JUSTIÇA MILITAR E GARANTIA DA LEI DA ORDEM (GLO): EMPREGO CONTRA CIVIS POBRES

Resumo

Os militares exercem forte influência na vida política brasileira desde a Proclamação da República, em 1889. A Justiça Militar, que deveria julgar exclusivamente militares em tempo de paz, ao longo da História do Brasil tem sido empregada para condenar civis, inclusive por razões de perseguição política, a exemplo do que ocorreu nas ditaduras brasileiras (1937-1945 e 1964-1985).
Nos últimos anos tem sido constatada a condenação de civis moradores de comunidades faveladas do Rio de Janeiro por parte da Justiça Militar, em razão de alegada prática de crimes de desobediência e desacato no curso de operações de garantia da lei e da ordem.
O objetivo deste artigo é analisar o processamento de civis (na maioria pobres, negros e favelados no Rio de Janeiro), por parte da Justiça militar, em operações de cumprimento da Lei e da Ordem, por enquadramento nos crimes de desobediência e desacato praticados contra militares.
A investigação ocorreu por meio de análise qualitativa de acórdãos do Superior Tribunal Militar, entre os anos de 2011 a 2019, relativos a condenações por desobediência e desacato, no curso de operações de Garantia da Lei e da Ordem empregadas contra moradores de comunidades faveladas do Rio de Janeiro, que se insurgiram contra a atuação policial das Forças Armadas.

Abstract

The military has had a strong influence on Brazilian political life since the proclamation of the Republic in 1889. Military Justice, which should judge exclusively military personnel in peacetime, throughout Brazil's history has been used to condemn civilians, including for reasons of political persecution, which had happened in the Brazilian dictatorships (1937-1945 e 1964-1985).
In recent years there has been the condemnation of civilians, residents of favela communities in Rio de Janeiro, by the Military Justice as result of alleged crimes of disobedience and contempt in the course of law and order guarantee operations.
The purpose of this article is to analyze the prosecution by the military justice of civilians (mostly poor, black and slum dwellers in Rio de Janeiro), in the course of law and order compliance operations, for framing the crimes of disobedience and contempt practiced against military people.
The investigation took place through qualitative analysis of trials at the Superior Military Court, between the years 2011 to 2019, which resulted in condemnations for disobedience and contempt, during operations for Guarantee of Law and Order used against residents of slum communities in Rio de Janeiro, who rose up against the armed forces' police action.

Keywords: Military Justice. Colonialism. Subalternity. GLO. Guarantee of law and order. Resistance and contempt.

Artigo

JUSTIÇA MILITAR E GARANTIA DA LEI DA ORDEM (GLO): EMPREGO CONTRA CIVIS POBRES

Autor: Jorge Rubem Folena de Oliveira[1]

Sumário: 1. Introdução; 2. Julgamento de civis pela Justiça Militar, um traço de colonialismo e subalternidade; 3. Garantia da Lei e da Ordem (GLO); 3.1. As origens constitucionais da GLO; 3.2. Emprego da GLO; 4 Justiça Militar e julgamento de civis; 5. STM e o julgamento de civis por desobediência e desacato, em GLO, no Rio de Janeiro.

Resumo

 Os militares exercem forte influência na vida política brasileira desde a Proclamação da República, em 1889. A Justiça Militar, que deveria julgar exclusivamente militares em tempo de paz, ao longo da História do Brasil tem sido empregada para condenar civis, inclusive por razões de perseguição política, a exemplo do que ocorreu nas ditaduras brasileiras (1937-1945 e 1964-1985).

Nos últimos anos tem sido constatada a condenação de civis moradores de comunidades faveladas do Rio de Janeiro por parte da Justiça Militar, em razão de alegada prática de crimes de desobediência e desacato no curso de operações de garantia da lei e da ordem.

O objetivo deste artigo é analisar o processamento de civis (na maioria pobres, negros e favelados no Rio de Janeiro), por parte da Justiça militar, em operações de cumprimento da Lei e da Ordem, por enquadramento nos crimes de desobediência e desacato praticados contra militares.

A investigação ocorreu por meio de análise qualitativa de acórdãos do Superior Tribunal Militar, entre os anos de 2011 a 2019, relativos a condenações por desobediência e desacato, no curso de operações de Garantia da Lei e da Ordem empregadas contra moradores de comunidades faveladas do Rio de Janeiro, que se insurgiram contra a atuação policial das Forças Armadas.

Palavras-chaves: Justiça Militar. Colonialismo. Subalternidade. GLO. Garantia da lei e da ordem. Resistência e Desacato.

Abstract

The military has had a strong influence on Brazilian political life since the proclamation of the Republic in 1889. Military Justice, which should judge exclusively military personnel in peacetime, throughout Brazil’s history has been used to condemn civilians, including for reasons of political persecution, which had happened in the Brazilian dictatorships (1937-1945 e 1964-1985).

In recent years there has been the condemnation of civilians, residents of favela communities in Rio de Janeiro, by the Military Justice as result of alleged crimes of disobedience and contempt in the course of law and order guarantee operations.

The purpose of this article is to analyze the prosecution by the military justice of civilians (mostly poor, black and slum dwellers in Rio de Janeiro), in the course of law and order compliance operations, for framing the crimes of disobedience and contempt practiced against military people.

The investigation took place through qualitative analysis of trials at the Superior Military Court, between the years 2011 to 2019, which resulted in condemnations for disobedience and contempt, during operations for Guarantee of Law and Order used against residents of slum communities in Rio de Janeiro, who rose up against the armed forces’ police action.

Keywords: Military Justice. Colonialism. Subalternity. GLO. Guarantee of law and order. Resistance and contempt.

 

 

  1. Introdução

            Existe uma infeliz tradição latino-americana pela qual os militares têm colaborado de forma direta ou indireta em golpes de Estado e participado ativamente em regimes antidemocráticos, como visto em 2019 na Bolívia, quando os militares se omitiram de assegurar o regime constitucional e abriram caminho para o afastamento do presidente legitimamente eleito antes do término do seu mandato.

