitária.

Inicialmente, percebe-se a construção de uma relação peculiar e detida entre africanos e seus descendentes com a maconha, e, sem seguida, a interpretação do uso da cannabis como um legado nefasto deixado pela escravidão. Possivelmente, o discurso mais emblemático sobre essa tese tenha sido o de Rodrigues Dória, representante do Brasil e da Faculdade Livre de Direito da Bahia no II Congresso Científico Panamericano, Washington D.C, Estados Unidos.

Em 13 de maio de 1888, por entre alegrias e festas, foi promulgada a lei que aboliu a escravidão no Brasil e integrada a nacionalidade com os libertados, tornados cidadãos; mas no país já estavam inoculados vários prejuízos e males da execrável instituição, difíceis de exterminar. Dentre esses males que acompanharam a raça subjugada, e como um castigo pela usurpação do que mais precioso têm o homem – a sua liberdade – nos ficou o vício pernicioso e degenerativo de fumar as sumidades floridas da planta aqui denominada fumo d’Angola, maconha e diamba, e ainda, por corrupção, liamba, ou riamba. (grifamos)

Para Heitor Péres, nos estados nordestinos, onde havia “maior influência africana”, era mais comum a existência dos “clubes de diambistas”, onde predominavam “magia e misticismo” nos rituais. Estes clubes de diambistas ou de fumadores – como denominava Arthur Ramosforam definidos como homens ligados por uma relação de proximidade que se reuniam para fazer uso da erva em um contexto que se aproximava de um culto religioso. Segundo Péres, “o ‘ambiente do vício’ era preenchido pelo ‘côro dos companheiros’, que entoavam os ‘cânticos negros’ com ‘religiosidade’”. Durante o desenvolvimento desta tentativa de reconstrução pseudoetnográfica – muitas vezes aplicando automaticamente cenas retratadas na África Ocidental, como em Angola –verifica-se o compromisso do autor com a inferiorização das religiões de matriz africana.

De igual sorte, um dos médicos de maior prestígio no campo dos debates sobre o “problema da raça” no Brasil, Arthur Ramos, cunhou uma célebre expressão para negativar a origem deste mal terrível à nação brasileira que e pretendia branca, moderna e civilizada: “a allucionose aguda dos fumadores do haschich tinha sua origem nas ‘macumbas e catimbós’, de onde se alastrava ‘pelos quarteis, prisões e nos grupos de mala vita brasileira”. O uso da maconha, então, estava colocado expressamente como uma questão de classe, uma repulsa ao que seria hábito degradante e ofensivo às classes de boa vida, digamos assim. Rodrigues Dória (1958) sacramenta: “fumam também os mestiços, e é nas camadas mais baixas que predomina o seu uso, pouco ou quase nada conhecido na parte mais educada e civilizada da sociedade Brasileira”. E acrescenta:

Do inquérito a que tenho procedido a respeito do uso de fumar as sumidades floridas da planta que faz o objeto dêste trabalho, é êle muito disseminado entre pessoas de baixa condição, na maioria analfabetos, homens do campo, trabalhadores rurais, plantadores de arroz nas margens do rio de São Francisco, canoeiros, pescadores, e também nos quartéis pelos soldados, os quais ainda entre nós são tirados da escória da nossa sociedade (DÓRIA, 1958). (grifamos).

Percebe-se como o argumento é distorcido para estigmatizar, inferiorizar e objetificar determinados grupos sociorraciais, atrelando-os a um mal que inevitavelmente carregam ou acabam por carregar e prejudicar grupos social e racialmente hierarquizados. Com destaque para ambiência após a recente saída de um sistema tão genocida quanto à escravidão. A forma que estes discursos médicos aqui localizados associam pejorativamente a cannabis com os africanos e afro-brasileiros buscaram inverter contextos históricos de opressão.

Os chineses, vencidos em 1842 pelos ingleses, tiveram de se submeter a ganância comercial dos brancos civilizados, que os obrigaram a abrir de novo os seus portos e consentir na importação do ópio, que tanto tem estragado e deteriorado a milhões de filhos do Celeste Império. O vício de fumar a droga não ficou, porem, limitado aqueles povos orientais acompanhou os usurários desse comercio nefasto, e hoje faz as suas devastações em vários países da Europa, especialmente na Inglaterra e na França, onde se encontram em maior profusão as casas de fumar o chandoo ou o dross. “E o vencido que se vinga do seu vencedor”, diz o professor E. Regis. […] A raça prêta, selvagem e ignorante, resistente, mas intemperante, se em determinadas circunstâncias prestou grandes serviços aos brancos, seus irmãos mais adiantados em civilização, dando-lhes, pelo seu trabalho corporal, fortuna e comodidades, estragando o robusto organismo no vício de fumar a erva maravilhosa, que, nos extases fantásticos, lhe faria rever talvez as areias ardentes e os desertos sem fim de sua adorada pátria, inoculou também o mal nos que a afastaram da terra querida, lhe roubaram a liberdade preciosa, e lhe sugaram a seiva reconstrutiva. (grifamos)

Este papel assumido por destacados médicos, médicos-legistas médicos-criminólogos no Brasil demonstra também uma significativa diferença entre a postura da classe intelectual em relação a cannabis na Europa – o grande espelho civilizatório para os intelectuais brasileiros – daquele início de século. Como bem demonstra Jean França (2015), há uma radical contradição, decididamente marcada pela realidade marginal do pós-escravidão e da conjuntura sociorracial da Primeira República, que transita do exotismo oriental ao mal da raça negra.

Ademais, o papel de destaque na formação de opinião em prol do proibicionismo se orienta para a construção e autorreforço de uma mitologia negativa, recheada de desinformação, sobre a maconha, como aponta Jean França (2015). As relações imputadas da substância com a vadiagem, a loucura e a prática de crimes são exploradas acentuadamente como consequências do “diambismo”, em uma concepção que não consegue separar uso regulado do uso problemático.

A associação direta entre o contato e o vício, bem como a construção etiológica da causa-efeito acima, são difundidas por diversos médicos influentes no ambiente acadêmico e político nacional. Dentro dessa perspectiva que Pernambuco Filho – que viria a ser representante do Brasil na Convenção de Genebra de 1925 – e Botelho (1958) alertavam que consumidores da diamba ficavam agressivos e perigosos. Já Rodrigues Dória destaca que:

É conhecido nos lugares, onde abusam da maconha, o delírio, a loucura transitória e mesmo definitiva, causadas pela planta, e com fisionomia perigosa. Os embriagados tornam-se rixosos, agressivos, e vão até a pratica de violências e crimes, tendentes a práticas de crimes violentos, como o homicídio. (grifamos)

Isto destaca o papel do positivismo criminológico nos discursos proibicionistas, já que ele tem como uma característica a antecipação punitiva. Sem qualquer elemento científico sério estas associações são feitas, ao passo do apego discursivo ao caráter científico das suas impropriedades racistas e etiológicas. Evandro Piza Duarte (2017) lembra como isto se verificou quando o positivismo se valeu anacronicamente dos tipos raciais para traçar tipos criminosos fundados em um conceito biológico de raça já descreditado pela ciência, mas cuja significação político-social foi mantida por esta corrente criminológica.

Uma vez que o foco se desloca do crime para o criminoso e seu perfil criminógeno, embasa-se uma repressão penal que independente da prática de um crime, expandindo as estratégias de controle. Em que pese a ausência de validade cientifica no plano dos conceitos sobre a natureza já no fim do século XIX, a raça foi decisiva para a produção de novos efeitos políticos, para as relações de poder que ela foi e é capaz de justificar ou dinamizar, como elucida Evandro Duarte (2017). E, assim, serviu como fator determinante para a seletividade penal. Lembra o autor que a Criminologia nasce contemporaneamente ao desenvolvimento da Teoria dos Tipos Raciais e do Darwinismo Social (teorias da raça), que se vincularam instrumentalmente às novas necessidades do neocolonialismo.

  1. A RETOMADA DA POLÍTICA HIGIENISTA: O PRETENSO CONSENSO ANTICRACK E O LUGAR RACISTA DA SUA REPRESSÃO

 Estudar criticamente a guerra em torno do crack demanda enfrentar um longo caminho de produção de consensos, que atinge inclusive algumas perspectivas que se pretendem progressistas. Não é raro setores críticos ao proibicionismo encontrarem seu limite no crack, reproduzindo os mitos da demonização da droga, do usuário “zumbi” e uma ignorância acerca dos efeitos das suas substâncias no corpo humano. E o mais grave: grande parte da bibliografia antiproibicionista, e aqui considerando especialmente aquela que pesquisa diversas dinâmicas em torno do crack, mesmo quando não demoniza o crack, esbarra em teias metodológicas e linguagens que afastam-na dos processos de racialização no consumo, no proibicionismo, no tratamento e na persecução criminal em torno do crack.

Desde que o crack surgiu nos anos 1980, atraiu discursos alarmistas sobre a sua potência e periculosidade em abstrato, alheios a estudos científicos metodologicamente relevantes (HART, 2014; KARAM, 2014). No caso do crack, Carl Hart (2014; 2012) demonstra como essa substância e a cocaína são a mesma droga, possuindo efeitos qualitativamente semelhantes e com o mesmo potencial viciante, não havendo fundamento científico que justifique um tratamento penal tão distinto, apesar das condenações por prisão desmedidas nos EUA (ALEXANDER, 2012).

A cruzada contra as drogas intensificada em fins dos anos 1970, com a repressão bélica direcionada ao tráfico de cocaína entre regiões produtoras e os Estados Unidos, fez emergir o crack como um produto direto do proibicionismo. Na virada dos 1980, a empregabilidade dos negros despencava (ALEXANDER, 2010) e o corte das políticas de assistências do welfare se acentuava (WACQUANT, 2001). Michele Alexander afirma que não havia melhor momento para o surgimento do crack. A empreitada de construção de uma guerra até então inexistente pelo governo Reagan se expandiu em discursos midiáticos de terror direcionado aos guetos estadunidenses e alçou patamar de prioridade na política criminal dos estados da federação (ALEXANDER, 2010).

Carl Hart (2014, p. 282) afirma que “toda vez que surge uma ‘nova’ droga e um número de indivíduos marginalizados faz uso dela, historias incríveis sobre os efeitos da droga se disseminam e são aceitas como verdadeiras”. O autor recorda como também nos Estados Unidos, durante a campanha proibicionista da maconha, na década de 1930, difundiu-se falaciosamente que a cannabis tornava as pessoas psicóticas e as levava a cometer assassinatos, o que foi aceito em grande escala no meio social e acadêmico da época.

O crack tem seguido esse paradigma de uma mitologia própria contínua que bebe e transmite intensa desinformação sobre o uso, e, na conjuntura do grande encarceramento e da função de contenção da prisão intensificada após a década de 1970, impacta em discursos de criminalização e políticas desproporcionais – a outros crimes e a outras drogas – de encarceramento. Valcov e Vasconcellos (2013, p. 103) ao trabalharem pesquisas que analisam discursos midiáticos que tomam o crack como uma epidemia no Brasil, os cruzam com campanhas publicitárias do governo federal:

Se por um lado as notícias veiculadas nos últimos anos pela imprensa brasileira apresentam o usuário dependente de crack como alguém que precisa de controle pois é criminoso, louco ou portador de alguma outra doença ou distúrbio mental, ou seja, é alguém moralmente condenável, que traz riscos à sociedade, por outro, o governo brasileiro entende que o problema do uso do crack tem solução com a adoção de hábitos saudáveis, uma vivência tranqüila e sem arroubos, uma vida independente, pura e limpa, pois é o mote dos dois spots publicitários da campanha ‘Crack: é possível vencer’.

A lógica do mercado ilícito popularizou o crack entre classes mais desfavorecidas e seus efeitos danosos afetaram, principalmente, indivíduos mais expostos a uma violência no campo social – como no caso de uma parcela da população em situação de rua. Maria Lúcia Karam (2014) pontua que as condições de vida precárias – pobreza, desassistência, privação de direitos básicos – de muitos dos usuários de crack é agravada pela “guerra às drogas”, que os submete à humilhação, perseguição e “recolhimentos” forçados.

Um dos efeitos mais perversos e dilacerantes desta forma de enxergar o crack e de reiteração de consensos amplamente pautados pelo alarde, pela espetacularização invertida do sofrimento através do pânico social que criam medos maiores que a ameaça (COHEN, 2011), é a produção do discurso de desumanização, que mina a autonomia dos sujeitos. O paradigma zumbi, fomentado a partir de grande acúmulo de desinformação, estereótipos e pânicos morais sobre os efeitos do uso de crack buscou cristalizar uma morte em vida. Segundo Ygor Alves (2017), uma morte social derivada de crenças a respeito do uso do crack que impõe aos sujeitos uma condição de morto-vivo, como se tivessem cometido suicídio ao valerem-se da “droga que mata”[50]. Define-se e desqualifica-se determinadas pessoas pelo uso de certa substância.

Compreender a raça enquanto categoria analítica permite expandir esse efeito oriundo da produção em massa de mitologia negativa. Frantz Fanon (2008) trabalhou como o racismo e racialização do mundo produziram a interdição do sujeito de forma que o negro é aquilo que “não é”, ou seja, habita uma zona do não-ser, “uma região estéril e árida, uma rampa essencialmente despojada”. Para o autor, a própria condição de humanidade é afetada pela racialização e desigualmente considerada, onde os brancos assumem a condição de ser humano, ao passo que os negros são pressionados para um embranquecimento da raça.

Esta cisão trabalhada por Fanon é situada na contraposição entre o portador de um mal – tal qual explorado pelos médicos proibicionistas no início do século XX –  e o portador de atributos humanos. O discurso que brutaliza o usuário de crack segue o percurso de hierarquização sociorracial que é matizado pela realidade deste país. Vera Malaguti (2003b) situa o lugar do negro na história brasileira: obstáculo ao ideal de pureza, higiene e ordem, em uma rígida, porém naturalizada, hierarquização social. Em consequência, o medo da contaminação levou a uma degradação dos costumes e à criminalização destes que majoritariamente formam as classes tidas como perigosas, classes perigosas e, por isto, são expostos à classificação, separação, confinamento, exílio, ou aniquilamento.

Isto ajuda a perceber como a construção e insistência no discurso animalizante do zumbi legitima políticas higienistas, reforçando o que ensina Sueli Carneiro (2006) sobre a posição de descartabilidade social no pós-abolição, em duas facetas: a) condição incorrigível como inerente ao negro – determinando as formas de controle e punição sobre ele; b) estado de suspeição permanente. E no caso desta construção sobre o usuário de crack, a perpetuação de uma “existência mórbida” garantida pela precariedade de saúde, moradia e renda (AVELAR, 2017) amplia-se na negação da condição de sujeito e na redução das identidades do negro, somadas à associação do delito ao corpo negro:

Porém, processam outros múltiplos dobramentos para além da esfera legal sobre a racialidade tornada um delito inscrito na pele do sujeito: animalidade, sexualidade promíscua, incapacidade cognitiva, fealdade, violência e morte. A cada um corresponderam formas específicas de interdição, punição e subjetivação nas diferentes dimensões da vida social. Ao pólo eleito da racialidade, corresponderão os seus opostos, em termos de dobramentos e subjetivação. […] Se isso diz respeito à realidade psíquica dos sujeitos, a redução empreendida pela racialidade transforma a negritude do negro como essência do “sujeito” (um sujeito entre aspas na medida em que essa redução redunda na própria negação da condição de sujeito) negro construindo a supremacia da representação sobre a diversidade de “eus”. Diferentemente, à branquitude estará disponível a pluralidade de “eus” que compõem o sujeito (CARNEIRO, 2006, p. 129-131) (grifamos).

O crack, então, se apresenta como mais uma forma de patologizar a pobreza e instrumentalizar seus mecanismos de controle, sobretudo diante da confluência de incômodos que ele agrega: a visibilidade da situação de rua, sobretudo em espaços públicos na região do Centro de grandes cidades; o fracasso da ilusão capitalista em um dos seus extremos de produção de desigualdade; o uso de droga ilícita estigmatizada à pobreza negra exposto às vistas alheias dos “anjos” (ALVES (2017), ou cidadãos de bem. As etnografias realizadas por Ygor Alves (2017) e Luana Malheiro (2012;2013) permitem a complexificação destas características através da vivência das próprias pessoas da cultura de uso do crack, ampliando ferramentas teórico-epistêmicas de resistência aos efeitos da produção de conhecimento atreladas a ampliação de morte social, subjetiva e física, algo que infelizmente não foi possível no pós-abolição da escravidão.

4.1. PRÁTICAS DE GUERRA EM PROL DO ENCARCERAMENTO E DA INTERNAÇÃO

A partir do Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack, revelado pelo Decreto 7179/2010, é possível identificar uma orientação de discursos e práticas que seguem uma trajetória pautada pela desinformação e reprodução de uma repaginada mitologia negativa, que parte da generalização das drogas e especial demonização do crack para propor políticas públicas informativas, repressivas e supostamente preventivas.

As chamadas ações estruturantes deste Plano focam no tratamento, mesmo quando se referem à assistência social. Nota-se uma perspectiva medicalizante até quando tenta pensar em mitigação de problemas que circundam o contexto social de “vulnerabilidade” dos usuários, que é citado para em oposição a uma vagueza da ideia de reinserção social, recuperando acriticamente a problemática das ideologias “re” difundida pelo campo penal, na qual se insere ressocialização, amplamente desvelada pela criminologia crítica, seja no plano discursivo seja no plano empírico da função social da prisão contemporânea (BATISTA, 2011; FOUCAULT, 2008; GODOI, 2017).

A expressão “crack e outras drogas” destaca a ideia de carro-chefe do crack enquanto problema dos problemas, droga das drogas. Passando pelas estratégias do “crack é possível vencer” ou “crack é cadeia ou caixão”[51], a substância é alçada no campo político-social e midiático como uma pedra de toque nos processos de endurecimento da política bélica que assume o tom de combate, seja na promoção de políticas públicas[52] – em especial no terreno da saúde – seja nos processos de criminalização articulados por dinâmicas nacionais e internacionais de uma guerra supostamente às drogas.

Katarina Volcov e Maria da Penha Vasconcellos (2013, p.102) pesquisaram campanhas publicitárias do governo federal sobre o crack e se questionaram:

Com base nos dados expostos é possível afirmar que não há dados atualizados sobre o uso do crack nos últimos cinco anos, assim como não há dados suficientes para dizer que se trata de uma droga epidêmica e tampouco mostra sua relação com a criminalidade e morte como é exposta à sociedade por meio das suas campanhas. Sendo assim, questiona-se: Baseado em quais dados pode-se dizer que há uma epidemia de crack no Brasil? Qual guerra é preciso vencer? Por que justamente o crack é visto como a droga que merece investimentos públicos de campanhas publicitárias? O que as mensagens da campanha “Crack, é possível vencer” oferece de subsídios para um melhor entendimento do assunto?

As autoras destacam que, em um cenário de precária produção de dados sobre usuários de crack, as campanhas publicitárias, concebidas no âmbito do SISNAD e situadas por lei no campo da prevenção, trazem o caráter de luta e guerra a todo momento, não conseguem ser educativas e perpetuam uma ignorância acerca da dependência química e não avançam na discussão de políticas públicas pautadas nas diferenças químicas de quaisquer que sejam as substancias, e nas questões institucionais e sociais que circundam o uso problemático.