Observamos também, em abril de 2018, quando o Comandante do Exército Brasileiro, à época o General Eduardo Villas Boas, por meio da sua conta no Twitter, ameaçou o Supremo Tribunal Federal, caso concedesse ordem de habeas corpus em favor do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva e  lhe assegurasse o seu direito constitucional de presunção de inocência naquela oportunidade para participar da eleição presidencial daquele ano, cujo vencedor foi Jair Bolsonaro, representante da extrema direita apoiado pelos militares.

Em muitos países do continente sul-americano, os militares são vistos como forças pretorianas em defesa dos interesses patrimoniais da classe dominante, os quais, por terem uma vida de camaradagem de caserna, colocam-se num grande distanciamento social das camadas populares, de onde são recrutados[2].

Para camuflar o perfil autoritário e antidemocrático decorrente de sua formação na caserna, os militares costumam vestir uma capa “de defensores do interesse nacional” e, deste modo, justificam violações à ordem democrática e constitucional, que são jogadas “às favas” por diversas vezes, sem quaisquer “escrúpulos de consciência” [3], como ocorreu na reunião que decidiu pela implantação do Ato Institucional número 05, de 13 de dezembro de 1968. (BRASIL, 1968)

O “interesse nacional” que os militares dizem defender tem se revelado débil, uma vez que os interesses estrangeiros têm prevalecido em diversas oportunidades, como ocorreu, em 2019, com a entrega da Base Aeroespacial de Alcântara, no Maranhão, para utilização pelos Estados Unidos da América do Norte, e a dos campos de petróleo da camada do Pré-Sal para exploração por empresas petroleiras estrangeiras, em detrimento da Petrobras.

O falso argumento do “interesse nacional” serviu para justificar a implantação da ditadura militar de 1964-1985[4] contra o fantasma da ação comunista internacional[5]. Além disso, os militares participaram do golpe do impeachment de 2016 contra a Presidente Dilma Rousseff[6], cujos efeitos sobre a democracia brasileira são percebidos até hoje, na medida em que toda a narrativa construída para justificar o afastamento ilegítimo resultou num aumento absurdo da pobreza e da concentração de renda.

No Brasil, desde o período republicano iniciado em 1889, os militares têm sido agentes atuantes na política, assumindo diretamente o poder no final do regime imperial (1822-1889) e participando e colaborando com a derrubada de governos civis, como ocorreu em 1930 (Washington Luís), em 1945 (Getúlio Vargas), em 1964 (João Goulart) e em 2016 (Dilma Rousseff).

Além disso, há registros de atuação das forças militares brasileiras em combate direto contra a população civil, a exemplo do que ocorreu nos massacres da “guerra de Canudos” (1896-1897), “na guerra do Contestado” (1912-1916), no “caldeirão do Santa Cruz do Deserto” (1937) e durante o regime de 1964-1985, em que civis foram presos, torturados, desaparecidos e mortos.

Tendo em vista o protagonismo militar no país, inclusive na vida política, na qual se consideram indevidamente como uma espécie de “poder moderador”, a Justiça Militar, que, em tempos de paz, deveria ser empregada exclusivamente para o julgamento de militares em assuntos relacionados ao exercício da profissão nas atividades da caserna, tem sido direcionada para o julgamento de civis, inclusive para fins de perseguição política, como ocorrido no Brasil a partir de 27 de outubro de 1965, com a introdução pelo regime ditatorial de 1964-1985 do Ato Institucional número 02 (BRASIL, 1965), que, em seu artigo 8º, transferiu para o Superior Tribunal Militar a competência para processar e julgar crimes considerados de natureza política pelo regime.

A partir da década de 2010, as Forças Armadas têm sido empregadas em diversas operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), em decorrência das quais passaram a atuar em auxílio e complementação aos órgãos de segurança pública em “operações de pacificação” de comunidades pobres e faveladas, no Rio de Janeiro, como na Favela da Maré e dos morros do Complexo do Alemão.

Em razão deste tipo de atuação dos militares, nessas operações em comunidades pobres e reiteradamente abandonadas pelo Poder Público, surgiram conflitos e ações de resistência por parte da população civil, que não aceitou as Forcas Armadas atuando ali como órgãos de policiamento ostensivo. Essa recusa gerou diversas autuações de civis por desobediência e desacato e resultou em prisões, processos criminais e condenações por parte da Justiça Militar brasileira.

Assim, o objetivo deste artigo será analisar o processamento de civis (na sua maioria pobres, negros e favelados no Rio de Janeiro), por parte da Justiça Militar, em decorrência do cumprimento de operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), por enquadramento nos crimes de desacato (artigo 299 do Código Penal Militar[7]) e desobediência (artigo 301 do Código Penal Militar[8]),  praticados contra a instituição e a “administração militar”.

É possível afirmar, como hipótese, que o Superior Tribunal Militar tem construído a sua jurisprudência mediante o estabelecimento de condenações por desobediência e por desacato contra moradores de comunidades de favela, para assegurar a simbologia de uma suposta superioridade da instituição militar sobre a sociedade civil, a fim de dar prosseguimento à tutela militar iniciada em 1889.

Com efeito, para fins de método, serão analisados, de forma qualitativa, acórdãos do Superior Tribunal Militar proferidos entre os anos de 2011 a 2019, em particular nos casos decorrentes de operações de Garantia da Lei e da Ordem empregadas em favelas do Rio de Janeiro, em que moradores daquelas comunidades se insurgiram contra a atuação das Forças Armadas como força policial.

 

  1. Julgamento de civis pela Justiça militar no Brasil, um traço de colonialismo e subalternidade

O sítio eletrônico do Superior Tribunal Militar (STM) afirma que, mesmo antes da independência do Brasil, em 1822, “pelo Alvará Régio com força de Lei de 1º de abril de 1808, D. João (VI) criou o Conselho Supremo Militar e de Justiça, que se tornou mais tarde o Superior Tribunal Militar e última instância da Justiça Militar da União” (BRASIL, 2020).

Como afirmam SOUZA e SILVA (2016), “a Justiça Militar brasileira foi um dos primeiros ramos formais do sistema de justiça a ser criado no país com a vinda da família real portuguesa em 1808. O ramo existe até hoje e desde (a Constituição de) 1934 integra o rol das justiças especiais do Poder Judiciário.”

Uma das grande críticas formuladas contra a Justiça Militar é a sua utilização para o processamento e julgamento de civis em razão de perseguição política, para crimes não propriamente militares. Na verdade, uma Justiça Militar em tempo de paz somente se justificaria (quando muito) para julgar militares, no exercício de suas funções, em razão da rigidez da hierarquia e da disciplina da caserna.

Contudo, entendo que os militares, como quaisquer servidores públicos, deveriam ser processados e julgados pela Justiça Comum, sem influência do viés corporativo e protetivo, a que muitas vezes os julgamentos pelos mesmos pares conduzem.

A República, como instituição, tem por fundamento a igualdade e a transparência; assim, não se justifica uma justiça punitiva exclusivamente para os militares, aos quais deveria ser dispensado o mesmo tratamento que a qualquer outro servidor público.

Porém, desde o Império, civis vêm sendo julgados e condenados por órgãos militares, como forma de repressão direcionadas contra ações contestatórias e de rebelião promovidas por movimentos populares[9].

Esse comportamento foi intensificado em diversos períodos da República, seja na sua fundação, com a perseguição de simpatizantes do superado regime monárquico (SOUZA e SILVA, 2016), como durante os anos da Revolução de Trinta[10], quando foram empregados inclusive tribunais de exceção, como o Tribunal de Segurança Nacional (TSN), em 1935, formado inicialmente como órgão da Justiça Militar, para julgar civis em curso na Lei de Segurança Nacional da época[11]. O Tribunal foi constituído como objetivo principal para condenar comunistas[12].

Durante a ditadura civil-militar de 1964-1985, a partir da edição do Ato Institucional número 02 (AI-2), a Justiça Militar foi empregada para perseguir e condenar civis, usando a acusação de prática de crimes políticos, contra a segurança nacional e a ordem econômica, sendo que “foi a primeira tentativa de institucionalizar o regime policial-militar, nos moldes da doutrina de segurança nacional.” (TÉRCIO, 2002, p. 61)

Superado o regime ditatorial de 1964-1985, a Nova República não teve força suficiente para se livrar da tutela dos militares, que vêm se impondo desde a fundação da República em 1889[13]. Na Constituição de 1988, os militares conseguiram manter o seu inadequado poder moderador, representado pela Garantia da Lei e da Ordem (artigo 142)[14], e lograram conservar a estrutura da Justiça Militar, que recebeu carta branca para processar e julgar civis, ficando estabelecido na Carta Constitucional apenas que fosse feito conforme previsto em lei, quando o constituinte poderia ter ressalvado, no Texto Maior, que os civis não deveriam ser julgados na justiça castrense em tempos de paz, a exemplo do que foi adotado em vários países[15] e foi recomendado, em 2005, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no “Caso Palmara Irabarne vs. Chile” (MELLO, 2013).

Ou seja, a ordem política iniciada a partir de 1985, materializada juridicamente por meio do processo constituinte de 1987-1988, foi incapaz de superar “o passado não resolvido” do Brasil[16], ao permitir que os militares pudessem interferir no destino da política e o emprego de tribunais militares para manter a repressão contra os civis; ou seja, tudo o que vem desde o período colonial, perpassa o Império e caminha por toda a República, ao ponto de, nos dias de hoje, moradores de favelas do Rio de Janeiro (pessoas simples e pobres) estarem sendo processados e condenados sob acusação de desobediência e desacato, por se insurgirem contra ações policiais realizadas por militares, em consequência das Operações de Garantia da Lei e da Ordem[17].

Vale ressalvar que o Supremo Tribunal Federal tem construído a sua jurisprudência para determinar “que a submissão do civil, em tempo de paz, à Justiça Militar é excepcional, que só se legitima quando a conduta delituosa ofender bens jurídicos tipicamente associados às funções das Forças Armadas, delineadas, em linhas gerais, no art. 142 da CF/88 (Constituição de 1988)”[18]

Apesar da interpretação restritiva apresentada pelo Supremo Tribunal Federal, quaisquer questionamentos e investidas contra os militares, no exercício de suas funções constitucionais previstas no artigo 142 da Constituição, poderão ser julgadas pela Justiça Militar.

Este traço de persecução contra civis, marcado por nítido conteúdo de criminalização dos atos de resistência e insubordinação de grupos sociais subalternos, revela a passividade da Justiça Militar, ao aceitar ser empregada para a repressão e isolamento social (constituição de “guetos”) da população das favelas, no Rio de Janeiro, locais basicamente habitados por pessoas negras, mestiças e pobres.

Tanto o colocar-se a serviço para condenar civis, quanto o apresentar-se para realizar policiamento ostensivo (como fizeram as Forças Armadas, ao aceitarem executar as operações de Garantia da Lei e da Ordem nas favelas do Rio de Janeiro), revelam uma busca de reafirmação aristocrática de honorabilidade, que parece nortear a formação militar (MAYER, p. 186).

Esse comportamento de busca de superioridade e reafirmação por honorabilidade, realizado por forças militares, cujos integrantes, na maioria, são pessoas oriundas da mesma classe social explorada[19], faz surgir um grave conflito pelo questionamento da ação militar por parte de alguns moradores de favelas e bairros pobres, que vivem em constante “estado de defesa, sob alerta” (GRAMSCI, 2014, p. 135) na sua luta contra a subalternidade[20].

Portanto, o emprego do aparato da Justiça Militar para processar, julgar e condenar civis é uma marca do colonialismo, que ainda se faz presente na repressão das forças sociais insurgentes, em razão de consequências políticas, ideológicas, econômicas, sociais e raciais, que ainda são marcantes na sociedade brasileira.