O presente momento, aqui situado entre 2010 e 2018 tem manifestado um processo “remanicomialização” do Brasil, com reformas retrógradas das políticas de saúde mental (MARTINS, 2017; BITTENCOURT, 2017) imbricadas com as táticas de tratamento com viés repressivo ao consumo de crack. Após conquistas importantes da luta antimanicomial no Brasil – sobretudo pós lei 10.216/2001 – com experiências de inflexão orientadas pelo paradigma da redução de danos – sem desconsiderar os problemas em torno da institucionalização e da forma que o âmbito estatal  se apropriou deste modelo – há um desmonte progressivo das possibilidades mais libertárias de atenção, cuidado e promoção de autonomia no tratamento de questões relacionadas ao uso problemático ou não de drogas tornadas ilícitas, sobretudo o crack.

Evidente que este tempo histórico indica um outro Brasil, pós burocratização estatal dos anos 1930, e ao longo do século XX, se verifica a perda de hegemonia da medicina e do direito na produção de saber totalizante sobre a sociedade e na função direcionada de formadores agentes políticos estatais (SCHWARCZ, 1993), ainda que mantenham uma posição de destaque no cenários políticos e acadêmico do país. Também deve-se mencionar uma outra medicina no que se refere à saúde pública, produzida através da resistência acadêmico-política que representa a interdisciplinaridade da área da medicina social ou do campo da saúde coletiva – ainda que certamente nem sempre hegemônicas no espectro político-institucional. As ciências sociais e a produção historiográfica se consolidam, e lentamente se produz uma abertura à pluralização na produção de conhecimento, em que pese as entranhas epistemicidas (CARNEIRO, 2006) ainda pouco fissuradas, mas duramente tensionadas a partir da diversificação do corpo discente pós-ações afirmativas nos anos 2000.

As tensões raciais no cenário político-social brasileiro também se colocam de outro modo, passada a Primeira República. Abdias do Nascimento (2016), um dos teóricos mais importantes do antirracismo, denunciou e desmantelou o mito da democracia racial, que sobrepôs às dinâmicas de discurso e práticas que eram a tônica do pós-abolição no Brasil, denunciando, inclusive o papel da ditadura civil-militar na interdição das discussões sobre e racismo no país e no reforço da tese de convivência harmônica das raças e do ideal mestiço como benéfico na identidade única do povo brasileiro. Vive-se hoje uma conjuntura que impede o debate racial em diversas camadas, sendo o campo criminal – onde a blindagem institucional não consegue camuflar a do racismo (FLAUZINA, 2008) – afetado pelo fetiche do crime cristalizando debates sociais na abstração do crime e do criminoso (BATISTA, 2007).

Em razão destas considerações, pretende-se focar no que parece transparecer a articulação dos temas tratamento e punição, que reproduz uma falsa dicotomia desde quando Nelson Hungria se posicionou nesse debate em torno do que fazer com o usuário na elaboração do código penal, que vigorou a partir de 1941 (BATISTA, 1998), temperando as distinções de resposta institucional ao consumidor e ao comerciante de drogas tornadas ilicitas.

O ano de 2017 destacou mais uma grande operação antiusuários de crack no centro de São Paulo, com repercussão nacional, onde circundou diversos aspectos em torno da política que vem se construindo atualmente, onde consideramos o ano de 2010 como um marco metodológico importante. A Prefeitura de São Paulo capitaneou mais uma intervenção em um espaço com um histórico longínquo de abandono e de violações de direitos, desta vez em uma ação articulada com o Governo do Estado. Algumas características peculiares deste evento motivaram uma tentativa de interpretação, a partir de um olhar criminológico, de uma série de discursos práticos entre maio e agosto de 2017.

Os acontecimentos indicam uma postura, em certa medida, diferente das intervenções municipais e estaduais mais recentes, sem deixar de ser possível observar algumas permanências na forma de lidar com esta situação problemática. Em 2012, o Governo do Estado executou a tentativa de expulsão da população de rua acompanhada de uma atuação direta para expulsão da população de rua e incitação à internação executada, através da “Operação Sufoco”1, comandada pela Polícia Militar.

Entre 20142 e 2016, a gestão da Prefeitura trabalhou uma proposta de abordagem transdisciplinar, com reforços alternativos ao consumo problemático de drogas e distante do paradigma policial. O Programa de Braços Abertos, na contramão das reiteradas tentativas de higienização anteriores, adquiriu uma visibilidade e relativo sucesso3 – cujo alcance e dimensão não será discutido neste trabalho. Em consequência, opositores ferrenhos aos modelos situados no paradigma da redução de danos cruzaram certo constrangimento, evitando a defesa das intervenções patologizantes e segregadoras, sobretudo no período eleitoral e pós-eleitoral de 2016, em São Paulo.

A gestão atual do município manteve, desde o período da disputa eleitoral, discursos escorregadios sobre a estratégia afetiva, apesar de haver a sinalização para uma discordância do modelo com foco em redução de danos até então adotado pelo Programa De Braços Abertos. Entre avanços e recuos, até o presente momento não foi apresentado de forma detalhada à imprensa4, a profissionais ou ao público em geral o conteúdo do que seria o Programa Redenção destinado a substituir o modelo anterior, cancelado publicamente pelo Poder Executivo municipal, após a ação policial do dia 21.05.20175. Ressalte-se que o Ministério Público repudiou a ação do dia 21.05.2017, sobretudo porque divergia totalmente do plano apresentado pela Prefeitura que vinha sendo discutido internamente entre as instituições6.

O discurso político-institucional atual apresenta um viés de ruptura com o modelo próximo à redução de danos, mas sem deixar de buscar propagandear uma suposta intenção de cuidado – para os usuários problemáticos -, ainda que inserido em uma lógica mais paternalista de assistencialismo. A ação articulada entre as gestões municipal e estadual, em reação ao período de inflexão menos punitivo do Programa de Braços Abertos, apresenta uma associação simultânea entre o paradigma do terror e o do assistencialismo como propostas de “solução”. Neste sentido, interessante a crítica de Loic Wacquant (2012) sobre “a colonização do setor assistencial pela lógica punitiva”, ao analisar a governança da insegurança social nos Estados Unidos, diante da nova conjuntura de contenção da pobreza que emergiu com o neoliberalismo.

No tocante à sinalização de continuidades que atravessam o núcleo desta política estatal, Taniele Rui, ao trabalhar sobre o discurso midiático em torno da “Operação Sufoco” de 2012 e da ação civil pública movida pelo Ministério Público após seu “fracasso” sintetiza as semelhanças entre esta e as Operações Dignidade (1997) e “Limpeza” (2005), destaca características que persistem agora em 2017:

Em comum a todas elas estavam ainda a cobertura midiática, a performance policial e o anúncio público do “balanço” das operações: número de presos, número de encaminhados para serviços de saúde e assistência, números da apreensão de drogas e objetos “suspeitos”.

A atual gestão mantém uma série de grandes intervenções urbanas desde os primeiros dias de gestão, no intuito de colocar em prática o Projeto Cidade Linda, sempre com apoio de fortes operações policiais. Percebe-se uma ação mais articulada e coesa na simbiose dos discursos paradoxais da punição e do tratamento (ainda que sob viés punitivo) com um objetivo persistente de “retomar” simbolicamente o espaço. As experiências até aqui desta nova intervenção indicam uma sanha para resolver o grande problema tomado como algo generalizado, seja dispersando, prendendo ou internando.

Com efeito, logo após a primeira grande operação policial do dia 21 de maio, a Prefeitura pleiteou judicialmente abordar arbitrariamente as pessoas, mirando a sua internação coercitiva ou coativamente, chegando a driblar o princípio do juiz natural para facilitar uma decisão inconstitucional favorável7. Com o insucesso na via judicial da busca e apreensão genérica, o discurso oficial migrou para defesa da internação voluntária, divulgando a presença de um contêiner em apoio ao Projeto Redenção, onde tem sido feito alguns dos atendimentos feitos por profissionais de saúde.

Nesta tarefa, carros de som da prefeitura convidam as pessoas na rua para uma avaliação nos contêineres, tudo em meio a reiteradas ações policiais – entre as grandes operações – de abordagens aleatórias, subtração de pertences destinados à sobrevivência e constrangimentos, em rotina de exaustão. A banalização da via da internação como meio elementar de tratamento, nesta conjuntura onde todas as alternativas estatais levam à expulsão ou distintas formas de punição alertou a psicóloga Lumena Castro Furtado para o risco de que estes contêineres se tornem “balcões de internação”8.

Na ação do dia 11.06.2017, o prefeito da cidade declarou à imprensa: “Não tem recuo. Vamos continuar avançando em ação medicinal, urbanística e social”. A articulação dos discursos do combate aos traficantes, do tratamento higienizador dos usuários e da requalificação urbana parece adquirir elementos que sintetizam os mecanismos perversos que a política de drogas tem pautado no Brasil.

Indispensável, então, compreender a raça como marcador de espaço, nos termos de Achille Mbembe (2017, p. 71), segundo os quais “os processos de racialização têm como objetivo marcar estes grupos de populações, fixar o mais possível os limites nos quais podem circular, determinar exatamente os espaços que podem ocupar”. Trata-se, segundo o autor, de um controle medido de circulação em nome de uma idealizada segurança geral, no qual a raça funciona como um dispositivo de segurança e tecnologia de governo, remetendo-se a Foucault.

Diante do constrangimento eventual que um discurso punitivo mais direto contra os usuários poderia alcançar na disputa por dividendos políticos, o jogo entre o acolhimento assistencialista – centrado na internação – e o terror policial são utilizados em uma simbiose argumentativa que não deixa de revelar o teor punitivo àquela população. E é neste sentido que o mito da democracia atravessa tanto as agências criminalizantes – amplamente consideradas, entre setores políticos, midiáticos e institucionais (ZAFFARONI; BATISTA, 2011) – em questão e por aqueles que criticaram ou divulgaram atuação estatal com usuários de crack. A falsa oposição distinção entre tratamento e punição na produção de enfrentamento aos usuários de crack se ancora no racismo silenciado (MUNANGA, 1996).

Os usuários negros e pobres continuam a sofrer com o estereótipo criminal (BATISTA, 2003), alavancado pela imprecisão da Lei. 11.343/2006 que deixa a tipificação da conduta aberta aos critérios de seletividade, ensejando consequências processuais violadoras à liberdade. Segundo o relatório da Plataforma Brasileira de Política de Drogas, dos 398 assistidos cadastrados no Programa de Braços Abertos em abril de 2015, 68% são negros. O relatório da Pesquisa Nacional sobre o crack (2014) realizada pela FIOCRUZ, com o universo e uma extensão bastante ampliada, aponta que 79,12% dos usuários de crack no país negros.

Nessa linha, em relação aos consumidores, o controle punitivo tem uma especial intensidade nos atos da abordagem e da detenção, de onde decorrem os principais autoritarismos – das torturas e punições ilícitas até a construção forjada ou desvirtuada de um flagrante de tráfico de drogas. A internação médica, por outro lado, é utilizada como instrumento de segregação, que assume tom de punição, ao visar primordialmente tirar as pessoas daquele espaço. Como destaca Angela Davis (2009, p. 48), “as prisões tornam-se uma maneira de dar sumiço nas pessoas com a falsa esperança de dar sumiço nos problemas sociais latentes que elas representam”. Se substituirmos a palavra “prisões” por “internação”, neste contexto que tem sido utilizada, nem se nota a diferença.

A específica exposição ao fácil encarceramento, nas palavras de Valois (2016), que a população em situação de rua vivencia (ROMÃO, 2016) pode possibilitar a ampliação dos meios de controle sobre estes corpos indesejáveis. Nesta ambiência política onde se observa o intuito de perseguir um efeito midiático de falsa resolução de dado problema, a trágica e controversa distinção de destinos oferecidos a usuários e traficantes pela Lei 11.343/2006 (CARVALHO, 2010) contribuiu mais uma vez maquiar os danos da proibição das drogas e o controle racial no espaço urbano.

Em que pese o perfil dos usuários presentes naquela região do Centro de São Paulo, a gestão municipal deu destaque ao suposto “feirão de drogas”, maximizando o discurso de terror da guerra às drogas, mirando um consenso que legitimasse uma atuação estatal violenta. O amplo espectro punitivo da Lei 11.342/2006 possibilita que muitas das pessoas – que façam ou não uso problemático – sejam detidas como traficantes. A população de rua se vê nesse risco criminalizante ao portar tantas vestes dos estereótipos que orientam a seletividade das forças de ordem (BATISTA; ZAFFARONI, 2011).

Com isso, os discursos sanitário-higienizante e o bélico se unem em um só mote: todos podem ser traficantes, e esta possibilidade alavanca o terror estatal a quem quer que esteja entre os miseráveis viciados e indesejáveis e os inimigos internos execráveis9. Rosa Del Olmo observou como o discurso médico-jurídico assumiu uma característica distinta na América Latina. Em vez de separar o “delinquente” e o “doente” como forma de salvar o consumidor de uma pena de prisão, o consumidor foi visto como inimputável, “era privado de liberdade e da capacidade de escolha ou da vontade, e, portanto, sujeito a um controle muito mais forte” (DEL OLMO, 2009, p.38).

Uma detenção seguida de imputação do delito de tráfico submete o suspeito, em regra, a uma prisão cautelar excessivamente longa (BARRETO, 2017) e a um processo criminal que pode ensejar uma pena mínima de cinco anos (Lei 11.343/2006). O potencial higienista dessa restrição de liberdade parece ser mais um instrumento disponível às forças de ordem que encaram a pessoa em situação de rua valendo-se do viés patológico. A criminalização acentuada articulada à “retomada” territorial e limpeza humana do espaço, através de táticas bélicas, coloca a situação de rua numa posição ainda mais exposta do que os alvos cotidianos das prisões por tráfico nos bairros pobres das cidades.

Del Olmo (2009) demonstrou como a face oculta da droga – generalizada em uma abstrata categoria que obstaculariza sua definição em torno da distinção, por conveniência política, entre as proibidas e as permitidas – a transforma em um grande mito, carregado de preconceitos morais, dados falsos e sensacionalistas, que resultou em criação de estereótipos necessários ao controle social formal. Vera Malaguti Batista (2013) revela como o problema da droga se situa em nível econômico e ideológico, camuflando conflitos sociais que envolvia o controle racial de negros, mexicanos e chineses nos Estados Unidos, antes de desencadear uma estratégia de guerra exportada para os países do Sul.

Sob o olhar do estereótipo que guia as forças de ordem no combate ao tráfico, todos são ali suspeitos, incluindo aqueles nem usuários10 nem varejistas. Isso remete às percepções de Sidney Chalhoub (2011) sobre a construção da “suspeição generalizada”, com a circulação abundante de negros escravizados e livres nas cidades negras, a partir do século XIX. O medo branco de um haitianismo à brasileira, pós revolta dos malês, quando a Corte se deparava com a “assustadora” missão de gerir um espaço urbano com uma população inédita de escravizados.

a cidade que escondia, porém, ensejava aos poucos a construção da cidade que desconfiava, que transformava todos os negros em suspeitos […] a suspeição aqui é indefinida, está generalizada, todos são suspeitos. […] Ao invés de uma suspeição ‘pontual e nominal’, é a suspeição generalizada e contínua que se torna o cerne da política de domínio dos trabalhadores” (CHALHOUB, 2011, p. 239-240).

As táticas policiais contemporâneas para estabelecer os critérios da suspeita se valem da desvirtuação da fundada suspeita e da desvinculação a uma finalidade probatória, segundo Gisele Wanderley (2017). A abordagem pessoal, praticada em face de quais atitudes desvinculadas de condutas delitivas, objetiva uma finalidade arbitrária de prevenção ampla, transformando os requisitos formais da busca pessoal em mero pretexto para “um mecanismo de controle cotidiano da circulação pública”, determinado por um rótulo racial (WANDERLEY, 2017, p. 123).

Neste cenário, parece que a prisão cautelar, tão trabalhada pela criminologia crítica latino-americana pelo seu papel destacado no poder punitivo marginal (ANDRADE, 2012; ZAFFARONI, 1991), apresenta com destaque seu potencial encarcerador, ou seja, a permissividade para que se mobilize as forças militarizadas sobre corpos e territórios, legitimando as medidas autoritárias colaterais necessárias. Neste sentido, revela ainda sua face de controle social no tempo de privação da liberdade com efeitos de pena antecipada (BARRETO, 2017).

Munidos do discurso jurídico-político e de mandados de prisão, o poderio bélico estatal atropelou, nas ruas próximas à região da Luz em São Paulo, as discussões políticas e transdiciplinares e os próprios alvos da redenção desejada pelo discurso maquiado11 do tratamento. Uma ilustração da emblemática constatação feita por Nilo Batista (2007) de que a criminalização cristaliza e soterra os debates sociais que estão por trás da penalização de uma conduta.

Na grande operação bélica do dia 21.05.2017, participaram 976 policiais, 480 agentes da Guarda Municipal e 496 militares, com apoio de helicópteros munidos de 70 mandados de prisão e 50 mandados de busca e apreensão. O Departamento Estadual de Prevenção e Repressão ao Narcotráfico (DENARC) anunciou 53 detenções; destas, 48 pessoas suspeitas de tráfico12, porém não se sabe se todas estas foram detidas em razão dos mandados de prisão ou por prisão em flagrante.

Apesar do anúncio do prefeito de que a Cracolândia havia acabado13 – e o Programa De Braços Abertos também, uma grande quantidade de pessoas conseguiu manter seus laços de apoio de solidariedade algumas quadras adiante na Praça Princesa Isabel. Desde então, o programa de saturação punitiva persiste.  A operação do dia 11.02.2017 foi motivada por uma denúncia anônima que mobilizou novamente um grupo fortemente armado da Polícia Militar para realizar abordagens aleatórias, seguidos pela Guarda Municipal. Abordagens aleatórias (dia 11.062017) – terror e expulsão da Praça Princesa Isabel. O destaque na manchete na grande mídia: 02 traficantes presos.

A saraivada de balas de borracha na madrugada fria de cinco graus em São Paulo abriu caminho para a destruição e sequestro, pela Guarda Municipal, de bens das pessoas. O secretário de Segurança Pública do estado de São Paulo sacramentou: “Vai continuar tendo policiamento reforçado. Guarda Civil vai monitorar a montagem de barraca. Se montar barraca, vai desmontar”14. No dia 17.06.2017, as abordagens aleatórias foram confrontadas com resistência e conflito da população de rua da Praça Princesa Isabel.

A fricção entre os discursos médico e jurídico-político, ou seja, entre resquícios do modelo sanitário e o modelo bélico, pode ser observada na simbólica prisão de uma representante do corpo da assistência social, quando esta sinalizou enfrentar pontualmente a repressão militarizada. A educadora, que prestava serviço à Secretaria municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, havia tentado acompanhar uma abordagem de duas adolescentes na Praça Princesa Isabel15.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente buscou desnudar algumas raízes escravocratas sobre a construção do proibicionismo no Brasil, com destaque para a maconha, que foi a substância tornada ilícita que alavancou o empreendedorismo moral em torno do recrudescimento que se verificou a partir da década de 1930 e culminou em uma política criminal mais coesa norteado pelo modelo sanitário.

Em um período de recente abolição formal da escravidão, em que se hegemonizava um projeto civilizatório peculiar para a então jovem nação republicana na esfera político-acadêmica, tornou-se necessário estudar os discursos dos pensadores considerados por Schwarcz (1993) como “os eleitos da nação”, em um cenário de autoformação de uma elite intelectual e dirigente que se inicia com a independência e criação das faculdades de direito e medicina no país.