Consideramos importante registrar que o Brasil foi o último país das Américas a dar fim à escravidão formal, em 1888. Sendo ainda digno de nota, ressalte-se, que somos “um dos poucos países democráticos da América Latina a manter um foro militar, com características corporativas, acrescidas da possibilidade de julgar civis.” (SOUZA  e SILVA, 2016)

 

  1. Garantia da lei e da ordem (GLO)

3.1. As origens constitucionais da GLO

Desde a promulgação da Constituição de 1988, o que tem despertado a atenção de historiadores, cientistas sociais, jornalistas e juristas é a aplicação recorrente, por parte de sucessivos governos civis, do artigo 142 da Constituição para a “garantia” da Lei e da Ordem (GLO), com o emprego das Forças Armadas (FFAA) para substituir ou suplementar o papel da polícia.

Assim, diante da atual conjuntura do país, considero necessário, neste ponto, analisar as origens da GLO, para verificar se esse instituto é compatível com o sistema republicano, inclusive a partir da experiência da Constituição de Weimar de 1919.

Isto porque, em agosto de 2019, diante de pressões políticas de grupos autoritários e da tentativa de fortalecimento da extrema-direita na Alemanha, retomou-se o debate naquele país sobre “os três erros fundamentais da Constituição de Weimar”, que então completava cem anos.

Os três erros daquela constituição seriam os artigos 24, 48 e 53, que previam em linhas gerais que o presidente poderia dissolver o parlamento; que o presidente, com a ajuda das forças armadas, poderia intervir para restabelecer a segurança e a ordem pública; e estabelecia a nomeação do primeiro-ministro como atribuição do presidente.

Como afirma Kelerhoff (2019), tais regras eram “herança da constituição do império”, que a ordem republicana, introduzida em Weimar em 1919, não foi capaz de superar e possibilitaram a ascensão do nazismo de Hitler, na Alemanha, a partir de 1933.

Para nós no Brasil, é muito importante essa lição do passado não resolvido pela República de Weimar, pois passamos a conviver sistematicamente com ameaças de autoritarismo e incentivo à barbárie.

As ameaças alcançam até mesmo as instituições políticas, acuadas pela possibilidade de uma suposta “intervenção militar”, que, segundo seus apologistas, teria fundamento a partir do artigo 142 da Constituição, que prevê o papel das FFAA, ali incluído o seu emprego em operações de GLO, igual ao que previa o artigo 48 da Constituição alemã de 1919, que manteve uma regra do antigo regime monárquico, incompatível com a república.

Em razão disso e das ameaças do emprego das FFAA em casos de segurança interna do país, na eterna “tutela dos militares” sobre a política e os civis, é preciso ressaltar que o artigo 142 é uma construção incompatível com a noção de república e soberania popular.

Referido artigo representa um traço do antigo regime absolutista, construído a partir do racionalismo que colocou o monarca acima do povo e como representante máximo da nação, como fez Pedro I, ao fechar o parlamento (“A Noite da Agonia”, 12/11/1823) e outorgar a Constituição de 1824, cujos artigos 10 e 11 previam que “os poderes políticos (…) são quatro: o Poder Legislativo, o Poder Moderador, o Poder Executivo e o Poder Judicial” e que “os representantes da nação brasileira são o imperador e a Assembleia Geral”.

Ou seja, o imperador colocava-se como uma instituição (“o representante primeiro da nação”) e acima do povo, com base em construção racional difundida por Hegel, a partir de sua Filosofia do Direito, para justificar a monarquia constitucional, principalmente depois do Congresso de Viena (1814-1815), que tinha entre seus postulados a restauração da antiga ordem absolutista, mesmo que sob a forte intervenção militar contra os movimentos liberais.

É nesse sentido que a Constituição de 1824, no artigo 98, previa que: “O Poder Moderador é a chave de toda a organização Política, e é delegado privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da Independência, equilíbrio, e harmonia dos mais Poderes Políticos.”

O artigo 102 da Constituição de 1824 estabelecia que “o Imperador é o Chefe do Poder Executivo, e o exercita pelos seus Ministros de Estado”; e, pela redação do artigo 148: “ao Poder Executivo compete privativamente empregar a Força Armada de Mar, e Terra, como bem lhe parecer conveniente à Segurança, e defesa do Império.”

Assim, verifica-se que a força militar poderia ser empregada pelo imperador para garantir “a segurança” contra as rebeliões liberais promovidas por populares ou grupos oposicionistas à monarquia, no âmbito interno do Estado brasileiro.

Esta utilização dos militares (prevista no artigo 148 da Constituição de 1824) segue a lógica do princípio da restauração, conforme proposto no Congresso de Viena (1814-1815), com o uso da intervenção militar interna para reprimir as ideais liberais e garantir a velha ordem absolutista, como forma de manter a lei e a ordem em favor do antigo regime, como se verificou na derrubada da Comuna de Paris (1871).

Ora, a República deveria ter posto fim ao emprego das forças militares na manutenção da segurança interna; porém, a Constituição de 1891 manteve regra idêntica à do absolutismo, ao dispor em seu artigo 48 que “compete privativamente ao Presidente da República (…) exercer ou designar quem deva exercer o comando supremo das forças de terra e mar dos Estados Unidos do Brasil, quando forem chamadas às armas em defesa interna ou externa da União”.

Vê-se que as Forças Armadas, artífices da derrubada da monarquia, mantiveram para si a titularidade do emprego da “defesa interna”, que passou a ser aplicada contra a população negra, mestiça e pobre (Canudos, Contestado etc), para garantir a manutenção do sistema exploratório vindo da escravidão, iniciado no Brasil colônia, que passou pelo império e continuou com a república.

Seguindo essa diretriz de emprego das FFAA na ordem interna, a Constituição de 1934 dispôs, no artigo 162, que “as forças armadas são instituições nacionais permanentes, e, dentro da lei, essencialmente obedientes aos seus superiores hierárquicos. Destinam-se a defender a Pátria e garantir os Poderes constitucionais, e, a ordem e a lei.”

Da mesma forma, a Constituição de 1946, no artigo 177, dispunha que “destinam-se as forças armadas a defender a Pátria e a garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem”; como a Emenda Constitucional 1, de 1969, que previa no artigo 91 que “as Forças Armadas, essenciais à execução da política de segurança nacional, destinam-se à defesa da Pátria e à garantia dos poderes constituídos, da lei e da ordem.”

A Constituição de 1988, documento jurídico da “Nova República”, igualmente, em seu artigo 142, dispõe que “as Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.”

O ponto diferenciador da Constituição de 1988 em relação às constituições anteriores foi a extensão a todos os Poderes constituídos da capacidade de convocar as Forças Armadas, para sua própria garantia e da lei e da ordem. Tal ampliação foi para tentar neutralizar eventuais abusos autoritários do Poder Executivo, na medida em que os outros poderes agora podem também requisitar o emprego da Lei e da Ordem, o que pode ser feito inclusive pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Congresso Nacional, contra os arroubos autoritários do Poder Executivo.

Entretanto, esta ampliação do conjunto de autoridades que podem requisitar a GLO representou a possibilidade de um descontrole institucional ainda maior do uso dos militares na segurança interna, pois esta não requer a observância das rígidas regras impostas para a decretação de estado de defesa (artigo 136 da Constituição), do estado de sítio (artigo 137 da Constituição) e da intervenção (artigos 34 e 36 da Constituição), para os quais se exige que sejam previamente ouvidos os Conselhos da República e de Defesa Nacional e que tenham autorização do Congresso Nacional; que são institutos jurídicos que, numa ordem liberal, são de uso extremo de um estado de exceção.

Vemos então que convocar uma GLO é muito mais simples do que declarar um estado de exceção; porém, uma vez que esta seja instaurada, as forças militares podem, em tese, ser empregadas para impor um regime autoritário, sob um manto de falsa legalidade constitucional.

3.2. Emprego de GLO

 Nos últimos dez anos, o Governo Federal decretou diversas operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), prevista no artigo 142 da Constituição Federal (BRASIL, 1988), em razão de pedidos de governadores de Estados para que os militares pudessem auxiliar os órgãos de segurança pública, definidos no artigo 144 da Constituição Federal (BRASIL, 1988), que se revelaram incapacitados para assegurar a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio[21].

É imperativo que a Garantia da Lei e da Ordem (GLO) pelas Forças Armadas somente pode ocorrer se houver o efetivo esgotamento dos órgãos responsáveis pela Segurança Pública, no caso as polícias, como previsto nos §§ 2º e 3º do artigo 15 da Lei Complementar 97/1999 (BRASIL, 1999).

O § 4º do artigo 15 da Lei Complementar 97/1999 (BRASIL, 1999) dispõe que, ativada a GLO, o emprego operacional das Forças Armadas “ocorrerá de forma episódica, em área previamente estabelecida e por tempo limitado, em ações de caráter preventivo e repressivo necessárias para  assegurar o resultado das operações da garantia da lei e da ordem”.

Nesse ponto, é importante realçar que as Forças Armadas passam a atuar como órgão policial, cumprindo excepcionalmente o mesmo papel das forças de segurança pública, que são auxiliadas pelos militares. Ou seja, não deveria ser tratada como um estado de guerra; sendo assim, não se justifica o emprego do aparato militar de natureza bélica, inclusive com utilização de carros de combate etc.; sendo a ação militar de mero reforço policial dos órgãos de segurança, a quem efetivamente cabe a defesa patrimonial e incolumidade das pessoas.

Ocorre que, durante as GLO(s), têm ocorrido diversos conflitos entre os integrantes das Forças Armadas em operações de policiamento e civis, inclusive com a morte de pessoas inocentes.

Como decorrência, muitas vezes, moradores dessas áreas sob intervenção, têm sido presos em flagrante e autuados criminalmente, sob a alegação de prática de desacato e desobediência, sendo processados e julgados na Justiça Militar; inclusive, as condenações são impostas aos civis porque tais delitos são considerados como de natureza militar, conforme entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal, que não acolheu habeas corpus em que se defendia a competência do Juizado Especial Criminal e manteve a competência da Justiça Militar neste tipo de acusação[22].

Desta forma, temos civis (pobres, negros e favelados) sendo julgados pela Justiça Militar, a partir de acusações formuladas exclusivamente por agentes militares, em processos nos quais, na maioria das vezes, somente o testemunho dos militares é suficiente para a condenação a ser imposta:

O fato de as testemunhas presenciais se confundirem com os próprios ofendidos não tem o condão de desmerecer, tampouco reduzir o potencial comprobatório de suas declarações. Suas palavras são dotadas de presunção de legitimidade e de legalidade, sendo merecedoras de crédito, inclusive no tocante à incriminação de pessoa envolvida no episódio delitivo[23].

  1. Justiça Militar e julgamento de civis

A Justiça Militar, nos termos do artigo 122 da Constituição Federal (BRASIL, 1988), tem entre seus órgãos o Superior Tribunal Militar e os Tribunais e os Juízes Militares instituídos por lei, para “processar e julgar os crimes militares definidos em lei”, conforme dispõe o artigo 124 da Constituição Federal (BRASIL, 1988).

Além disso, o parágrafo único do artigo 124 da Constituição Federal (BRASIL, 1988) prevê que a lei irá dispor sobre a organização, o funcionamento e a competência da Justiça Militar.

Vemos assim que o constituinte deixou a definição do crime militar e o seu respectivo processamento pela Justiça Militar para a legislação infraconstitucional; sendo que, na tradição brasileira, o fórum militar tem sido empregado para o processamento de civis, inclusive para perseguição política, além do emprego das forças militares na repressão dos movimentos populares, como acima demonstrado na introdução deste trabalho.

No caso brasileiro, até hoje não foram regulamentados os dispositivos constitucionais acima mencionados, aplicando-se, por recepção, o Código Penal Militar e o Código de Processo Penal Militar, respectivamente, Decreto-lei 1.001/1969 (BRASIL, 1969-a) e 1.002/1969 (BRASIL, 1969-b), oriundos do regime civil-militar de 1964-1985, impostos à época por meio da Junta Militar que governou o Brasil, formada pelos Ministros da Marinha, Exército e Aeronáutica, conforme poderes atribuídos pelo Ato Institucional número 16/1969 (BRASIL, 1969-c), considerado um dos entulhos ditatoriais.