Algumas chaves de leitura sobre o controle de circulação negra entre o final da escravidão e a primeira república, bem como as que trabalham recentes atuações de forças de ordem – polícias, guardas e assistência social – imbricadas em políticas de higienização ou gentrificação, apontam um papel de destaque para a detenção e a para a prisão cautelar e suas funções não declaradas. Evidentemente, elas assumiram distintas funções entre as diversas demandas por ordem e as distintas configurações das instituições que se aproximaram do controle da circulação da pobreza negra no espaço público.

O suposto “feirão de drogas” que estaria acobertado pelas barracas de pessoas em situação de rua residindo no espaço público se torna um discurso legitimador para prisões arbitrárias, produção de encobrimento, produção de deslocamento ou segregação de determinados indesejáveis. Na rede de solidariedade da luta pela sobrevivência entre usuários e não usuários, transeuntes ou residentes, a própria distinção dos papéis entre o consumidor, o consumidor-revendedor e o varejista é ignorada, resgatando a ignorâncias entre uso regulado – em geral ignorado no caso do crack (ALVES, 2017) e uso problemático.

A aproximação da medicina com as esferas de poder tem destaque neste período de intensas intervenções médicas sobre a sociedade, seja na formação da criminologia etiológica (DEL OLMO, 1990; BATISTA, 2011) seja nas políticas higienistas típicas do período, como a Revolta da Vacina e as transformações urbanas violentas (ROORDA, 2016).  Esta íntima relação permitiu verificar o papel de destaque na conformação da política criminal sobre drogas que veio a se consolidar no Estado Novo, baseada na construção de uma mitologia negativa, centrada nos equívocos sobre uso de drogas e sobre a relação entre uso de drogas e prática de crimes.

Esta forma generalizante e demonizante sobre a “droga” – com papel decisivo no enfrentamento a pessoas estigmatizadas como relacionadas ao uso de maconha ou crack –distancia-se da produção de um saber científico sério e informativo sobre as substâncias, seus efeitos e contextos político-sociais em torno do uso e da sua proibição. Maurício Fiore (2012) destaca como a criminalização dificulta, inclusive, a construção de políticas alternativas sobre o uso de drogas, ignorando as características de uso e de riscos concretos das substâncias arbitrariamente distinguidas entre lícitas e ilícitas. No contexto do início do século XX, estava em jogo o controle da grande massa de negros nas cidades brasileiras, não vistos sequer como aptos para serem explorados assalariadamente na nova ordem socioeconômica.

Os interesses escusos de subjugação racial ainda pautam o debate atual. A imagem do negro, que é alçado a ponta de lança na perseguição endurecida e desproporcional sobre determinados usuários, é mantida na esfera de humanidade incompleta, em discursos e práticas que animalizam e conformam a violência na política criminal, que termina por colonizar o campo da saúde e da assistência social. As ações governamentais analisadas desenham um processo de criminalização do crack simbólico, no qual a sua instrumentalização para superação de outros tantos incômodos que a cena de uso em um local que concentra a denegação de direitos no centro de São Paulo, revela como as categorias jurídicas e as palavras utilizados no cenário político-social vestem roupas de uma sociedade que racializa o proibicionismo sob outro enfoque.

Por toda sua relação com uma criminalização racializada da pobreza, em contrapartida ao que ocorre com a cocaína, a potencialidade de terror trazida pela guerra ao varejo de crack é um exemplo do que Mbembe (2017) critica como um pretenso “racismo sem raça” no qual violências contemporâneas pretendem se blindar, mas que na verdade representa um aprimoramento da discriminação. Seja pelas tecnologias de controle seja pelo regresso do colonialismo em práticas contemporâneas que animalizam o outro, no contexto de uma interpretação sobre as permanências do escravismo e da conformação de raça e racismo de forma simultânea na estrutura econômica de classe social.

Em dois tempos de um controle racial no Brasil, a conformação racista e classista que se estabelecem na gestão das ilegalidades nos espaços urbanos atravessa o proibicionismo, no qual o empreendimento penal e a prisão se articulam com a vedação da plena humanidade aos situados como outro (FANON, 2008). Por fim, ao se acentuar a realidade local do Brasil na produção das suas demandas por ordem, em cada tempo e espaço específico, pode-se ainda enfrentar o desafio de estudar os processos de criminalização dos usuários atualmente, em um cenário marcado pelo discurso de guerra ao tráfico, mesmo entre grupos mais miseráveis economicamente, como a população em situação de rua, bem como pela pretendida democracia racial que precisa ser debatida nos processos de criminalização camuflados nos motes da “guerra” ou do “crime”.

 

REFERÊNCIAS

ALEXANDER, Michelle. The New Jim Crow: Mass Incarceration in the Age of Colorblindness. New York: The New Press, 2012.

ALVES, Ygor Delgado. Jamais fomos zumbis: contexto social e craqueiros na cidade de São Paulo. Salvador: EDUFBA, 2017.

AVELAR, Laís da Silva. O pacto pela vida, aqui, é o pacto pela morte: o controle racializado das bases comunitárias de segurança pelas narrativas dos jovens do grande nordeste de amaralina. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania. Universidade de Brasília. 2016.

BATISTA, Nilo. Política Criminal com derramamento de sangue. In: Discursos Sediciosos, Rio de Janeiro, v. 05/06, 1998.

BATISTA, Vera Malaguti. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. Rio de Janeiro: Revan, 2003a.

_______________. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003b.

______________. Introdução Crítica à Criminologia Brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011.

BARRETO, Ana Luisa Leão de Aquino. Urgência Punitiva E Tráfico De Drogas: As Prisões Cautelares Entre Práticas E Discursos Nas Varas De Tóxicos De Salvador. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.

BARRETO, Lima. Diário do hospício e o Cemitério dos vivos. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

BRASIL. Decreto 20.930/1932. Dsiponível em:  <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-20930-11-janeiro-1932-498374-publicacaooriginal-81616-pe.html> Acesso em 17.03.2018.

BRASIL. Decreto 20.931/1932. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/d20931.htm> Acesso em 17.03.2018.

BRASIL. Decreto-lei 891/1938. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1937-1946/Del0891.htm> Acesso em 17.03.2018.

BRASIL. Decreto nº 7.179, de 20 de maio de 2010. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/decreto/d7179.htm>. Acesso em: 10/03/2015.

Becker, Howard S. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

BITTENCOURT, Julinho. Governo Temer desmonta, com uma canetada, programa de saúde mental modelo para o mundo. In: Revista Fórum. 14 de abril de 2017. Disponível em: <https://www.revistaforum.com.br/governo-temer-desmonta-com-uma-canetada-programa-de-saude-mental-modelo-para-o-mundo/> Acesso em 10.03.2018.

CARNEIRO, Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. 2005. 339 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2005.

DAVIS, Angela. A democracia da abolição: para além do império das prisões e da tortura. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009.

CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

__________________. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

DEL OLMO, Rosa. A Face Oculta da Droga. Rio de Janeiro: Revan, 1990.

DÓRIA, José Rodrigues da Costa. Os Fumadores de maconha: efeitos e males do vício. In MINISTÉRIO DA SAÚDE. Serviço Nacional de Educação Sanitária, Maconha: coletânea de trabalhos brasileiros, 2. Ed, Rio de Janeiro, Oficinas Gráficas do IBGE, 1958 [orig. 1915], pp. 1-14.

DUARTE, Evandro Piza. Criminologia e racismo: a construção discursiva da criminologia positiva brasileira e a negação de cidadania no Brasil. In: CARVALHO; Salo de Carvalho; DUARTE, Evandro Piza Duarte. Criminologia do. Preconceito: racismo e homofobia nas Ciências Criminais. São Paulo: Saraiva, 2017.

FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

FARIA, Juliana Barreto; GOMES, Flávio dos Santos; SOARES, Carlos Eugênio Líbano; ARAÚJO, Carlos Eduardo Moreira de. Cidades Negras: africanos, crioulos e espaços urbanos no Brasil escravista do século XIX. Rio de Janeiro: Editora Alameda, 2006.

FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.

FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. História da maconha no Brasil. São Paulo: Três Estrelas, 2015.

HART, Carl. Um preço muito alto: a jornada de um neurocientista que desafia nossa visão sobre as drogas. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

________. Remove the Knife and Heal the Wound: No More Crack/Powder Disparities. Huffington Post, 2012.Disponível em: <http://www.huffingtonpost.com/carl-l-hart/crack-cocaine-sentencing_b_1707105.html>Acesso em 04.04.2016.

ICICT/FIOCRUZ. Pesquisa nacional sobre o uso de crack. Ministério da Saúde, 2014.

KARAM, Maria Lúcia. Proibições, riscos, danos e enganos: as drogas tornadas ilícitas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

__________. “Guerra às drogas” e saúde: os danos provocados pela proibição. In: Atendendo na guerra: dilemas médicos e jurídicos sobre o crack. BATISTA, Vera Malaguti; LOPES, Lucília Elias (orgs.). 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2014.

MALHEIRO, Luana. S. B. Tornando-se usuário de crack. In: Antonio Nery Filho, Edward MacRae, Luis Alberto Tavares, Maria Eugenia Nunez e Marlize Rego. (Org.). As drogas na contemporaneidade. 1ed. Salvador: EDUFBA, 2012, v. , p. 1-438.

___________________. Entre sacizeiro, usuario e patrão: uma etnografia sobre consumo de crack no Centro Histórico de Salvador. In: MACRAE, Edward (org.). Crack: contextos, padrões e propósitos de uso. 1. ed. Salvador: EDUFBA, 2013. 232p.

MARTINS, Helena. Nova política de saúde mental favorece ampliação de comunidades terapêuticas. In: Agência Brasil. Brasília, 21 de dezembro de 2017. Disponível: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2017-12/nova-politica-de-saude-mental-favorecera-ampliacao-de-comunidades> Acesso em 10.03.2018.

MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Tradução de Marta Lança. Lisboa: Editora Antígona, 2014.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Serviço Nacional de Educação Sanitária. Maconha: coletânea de trabalhos brasileiros, 2. Ed, Rio de Janeiro, Oficinas Gráficas do IBGE, 1958 [orig. década 1930], pp. 67-73.

MUNANGA, Kabengele. As facetas de um racismo silenciado. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz. Raça e diversidade. São Paulo, Edusp, 1996, p. 220 e 221.

NASCIMENTO, Abdias do. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectivas, 2016.

NEDER, Gizlene. Cidade, Identidade e Exclusão Social. In: Tempo. Rio de Janeiro, Vol. 2, n° 3, 1997, pp. 106-134.

PÉRES, Heitor. Diambismo. In Ministério da Saúde, Serviço Nacional de Educação MINISTÉRIO DA SAÚDE. Serviço Nacional de Educação Sanitária. Maconha: coletânea de trabalhos brasileiros, 2. Ed, Rio de Janeiro, Oficinas Gráficas do IBGE, 1958 [orig. década 1930], pp. 67-73.

PERNAMBUCO, Pedro; BOTELHO, André. O vício da Diamba. In Ministério da Saúde, Serviço Nacional de Educação MINISTÉRIO DA SAÚDE. Serviço Nacional de Educação Sanitária. Maconha: coletânea de trabalhos brasileiros, 2. Ed, Rio de Janeiro, Oficinas Gráficas do IBGE, 1958.

ROORDA, João Guilherme Leal. Os vadios de Santana: o controle penal da vadiagem no início do século XX na Cidade do Rio de Janeiro. Dissertação (mestrado). Universidade do Estado do Rio de Janeiro. 2016.

SAAD, Luisa Gonçalves. “Fumo de negro”: a criminalização da maconha no Brasil. Dissertação. Universidade Federal da Bahia. 139p. Salvador, 2013.

SCHWARCZ, Lília. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870 – 1930). São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

VALOIS, Luís Carlos. O Direito Penal da Guerra às Drogas. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2017.

Volcov, Katerina, da Penha Vasconcellos, Maria. “Crack, é possível vencer” ou é preciso compreender: observações a partir de campanhas publicitárias do governo federal. In: Saúde & Transformação Social / Health & Social Change. 2013, v. 4 abril/junho. Disponível em: < http://incubadora.periodicos.ufsc.br/index.php/saudeetransformacao/article/view/2245> Acesso em 10.03.2018.

WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2001.

____________. Forjando o estado neoliberal: trabalho social, regime prisional e insegurança social. In: BATISTA, V (org.). Loïc Wacquant e a questão penal no capitalismo neoliberal. Rio de Janeiro: Revan, 2012.

ZAFFARONI, Eugenio R.; BATISTA, Nilo; ET ALL. Direito Penal Brasileiro: Primeiro Volume: Teoria Geral do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2011.



IMPASSES NO DIREITO DE MANIFESTAÇÃO: UM ESTUDO ACERCA DA LEGALIDADE DAS PRISÕES DE 26 JOVENS OCORRIDAS EM SETEMBRO DE 2016 EM SÃO PAULO[53]

 IMPASSES IN THE RIGHT OF DEMONSTRATION: A STUDY ON THE LEGALITY OF DEMONSTRATORS’ ARRESTS IN SEPTEMBER 2016

 

Mariana Pinto Zoccal[54]

 

 Resumo: O direito de manifestação constitui faculdade assegurada a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no país e se encontra previsto no art. 5°, inciso XVI, da Constituição Federal de 1988. No entanto, apesar de a nossa Carta Maior legitimar este canal direto de participação social, é possível verificar que se encontra em trâmite no Brasil um processo camuflado de criminalização dos movimentos sociais de protesto que contrariam os interesses das classes hegemônicas. E o sistema de justiça tem atuado neste processo, visto que comumente mostra-se possível observar inquéritos, denúncias, decisões, sentenças e acórdãos colocando em xeque o exercício do direito de manifestação. O presente artigo pretende realizar um estudo acerca da legalidade das prisões de 26 jovens ocorridas no dia 04 de setembro de 2016, que ensejaram a autuação e o processamento de 18 deles pelos crimes de corrupção de menores e associação criminosa, em um característico incidente de criminalização do direito de protesto.

Palavras-Chave: Direito de manifestação; Jornadas de junho de 2013; Criminalização das manifestações populares; Prisões.

Abstract: The right of demonstration is guaranteed to all Brazilians and foreigners residing in the country and is provided for in the article 5, point XIV, of the Federal Constitution. However, although our Major Charter legitimates this direct channel of social participation, it is possible to verify that a process camouflaged in Brazil is undergoing a process of criminalization of the protest social movements that contrary to the interests of the hegemonic classes. And the justice system has acted in this process, since it is commonly possible to observe inquiries, denunciations, decisions, judgments and judgments, putting in check the exercise of the right of manifestation. This article intends to carry out a study about the legality of the prisons of 26 young people that occurred on September 4, 2016, which led to the prosecution and prosecution of 18 of them for the crimes of corruption of minors and criminal association, in a characteristic incident of criminalization of the right of protest.

Keywords: Right of manifestation; June 2013 days; Criminalization of popular demonstrations; Prisons.

1.                  Considerações acerca do exercício do direito de manifestação no Brasil contemporâneo

Mobilizações e protestos sempre se fizeram presentes na história do Brasil. Desde a Revolta da Vacina, realizada em novembro de 1904, até os protestos que clamam por “Lula Livre”, que atualmente ocorrem em diversas cidades do país, a população brasileira utiliza o direito de manifestação para ocupar as ruas e dar voz aos seus anseios, descontentamentos e reivindicações.

A Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, inciso XVI, preceitua que “todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente[55]”.

Assim, o direito de protesto se consolida como um exercício de desenvolvimento em grupo da personalidade. Nos dizeres de António Francisco de Sousa (2011, p. 41), ele é elemento vital de uma ordem estadual democrática e se torna um canal para a livre discussão de ideias. Tal discussão deve, portanto, permanecer livre do poder e da coação, e ser exercida em condições de plena liberdade.

Os protestos de junho de 2013 foram um divisor de águas em nossa conjuntura política atual. Após as manifestações encampadas pelo Movimento dos Caras Pintadas, ocorridas no ano de 1992, nenhuma outra mobilização com tamanha adesão popular era presenciada no país. Estima-se que cerca de dois milhões de pessoas saíram às ruas entre junho e agosto de 2013.

Gohn (2014, p. 13) explicita que as motivações dos manifestantes eram sintetizadas em um sentimento de desencantamento e indignação contra a conjuntura ético-política dos dirigentes e representantes civis eleitos nas estruturas de poder estatal, as prioridades selecionadas pelas administrações públicas e os efeitos das políticas econômicas na sociedade.

A partir de então uma conjuntura favorável à mobilização de massas fez-se presente, de modo que protestos encampando uma vasta diversidade de pautas, nos espectros políticos da esquerda e da direita, passaram a ser comumente observados nas ruas brasileiras.

Gohn (2017) subdivide o lapso temporal de 2013 à 2016 em três momentos de manifestações e protestos.

O primeiro momento compreende o surgimento dos novíssimos atores em cena, que em linhas gerais caracteriza-se pela eclosão das jornadas de junho de 2013, a ampla atuação do Movimento Passe Livre (MPL), a existência de uma agenda a princípio centrada na seara do transporte público e a presença de manifestantes adeptos da tática Black Bloc nos atos.

O segundo momento consiste no surgimento de contracorrentes nos “novíssimos” movimentos sociais de protesto, com o protagonismo de atores como o movimento Vem Pra Rua (VPR) e o Movimento Brasil Livre (MBL), que colocaram o impeachment da ex-presidenta Dilma na agenda dos protestos e utilizaram-se da indignação dos jovens de 2013 com a conjuntura política para criar o imaginário de que todos os problemas nacionais são oriundos da corrupção e que ela deve ser combatida via Judiciário.

No terceiro momento, que teve por expoente as manifestações ocorridas no dia 15 de março de 2015, a multidão retornou às ruas. No entanto, tais mobilizações tiveram características diametralmente opostas às de junho de 2013, pelo repertório de demandas, dos grupos sociais que realizaram as convocações, a faixa etária dos participantes e as matrizes ideológicas e políticas que influenciaram a indignação explicitada.

Os principais pleitos resumiam-se no slogan “Fora PT” e um sentimento de antipartidarismo floresceu, de modo que restou proibido a exposição de faixas e cartazes de partidos políticos, bem como a fala de membros do parlamento na maioria dos atos de protesto.

Após a consolidação do impeachment[56] da ex-presidenta Dilma, uma severa crise política instaurou-se no país.  O vice-presidente Michel Temer assumiu a presidência, impondo de forma célere uma agenda de retrocessos, que contou com a retirada de direitos trabalhistas, o recuo da legislação ambiental, diversos cortes nas políticas sociais, a implementação de uma tributação regressiva, a aceleração de um processo de criminalização do pensamento crítico, dentre outras arbitrariedades.

Nesse contexto, no dia 24 de maio de 2017, no uso das atribuições que lhe confere o art. 84, caput, incisos IV e XIII, da Constituição, e tendo em vista o disposto no art. 15 da Lei Complementar nº 97, de 9 de junho de 1999, o Presidente Michel Temer autorizou o emprego das Forças Armadas para a Garantia da Lei e da Ordem no Distrito Federal no período compreendido entre os dias 24 e 31 de maio, em que diversos grupos se mobilizavam para protestar na capital do país.

Ocorre que a atuação das Forças Armadas é disciplinada na lei apenas em hipóteses em que o policiamento ostensivo não é suficiente, o que não foi verificado no caso em questão. Houve, por parte do Presidente, evidente abuso que foi altamente criticado por estudiosos e ativistas de direitos humanos. O descaso para com a efetivação do direito de manifestação adquiriu tamanha proporção que no dia 25 de maio o Presidente sucumbiu às críticas e revogou o decreto (CARTA CAPITAL, 2017).