O Código Penal Militar, em seu artigo 9º, inciso III, alínea “d”, considera crime militar, em tempo de paz, “os crimes praticados (…) por civil, contra instituições militares (…) nos seguintes casos: (…)  d) ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, contra militar em função de natureza militar, ou no desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública, administrativa ou judiciária, quando legalmente requisitado para aquele fim, ou em obediência a determinação legal superior.”

Assim, pela letra da lei do regime ditatorial, o civil poderá ser responsabilizado por crime militar se atentar contra as instituições militares (sendo assim considerada, inclusive, a pessoa do militar que esteja atuando com violência), mesmo que fora de local militar, em serviço de preservação da ordem pública.

Ou seja, é a naturalização do autoritarismo contra a população, para a manutenção de imprópria e indevida tutela militar sobre a ordem política civil. É a validação da autorização para os militares estenderem suas condutas para além dos limites dos quarteis, o que é inadmissível numa ordem democrática, na qual deve prevalecer o poder civil.

Com efeito, o Supremo Tribunal Federal (STF), ao convalidar uma interpretação decorrente da aplicação de uma norma do regime ditatorial de 1964-1985, abriu o caminho para o processamento de civis pobres, moradores de favelas do Rio de Janeiro, pela Justiça Militar, conforme jurisprudência construída pelo Superior Tribunal Militar.

Porém, esse mesmo entendimento permite que, no momento atual, os membros da Suprema Corte sejam ameaçados por diversos agentes políticos de origem militar, saudosos do regime dos “anos de chumbo”, que consideram as instituições militares um dogma sagrado, posicionado acima da Constituição e do povo, e usam a interpretação  da Carta Maior para atingir e preservar seus interesses.

  1. Superior Tribunal Militar e o julgamento de civis por desobediência e desacato em GLO no Rio de Janeiro

O Superior Tribunal Militar (STM)  é um tribunal de revisão das decisões proferidas pela primeira instância da Justiça Militar; é um órgão composto por 15 julgadores, sendo 10 militares (4 generais do Exército, 3 almirantes da Marinha e 3 brigadeiros da Aeronáutica) e 5 civis, com formação jurídica (3 oriundos da advocacia, 1 da magistratura militar e 1 da procuradoria de justiça militar).

De 2011 a 2019, há diversos julgamentos de recursos no Superior Tribunal Militar, em que civis foram condenados por desobediência e/ou desacato, por terem se insurgido contra a autuação dos militares das Forças Armadas no policiamento ostensivo, em comunidades de favelas do Rio de Janeiro, em decorrência de Operação de Garantia da Lei e da Ordem.

O que chama a atenção nesses julgamentos é a forma como a “instituição militar” das Forças Armadas se impõe sobre o poder civil, de modo a justificar o processamento e o julgamento pela Justiça Militar das pessoas que se rebelaram, a exemplo do que ocorreu em diversas passagens da História brasileira, em que essa justiça foi empregada para perseguir cidadãos, e que segue sendo utilizada contra negros, mestiços e pobres; e tudo isto é aceito com passividade pelos oficiais militares, que passaram a atuar na ordem interna como aparelho repressivo contra os indivíduos de agora, muitos  deles descendentes dos escravos de outrora.

Assim, a perseguição realizada no passado pelos capitães do mato contra escravos rebelados se mantém presente; sendo, nestes casos, utilizado como argumento para justificar as prisões, o potencial de ofensa à instituição militar, supostamente violentada pelos civis insurgentes.

No processo referente à apelação nº 7000050-50.2019.17.00.0000, cujo relator foi o Gen. Ex. Odilson Samapio Benzi, o acusado respondeu à ação penal porque, em 20/08/2016, não reconheceu os militares, em patrulhamento, como força policial:

O denunciado não obedeceu à ordem, alegando que não acompanharia os militares por não serem eles polícia.

Diante da recusa, (…) o conduziu até a faixa de areia e tentou iniciar a revista pessoal, momento em que o denunciado se alterou, insistindo que não aceitava ser revistado.

Em razão do comportamento do denunciado, (…) lhe determinou que se colocasse de joelho para a realização da revista, tendo este novamente recusado.

(…) Entretanto, o denunciado permanecia alterado e em oposição à revista, dizendo ao (militar) ‘vai tomar no …, ao que lhe foi dada voz de prisão e encaminhado à Delegacia Judiciária Militar, tendo sido necessário o uso de algemas para contê-lo.”

O STM não levou em consideração possível provocação dos militares, mas apenas que o denunciado empregou “conotação pejorativa das palavras  proferidas, desprezando o militar em serviço, em nítida finalidade de humilhar, menosprezar, aviltar, rebaixar a autoridade da vítima (o militar), e, consequentemente, a função militar exercida por ela, caracterizando o dolo inerente ao delito de desacato, não sendo de considerar o mero estado de exaltação.

No julgamento, não foi considerada nenhuma possibilidade de humilhação do denunciado, que foi colocado de joelhos para ser revistado, mas tão somente as ofensas que foram eventualmente disparadas contra o ofendido e a “função militar”, num nítido caráter de proteção da instituição e do corpo militar.

No processo referente à apelação nº 264-88.2017.7.10.0201/RJ, cujo relator foi o ministro Gen. Ex. Marco Antônio de Farias, decorrente de ação ocorrida em patrulhamento no Complexo do Alemão, em 24/10/2014, o Tribunal entendeu que:

…O emprego dos militares federais em operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) é legítimo, embora, para alguns desavisados, receba a interpretação de constituir atividade precípua de segurança pública. (…) O bem jurídico tutelado pelo art. 299 do CPM (crime de desacato) é a ordem administrativa militar. Ao Estado é atribuída a qualidade de ofendido mediato, conquanto os militares envolvidos no patrulhamento encontram-se na condição de seus mandatários, em missão oficial.

                Da mesma forma, no processo referente à apelação nº 0170-43.2014.7.01.0201, cujo voto vencedor foi do ministro Alte. de Esq. Marcus Vinicius Oliveira dos Santos. Neste caso, em 14/07/2014, os militares da força de pacificação da Maré fizerem revista pessoal no acusado, que:

insatisfeito com uma revista pessoal, desacatou-os, além de resistir à prisão, uma vez que, conforme narrado na denúncia, ao receber ordem para abrir as pernas a fim de que fosse terminada a revista, o denunciado passou a debater-se a fim de impedir que a revista continuasse.

            O Tribunal entendeu no mencionado julgado acima que:

pratica os crimes de resistência mediante ameaça ou violência e de desacato a militar, o Civil que, ao ser abordado por militares da Força de Pacificação, no Rio de Janeiro, se opõe à execução de ato legal ao receber ordem para ser revistado, resiste à prisão, desfere palavras de baixo calão aos integrantes da corporação, bem como empurra e ameaça militar no cumprimento de sua missão. (…) Tal delito atinge diretamente a autoridade da administração militar.

Pelas decisões acima, a ofensa proferida pelo civil que, por qualquer comportamento, questiona a ação meramente de polícia da força militar, é direcionada contra a ordem “administrativa militar”; ou seja, a ofensa é contra a instituição militar, que não admite ser questionada, o que revela um traço de autoritarismo e superioridade sobre a sociedade civil.

No processo referente à apelação nº 286-49.2014.01.7.0201/RJ, cujo relator foi o ministro Gen. Ex. Odilson Sampaio Benzi, foi apurado que:

… no dia 24 de setembro de 2014, o civil (…), durante a realização de uma abordagem por militares da Marinha do Brasil, integrantes da Força de Pacificação da Maré, foi preso em flagrante por ter proferido palavras ofensivas e efetuado gestos obscenos.

            O Tribunal em razão disso, no caso acima, entendeu que:

Pratica o crime de desacato a militar previsto no artigo 299 do Código Penal Militar, o civil que, ao ser abordado por militares da Força de Pacificação, no Rio de Janeiro, desacata o militar no exercício de função de natureza militar ou em razão dela. A presença das Forças Armadas nas comunidades fluminenses foi acordada entre os poderes públicos e segue ditames legais, tendo inclusive o poder de polícia para abordar, revistar e prender quando em flagrante delito.

No processo referente à apelação nº 142-75.2014.01.7.0201/RJ, cujo relator foi o ministro Alt. Esq. Marcus Vinicius Oliveira dos Santos, apurou-se que:

… em 18 de junho de 2014, na localidade de Nova Holanda, no Complexo da Maré, (…) o acusado, acompanhado de sua esposa, chamou os soldados do Exército de ‘periquitos’ (…) além de ter cuspido nos pés do (…), comandante da Patrulha …

O Tribunal, no mencionado caso, condenou o acusado sob o argumento de que “comete o crime de desacato o Réu que, de maneira livre e consciente, desrespeita militares que faziam ronda, chamando-os de ‘periquitos e cospe por duas vezes nos pés do Ofendido.”

            Como se pode denotar, há uma forte resistência da população das favelas contra a presença dos militares da  “força de pacificação”. Daí a sucessiva quantidade de casos de desobediência e desacato, sendo a atuação policial dos militares desnecessária para a garantia de lei e da ordem, servindo mais aos propósitos repressivos das Forças Armadas contra a população pobre das comunidades faveladas, que, ao externar o seu descontentamento, manifesta uma forma de resistência subalterna.

  1. Conclusão

            O que se pode constatar é que o emprego de forças militares em operações de Garantia da Lei e da Ordem, apesar do respaldo constitucional, legal e jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, encontra forte resistência no meio da população pobre, negra, mestiça e marginalizada das comunidades faveladas, que não encontraram nas Forças Armas qualquer amparo de proteção, mas tão somente mais repressão.

            As Forças Armadas, por seu turno, aceitaram a missão, porém, diante da rejeição da comunidade, partiram para o enquadramento dos civis, que resistiram à sua ação policial, nas penas dos delitos de desobediência e desacato, que foram aplicados pela Justiça Militar, de modo a manter hígida a instituição e a administração militar. O que entendemos que somente poderia ser aplicado caso não estivesse ocorrendo um desvio de função das Forças Armadas, que tem aí uma ação tipicamente policial, própria dos órgão de segurança pública.

É possível concluir, assim, que o Superior Tribunal Militar construiu a sua jurisprudência, com condenações por desacato e desobediência aplicadas contra os moradores de comunidades e favelas, para assegurar a simbologia de uma suposta superioridade da instituição militar sobre a sociedade civil, a fim de manter a tutela militar e, assim, justificar a atuação das Forças Militares diante da sociedade, mesmo que seja como força de repressão e não de garantia da soberania.

Por fim, ressalto que os militares, como quaisquer servidores públicos, deveriam ser processados e julgados pela Justiça Comum, sem influência do viés corporativo e protetivo, a que muitas vezes os julgamentos pelos mesmos pares conduzem.

A República, como instituição, tem por fundamento a igualdade e a transparência; assim, não se justifica uma justiça punitiva exclusivamente para os militares, aos quais deveria ser dispensado o mesmo tratamento que a qualquer outro servidor público.

Com certeza, isto poderia evitar julgamentos com resultados injustos, como ocorreu no caso do capitão Jair Messias Bolsonaro, que, no passado, foi expulso da sua corporação militar e processado por acusações de “conduta irregular” e prática de “atos que afetam a honra pessoal, o pundonor militar e o decoro da classe”, mas terminou absolvido pela Justiça Militar[24].

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TÉRCIO, Jason. A espada e a balança: crime e política no banco dos réus. Zahar Editor: Rio de Janeiro, 2015.

 

Notas:

[1]Doutor em ciência política (IUPERJ), com pós-doutorado (CPDA/UFRRJ), mestre em Direito (UFRJ). Diretor e membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB). Autor dos livros: Terras indígenas: a indiferença dos Tribunais do Brasil; Constituição rasgada: anatomia do golpe; Intervenção judicial; Do conflito ao equilíbrio: política, judiciário e audiências públicas; O poder judiciário nas ditaduras brasileiras e Empresas públicas e o desenvolvimento sustentável: um Brasil dos brasileiros.