Tal incidente, advindo do maior chefe do executivo do país, explicita a fragilidade existente entre o direito de manifestação constitucionalmente previsto, e a sua real efetivação, bem como a banalização das intervenções do exército em assuntos afeitos à segurança pública.

  1. Das ruas ao DEIC: manifestar-se é um direito?

 

No dia 04 de setembro de 2016 vinte e seis jovens, dentre eles três adolescentes, foram detidos e encaminhados ao Departamento de Investigação Criminal (DEIC) na ocasião em que se preparavam para participar de um ato de protesto contra o Presidente Michel Temer.

As prisões ensejaram a autuação dos jovens pelos crimes de associação criminosa e corrupção de menores. Segundo os policiais, os suspeitos pretendiam cometer ações de vandalismo durante o ato de protesto e foram apreendidos portando objetos como pedras, lenços, sprays, máscaras contra gás, estilingue, barra de ferro e kits de primeiros socorros.

O caso reúne elementos problemáticos se analisados sob a ótica de um Estado democrático de direito, tais como: a) a incomunicabilidade de acesso dos advogados a seus clientes; b) a suposta implantação de provas falsas nos acusados; c) a omissão de determinadas circunstâncias na exordial acusatória; d) a infiltração de um agente do exército na operação que ensejou a prisão em flagrante dos manifestantes; dentre outros.

Segundo noticiado no portal PONTE jornalismo (2016a),

O comando da Polícia Militar do Estado de São Paulo ordenou um tratamento diferente para os jovens que foram detidos em grupo durante a manifestação realizada ontem contra o presidente Michel Temer (PMDB) na Avenida Paulista. Em vez de serem levados para as delegacias comuns, os manifestantes foram parar no Deic […]

“A ordem do comando é levar para o Deic”, disse o soldado Marcelo Adriano Nowacki, da 2ª Companhia do 7º Batalhão da PM, responsável pela prisão de cinco adolescentes no início da manifestação, na avenida Paulista, por volta das 16h30. Outros 21 jovens, sendo três adolescentes, foram presos às 15h, por um outro grupo de policiais militares, no Centro Cultural São Paulo (CCSP), no Paraíso, zona sul de São Paulo, quando se preparavam para ir ao protesto.

 

Os manifestantes detidos, inclusive os adolescentes, foram mantidos incomunicáveis no DEIC durante oito horas. Nenhum dos advogados que foi até a delegacia, localizada no bairro Carandiru, zona norte, teve acesso aos presos. O delegado Fabiano Fonseca Barbeiro, da 1ª Delegacia de Investigações Gerais, permitiu apenas que os pais dos adolescentes entrassem no DEIC para observarem seus filhos. Manter diálogo com eles, no entanto, estava proibido. (PONTE, 2016a)

Tal informação é corroborada pelo depoimento do advogado criminalista Hugo Albuquerque, colhido pela autora no dia 13 de abril de 2017, às 17h, na sede do escritório de advocacia Saccomani, Albuquerque e Biral, advogados associados, localizado na Rua Conselheiro Ramalho, nº  945, Bela Vista, sala 13, São Paulo/SP.

Ao ser questionado sobre como obteve conhecimento das detenções, o advogado relata que:

[…] estava presente nesta manifestação e ela parecia tranquila. Tudo estava correndo normalmente, até que surgiu a informação de que 26 jovens encontravam-se detidos no DEIC. Ninguém sabia até que ponto era ou não um fato concreto. Um amigo havia confirmado a informação, pois a sobrinha dele havia sido detida. Achamos estranho conduzirem os jovens ao DEIC, pois normalmente eles são conduzidos a uma delegacia de polícia comum.  Pelo momento em que a detenção ocorreu, a manifestação nem havia começado. Eu e mais alguns advogados fomos ao local meio ressabiados. Quando entreguei a OAB no DEIC, o delegado veio conversar comigo, mas não permitiu a minha entrada. Cheguei no local às 18:30. Alguns parentes já estavam lá. Em função de não conseguirmos entrar, acionamos a imprensa e entramos em contato com o Senador Eduardo Suplicy e o Deputado Paulo Teixeira para fazer pressão e abrirem a porta. Aí o delegado abriu a porta, mas já era meia noite. (ALBUQUERQUE, 2017)

O advogado relatou que apenas alguns jovens conseguiram telefonar informando os familiares da detenção, pois logo após a prisão os seus telefones celulares foram apreendidos para a realização de perícia.

[…] Após conversar com o delegado, eu aleguei que não havia nenhuma prova ali. Ele respondeu que não era bem assim. Questionei se havia alguma investigação em curso, se algum jovem não era réu primário, e informei que queria ter acesso a esta investigação prévia.  Nós sabíamos que se eles estavam no DEIC, havia um trabalho de inteligência – e acreditávamos que seria de inteligência da polícia.

O delegado tergiversou ao solicitarmos acesso à investigação que em tese estaria em curso. Começou a defender a tese de que se tratava de um crime de mera conduta.  No entanto é necessário ter um liame, um substrato probatório, senão o Estado passa a atuar de forma arbitrária, apenas pelo fato de existirem pessoas reunidas. (ALBUQUERQUE, 2017)

          Conforme dispõe o art. 7º, inciso III, da lei 8.906/94, é direito do advogado “comunicar-se com seus clientes, pessoal e reservadamente, mesmo sem procuração, quando estes se acharem presos, detidos ou recolhidos em estabelecimentos civis ou militares, ainda que considerados incomunicáveis”.

No intuito de melhor compreender como se deu a postura do delegado Fabiano Fonseca Barbeiro, acusado de dificultar o acesso dos advogados a seus clientes na ocasião em que os manifestantes foram detidos, a autora também entrevistou o vereador Eduardo Suplicy, que na época ocupava o cargo de Secretário de Direitos Humanos do município de São Paulo.

A entrevista foi realizada no dia 13 de abril de 2017, aproximadamente às 13 horas, na Câmara Municipal de São Paulo. Ao ser questionado sobre como obteve conhecimento da manifestação e das detenções ocorridas, Eduardo Suplicy relata que:

No dia 04 de setembro houve uma manifestação agendada por diversas organizações sociais como a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), em prol da convocação de eleições diretas.  Diante do MASP, e em conjunto com dezenas de milhares de pessoas, eu participei deste ato.

Eu me recordo que, ao lado de diversas outras pessoas como o ativista Guilherme Boulos, o Presidente da CUT e da Central de Movimentos Populares Vagner Freitas, o Senador Lindbergh Farias, o Deputado Paulo Teixeira, eu também fui convidado a falar. Lembro que transmiti a todos que se o Michel Temer quisesse pacificar a nação, poderia aproveitar e tomar a iniciativa, por meio de um referendo a ser realizado no dia 04 de outubro, em que o povo fosse questionado se gostaria que ele permanecesse até dezembro de 2018 na presidência, ou se preferia a convocação de eleições diretas. Se o resultado fosse positivo, ele estaria legitimado, mas se a população viesse a dizer não, em conjunto com o Congresso Nacional, ele deveria convocar eleições direitas em dezembro – no primeiro domingo de dezembro, com um segundo turno agendado para o terceiro domingo de dezembro – de forma que o Presidente eleito pudesse tomar posse em primeiro de janeiro. Esse foi o teor do meu discurso e dos demais convidados a falar.

Concluídas as falas, resolvemos fazer uma caminhada até o Largo da Batata, e eu fui ao lado de demais lideranças de organizações sociais. Ao descer a Avenida Rebouças, pelo celular, o Guilherme Boulos conversou com um oficial da PM, informando que o trajeto do protesto caminhava bem, de forma pacífica.

Ao chegar no Largo da Batata, existiram outras falas no mesmo sentido das anteriormente realizadas, e eis que a manifestação estava praticamente concluída, com as pessoas se dispersando. Eu já havia me retirado do Largo, tinha passado em uma lanchonete e já estava indo para casa, quando ouvi a explosão de algumas bombas de gás lacrimogêneo. O ex-ministro da Ciência e Tecnologia, Roberto Amaral, teve uma bomba explodida perto de seus braços, que por sorte não o feriu.

Pouco depois me informaram que mais de 20 jovens haviam sido levados para o DEIC, e que os seus familiares e advogados estavam com dificuldades para conseguir ter acesso a eles. Era por volta das 23h, e nossa passeata havia terminado às 21h. Nessa ocasião, recebi o pedido de que eu comparecesse até lá, juntamente com o Vereador Nabil Bouduki e o Deputado Paulo Teixeira. Na porta do DEIC encontramos pais, irmãos e os advogados que assistiam os manifestantes. Eles relataram estarem lá desde às 16h30m, quando souberam que os jovens haviam sido presos. Foram até lá para dar assistência a seus filhos, mas até aquele momento – 23h30m – o delegado não havia permitido que os advogados conversassem com os jovens.

Nessa ocasião, permitiram apenas que nós três entrássemos, e lá pleiteamos que os pais e advogados tivessem acesso a seus filhos e clientes, e isso aconteceu. Ali ouvimos depoimentos dos jovens, que afirmaram estar no Centro Cultural Vergueiro e de repente se depararem com uma operação com um grande número de policiais militares, com helicópteros voando, tendo sido detidos e levados para o DEIC.

Relataram que como em manifestações anteriores havia ocorrido a explosão de bombas de gás lacrimogêneo e de balas de borracha, avaliaram que seria importante levar na mochila máscaras para evitar a exposição ao gás lacrimogêneo, além de alguns instrumentos de primeiros socorros.

Afirmaram não possuir nada que pudesse ser utilizado como um instrumento para destruir o patrimônio público, bater em alguém ou agredir. Um dos rapazes denunciou ainda que na ocasião um policial juntou em seus pés uma barra de ferro, para depois imputá-lo de estar carregando ela.  Tal informação consta no inquérito, de modo que criou-se uma ficção de que aquele grupo de jovens estaria planejando uma ação de agressão e destruição de qualquer coisa que fosse.

Eu dei o meu testemunho, pois como participei da manifestação desde o início da tarde até a noite, não presenciei qualquer incidente que pudesse significar uma ação delituosa por parte dos jovens. Saímos do DEIC aproximadamente às 3 horas do dia 05 de setembro, e procuramos assegurar que cada um dos manifestantes tivesse a oportunidade de conversar com os seus pais e advogados.

Eu soube que de lá, no dia seguinte eles foram levados ao Fórum da Barra Funda, local em que prestaram depoimento diante de um juiz, e levando em consideração o relato que fizeram, foram liberados para irem para casa. Nesta audiência eu inclusive tentei acompanhar, mas o juiz responsável não permitiu, pois o processo tramita sob segredo de justiça.

Soube também que posteriormente o delegado responsável pela detenção e a oitiva encaminhou relatório do inquérito ao Ministério Público, que os denunciou por terem tentado criar uma suposta organização para o cometimento de delitos, para justificar o porquê haviam sido detidos. (SUPLICY, 2017)

A audiência de custódia mencionada pelo vereador Eduardo Suplicy foi realizada no dia 05 de setembro de 2016, às 17h39min, na sala de Audiências de Custódia do Foro Central Criminal Barra Funda, Comarca de São Paulo, sob a presidência do Juiz de Direito Dr. Rodrigo Telline de Aguirre Camargo, para avaliar a legalidade da prisão em flagrante realizada no dia anterior, bem como aferir a necessidade de conversão do flagrante em prisão preventiva.

Os jovens foram indiciados pelos crimes de associação criminosa (art. 288 do Código Penal) e corrupção de menores (244B da Lei 8069/90) em sede policial. O processo de nº 0074736-77.2016.8.26.0050 tramita sob segredo de justiça, mas a decisão proferida em audiência de custódia foi disponibilizada na internet, com os nomes dos indiciados suprimidos.

Nela, o magistrado entende como ilegal o flagrante realizado pelos policiais militares na operação e decide pelo relaxamento da prisão, conforme explicita o trecho abaixo transcrito:

[…] Destaco que o delito de associação criminosa, para a sua configuração, exige mais do que a mera reunião de indivíduos, exige a estabilidade do grupo tido como criminoso para praticar crimes de forma permanente. Evidentemente não é o caso dos autos. Destaco que a prisão dos indiciados decorreu de um fortuito encontro com policiais militares que realizavam patrulhamento ostensivo preventivo e não de uma séria e prévia apuração de modo que qualificar os averiguados como criminosos organizados à míngua de qualquer elemento investigativo seria, minimamente, temerário. As necessárias elementares do tipo de associação criminosa, estabilidade e finalidade de cometimento de delitos, não podem ser simplesmente presumidas pelo fato de os policiais terem encontrado com os averiguados uma barra de ferro, vinagre, material de primeiros socorros, extintor de incêndio e outros objetos, todos de porte lícito, porque não há notícia de que qualquer dos averiguados, todos primários e de bons antecedentes, tivessem se envolvido com a prática de qualquer crime no passado ou tivessem a intenção de praticar delitos no futuro. Não há mínima prova de que todos se conheciam. Com efeito, os manifestantes, afinal, poderiam simplesmente desistir de comparecer ao ato, a ele comparecer de modo pacífico ou causar algum transtorno que seria individualmente sopesado. Não há como saber, porque a polícia não permitiu a presença dos manifestantes antes de o ato de manifestação se realizar. O Brasil como Estado Democrático de Direito não pode legitimar a atuação policial de praticar verdadeira “prisão para averiguação” sob o pretexto de que estudantes reunidos poderiam, eventualmente, praticar atos de violência e vandalismo em manifestação ideológica. Esse tempo, felizmente, já passou. A prova do auto de prisão em flagrante é de que todos os detidos estavam pacificamente reunidos para participar de uma manifestação pública, nenhum objeto de porte proibido foi apreendido, sendo, assim, inviável sequer cogitar do crime de corrupção de menores. Destarte, ausentes as hipóteses do artigo 302 do Código de Processo Penal em relação aos delitos imputados, de rigor o RELAXAMENTO da prisão em flagrante e a imediata expedição de alvará de soltura. (VIOMUNDO, 2016).

A decisão proferida em sede de audiência de custódia fez coisa julgada, e tranquilizou momentaneamente os advogados e manifestantes de que as investigações não iriam prosperar e ensejar um processo-crime. No entanto, apesar de a decisão ter sido expressa no tocante a atipicidade da conduta dos jovens, as investigações prosseguiram normalmente.

No relatório final do DEIC encaminhado ao juiz, também disponibilizado na internet com os nomes dos acusados suprimidos, o delegado Fabiano Barbeiro alega que:

Não existe nos autos, em nenhuma peça sequer, a menção ou simples alusão que seja das expressões DETENÇÃO OU PRISÃO PARA AVERIGUAÇÂO. […] As MANIFESTAÇÕES POPULARES, decorrentes da LIVRE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO, DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO e do DIREITO DE IR E VIR, são absolutamente legítimas, é DIREITO SAGRADO DE TODO CIDADÃO e como tais, consideram-se instrumentos da democracia. […] Porém, havemos que ponderar que neste campo nada é absoluto, na medida em que TODOS devem respeitar seus limites, na exata medida em que correspondam a outros bens jurídicos igualmente tutelados. […] Infelizmente, testemunhamos uma verdadeira escalada destes atos bárbaros, aumentando em incidência vertiginosamente, nos fazendo crer que uma minoria de BANDIDOS E CRIMINOSOS estão aproveitando estes momentos para darem vasão à esses atos bárbaros usando como pretexto o direito de manifestação e promovendo a baderna, a desordem, agressões e vandalismo. Precisamos dar um BASTA nesta cultura de “tudo pode”, principalmente quando travestido, disfarçado ou imiscuído de ideologias, afinal, obrigarmos o cidadão de bem a tolerar esta situação, promovida por VÂNDALOS, seria o mesmo que lhe ceifar suas próprias garantias, tais como INTEGRIDADE FÍSICA E SEU DIREITO DE PROPRIEDADE, lembrando que também estaríamos impondo tal infortúnio inclusive ao erário público do Estado, na medida que muitos dos bens depredados nestas ações são PÚBLICOS. Estaríamos nós diante de uma situação paradoxal que para fugir de uma pecha ditatorial e repressora do passado devamos nos tornar permissivos e assim impor aos cidadãos de bem uma ANTI-DITADURA, a qualquer custo!!! Claro que resquícios de um passado de opressão ainda nos assombram, mas não podemos permitir que isso nos atrapalhe em organizar nosso presente, AFINAL ESTE TEMPO JÁ PASSOU!! MESMO!!! (PONTE, 2017)

A partir de uma análise do discurso utilizado pelo delegado, mostra-se possível a apreensão de elementos como as motivações, os valores, as crenças, as tendências e as ideologias, que à simples vista não se apresentam com a devida clareza, mas dizem muito a respeito de como o autor do relatório entende o exercício do direito de manifestação.

O delegado inicia relatando que entende como legítimo o direito de protesto, desde que exercido dentro dos limites legais, sem influenciar na tutela de outros bens jurídicos igualmente tutelados. Acerca da existência de limites, tal afirmação encontra amparo no texto constitucional, à medida que o art. 5º, inciso XVI, dispõe que são requisitos para a realização de protestos o caráter pacífico e sem armas.

No entanto, ao dispor que os limites ao direito de manifestação correspondem a “outros bens jurídicos igualmente tutelados”, abre-se margem para questionar: Quais são os bens jurídicos descritos pelo delegado que em tese possuem o condão de contrapor-se a liberdade de manifestação?

Apreende-se, a partir das expressões pelo delegado mesmo destacadas, a contraposição da LIVRE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO, da LIBERDADE DE EXPRESSÃO e do DIREITO DE IR E VIR em face da INTEGRIDADE FÍSICA e do DIREITO DE PROPRIEDADE.

Acerca da defesa da integridade física, a intervenção estatal resta autorizada quando o protesto perde o seu caráter pacífico e sem armas. Ocorre que a própria atuação policial muitas vezes coloca em xeque a integridade física dos manifestantes, se analisarmos os inúmeros incidentes de manifestantes feridos e mortos em função da utilização exacerbada de “armas menos letais”, bombas de gás lacrimogênio, sprays de pimenta, dentre outros.

Ademais, conforme dispõe Ortellado (2014, p. 286):

Enquanto a destruição da vidraça de bancos ganha enorme visibilidade, a repressão da polícia a manifestantes pacíficos segue invisível para a maior parte da grande imprensa. E não é só a agressão a manifestantes que é invisível. Toda a ação abusiva e violenta da polícia nas periferias das grandes cidades não recebe cobertura ou recebe uma cobertura discreta, sem destaque editorial.

Ao referir-se aos “BANDIDOS E CRIMINOSOS que utilizam como pretexto o direito de manifestação e promovem a baderna, a desordem, agressões e vandalismo”, o delegado parece referir-se a participação de coletivos como o Black Bloc nos atos de protesto, que foi destaque nas principais mídias do país e dividiu a opinião pública em favoráveis e contrários a sua tática de ação direta.

A tática de ação direta consiste em romper com o pacifismo presente nas manifestações e realizar ataques seletivos contra símbolos do capitalismo global com o objetivo de chamar a atenção para suas demandas. Suas ações são performáticas e realizadas no anonimato, graças à utilização de máscaras e roupas pretas. Os membros no movimento argumentam que “a depredação não é violência, mas é uma intervenção simbólica que atinge o cerne do capitalismo: a propriedade privada. Violência, para esses manifestantes, é ferir pessoas, e isso é o que a polícia faz” (GOHN, 2014, p. 58).

O discurso utilizado pelo delegado evidencia o seu descaso para com a efetivação do direito de manifestação, à medida que o torna altamente seletivo e fomenta a dicotomia entre os termos “manifestantes” e “vândalos”. Conforme asseveram Mendonça e Daemon (2014, p. 46), os primeiros são “tratados como legítimos cidadãos em seu direito de reivindicação, e os segundos, como os perturbadores da ordem que, mais uma vez, legitimarão as ações (violentas) de repressão da Tropa de Choque”.