[2]Neto, 2019, p. 29: “Lutar pelo ‘interesse nacional’ separadamente do ‘interesse social’ é uma manobra para imprimir respeitabilidade aos desígnios dos que detêm ou querem deter a hegemonia no Estado, entre os quais se destaca o estamento militar. Este procedimento lastreia o ‘nacionalismo corporativo’, que estou designando como patriotismo castrense.”

[3]Passarinho, 2008: “Mas, às favas, senhor presidente, neste momento, todos, todos os escrúpulos de consciência.”

[4]Exposição de motivos do Ato Institucional n. 1, de 01/04/1964: “A revolução se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que nela se traduz, não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nação.” (BRASIL, 1964)

[5]Exposição de motivos do Ato Institucional n. 1, de 01/04/1964 “…tomar as urgentes medidas destinadas a drenar o bolsão comunista, cuja purulência já se havia infiltrado não só na cúpula do governo como nas suas dependências administrativas.” (BRASIL, 1964):

[6]Rosenfield (2020): “Militares procuraram Temer para reclamar de Dilma e PT antes do impeachment.”

 [7]“Artigo: 299. Desacatar militar no exercício de função de natureza militar ou em razão dela:

Pena: detenção, de seis meses a dois anos, se o fato não constitui outro crime.”

[8]“Artigo 301: Desobedecer a ordem legal de autoridade militar.

Pena: detenção até seis meses.”

[9]Souza e Silva (2016) registram que “a partir de 1824, após a polêmica repressão à Confederação do Equador, sem uma definição precisa do foro militar, quando necessário, os Conselhos de Guerra poderiam ser usados na repressão a movimentos populares, punindo também civis. Como tribunal de exceção, a Comissão Militar era um dispositivo acionado para dar ares de julgamento à ação do Estado na repressão a movimentos contestatórios.”

[10]Souza e Silva (2016): “A justiça militar não passaria ilesa à turbulência política da década de 1930. Em novembro de 1931, o Governo Provisório baixou decreto (20.656, de 14/11/1931) determinando o processo e julgamento pela justiça militar de militares, assemelhados ou civis que tomassem parte por qualquer forma nos atentados contra a ordem pública ou contra os governos da União e dos estados.”

[11]Folena de Oliveira (2016, p. 139): “O Tribunal foi constituído primordialmente como um órgão da Justiça Militar e tinha como objetivo atuar ‘sempre que for decretado o estado de guerra’, como previsto no artigo primeiro da referida lei (Lei 244, de 11/09/1936) Porém ao referido tribunal foi atribuída também a competência para julgar e processar os civis em curso nos delitos previstos na Lei n. 38, de 1935 (a Lei de Segurança Nacional)”.

[12]Teixeira da Silva (2015): “Os comunistas são os primeiros inimigos do Estado”.

[13]Teixeira da Silva (2020): “Os Militares jamais tiveram qualquer adesão real, completa e leal à Nova República e à Constituição de 1988. A expressão Nova República foi cunhada a partir de um discurso de Tancredo Neves, em Vitória (ES), em 1984, quando afirmou: ‘É imperioso criar uma Nova República, forte e soberana, para que nossas Forças Armadas não sejam nunca desviadas de sua destinação constitucional’.”

[14]Teixeira da Silva (2020): “Os Militares, na verdade, durante os anos de Nova República, souberam se preparar para a eventualidade de uma crise política, quando seriam chamados de volta ao Poder no papel de ‘salvadores’.  Mesmo derrotados em 1985-1988, impuseram à Constituinte institutos de poder militar, como o atual Artigo 142 (sobre a GLO), capazes de tornar seu papel de tutela sobre a República indispensável e mesmo automático.”

[15]Mello (2013): “Tendência que se registra, modernamente, em sistemas normativos estrangeiros, no sentido de extinção (pura e simples) dos tribunais militares em tempo de paz, ou então, da exclusão de civis da jurisdição penal milita: Portugal (Constituição de 1976, art. 213, Quarta Revisão Constitucional de 1997), Argentina (Ley Federal n. 26.394/20080, Colômbia (Constituição de 1991, art. 213), Paraguai (Constituição de 1967, art. 253, c/c Ley 18.650/2010, arts. 27 e 28), v.g.”

[16]Folena de Oliveira (2018).

[17]STM, processos números 0079-37.2011.7.01.0201, 0264-88.2014.7.01.0201, 0170-43.2014.7.01.0201, 0229-31.2014.7.01.0201, 0142-75.2014.7.01.0201, 0229-31.2014.7.01.0201, 0193-37.2014.7.01.0201, 0086-56.2015.7.01.0201, 0108-75.2015.7.01.0201.

[18]BRASIL, 2016.

[19]Fanon, 2008, p. 34: “No Exército colonial, e especialmente nos regimentos senegaleses de infantaria, os oficiais nativos são, antes de mais nada, intérpretes. Servem para transmitir as ordens do senhor aos seus congêneres, desfrutando por isso de uma certa honorabilidade.”

[20] Gramsci, 2014, p. 135: “A história dos grupos sociais subalternos é necessariamente desagregada e episódica. (…) Os grupos subalternos sofrem sempre a iniciativa dos grupos dominantes, mesmo quando se rebelam e se insurgem: só a vitória ‘permanente’ rompe, e não imediatamente, a subordinação”.

[21]Folena de Oliveira (2017): “Fazer GLO para intervir em favelas é abusar das FFAA (Forças Armadas), que têm a missão de defender a Pátria, e não fazer papel de polícia.”

[22]BRASIL (2013). STF, 1a Turma, Habeas Corpus número 113.128-RJ, relator Ministro Roberto Barroso, julgado em 10/12/2013: “Compete à Justiça Militar processar e julgar civil acusado de desacato e desobediência praticados contra militar das Forças Armadas no desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública (art. 9º, III, d, C.P.M).”

[23]STM, processo número 0000264-88.2014.7.01.0201, relator Ministro Gen. Ex. Marco Antônio de Farias.

[24]Carvalho, 2018.

Palavras Chaves

Justiça Militar. Colonialismo. Subalternidade. GLO. Garantia da lei e da ordem. Resistência e Desacato.