Essa demonização repercutida por parte da grande mídia pode ter ainda o efeito perverso de – ao buscar separar o suposto joio do suposto trigo e zelar para que se evitem os atos de vandalismo policial verificados contra “manifestantes pacíficos”, jornalistas e setores da classe média –, no mesmo passo que venha chancelar a concentração histórica desse vandalismo nos de sempre, os jovens pobres das periferias de nossas cidades (MINHOTO, 2013, p. 03).

              Ao delegado é assegurada a liberdade de expressão, de mesmo modo que para todo e qualquer cidadão brasileiro, pois trata-se de preceito constitucionalmente amparado. Ocorre que, ao posicionar-se afirmando que “precisamos dar um BASTA nesta cultura de “tudo pode”, principalmente quando travestido, disfarçado ou imiscuído de ideologias”, abre-se margem para questionar se a opinião pessoal do delegado é compatível com o instrumento na qual ela foi exarada, pois o art. 10,  § 1o, do Código de Processo Penal apenas menciona a necessidade de o relatório policial conter a descrição minuciosa dos fatos apurados.

              De mesmo modo, deve ser questionada a utilização da expressão “cidadão de bem” no relatório, ante a sua vagueza e imprecisão. Afinal, quais os critérios teóricos e empíricos utilizados para classificar um cidadão como “de bem”? Na prática, a definição apenas corrobora discursos de ódio inflamados pela mídia sobre temas afeitos ao sistema penal e os clamores populares pelo aumento do poder punitivo estatal.

              No fragmento anteriormente citado, o delegado faz menção à existência de ideologias nas manifestações como sendo algo depreciativo. No entanto, é inerente a todo ato de protesto a existência de ideologia. Até mesmo as ideias de determinados grupos políticos que são apresentadas como isentas de parcialidade, de modo a convencer as demais pessoas de que realmente existe neutralidade, são ideológicas. O manter-se neutro, ou seja, não se posicionar, significa estar conformado com o que está posto, o que implica, necessariamente, em posicionar-se com o que está dado, ainda que mediante omissão.

              No fragmento destacado, ao criticar atos imiscuídos de ideologia, rememora-se traços existentes nos anos de chumbo de ditadura militar, em que comunistas, militantes de esquerda, do movimento estudantil e demais pessoas que contestassem o status quo vigente eram vistos como inimigos pré-concebidos do Estado.  Dessa forma, de modo contrário a afirmação exarada pelo delegado de que “ESTE TEMPO JÁ PASSOU!! MESMO!!!”, os reflexos do período de ditadura militar não devidamente superado ainda se fazem muito presentes em nosso sistema de justiça criminal.

              Outra questão polêmica envolvendo a prisão dos manifestantes foi a infiltração do capitão do Exército Willian Pina Botelho, que se apresentava para o grupo e nas redes com o nome de Balta Nunes. Segundo matéria divulgada no jornal EL PAÍS (2016) “no momento da detenção, Botelho estava com os 21 manifestantes. Quando eles foram levados para a delegacia, o militar já não estava mais. No WhatsApp, o capitão justificou sua ausência entre os detidos dizendo que portava um documento de identidade falso.”

              O advogado criminalista Hugo Albuquerque assevera que:

[…] Nem todos os detidos se conheciam previamente. O agente do exército infiltrado fez o papel de ligar todo mundo. Ele tinha a missão de prender alguém, e para isso juntou todos os membros de seus grupos de WhatsApp e de Facebook. Ele costurou para ter o máximo de pessoas possíveis no Centro Cultural Vergueiro naquele momento. A molecada caiu na arapuca. Existia um contingente militar capaz de neutralizar uma operação terrorista. Os vídeos do Centro Cultural comprovam. Não havia ninguém armado, nem mesmo com arma branca. Tanto é que o juiz liberou os jovens em audiência de custódia.

Ficamos lá até meia noite. O delegado disse que não liberaria ninguém, afirmou que sabia que a conduta se encaixava em um crime de mera conduta e que na verdade não sabíamos do que estávamos falando.

Encontramos os jovens e achamos por bem não oferecer depoimento em sede policial porque demoraria muito e eles iriam acabar dormindo no CDP. O delegado, antes de ouvi-los formalmente, já havia decidido que não liberaria ninguém. Então do que adiantaria depor já que o delegado possuía o ânimo de mantê-los lá?

Eles foram encaminhados para a perícia, no Instituto Médico Legal às 12 horas e por volta das 17 horas ocorreu a audiência de custódia na Barra Funda. Nela, o juiz liberou os jovens, pois estavam em uma manifestação, no exercício regular de um direito.

A partir de então começaram a surgir vários procedimentos acerca da atuação policial, da participação do “Balta”, e todos chegaram a conclusão de que ele não foi levado a delegacia. Ele estava presente na ocasião, tinha vários jovens como amigos nas redes sociais e até então se achava que ele era alguém da inteligência da polícia, mas posteriormente confirmou-se que ele pertencia ao Exército.

Alguém soprou para a imprensa que ele era do exército e depois foi confirmado que tratava-se do Capitão Willian Pina Botelho, um pesquisador contra insurgências populares e repressão ao terrorismo. O que é ridículo, pois se você é um pesquisador, o standard de seu trabalho deve ser a publicidade. Aí você vira um agente secreto atuando no assunto em que você escrevia obras teóricas a respeito. O mestrado dele é sobre manifestações.

Ele interpelou um Professor da USP, Pablo Ortellado, via inbox, afirmando tratar-se a investigação de um absurdo, pois ele não era um infiltrado.  Até aí a farsa já tinha caído. Ele afirmou ter pagado propina para não ser preso, e isso gerou um procedimento de investigação interno da Corregedoria da Polícia Civil. O GECEP – Grupo que investiga a violência policial do Ministério Público Estadual – também ouviu todo mundo. O MPF tem dois procedimentos em curso. (ALBUQUERQUE, 2017)

              Após a decisão de relaxamento da prisão em flagrante dos manifestantes proferida em sede de audiência de custódia acreditava-se que o inquérito seria arquivado, ante a inexistência de suficiente lastro probatório. Ocorre que no dia 15 de dezembro de 2016 o Promotor Fernando Albuquerque Soares de Souza denunciou os jovens como incursos nos crimes de associação criminosa e corrupção de menores, previstos no art. 288, parágrafo único, do Código Penal, e no art. 244-B, da Lei 8.069/90, em concurso formal de infrações.

              Na exordial acusatória, disponibilizada na internet, o promotor atribui aos manifestantes divisões de tarefas como o encargo de levar ao ato máscaras e capuzes, frascos contendo vinagre, que segundo ele, seriam “utilizados para minorar os efeitos do gás que a polícia lança para debandar arruaceiros”, disco de metal que seria utilizado como escudo e barra de ferro para “desferir golpes que lesionariam policiais e danificariam patrimônio público e particular”. Também foi atribuído a alguns denunciados a tarefa de levar materiais de primeiros socorros, que “seriam utilizados em comparsas que viessem a sofrer lesões no confronto com policiais militares, além de máscaras e capuzes” e câmeras fotográficas e de filmagem “para registro das ações criminosas e posterior divulgação em redes sociais e outros meios de veiculação de ideias.” (PONTE, 2016b).

Ao ser convidado a realizar uma análise da denúncia oferecida pelo Ministério Público, o advogado Hugo preceitua que

[…] os jovens foram denunciados por associação criminosa e corrupção de menores, mas o promotor comete uma impropriedade, pois fala de “organização criminosa” na denúncia. A imputação correta é a de associação criminosa, que é crime comum, previsto no Código Penal. Organização criminosa encontra-se prevista em lei específica.

Ele comete uma confusão que denota o seu desconhecimento do tema, no ponto de vista técnico. Ele cria uma ficção que não confere nem mesmo com o relatório do próprio delegado, realizado descrições como “tal coisa foi apreendida com fulano e beltrano”. Plantaram uma barra de ferro em um dos meninos, que foi inclusive agredido pelo policial na abordagem. Por que apenas um deles levaria uma barra de ferro?

Não existiam elementos para concluir a atribuição de tarefas imputada pelo promotor do relatório do delegado. Ele criou uma peça de teatro. Montou uma cena de crime. Alega que existia um grupo de 07 ou 08 pessoas que iriam para o confronto com a Tropa de Choque, mas as armas que teriam eram uma barra de ferro e um disco de metal (ambos plantados). Como 07 ou 08 pessoas iriam partir para o confronto com duas armas impróprias? E ele coloca uma menina de 1,55 falando que ela iria brigar com o Choque. Isso é irrelevante juridicamente.

Ele acusa um outro jovem de estar portando insumo e material de primeiros socorros. O que é verdade e há uma justificativa bem clara: ao final deste mesmo protesto houve repressão policial. Três dias antes a Débora, uma estudante do ABC, perdeu o olho em um protesto. Anexamos foto dela em nossa Defesa Prévia. Não estamos tirando da nossa cabeça a violência existente. Teve naquele protesto, de mesmo modo que nos anteriores e quem levou materiais de primeiros socorros fez bem. Inclusive porque as pessoas que tem se ferido em manifestações não tem recebido indenização. Então como é que se pode falar que não é permitido ir com um capacete?

Ninguém estava portando nada ilegal. Então como é possível sugerir que pelo porte de luvas, capacetes e demais materiais de primeiros socorros as pessoas estão indo até lá para cometer um crime?

E tem gente que está sendo acusada de portar câmera fotográfica – do celular – para filmar a ação policial. Por que um sujeito cometeria um crime e denunciaria o próprio crime o filmando?  (ALBUQUERQUE, 2017)

Acerca da detenção ocorrida no dia 04 de setembro de 2016, bem como dos acontecimentos subsequentes, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo lançou, no dia 05 de janeiro de 2017, a seguinte nota, publicada no jornal UOL (2017):

O DEIC informa que o grupo detido e encaminhado ao departamento pela Polícia Militar, no dia 04 de setembro, foi autuado em flagrante e indiciado por ‘associação criminosa’, ‘formação de quadrilha ou bando’ e ‘corrupção de menores. O inquérito foi encaminhado à Promotoria, que ofereceu denúncia contra os indiciados.

Durante o registro do boletim de ocorrência foram ouvidas mais de 10 pessoas, entre policiais e testemunhas, além dos integrantes do grupo. Sobre a alegação que os detidos eram “presos políticos”, o DEIC afirma que é inverídica e que a prisão foi decisão do delegado, que seguindo os termos do Artigo 144 § 4º da Constituição Federal e da Lei 12.830/13, em seu Artigo 2º, §§ 1º, 2º, 4º, 5º e 6º, deliberou pela autuação em flagrante.

Sobre os celulares, eles configuram como prova para investigação e como tais foram legalmente apreendidos nos termos no Artigo 6º do Código de Processo Penal. Porém eles não ficaram em poder da Polícia Civil, os telefones foram encaminhados para perícia. Alguns já foram devolvidos pelo Instituto de Criminalística e restituídos aos seus donos, porém em alguns aparelhos a pericia ainda não foi concluída.

Os presos foram liberados após audiência de custódia, ou seja, mediante decisão judicial. O Deic esclarece ainda que todos os presos foram autorizados a fazerem ligações, inclusive alguns familiares e advogados estavam presentes na própria delegacia e foi permitido o contato com os detidos. A Corregedoria da Polícia Militar informa que recebeu um oficio Promotoria de Justiça da Infância e da Juventude da Capital que foi encaminhado ao Comando de Policiamento de Área Metropolitana-1. A apuração está em andamento.

Por fim, a Secretaria da Segurança Pública reitera que não houve qualquer operação conjunta com o Exército durante as manifestações em São Paulo.

O Exército, em resposta a um requerimento protocolado pelo deputado federal Ivan Valente (PSOL) em 13 de setembro cobrando esclarecimentos sobre a suposta infiltração do capitão Willian Pina Botelho, também alegou inexistir atuação conjunta entre a instituição e a polícia estadual na investigação dos jovens.

Justificou-se a presença do oficial no local em função de um decreto presidencial que a autorizava, tendo em vista que no dia 04 de setembro estava previsto para ocorrer o revezamento da tocha paraolímpica na Avenida Paulista.

O texto buscou afastar a tese de infiltração, dispondo que:

[…] A Atividade de Inteligência está orientada pela Política Nacional de Inteligência, nos termos do Decreto nº 8793/16. Dessa forma, no que concerne às ações realizadas para garantia do Estado Democrático de Direito e dos direitos fundamentais do cidadão, a Atividade de Inteligência acompanha, de acordo com o ordenamento jurídico, determinadas situações que requeiram a atenção do Poder Público, a fim de subsidiar o processo decisório, a ação governamental e a salvaguarda da sociedade e do Estado. (APUBLICA, 2016)

A justificativa formalmente apresentada de que a presença do Capitão Willian Pina Botelho se deu em função da passagem da tocha olímpica é frágil, pois os jovens não se encontravam na Avenida Paulista na ocasião dos fatos e não pretendiam acompanhar o revezamento da tocha paraolímpica. Ademais, merece ser criticada a intervenção do Exército em assuntos urbanos, pois a atuação das Forças Armadas é disciplinada na lei apenas em hipóteses em que o policiamento ostensivo não é suficiente, o que não foi verificado no caso em tela.

          Atualmente o processo, que tramita sob o rito ordinário, encontra-se em fase de apresentação de memoriais escritos pelos acusados. Foi interposta exceção de incompetência da justiça estadual, julgada improcedente e instaurou-se um conflito de competência entre os órgãos do Ministério Público estadual e Ministério Público Federal.

          Apesar da decisão proferida em audiência de custódia ter sido favorável aos acusados, a juíza Cecília Pinheiro da Fonseca efetuou o recebimento da denúncia, e até o momento não se manifestou acerca do mérito da ação. Diversas teses defensivas têm sido arguidas, como a inépcia da denúncia ante a omissão da participação de “Balta Nunes” em seu texto, a ausência de justa causa para a ação penal, a ausência de lastro probatório, a atipicidade das condutas dos manifestantes, dentre outras.  O incidente instaurado para a apuração de ato infracional dos menores envolvidos foi arquivado, de modo a corroborar a impropriedade da imputação do crime de corrupção de menores.

          Ocorre que a atuação judicial é permeada de discricionariedades, de modo que, apesar de o magistrado Rodrigo Tellini ter entendido que o caso em tela possui evidente atipicidade, no entender da juíza Cecilia Pinheiro da Fonseca, os indícios existentes se mostraram suficientes para lastrear o recebimento da denúncia, de modo que o fundamento utilizado para o relaxamento da prisão em flagrante não adquire o condão de vincular o mérito da subsequente ação penal.

                   Dessa forma, faz-se necessário expor e problematizar os incidentes de prisão destes 18 jovens, bem como o processo criminal instaurado em face deles, pois tal processo exemplifica de forma clara o fenômeno de criminalização dos movimentos populares de protesto.

  1. A criminalização das manifestações populares como um reflexo do Estado Pós-Democrático

                   Os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário lançam mão, como política de gerenciamento e controle, de diversas práticas de exceção que visam criminalizar os integrantes dos novos movimentos sociais de protesto, de modo que o Estado democrático de direito paulatinamente dá lugar a um estado de exceção permanente, permeado pelo ranço autoritário de ditadura que, mesmo após 28 anos da promulgação da Constituição de 1988, ainda se faz muito presente em nossa contemporaneidade.

Apesar de o direito de manifestação encontrar respaldo constitucional e de determinados atos de protesto terem a sua realização concretizada, tal efetividade seletiva não pode ser utilizada para camuflar a conjuntura de criminalização a qual o direito de manifestação figura como alvo.

Nesse sentido, razão assiste a Rubens Casara (2017a, p.) ao dispor que:

É justamente a permanência de alguns institutos e práticas do Estado Democrático que leva à ilusão de que ele ainda existe. É essa ilusão que dociliza aqueles que acreditam que se está no marco do Estado Democrático de Direito. […] não se trata de recorrer ocasionalmente a um instrumental autoritário em plena democracia, mas de reconhecer que o Estado não pode mais ser tido como democrático, em especial diante da forma como trata os direitos e garantias fundamentais. Não há crise. O que chamam de “crise” é, na verdade, um modo de governar pessoas.

Rubens também entende que o Poder Judiciário afastou-se da sua função de garante da democracia para produzir decisões ao gosto da opinião pública, que coincide com a opinião publicada pelos grupos econômicos que detém os meios de comunicação de massa. Ele relata ter se aprofundado a tendência de normalizar o afastamento dos direitos fundamentais, em especial daqueles que não interessam à sociedade do consumo (2017b, p. 129).

Assim, ante ao fato de o exercício do direito de manifestação compreender um dos poucos meios capazes de afrontar os princípios de concentração de riqueza e poder, o Estado tem utilizado o seu aparato repressor para intimidar manifestantes a continuarem submissos e ordeiros, sob a ameaça de serem vítimas de agressões físicas durante os atos e/ou figurarem como réus em processos que busquem imputar-lhes condutas tidas como ilícitas.

Caracteriza-se, portanto, o que o autor entende por Estado “Pós-Democrático”, que pode ser conceituado como um Estado sem limites rígidos ao exercício do poder. Nele, a democracia permanece, não mais como um conteúdo substancial e vinculante, mas como mero simulacro, um elemento discursivo apaziguador (CASARA, 2017a, p. 23).

Apesar de todo o exposto, o ativista Igor Mendes[57], em seu livro “A pequena prisão” (2017, p. 369/370), nos deixa uma importante lição:

É inegável que a vida da imensa maioria do nosso povo se parece muito com um pesadelo. As calçadas das grandes cidades brasileiras parecem dormitórios, as favelas imensas prisões a céu aberto, as prisões odiosas câmaras de tortura. […] Penso que a sociedade “livre” vai abrindo os olhos para os tormentos que a cercam como se fossem grades. Depois de 2013, a luta popular ganhou novas formas, jamais voltando à aparente calmaria anterior. A grande contribuição das Jornadas de Junho foi justamente esta: aprendemos, como povo, a dizer NÃO. Daí, para acertarmos o caminho por onde andar, não falta muito. O pesadelo tem que acabar e acabará. Nenhuma lei divina nos condena a suportá-lo eternamente.

Carregando esta esperança de um ativista que, mesmo diante de toda a arbitrariedade a ele dispensada, não se resignou e se manteve firme na luta pela construção de um “outro mundo possível”, bem como os exemplos de resistência dos 26 manifestantes presos no incidente anteriormente analisado, ousemos denunciar (e nos rebelar contra) essa conjuntura de criminalização dos movimentos sociais de protesto atualmente vigente.

  1. Referências bibliográficas

ALBUQUERQUE, Hugo. Entrevista concedida a autora do presente trabalho. São Paulo, 13 abr. 2017.

APUBLICA. Resposta a requerimento de informação. 19 dez. 2016. Disponível em: < http://apublica.org/vigilancia/wp-content/uploads/2016/12/Resposta-Ivan-Valente.pdf>. Acesso: 01 ago. 2017.,

BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 05 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 26 jun. 2015.

______. Decreto-Lei nº 3.689/41, de 03 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689.htm>. Acesso: 01 ago. 2017

______. Lei nº 8.906/94, de 04 de julho de 1994. Dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8906.htm>. Acesso: 01 ago. 2017.

CARTA CAPITAL. Temer cometeu crime de responsabilidade ao acionar Exército contra protesto, apontam juristas. 24 mai. 2017. Disponível em: < http://justificando.cartacapital.com.br/2017/05/24/temer-comenteu-crime-de-responsabilidade-ao-acionar-exercito-contra-protesto-apontam-juristas/>. Acesso: 23 abr. 2018.

CASARA. Rubens. Estado pós-democrático: neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2017.

______. Brasil em fúria: democracia, política e direito. 1 ed. Belo Horizonte: Letramento, 2017.

EL PAÍS. “Quero milhões de beijos por essa ação heroica”, disse o capitão. 13 set. 2016. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2016/09/12/politica /1473707424_99 2875.html>. Acesso: 01 ago. 2017.

______. STF vai decidir se é legal ou não exigir aviso prévio para manifestações. 02 abr. 2018. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2018/04/02/politica/1522690549_626836.html>. Acesso: 23 abr. 2018.

GOHN, Maria da Glória. Manifestações de junho de 2013 no Brasil e praças dos indignados no mundo. Petrópolis, RJ:  Vozes, 2014.

______. Manifestações e protestos no Brasil: correntes e contracorrentes na atualidade. 1 ed. São Paulo: Cortez Editora, 2017.

JINKINGS, Ivana. Por que gritamos golpe? : para entender o impeachment e a crise. André Singer… [et. al]. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2016.

MENDES, Igor. A pequena prisão. 1 ed. São Paulo: n-1 edições, 2017.

MENDONÇA, Kleber; DAEMON, Flora. Os “outros” da rua: o acontecimento discursivo das manifestações de 2013. Disponível em: <http://revistacmc.espm.br/index.php /revistacmc/article/download/676/pdf>. Acesso: 17 ago. 2015.

MINHOTO. Laurindo Dias. Protestos desengajados? In: Boletim IBCCrim. Ano 21, n. 251, outubro/2013.

ORTELLADO, Pablo. Posfácio. In: SOLANO, Esther; MANSO, Bruno Paes; NOVAES, Willian. Mascarados: a verdadeira história dos adeptos da tática Black bloc. São Paulo: Geração, 2014.

PONTE. Policiais são suspeitos de manipular provas para criminalizar manifestantes. 2016a. Disponível em: <https://ponte.org/policiais-sao-suspeitos-de-manipular-provas-para-criminalizar-manifestantes/>. Acesso 01 ago. 2017.

______.  Promotor usa vinagre como prova de crime e omite espião do Exército. 2016b. Disponível em: <https://ponte.org/balta-esqueceram-de-mim/>. Acesso: 01 ago. 2017.

______. Delegado que prendeu manifestantes pede restrições a protesto. 02 jan. 2017. Disponível em: <https://drive.google.com/file/d/0B23rvFQMnytWdTNicmRMcURGR nc/view>. Acesso: 01 ago. 2017.

SOUSA, António Francisco de. Reuniões e manifestações no Estado de direito. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

SUPLICY, Eduardo Matarazzo. Entrevista concedida a autora do presente trabalho. São Paulo, 13 abr. 2017.

UOL. Promotor aponta crime e denuncia manifestantes presos antes de protesto em SP. 04 jan. 2017. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/01/04/promotor-aponta-crime-e-denuncia-manifestantes-presos-antes-de-protesto-em-sp.htm>. Acesso 01 ago. 2017.

VIOMUNDO. “Esse tempo, felizmente, já passou”, escreve juiz sobre ‘prisão para averiguação’ da PM de Alckmin; leia a íntegra da sentença. 05 set. 2016. Disponível em: <http://www.viomundo.com.br/denuncias/juiz-considera-irregular-prisao-de-21-jovens-pela-pm-de-alckmin-e-liberta-os-vivemos-dias-tristes-para-nossa-democracia-afirmou-em-sua-decisao.html>. Acesso: 01 ago. 2017.



NOVA FACETA DA CRIMINALIZAÇÃO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS: DA CRIMINALIZAÇÃO VELADA À CRIMINALIZAÇÃO ESCANCARADA[58].

NEW FACET OF THE CRIMINALIZATION OF SOCIAL MOVEMENTS: FROM CRIMINALIZATION TO THE SCANNING CRIMINALIZATION.

 

Jefferson Lemes

André F. Domingues

Eduarda A. Domingues

Cleverton Quadros.[59]

 

Resumo: Busca-se evidenciar um novo processo de criminalização, onde a perseguição aos movimentos sociais adquire uma nova roupagem, a criminalização, que antes imperava à margem da lei, passa a ser regulada pela legislação. Observa-se uma mudança estrutural, haja vista que a criminalização dos movimentos sociais era antes secundária e, com a proposta legislativa, busca ser elevada à criminalização primária. Fará um breve levantamento de dados qualitativos pertinentes para o tema, observando atualmente o cenário brasileiro. Por fim, evidencia-se que a criminalização do modus operand histórico de diversos movimentos sociais na busca pela efetivação de direitos fundamentais, colocará essas organizações na ilegalidade. A qual permitirá ao Estado atuar de forma mais violenta, usando seu monopólio de força para violar direitos fundamentais defendidos pelo Direito Internacional.

Palavras chaves: Criminalização; movimentos sociais; luta; lei antiterrorismo; democracia.

Abstract:It seeks to highlight a new process of criminalization, where the persecution of social movements acquires a new outfit, criminalization, which previously prevailed outside the law, is now regulated by legislation. A structural change is observed, since the criminalization of social movements was previously secondary and, with the legislative proposal, seeks to be elevated to primary criminalization. It will make a brief survey of qualitative data pertinent to the theme, currently observing the Brazilian scenario. Finally, it is evident that the criminalization of the historical modus operand of various social movements in the quest for the realization of fundamental rights, will put these organizations in illegality. This will allow the State to act more violently, using its monopoly of force to violate fundamental rights defended by the International Law.

Keywords: Criminalization; social movements; fight; anti-terrorism law; democracy.

 

O uso da força para repressão de movimentos de alteração do status quo.

 

Ser o contrassenso, buscar modificar uma estrutura, não aceitar o status quo. Tais atitudes aparentemente não são praticáveis sem o fatal ônus da repressão dos grupos ocupantes da ordem ou estrutura mantenedoras e beneficiárias do status quo. A história está repleta de episódios em que quaisquer indicativos de mudança implicaram em alta reprimenda, principalmente com o uso de violência. Aparentemente não existe revolução sem incômodo,  conflito e repressão.

As explicações para tal fenômeno talvez residam na perspectiva dialética hegeliana em que toda síntese é provisória e, ao mesmo tempo,  tesis da posterior antítese. Ao passo que ao ocupar o espaço de um grupo dominante, se tem que conviver num ambiente de constantes disputas, fazendo com que sua ação para manutenção no poder colida diretamente com os anseios dos demais grupos disputantes.

Essa mesma descrição de instabilidade e constantes disputas  é possível se verificar na filosofia de  Pierre Bourdieu ao analisar a incidência do poder simbólico constatando que o campus onde se localiza o poder comporta diversos agentes com capitais políticos distintos que convivem em constantes disputas.

“esta parte de incertezas é o que dá fundamento à pluralidade das visões do mundo, ela própria ligada à pluralidade dos pontos de vista,  como o dá a todos as lutas simbólicas pela produção e imposição da visão de mundo legítima e, mais precisamente todas as estratégias cognitivas de preenchimento que produzem sentidos dos objetos do mundo social” 139[60]

No Manifesto do Partido Comunista,  é possível notar a característica da instabilidade política que perpassa a história, sendo esta considerada elemento essencial da luta entre classes distintas e antagônicas pelo poder, fator esse que  na visão dos autores constitui-se como o fio  fio condutor da “história de todas as sociedades”[61].

Ainda que soe como uma utopia contemporânea, parece razoável que  quando estas contradições são puramente resolvidas na âmbito da política, dentro do jogo democrático, utilizando os espaços de deliberação proporcionados pelo Estado, existiria  certa parcimônia da comunidade política.  Tal assertiva é meramente utópica haja vista que a visão de estado, enquanto promotor da convivência  plural e pacífica das disputas políticas, nega sua essência de ser mantenedor dos interesses fulcrais do Capitalismo, em detrimento de seus opositores.

Outro  fato que contradiz essa visão utópica é que grande parte da comunidade política não respeita as decisões tomadas nos ambientes, haja vista  os desrespeitos à decisão popular nas urnas. A afirmação, em termos ideais desta utopia,   tem  alguma relevância, pois é de fácil perceber quando o próprio “mecanismo possibilitador do debate e do jogo democrático” (Estado) nega seu próprio discurso legitimante  agindo  claramente reprimindo e usando a violência, real e simbólica, para a manutenção do status quo.

Esse é o retrato dos movimentos de luta pela terra no brasil. Todas as reivindicações com potenciais perigos à distribuição de terras no país são  reprimidas de modo fugaz pelas elites através do aparato estatal, dada a centralidade da concentração de terras capitalistas para o modelo econômico nacional, e potencial alteração do status quo mediante o atendimento das demandas distributivistas.

As ligas camponesas formadas nas décadas de 40 do século passado  são exemplo de como a repressão estatal fez-se vigorosa no controle de movimentos revolucionários. A constante tentativa de desmobilização efetuada a partir da  Era Vargas contava com tecnologias repressivas como  cooptação, criminalização e assassinatos das lideranças, conforme aponta Bernardete Wrublevski Aued , em obra componente do Livro 4 da questão agrária:

“A burguesia obtinha ótimos resultados com o emprego dessas táticas, principalmente porque espalhava o medo e a tensão; enfraquecia-se o movimento camponês, ainda mais porque a essas formas de desmobilização juntavam-se outras repressões externas, como: a) prisão de lideranças, intimação para que elas fossem ao quartel de polícia prestar esclarecimentos;
b) criação de destacamentos e quartel de polícia nas sedes dos municípios cuja mobilização era mais intensa;
c) formação e utilização do serviço de “polícia particular” – a capangagem – em quase todas as usinas e fazendas; e
d) assassinato de líderes”[62].

Outros episódios tem guarida no rol de eventos repressivos proporcionados pelo Estado brasileiro. No início dos anos 70,  vigia a  Constituição de 1969, a qual conservava de modo muito mitigado certos direitos umbilicalmente ligados à pluralidade democrática, tais como liberdade política e liberdade associativa.[63] Os eventos que sucedem a subscrição formal do texto revelam que tais insíguineas não passaram de letra morta, ao passo que a repressão consolidada nos “anos de chumbo” da ditadura civil-militar, foi a materialidade que se sobrepôs ao texto formal.

Foi durante a vigência do referido dispositivo normativo que o Estado reprimiu violentamente o Membros do Partido Comunista que se articulavam na região do Araguaia, no episódio que ficou conhecido como Guerrilha do Araguaia. Também sob a vigência do texto constitucional o Estado perseguiu membros do MR-8, culminando na morte de vários de seus integrantes, sob a justificativa de que suas ações atentava contra a segurança nacional.

Ainda que se possa imputar (erroneamente) o caráter  armado da luta desenvolvida pelos movimentos contrários ao regime militar, esse argumento não é suficiente para explicar a repressão estatal, haja vista que as atividades persecutórias tinham em mente a supressão de potenciais “subversores da ordem”, pouco importando o caráter paramilitar. Prova disso foram as constantes prisões de líderes sindicais e demais organizações políticas durante o regime ditatorial civil-militar.

O pós-regime militar sucedeu um longo período  de redemocratização cuja a plenitude fez-se por construir. A promulgação da Constituição da República em 1988 tentou assegurar que a pluralidade de idéias inerentes a um campo de disputas políticas fossem respeitadas. Assim em diversos dispositivos fica evidente a preocupação do  constituinte em maximizar e adstringir as disputas políticas dentro dos parâmetros estatais do “jogo democrático”. Logo no Art 5º temos a tutela das liberdades de manifestação política (XVI), manifestação de pensamento (IX)  associação (XVII,XVIII, XIX, XX, XXI); além dos direitos políticos terem capítulo especial dentro do rol dos direitos fundamentais (Art 14).

Apesar dessa “preocupação” da comunidade política, em sede de processo constituinte, seria completamente ilusório imaginar que a atuação estatal foi  no sentido de garantir a participação plural de grupos políticos divergentes no processo. Ao contrário, o Estado continuou usando seu monopólio “legítimo” da força para reprimir movimentos que não com posicionamentos contrários à manutenção do status quo. O episódio mais conhecido sem dúvidas foi o trágico massacre ocorrido em Eldorado dos Carajás, (que será descrito a posteriori) menos de 10 anos após a vigência do texto. Entretanto, a triste realidade agrária tem mostrado que a repressão  aos movimentos sociais mantém-se  de modo vertiginoso, contando com sempre com a participação estatal seja de modo omissivo (chancelando as  atrocidades cometidas por milícias privadas) ou de modo comissivo, quando os agentes do Estado agem diretamente e em nome das instituições para sufragar e reprimir os movimentos. O massacre ocorrido em Quedas do Iguaçu, interior do Paraná, é um trágico exemplo da atuação comissiva do Estado culminando na morte de dois trabalhadores.[64]

Essa característica de perda da legitimidade Estatal pela sua ação repressora de grupos politicamente específicos e localizados constitui-se como fenômeno percebido por alguns autores como blindagem da democracia. Tal perspectiva aponta que, como pretensamente a democracia tem uma essência ôntica plural e amplamente participativa, o capitalismo acaba atuando para blindar a democracia de seus próprios partícipes constitutivos. Assim as ações reivindicatórias de movimentos sociais respaldada pelo jogo democrático acabam sendo sufragadas e tolidas pelo processo de blindagem que geralmente conta com o uso da violência.

Tal processo, que aos grupos de maior vulnerabilidade acaba sendo sentido de modo mais radical, em algumas instituiçẽos a blindagem ocorre de modo sutil através da flexibilização de garantias constitucionais. Exemplo de blindagens sutís são trazidos no texto  “Democracia blindada, contrarreformas e luta de classes no Brasil contemporâneo”, sob autoria de  Maria Lúcia Duriguetto e  Felipe DEMIER, os quais apontam:

Foi um golpe no governo articulado por parte dos aparelhos do Estado como o Parlamento, o Judiciário  (com  aval  da  Suprema  Corte)  e  a  Polícia  Federal;  pelos  oligopólios  da  mídia,  que atuaram  abertamente  como  os  grandes  fomentadores  e  indutores  do impeachment;  e  pela atuação ativa das diferentes frações das classes dominantes e dos setores médios. Não foi um golpe  no  regime  político,  e  sim – reiteramos – no  governo,  o  que  foi  possível  pelo  próprio funcionamento da institucionalidade democrática restrita, blindada. Desse modo: SIC:

[…] o  atual  regime  democrático  blindado  se  mostra  capaz  de,  por  meio  dos  seus  próprios  procedimentos  constitutivos,  substituir  peças  políticas  incômodas  quando for  necessário  para  o  capital  sem  ter  de  alterar  o  próprio  regime  como  antes  era  o padrão  clássico  dos  golpes  políticos.  […].  É  uma  democracia  tão  blindada  que  se mostra capaz de caçar o sufrágio universal de 54,5 milhões de brasileiros sem ter que recorrer a um golpe de força (DEMIER, 2016, não paginado).[65]

Em suma, pode-se afirmar que a utilização do Estado para a repressão dos movimentos sociais, de modo omissivo ou comissivo, afronta sua função de possibilitação do jogo democrático, dando-lhe uma roupagem contraditória que nega-lhe sua própria função.

A criminalização a partir da lei antiterrorismo: a lei antiterrorismo e o discurso penal do inimigo.

Com o advento da Lei Ordinária 13.260/2016, denominada Lei Antiterrorismo, o Governo Federal Brasileiro buscou tipificar o delito de terrorismo e definir um conceito jurídico de organização terrorista. Essa lei se insere na política internacional da chamada “guerra ao terror”, promovida pelos países centrais do sistema capitalista, e deve ser compreendido como fruto do desenvolvimento político do capitalismo internacional, haja vista que busca reduzir a soberania dos Estados em detrimento das agências internacionais, gerando um estado generalizado de guerra e de exceção permanente. (TINOCO, João Vicente, 2016).

Neste cenário, a guerra não se materializa apenas em conflitos armados internacionais, mas está presente na própria política criminal interna de cada Estado, por meio de ações policiais e na elaboração de leis de exceção, pautada no Direito Penal do Inimigo, visando a neutralização daqueles que “apresentam risco à ordem social”.

A esse respeito, Zaffaroni explica que:

“Como o mal que ameaça – a emergência que se invoca – requer uma guerra, a necessidade de neutralizar o mal em ato impõe a eliminação de todos os obstáculos para a defesa frente ao inimigo poderoso, ou seja, a plena disposição do poder ilimitado por parte do dominus, que atua sempre pelo e para o bem. Levemos em conta que o dominus não é o que é porque atua sempre para o bem, mas ele atua sempre para o bem porque é o  dominus. Quando isso acontece o direito penal se identifica com as medidas administrativas de coerção direta, ou seja, as que são acionadas quando é necessário neutralizar um perigo atual ou iminente. Em outras palavras, diante da emergência, a distinção entre a coerção que a polícia exerce para deter quem tenta nos apunhalar e a que se pratica em seguida como pena perde todo o sentido: ambas passam a ter a mesma natureza discursiva”.[66]

A Lei Antiterrorismo brasileira se insere neste modelo e, visando a garantia da ordem e da paz  e, ao decretar a guerra contra o “inimigo”, acaba por violar diversos princípios gerais, políticos e constitucionais de Direito Penal.

Chamamos atenção para quem é esse inimigo contra quem é declarada a guerra. Geraldo Prado[67], ao analisar as repressões das agências estatais em relação às “Jornadas de Junho” ou simplesmente “manifestações de 2013”, chega à conclusão que a conduta adotada pelo poder público se equipara às ações de repressão política durante o regime militar brasileiro, nos anos de 60 e 70.

Os movimentos sociais, ao lutarem contra a estrutura capitalista predominante, são tidos como ameaça à ordem e, portanto, passam a ser o inimigo, alvo dos sistemas penais. Ademais, essa política repressiva é somada à ação midiática que busca deslegitimar o movimento junto à sociedade, taxando-os como sendo grupos violentos que, sob uma fachada de reivindicações, acham uma oportunidade de praticar crimes.

Para entender a instrumentalização da Lei Antiterrorismo para a criminalização dos movimentos sociais, é necessário compreender o funcionamento do sistema penal, partindo da diferenciação da criminalização primária e da criminalização secundária. Nota-se que o sistema penal, diferente do que afirma não é apolítico, antes é arbitrário e seletivo.

O sistema penal brasileiro busca tutelar os bens jurídicos e solucionar conflitos por meio da tipificação de condutas e da criminalização dos indivíduos. Assim, quando alguém rompe com a ordem vigente, praticando atos criminosos, são punidas, podendo até mesmo serem privadas de sua liberdade. Neste modelo estrutural, o poder punitivo é operacionalizado através de vários funcionários.

Em linhas gerais, dispõe o Código Penal brasileiro, em seu art. 1º, que não há crime sem lei anterior que o defina. Assim, é necessária a elaboração de uma lei penal que tipifique determinada conduta e, diante disso, estabeleça uma pena para quem a pratique. Uma vez praticado o crime, se aciona a autoridade policial que inicia uma investigação acerca do ato delituoso e, posteriormente, é ajuizada uma ação penal perante a justiça, onde será oportunizada a produção de provas diante de um juiz criminal que julgará o feito.

Verifica-se a atuação do Estado em todos os âmbitos no sistema penal: sob a forma do poder legislativo, ele editará quais são as condutas passíveis de tipificação; no exercício do poder executivo age na fase de investigação preliminar, através da administração pública e da força policial e, por fim, enquanto poder Judiciário atua ao longo do processo até a condenação definitiva do criminoso. Essas fases do processo seletivo de criminalização podem ser divididas como primárias e secundárias.

Zaffaroni preconiza que a criminalização primária “ é o ato e o efeito de sancionar uma lei penal material que incrimina ou permite a punição de certas pessoas”[68], em outras palavras, é o desenvolvimento da atividade legislativa em criar e sancionar uma lei penal. Sua natureza é deontológica e programática, pois atua no mundo do dever ser, no entanto, nem sempre a realidade dessa ação corresponde ao emanado pela lei. Em contrapartida, a criminalização secundária, segundo Zaffaroni, “é a ação punitiva exercida sobre pessoas concretas”. Essa fase se inicia após a identificação do indivíduo suspeito de praticar o ato delituoso e a instauração do procedimento criminal. A criminalização secundária reflete a realidade fática do sistema penal, ou seja, sua faceta ontológica.

Entretanto, nem todo crime praticado chega ao conhecimento das autoridades, dada a vastidão da criminalização primária. Zaffaroni ao tratar de tal temática, ressalta que nem mesmo todo crime que chega ao conhecimento dessas autoridades resultam na condenação ou prisionalização do praticante, antes, há um processo de seletividade, através da criminalização secundária, a chamada cifra oculta da criminalidade.[69]

Essa seletividade praticada vai para além das agências penais, podendo abarcar as de comunicação, que atuam num processo de estigmatização sobre os grupos criminalizados, sendo estes os grupos vulneráveis, quer seja econômica ou politicamente.[70]

 

A criminalização a partir da reforma legislativa.

O processo de criminalização de grupos ou de movimentos sociais não é recente no Brasil, o qual sempre adotou uma política de dura repressão contra sujeitos ou coletivos que se apresentassem com aspectos de insurgência. No último século, a democracia não foi a tônica das elites brasileiras, no entanto a usaram para legitimar tomadas de poder.

Concomitantemente a isso, criaram e disseminaram um discurso de legitimação das práticas autoritárias através de campanhas de marginalização e criminalização de sujeitos ou grupos tidos como inimigos da sociedade. A campanha de criminalização atuou por meio de diversos fontes: intensiva propaganda midiática e enrijecimento da política criminal.

            A campanha de criminalização midiática já estava naturalizada pela sociedade brasileira, de modo que se consolidava uma ideologia classista pautada deslegitimação das bandeiras empunhadas por diversos grupos. Enquanto os movimentos sociais enfatizam a necessidade de reforma agrária popular, saúde e educação pública, monopólio estatal dos potenciais energéticos, por exemplo, os grandes meios de comunicação enfatizam apenas e exclusivamente os problemas enfrentados pelas universidades públicas, pelo Sistema Único de Saúde e de programas de fomento da agricultura familiar.

Todavia, apontam a iniciativa privada como a solução para os problemas enfrentados pelo setor público, negligenciando as disfunções do mercado, além do mais, investem, em parceria, intensivamente na campanha do agronegócio, com o lema “agro é pop”.

            Paralelo à isso, intensificou-se a articulação no congresso nacional no sentido de resguardar os interesses do capital internacional, coligada com uma fração da elite brasileira, que pouco ou nada prima pelos interesses da nação. Essa articulação teve como base o financiamento de campanha partidária por grandes empresas, as quais conseguiram eleger grande parte dos congressistas e impor seu projeto de desenvolvimento.

Não foram apenas os empresários que investiram muito dinheiro na eleição de deputados, os grandes latifundiários também buscaram garantir seu quinhão na divisão do orçamento público. Mas não foram apenas esses grupos a comprarem a representatividade parlamentar. Outros como as igrejas também buscaram garantir algumas cadeiras.

            A partir desse contexto, emergram diversas propostas legislativas, algumas aprovadas integral ou parcialmente, com o fito de tipificar práticas de manifestação política dos movimentos sociais, as quais adquiriram proporções interessantes no regime democrático.

            Neste sentido, apresenta-se o arcabouço jurídico produzido especificamente para restringir o direito de protesto, tal direito de cunho constitucional utilizado pelos movimentos sociais para sensibilizar o governo em relação a suas pautas, visto que não possuem recursos para financiar campanhas eleitorais, vem sendo atacado por leis infraconstitucionais. Essas leis vêm restringindo o gozo desse direito de modo a inviabilizar o exercício dele, comprometendo, assim, um mandamento constitucional e a concretização de um Estado Democrático de Direito fomentado pela participação popular.

 

Reflexões sobre a preocupação em se afastar possíveis propostas punitivas: do desvio da finalidade do estado ao ataque à democracia.

 

Pode-se dizer que a repressão tratada até aqui, somada a todo o arcabouço de investidura legislativa de cunho taxativo e punitivista, não passa em branco diante dos olhos de todos lutadores ou, que sejam, observadores da real situação fática no que tange tais propostas e seus ensejos.

De modo amplo, o aparato estatal utilizado nas reprimendas contra movimentos sociais e suas pautas é, sem dúvidas, no mínimo duvidoso quanto sua verdadeira função: manter a paz social. Isso é o que se abordará a posteriori da apresentação do conceito de democracia poliárquica contido na obra “Poliarquia”[71], do pensador inglês Robert Dalh, visando evidenciar tal distorção para que, na medida do possível, se possa partir para uma proposta final.

Preliminarmente, antes de tais apontamentos, insta salientar-se o quadro repressivo que tem se dado nos últimos anos, mesmo que a título exemplificativo. Isso restará por demonstrar todos os porquês de se ter em mente a aludida preocupação e a importância de se manter esse objeto sempre em questionamento, afinal, a sociedade não pára no tempo (no sentido literal, mesmo que hajam retrocessos), e essa problemática, portanto, estará sempre presente em todos os espaços.

Como um dos acontecimentos mais simbólicos acerca da repressão violenta do estado contra movimentos sociais em solo nacional, pode-se retratar o momentos de terror vividos por trabalhadores rurais sem-terra durante o conhecido “Massacre de Eldorado dos Carajás”, ocorrido em 17 de abril de 1996 no município de Eldorado do Carajás, no sul do Pará. Este episódio deixara dezenove integrantes do Movimento dos TRabalhadores Rurais Sem Terra – MST mortos brutalmente durante operação policial autorizada pelo secretário de segurança Paulo Sette Câmara, durante o governo de Almir Gabriel, operação essa de desobstrução de rodovia, qual seja a br 155, na qual os participantes nada mais faziam que protestar contra desocupação de terras, mais precisamente da fazenda Macaxeira.[72]

Ações semelhantes têm se repetido continuamente. O estado intervindo com sua força coercitiva e violenta sobre os movimentos e classes. Tome-se como exemplo também o massacre contra os professores em 29 de abril de 2015, na cidade de Curitiba/ PR. Muitos professores se encontravam entre os milhares de servidores públicos que se manifestavam contra o confisco da poupança previdenciária pelo governador Beto Richa (PSDB), quando foram alvos da tirania da Polícia Militar que era diretamente subordinada à ele. Mais de 213 feridos, entre servidores estaduais, alunos e professores. [73]

Por conseguinte, os casos levantados são apenas fragmentos da vasta gama de acontecimentos decorrentes desse tipo de atuação. Hodiernamente, com o acesso à informação facilitado, há a possibilidade de se deparar com números espantosos em relação à criminalização dos movimentos sociais, dentre os quais, depreendem-se das seguintes matérias:

“Em 2015, o Brasil registrou o maior número de mortes por conflitos por terra dos últimos 12 anos. A Comissão Pastoral da Terra (CPT) registrou 50 assassinatos, 144 pessoas ameaçadas e 59 tentativas de homicídio em conflitos no campo. Os estados de Rondônia, Pará e Maranhão concentram 90% desses casos.

 

Somente no estado do Pará, entre 1964 e 2014 (40 anos), foram registrados 947 assassinatos de trabalhadores rurais, lideranças, religiosos e advogados. As regiões sul e sudeste do estado apresentam os índices mais altos de violência e concentram a maioria dos assassinatos de trabalhadores e lideranças rurais.”[74]

Em igual sentido:

“Entre os anos de 1985 e 2017, a CPT registrou, em todo Brasil, 1.438 casos de conflitos no campo, que geraram 1904 vítimas. Segundo o estudo, apenas 113 dos casos foram julgados, o que corresponde a 8% dos incidentes.

Nesses 32 anos, a região Norte contabiliza 658 casos com 970 vítimas. O Pará é o estado que lidera na região e no resto do país, com 466 casos e 702 vítimas. Maranhão vem em segundo lugar com 168 vítimas em 157 casos. E o estado de Rondônia em terceiro, com 147 pessoas assassinadas em 102 casos.”[75]

Todos os casos e números representam enormes contradições ao que espera-se de um Estado Democrático de Direito. Não bastasse isso, também se faz presente o aspecto da impunidade que já se encontra quase inerente às ocorrências relacionadas ao mote.

Todavia, não há que se falar em medidas razoáveis ou mesmo corretamente cabíveis, ao se tratar de criminalização. Isso é o que depreende-se de evidências claras já apontadas. Neste sentido, portanto, é factível que tais projeções legislativas não farão mais que aumentar o descaso apontado, ao invés de realmente se proteger o cidadão: a gama de tipos penais  passa a ser mais abrangente, na medida em que tal abrangência passa a legitimar a maior repressão e criminalização, culminando por fim, na mais vasta bifurcação entre aqueles que se opõe ao sistema e sua qualidade de cidadão –  passa a ser agora o criminoso por reivindicar.

Isso, inclusive, quando em pauta de discussão no plenário, o senador Lindbergh Farias (PT-RJ) tratou do PL Antiterrorismo, à época, como uma causa de enormes danos aos movimentos sociais. Segundo suas palavras, “ [O projeto] criava uma zona cinzenta que abria caminho, sim, para criminalizar ações de movimentos sociais. Essa era a nossa grande preocupação.”[76]

Por conseguinte, ao se abordar o conceito de democracia poliárquica apontado anteriormente, é necessário ter em mente que tal construção teórica é fruto dos estudos realizados por Robert Dahl acerca dois eixos por ele descritos como teoria “madisoniana” de democracia e teoria “populista”. Após seus apontamentos sobre cada uma, propõe a ideia da Poliarquia como sendo a “democracia real”, sobre a qual debruça-se a analisar seus aspectos e toda o processo de transição da democracia. Ademais, diferencia essa “democracia real” da chamada por ele de “democracia ideal”.

Por óbvio, esta pequena explanação é muitíssimo genérica em se tratando de toda a obra, mas o que interessa dizer por hora é que seus apontamentos ressaltam que a democracia efetiva é aquela na qual a participação popular se dá em todos os momentos do processo democrático e seja de pronto atendida pelo governo:

“Parto do pressuposto de que uma característica-chave da democracia é a contínua responsabilidade do governo frente às preferências de seus cidadãos, considerados como politicamente iguais. […] Neste livro, gostaria de reservar o termo “democracia” para um sistema político que tenha, como uma de suas características, a qualidade de ser inteiramente, ou quase inteiramente, responsivo a todos os seus cidadãos.” (DAHL, pág. 25-26)

 

Assim sendo, ele vai além, destacando que certas garantias devem ser dadas plenamente pelos governos aos cidadãos inseridos em sistemas democráticos, sendo essas:

“1- Liberdade de formar e aderir a organizações. 2- Liberdade de expressão. 3- Direito de voto. 4- Elegibilidade para cargos públicos. 5-Direito de líderes políticos disputarem apoio/Direito de líderes políticos disputarem votos.6. Fontes alternativas de informação 7- Eleições livres e idôneas. 8-Instituições para fazer com que as políticas governamentais dependam de eleições e de outras manifestações de preferência.” (DAHL, p. 27).

Em outras palavras, a democracia corresponde à junção da capacidade de organização, liberdade e intervenção do povo nos governos, que em contrapartida, se figuram como mantenedores/garantidores dessas capacidades. Ademais, uma vez que haja maior capacidade de intervenção do povo no governo, eis que maior será sua experiência com a democracia em si.

Tendo como base todo o explanado, já se é passível de averiguação o quanto os processos de criminalização dos movimentos sociais acarretam no malferimento de morte à ordem democrática: não fosse suficiente as atrocidades que se legitimam com os discursos e taxatividades decorrentes de quaisquer novas propostas punitivas, os cidadãos são incriminados por exercerem a liberdade de expressão e organização que, além de serem constitucionalmente garantidos, são os baluartes do sistema político adotado.

Assim, é factível que sim, se tem muitos motivos para que se preocupe e se confronte tais processos legislativos/taxativos/punitivos dos movimentos sociais. Além da legitimação para que os interesses de determinadas classes sejam velados pelo estado através do uso de violência e força, é incontroversa a degradação do Estado Democrático de Direito em face daqueles que se opõe buscando melhores condições, por meios conquistados através de muitas lutas e garantidos na Carta Maior de nosso país. O que se denota é a exclusão destes da possibilidade de interação com a real democracia, ainda que nosso sistema ainda não seja o ideal.

Conclusão

 

Esse processo repressivo, sobretudo com a participação direta do Estado, resta como qualidade inerente ao atendimento e manutenção da ordem capitalista. Não se pode desvincular, sobretudo, essa conjuntura de criminalização institucionalizada do ataque à democracia e os direitos fundamentais.

O modus operand de se criminalizar os movimentos sociais via leis infraconstitucionais resta por acalcar a busca por direitos na ilegalidade, o que por si só é suficiente para que o estado exerça sua repressão violenta sem a necessidade de prestar conta de seus atos. Em tal ponto, não há dúvidas do júbilo por parte da classe dominante. Tal hipótese é a caracterizadora da dita criminalização escancarada, a qual foi objeto do presente escrito. Eis que não se buscou citá-la, mas defini-la explanadamente de modo a possibilitar o entendimento amplo da problemática abordada.

Esse parece ser ônus de qualquer grupo político que busca defender seus ideais na sociedade hodierna. É mister salientar que, no atual contexto brasileiro, infelizmente não se vislumbra que tal situação seja tão brevemente sanada, de modo que resta aos movimentos sociais permanecerem em resistência na defesa de seus direitos e na luta pelo não retrocesso.

 

Bibliografias

BOURDIEU__Pierre. O poder simbólico. Bertan- Lisboa, 1989. Trad Fernando Tomaz. pag 139

Marx, Karl, and Friedrich Engels. Manifesto Do Partido Comunista. Global, 1987., p 12

STEDILE, João Pedro. A questão agrária no Brasil:  História e natureza das Ligas Camponesas – 1954-1964SIC AUED Bernardete Wrublevski. A vitória dos vencidos (Partido Comunista Brasileiro e Ligas Camponesas – 1955-1964). Florianópolis: editora da uFsC, 1986. editado conforme texto original – p. 51-71; 123-125; 135-152.

Notícia. Terra de Direitos. Disponível em: <http://terradedireitos.org.br/casos-emblematicos/massacre-de-quedas-do-iguacu/15787> Acessado em março de 2018.

DURIGUETTO, Maria Lúcia.  DEMIER, Felipe. Democracia blindada, contrarreformas e luta de classes no Brasil contemporâneo. Argum., Vitória, v. 9, n. 2, p. 8-19, maio./ago. 2017.

ZAFFARONI. Eugênio Raul. O inimigo no Direito Penal. Tradução Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan e Instituto Carioca de Criminologia, 2007, p. 84.

PRADO, Geraldo, et al. Aspectos contemporâneos da criminalização dos movimentos sociais no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Criminais, número 112, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2015. p. 246.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl, BATISTA, Nilo, et al. Direito Penal Brasileiro. 4ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011. p. 43.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl, BATISTA, Nilo, et al. Direito Penal Brasileiro. 4ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011. p. 44.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl, BATISTA, Nilo, et al. Direito Penal Brasileiro. 4ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011. p. 46.

Dohl, Robert. Poliarquia. Editora Edusp. págs. 25-27

Notícia. Memorial da Democracia. Disponível em: <http://memorialdademocracia.com.br/card/policia-massacra-em-eldorado-dos-carajas> Acessado em março de 2018.

Notícia. Blog do Ismael. Disponível em: <https://www.esmaelmorais.com.br/2018/04/abril-3-anos-do-massacre-dos-professores-no-parana/> Acessado em abril de 2018.

Notícia. Correio do Estado. Disponível em: <https://www.correiodoestado.com.br/brasilmundo/levantamento-mostra-alta-no-numero-de-assassinatos-no-campo/325964/> Acessado em março de 2018.

Notícia. Senado Notícias. Disponível em:<https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2015/10/20/lindbergh-diz-que-projeto-de-lei-antiterrorismo-pode-criminalizar-movimentos-sociais>.Acessado em março de 2018.

Dohl, Robert. Poliarquia. Editora Edusp. págs. 25-26

Dohl, Robert. Poliarquia. Editora Edusp. pág. 27.

TINOCO, João Vicente. A Lei Antiterrorismo e a Política de Criminalização dos Movimentos Sociais. Trabalho de conclusão de curso da Universidade Católica do Rio De Janeiro, 2016.


Notas: 

[1] apresentado ao Espaço de Discussão 8- Criminologia Crítica e Movimentos Sociais do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[2] Graduanda em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto- USP. Assessora Jurídica Popular no Núcleo de Assessoria Jurídica Popular de Ribeirão Preto- NAJURP.

[3] Segundo Bakhtin, polifonia vem a ser a multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis, sendo essas vozes os próprios sujeitos desse discurso. Ainda sobre polifonia, ensina o autor que a enunciação vem a ser, essencialmente, polifônica, uma vez que ela se inscreve em um contexto social histórico e ideológico. Partindo dai, ele conclui que a enunciação vai compor uma rede complexa de interrelações dialógicas do discurso por que vai se ligar a enunciações pretéritas e futuras que constroem um movimento constante que faz circular a produção de conhecimento. (BAKHTIN, 2000: 4-5) (BAKHTIN,2010. p)

[4] Segundo Bakhtin, polifonia vem a ser a multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis, sendo essas vozes os próprios sujeitos desse discurso. Ainda sobre polifonia, ensina o autor que a enunciação vem a ser, essencialmente, polifônica, uma vez que ela se inscreve em um contexto social histórico e ideológico. Partindo dai, ele conclui que a enunciação vai compor uma rede complexa de interrelações dialógicas do discurso por que vai se ligar a enunciações pretéritas e futuras que constroem um movimento constante que faz circular a produção de conhecimento. (BAKHTIN, 2000: 4-5) (BAKHTIN,2010. p)

[5] Se valendo do método positivo, sobretudo usando estatística, Lombroso defendeu a ideia de criminoso nato. Explicou a delinquência, por meio da ideia do atavismo, ou seja, do aparecimento acidental de características ancestrais desaparecidas no processo de evolução. Em sua obra, o autor apontou o atavismo, não apenas em homens negros, mas também em homens brancos e sobre esses últimos, (talvez, por enviesamento) não forneceu maiores informações.  O trabalho de Lombroso teve como laboratório prisões e manicômios do sul da Itália, ou seja, instituições que já tinham como clientela preferencial negros e pobres. Lombroso analisou, ainda, características físicas que supostamente aproximariam negros dos povos ancestrais na linha evolutiva, sem, contudo, considerar características fenotípicas que aproximam brancos dos macacos e, ao mesmo tempo, distanciam os negros destes.

[6] Frenealogia é a concepção teórica que afirma a personalidade, o caráter e uma suposta predisposição para a criminalidade podem ser determinadas pela anatomia do crânio. A maioria desses estudos foram realizados no cárcere, o que resultou na consolidação na ideia da inferioridade dos negros e negras (GOÉS,2015)

[7] Thula Pires (2015) aponta que em síntese, este modelo de criminoso desenvolvido pela criminologia positivista fora baseado em fatores fenótipos, pela inadequação a disciplina fabril ou até mesmo por indisciplina política

[8] Teoria também chamada de  Interacionismo Simbólico,  Teoria do etiquetamento ou da  Rotulação.

[9] Se por um lado, o racismo foi criminalizado e, isto está cravado na Carta Constitucional de 1988, por outro, temas como demarcação de terra quilombola, a obrigatoriedade do ensino da história e cultura de populações negras e criação de políticas afirmativas só vieram a aparecer no inicio dos anos 2000. Assim vemos, que de todas as reivindicações levadas a constituinte de 1987/88, por representantes do Movimento Negro Unificado (MNU) aquelas que efetivamente tinham potencial transformador para a vida da população negra foram implementadas muito posteriormente.

[10] Em uma entrevista o professor Geraldo Prado, seguido por tantos outros criminólogos, diz não acreditar que o direito penal possa trazer emancipação.  Para ele o embate na esfera penal não é eficiente nem adequado. Nesse sentido também ensina Vera Maligutti , também em entrevista feita a Thula Pires, que o perigo consistiria que demandas criminalizantes vão fortalecer a ideia do controle pelo medo. No que concerne ao movimento negro, muitos ativistas têm absorvido as criticas dessa vertente criminológica, como exemplo, Hélio Silva Jr, em 2001, questionou não saber se ele e outros ativistas realmente deveriam ter pedido a criminalização do racismo na constituinte de 1987/88.

[11] Essa autora destaca ainda que o movimento feminista foi o que mais se elaborou a utilização da simbologia do direito penal. Nesse sentido também escreveu Nilo Batista em 2008, ser compreensível o movimento feminista se utilizar e ter esperanças no poder punitivo quando pensadas as opressões privadas com legitimidade pública.

[12] Entendendo mesmo assim, o tratamento dado aos crimes de racismo pelos magistrados brasileiros que tendem a tratar casos de falas racistas como meros “desabafos”. Sobre esse assunto buscar a tese de doutorado de Thula Pires ( item 5.3, capítulo 5)

[13] Mesmo assim, é importante a crítica que aponta a ineficácia da criminalização do racismo na punição de suas práticas, bem como a estratégia do Estado de se proteger, por meio de tal criminalização.  Ou seja, criminaliza o racismo a fim de afastar a argumentação de que é um Estado racializado, em que racismo é aceito e reafirmado por suas práticas institucionais. (FLAUZINA, 2006, p. 40).

[14] A branquitude é um lugar de privilégios simbólicos, subjetivos, objetivo, isto é, materiais palpáveis que colaboram para construção social e reprodução do preconceito racial, discriminação racial “injusta” e racismo. Sobre o assunto consultar  http://www.geledes.org.br/definicoes-sobre-branquitude/#gs.XEetbt0.

[15] Pode-se citar ainda Evandro Piza, professor branco e apoiador como importante teórico que tem trazido novas abordagens para a criminologia crítica no Brasil.

[16]http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/genocidio.htm

[17] Trabalho apresentado ao Espaço de Discussão 8- Criminologia Crítica e Movimentos Sociais do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[18] Advogada, graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FDRP/USP). Natural de São Paulo, São Paulo, Brasil.

[19]Categoria elaborada por Florestan Fernandes na obra A inserção do negro na sociedade de classe, vol. 1, 5. Ed, 2008.

[20]Thula Rafaela de Oliveira Pires baseia-se em Ângela Paiva (2006), página 91, para dizer que o modelo escravista brasileiro e o padrão de desvantagens no acesso a políticas públicas impressos pela primeira república retiraram dos negros as possibilidades de se tornarem efetivamente cidadãos. As poucas exceções que conseguiam alguma ascensão social, através de um sistema de patronagem, “pagavam um alto preço” ao negarem sua cor de pele, pois era preciso negar uma possível identidade negra, se tornando “preto de alma branca”, o que “ainda era útil para alimentar o mito da nossa democracia racial”. PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Criminalização do Racismo entre política de reconhecimento e meio de legitimação do controle social dos não reconhecidos, 2016, p. 91.

[21]Assim como no Brasil, a criminologia positivista teve ampla aceitação no âmbito jurídico e social, nos EUA, o mesmo aconteceu com a teoria da color blind. Ambas se demonstraram inadequadas para lidar com a questão racial eminente em sociedades racialmente estratificadas, culturalmente diversas e economicamente divididas.

[22] Grande parte da produção intelectual efetivada no âmbito dos estudos pós-coloniais é decorrente do grupo de estudos subalternos, o qual Spivak se vincula, que concentra boa parte das reflexões na história de luta e emancipação dos povos que viviam em colônias na Índia, África e Caribe. O principal objeto de investigação dos estudos pós-coloniais é a literatura escrita durante e após a ocupação colonial e a demonstração de como as cidades coloniais foram representadas nestas obras. Analisam os efeitos políticos, sócias e, principalmente, os efeitos identitários que estes países colonizados sofreram mediante o processo de colonização e descolonização. A partir dessa percepção, as narrativas pós-coloniais vislumbram a construção de novos valores para se pensar identidade do colonizado, minimizando as influências das nações imperialistas.

[23]Pauto-me nas ideias de Iris Young.“Assim, redistribuição e reconhecimento não apenas são categorias exclusivas, mas, conjuntamente, compreendem tudo o que é relevante para opressão e injustiça.”

[24]De acordo com o Censo do Poder Judiciário brasileiro realizado em 2013 pelo Conselho Naciona l de Justiça (CNJ), o percentual de mulheres na Magistratura brasileira, nos últimos vinte anos, passou por um aumento, mas não de forma linear. Entre o período de 1955 e 1981, eram 78,6% de homens e 21,4% de mulheres na carreira. Já entre 2012 e 2013, o percentual de mulheres é de 35,9% frente a 64,1% de homens. Essa diferença foi um pouco menor no período de 2002 a 2011, onde havia 38,9% de mulheres e 61,1% de homens (CNJ, 2014). Revista Direito e Praxis.

[25]Em 2015, a USP atingiu o percentual máximo de 32,1% de alunos pretos, pardos e indígenas (PPI) averiguado nos últimos dez anos em relação aos ingressantes que estudaram no ensino médio em escolas públicas. Esses números são reduzidos, porque a USP optou por não aderir ao sistema de reserva de vagas par a alunos negros, trabalhado apenas com o Programa de Inclusão Social da USP (Inclusp) e com a entrada no Sistema de Seleção Unificada (SISU). Publicação da Superintendência da Comunicação Social. Jornal da USP Especial. Universidade de São Paulo, 2016.

[26]Professora do curso de Gestão de Políticas Públicas da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH); do programa de pós-graduação em Direitos Humanos (Faculdade de Direito); do programa de pós-graduação Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas) e é pesquisadora do Diversitas – Núcleo de Estudos das Diversidades, Intolerâncias e Conflitos, todos na Universidade de São Paulo-USP.

[27]De acordo com Honneth, autorrespeito é o valor que o indivíduo dá a si mesmo, construído a partir do valor que a sociedade também lhe oferece por meio do reconhecimento de direitos, da criação de condições de formação da autoestima e do reconhecimento social expresso por meio da estima social e da solidariedade. Acreditamos que, em sociedades racistas, não só é negado aos negros o direito à autoestima e aos direitos sociais partilhados pelos cidadãos como também são criadas condições nas quais não podem ser estimados ou partilharem da solidariedade e da estima social. Entendemos que a denúncia do racismo é um passo em direção da construção do autorrespeito. (HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento, São Paulo: Editora 34, 2003).

[28] Trabalho apresentado ao Espaço de Discussão 8 – Criminologia Crítica e Movimentos Sociais do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[29] Doutorando em Direito Penal pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mestre em Direito Penal pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

[30] Algumas palavras sobre a relação teoria-empiria. Tem crescido no Brasil um movimento reivindicando a produção empírica no campo do Direito. A pressão, positiva para a revitalização da sociologia do direito e, portanto, também da criminologia, vem acompanhada de algumas armadilhas nas quais eventualmente se pode cair. A mais evidente é o empirismo, a crença que a essência dos fenômenos se confude com sua aparência. Outra armadilha é o fetiche pelo método que muitas vezes acaba escamoteando a teoria. Entendo que o empírico não é nada mais que as relações sociais concretas a que nos referimos. O trabalho científico, no entanto, é um trabalho essencialmente teórico, na medida que opera, necessariamente, através de abstrações que mediam essas relações. A teoria deve sempre se referir ao empírico, e investigações empíricas são necessárias para aferir a validade da teoria, para não recairmos no idealismo que flutua sobre a realidade. No entanto, o trabalhar com a operacionalização de hipóteses teoricamente bem construídas aparece como fundamental para um desenvolvimento mais profundo e, portanto, mais concreto, da nossa realidade

[31] talvez seja por isso que Massimo Pavarini (2002, p. 171-172) conclui não ser possível, na sociedade burguesa, qualquer criminologia que não aquela burguesa. O bom criminólogo, ao final, terá sempre que lidar com a má consciência de ser colaborador da ordem.

[32] Um dos êxitos da sociologia do desvio de Durkheim, principalmente em O suicídio, foi abster-se de lidar com perspectivas individuais, microssociológiccas. A sua preocupação sempre foi com o desvio como fenômeno amplo, buscando explicar as suas variações estatíticas ao invés do desvio particular. Ainda sim, não deixou de basear-se na distinção entre normal e patológico. Grandes níveis de desvios indicariam uma situação de anomia, portanto patológica, cujo controle científico se dá nos mesmos termos da epidemiologia.

[33] Assim como na criminologia vulgar (BATISTA, 2016), o positivismo também aparece como uma permanência na vitimologia vulgar, em especial quando as vítimas não são, a priori, consideradas dignas de defesa. Os discursos sobre a vítima de violência de gênero, por exemplo, muitas vezes acabam responsabilizando a mulher pela violência sofrida (“mulher de malandro gosta de apanhar”, “com essas roupas estava querendo”, etc.)

[34] Adorno (1996, p. 156-157) demonstra que uma das principais diferenças entre uma abordagem positivista e uma abordagem dialética em sociologia é a forma que as leis científicas assumem em uma ou outra abordagem. No positivismo, as leis sociais se dão na fórmula “sempre que… então…”, isto é, preocupam-se em demonstrar os fatores causais dos fenômenos. Numa perspectiva dialética, no entanto, a fórmula é “dado que… é preciso…” o que implica em demonstrar a necessidade de um determinado fenômeno dentro da complexa processualidade social.

[35] Nilo Batista (2006) demonstra como ocorreu a simbiose do poder punitivo público com o poder punitivo privado escravista-senhorial no momento de instituição da pena pública no Brasil.

[36] Mortes que podem afetar interesses comerciais de grandes empresas, como as ocorridas semanalmente nos trilhos da Supervia, no Rio de Janeiro, costuma ser sumariamente ignoradas, ver: https://esquerdaonline.com.br/2017/06/28/vidas-negras-importam-quanto-vale-uma-vida-para-supervia/

[37] As instituições do sistema de justiça criminal possuem, desde a sua origem, uma marca racializada. Uma série de leis criminais brasileiras nunca se pretenderam universais, mas voltadas para um grupo social específico: os negros. Foi assim com uma série de instituições moldadas a partir da contravenção da vadiagem (ROORDA, 2017). A mais recente legislação de drogas, de forma semelhante, insistiu no tratamento amplamente desigual entre consumidores e vendedores de drogas ilícitas, isto sem poder afirmar desconhecer quem o sistema de justiça criminal ê como “traficante” e quem ele lê como “usuário” (BATISTA, 2003).

[38] https://brasil.elpais.com/brasil/2015/08/17/opinion/1439819813_934995.html

[39] https://theintercept.com/2018/04/16/operacao-policial-contra-milicianos/

[40] Em referência à citação feita por David Garland, quando utiliza em sua crítica as seguintes palavras: “Se o crime não é senão uma questão de escolha racional, então podemos “compreender menos e condenar mais”, como o Primeiro-Ministro John Major ressaltava em 1933. GARLAND, David. “As contradições da “sociedade punitiva”: o caso britânico”. In: Ver. Sociol.Polít., Curitiba, 13, nov. 1999, p.65.

[41] Em referência à obra de Vera Regina Pereira de Andrade, intitulada “Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão”.

[42] Em referência à obra de Howard Zehr, intitulada “Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça”.

[43] Mestranda em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Pós-Graduada em Direito Penal e Criminologia pela Uninter (2016). Graduada em Direito pela Universidade Federal do Ceará (2010). Pesquisadora do Centro de Estudos em Desigualdade e Discriminação (CEDD-UnB). Defensora Píblica do Estado do Maranhão.

[44] Zaffaroni esclarece que o que chama de “causalidade mágica” não seria simplesmente a ideia de vingança, mas sim a “ideia de causalidade especial”, usada para canalizar a responsabilização por todo o transtorno contra determinados grupos humanos. Segundo o autor, essa característica da criminologia midiática não mudaria, e o que mudariam seriam a tecnologia comunicacional e os “bodes expiatórios” (ZAFFARONI, 2013, p.194).

[45]Infopen, dez/2014; Senasp; Secretarias de Segurança Pública; IBGE, 2014. Disponível em http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/infopen_dez14.pdf

[46] Dados do sistema prisional referentes a 31/12/2014

[47] Referência ao primeiro capítulo do livro “A cultura do controle – crime e ordem na sociedade contemporânea”, de David Garland.

[48] Trabalho apresentado ao Espaço de Discussão Criminologia Crítica Movimentos Sociais do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[49] Mestrando em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Especialista em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Membro do Grupo Clandestino de Estudos em Controle, Cidade e Prisões.

[50] Emblemático o slogan “crack é suicídio” de um programa religioso de reabilitação que parte da mitologia negativa e da lógica de combate para o tratamento do usuário na região metropolitana da cidade de Salvador.

[51] <https://conversandocomnery.wordpress.com/2010/09/14/crack-e-cadeia-ou-caixao-%E2%80%93-uma-proposicao-indecente/> Acesso em 24.04.2018.

[52] Segundo Katarina Volcov e Maria da Penha Vasconcellos (2013, p.101) “de acordo com o Relatório de Gestão do exercício 2012 da Secretaria de Comunicação da Presidência da República, os temas prioritários escolhidos pelo governo foram: educação; saúde; segurança; Rio +20; Brasil Sem Miséria; economia; PAC Minha Casa Minha Vida; copa e olimpíadas; inovação, ciência e tecnologia; desenvolvimento agrário e agropecuário; cidadania e pessoa com deficiência e, por fim, crack”.

[53] Trabalho apresentado ao Espaço de Discussão 8 – Criminologia crítica e movimentos sociais do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[54] Bacharela em Direito pela Faculdade de Direito de Franca (FDF), mestranda em Direito pela Universidade Júlio Mesquita Filho (UNESP), pesquisadora associada ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).

[55] Atualmente tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) o Recurso Extraordinário 806339 / SE, que discute questões como a necessidade do aviso prévio ser formal, se ele deve ser entregue a alguma autoridade específica, se será fixado determinado prazo e qual deve ser o conteúdo desta notificação (EL PAÍS, 2018).

[56][56] A autora corrobora o entendimento exposto por Ivana Jinkings (2016, p.12), que enxerga o processo de impeachment da ex-presidenta Dilma como um verdadeiro golpe de Estado, a medida que ela, legitimamente eleita, foi retirada da presidência por um processo político baseado em leituras elásticas da Constituição e artimanhas jurídicas de diversos matizes.

[57] Igor Mendes é graduando em Geografia pela UERJ, ativista e um dos 23 processados, no Rio de Janeiro, por participar de manifestações durante a Copa do Mundo de 2014. Sua prisão preventiva fora decretada por desrespeitar medida cautelar que proibia a sua participação em novas manifestações e protestos. Encaminhado para o complexo penitenciário de Bangu, Igor relata no livro “A pequena prisão” as experiências por ele vividas no cárcere.

[58] Trabalho apresentado ao Espaço de Discussão 8 – Criminologia crítica e movimentos sociais do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[59] Autor e coautores, respectivamente. Graduandos da Universidade Federal do Paraná-UFPR.

[60] BOURDIEU__Pierre. O poder simbólico.Bertan- Lisboa, 1989. Trad Fernando Tomaz. pag 139

[61] Marx, Karl, and Friedrich Engels. Manifesto Do Partido Comunista. Global, 1987., p 12

[62] STEDILE, João Pedro. A questão agrária no Brasil:  História e natureza das Ligas Camponesas – 1954-1964- SIC AUED Bernardete Wrublevski. A vitória dos vencidos (Partido Comunista Brasileiro e Ligas Camponesas – 1955-1964). Florianópolis: editora da uFsC, 1986. editado conforme texto original – p. 51-71; 123-125; 135-152. texto gentilmente cedido pela autora para esta publicação.

[63]Art. 153. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos têrmos seguintes:

  • 8º É livre a manifestação de pensamento, de convicção política ou filosófica, bem como a prestação de informação independentemente de censura, salvo quanto a diversões e espetáculos públicos, respondendo cada um, nos têrmos da lei, pelos abusos que cometer. É assegurado o direito de resposta. A publicação de livros, jornais e periódicos não depende de licença da autoridade. Não serão, porém, toleradas a propaganda de guerra, de subversão da ordem ou de preconceitos de religião, de raça ou de classe, e as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes
    § 28. É assegurada a liberdade de associação para os fins lícitos. Nenhuma associação poderá ser dissolvida, senão em virtude de decisão judicial

[64]Notícia. Terra de Direitos. Disponível em :

 http://terradedireitos.org.br/casos-emblematicos/massacre-de-quedas-do-iguacu/15787

[65] DURIGUETTO, Maria Lúcia.  DEMIER, Felipe. Democracia blindada, contrarreformas e luta de classes no Brasil contemporâneo. Argum., Vitória, v. 9, n. 2, p. 8-19, maio./ago. 2017.

[66] ZAFFARONI. Eugênio Raul. O inimigo no Direito Penal. Tradução Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan e Instituto Carioca de Criminologia, 2007, p. 84.

[67] PRADO, Geraldo, et al. Aspectos contemporâneos da criminalização dos movimentos sociais no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Criminais, número 112, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2015. p. 246.

[68] 9 ZAFFARONI, Eugenio Raúl, BATISTA, Nilo, et al. Direito Penal Brasileiro. 4ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011. p. 43.

[69] ZAFFARONI, Eugenio Raúl, BATISTA, Nilo, et al. Direito Penal Brasileiro. 4ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011. p. 44.

[70] 5 ZAFFARONI, Eugenio Raúl, BATISTA, Nilo, et al. Direito Penal Brasileiro. 4ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011. p. 46.

[71] POLIARQUIA, de Robert A.Dahl.

[72] Notícia. Memorial da Democracia. Disponível em:

http://memorialdademocracia.com.br/card/policia-massacra-em-eldorado-dos-carajas

[73] Notícia. Blogdo Ismael. Disponível em:

 

[74] Notícia.Anistia Internacional Notícias.Disponível em:

https://anistia.org.br/noticias/massacre-de-eldorado-dos-carajas-20-anos-de-impunidade-e-violencia-campo/

[75] Notícia. Correio do Estado. Disponível em:

https://www.correiodoestado.com.br/brasilmundo/levantamento-mostra-alta-no-numero-de-assassinatos-no-campo/325964/

[76] Senado Notícias – Lindbergh diz que projeto de lei antiterrorismo pode criminalizar movimentos sociais.