Justiça Restaurativa e Varas de Violência Doméstica e Familiar

Resumo

O presente texto visa analisar a implantação de Justiça Restaurativa nas Varas de violência doméstica e familiar conforme proposto pela Resolução 225 do Conselho Nacional de Justiça, pensando no processo de revitimização, violação e ouvindo a voz das usuárias.

Artigo

Justiça Restaurativa e Varas de Violência Doméstica e Familiar

Laina Crisóstomo [1]

RESUMO: O presente texto visa analisar a implantação de Justiça Restaurativa nas Varas de violência doméstica e familiar conforme proposto pela Resolução 225 do Conselho Nacional de Justiça, pensando no processo de revitimização, violação e ouvindo a voz das usuárias.

Palavras chave: Justiça Restaurativa, Vara de Violência Doméstica e Familiar, Resolução 225 CNJ.

Precisamos falar sobre justiça restaurativa (JR), o que de fato vem a ser JR, para que serve, a quem serve e como se dá o processo de implantação? O principal objetivo desse texto é analisar, avaliar e questionar a resolução 225 do Conselho Nacional de Justiça que visa implantar a justiça restaurativa nos casos de violência doméstica e familiar. Dentre a principal definição e o objetivo dessa implementação está a reestruturação e estabilização das relações familiares. Um dos conceitos utilizados dentro da resolução do CNJ e de alguns sites e cursos que trabalham com justiça restaurativa entendem como sendo espaços para resolução de conflitos, alguns estudiosos definem como círculos de Cultura de paz para resolução de conflitos. Outros teóricos dizem que Justiça restaurativa é um paradigma não punitivo em que envolvem ofendido e ofensor e comunidade para a resolução de um conflito e quando possível a reconstrução de relações rompidas.

Entretanto precisamos falar sobre o que vem a ser a violência doméstica e familiar, como essa violência se apresenta, quem são as partes dessa violência e como é possível pensar em solução de conflitos sem punição numa sociedade majoritariamente machista, misógina e patriarcal?

Violência doméstica e familiar contra a mulher é qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, conforme definido no artigo 5oda Lei Maria da Penha, a Lei nº 11.340/2006. Essa violência normalmente não deixa testemunhas, acontece normalmente por anos, em silêncio e na presença de crianças, gerando danos físicos, psíquicos incalculáveis.

Verdadeiramente não há respostas para as perguntas de como se implantar um sistema de não punição nessa sociedade que pune cada vez mais a vítima. Em agosto do corrente ano houve em Salvador a semana de Justiça pela paz em casa proposta pelo Tribunal de Justiça da Bahia como convidado a principal a ministra do Supremo Tribunal Federal Carmen Lúcia, o evento tinha como principal tema discutir os 11 anos da Lei Maria da Penha e os Novos Rumos do combate e enfrentamento à violência contra mulher todavia o evento se enveredou para uma outra perspectiva a desembargadora Nágila que é coordenadora a pasta de mulheres dentro do Tribunal de Justiça da Bahia decidiu nessa ocasião criar a terceira vara mas agora com o novo nome em homenagem a ministra Carmen Lúcia o nome contrariando a lei federal 11340 deixou de ser vara de violência doméstica e familiar passando a se chamar vara de Justiça pela paz em casa. Que paz e que justiça nós estamos falando? Resolução 15 de 2017 do Tribunal de Justiça da Bahia é quem dá novo nome a vara antes de violência doméstica e familiar mas não é apenas um nome que Visa ser objeto de modificação o nome traduz o objetivo de promover a semana de Justiça pela paz em casa a fim de pensar o processo de implementação da Justiça restaurativa nas varas agora de Justiça pela paz em casa.

A Ministra Carmen Lúcia diz em sua fala que não deseja gerar impunidade ou insegurança para as mulheres, mas traz um exemplo bem difícil de ser compreendido como algo positivo ou algo possível ou mesmo imposto pela justiça. Ela diz: se duas famílias são amigas e o rapaz de uma família se casa com a moça da outra família criam laços ainda mais fortes de amizade, mas num dado momento o rapaz de uma família mata a moça da outra família, precisam essas famílias serem inimigas? Então eu pergunto: pode a justiça obrigar que essas famílias sejam amigas? Não estamos falando de crimes de menor potencial, não estamos falando de briga de vizinho, não estamos falando de discussões na rua, de furto de uma caneta, estamos falando da vida de mulheres  que são assassinadas todos os dias dentro do lugar onde deveriam estar seguras, amparadas e cuidadas: dentro do lar.

Na Bahia temos um problema muito sério no tocante a efetivação e eficácia da Lei Maria da Penha Afinal através de uma resolução nº 47 do ano de 2012 o Tribunal de Justiça Veda a competência híbrida para a lei 11.340. Mas o que isso tem a ver com justiça restaurativa nos casos de violência doméstica e familiar? Tem a ver porque mulheres todos os dias são colocadas como intransigentes e incapazes de promover o diálogo por não aceitarem participar de audiências na vara de família que proponham mediação ou conciliação na Bahia. A ideia de conciliação mediação ou mesmo Justiça restaurativa deve compreender e respeitar o direito das pessoas nesse caso das mulheres. No ano de 2016 o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo após a provocação da Defensoria Pública teve que se manifestar em razão de um juiz em primeiro grau obrigar uma mulher a participar de uma audiência de conciliação arguindo a lei 13.140 de 2015 que trata de mediação, ele ainda colocava uma pena pecuniária, ou seja, uma pena de multa se esta não participasse da audiência de conciliação, essa mulher tinha medida protetiva de urgência, ainda existia a iminência de uma nova violência ameaças e um histórico de violência doméstica e familiar, esse tribunal decidiu que a mulher não pode ser reutilizada e ser obrigada a participar de uma audiência de conciliação ou mediação, mas é possível perceber como o juiz em primeiro grau constrangeu a mulher vítima de violência doméstica a partir disso é possível perceber como se dará essa obrigatoriedade tanto da conciliação mediação como da Justiça restaurativa e o desgaste que essa mulher irá sofrer quando se negar a participar desse tipo de audiência ou de mecanismo de resolução de conflito.

Em Salvador quando atuamos em casos de mulheres com medida protetiva normalmente nas ações de família já na petição inicial Pedimos que não haja audiência de conciliação e mediação em razão de existir um conflito de violência física ou psicológica todavia ainda assim são marcadas audiências de conciliação e mediação desrespeitando e violentando as Mulheres vítimas de violência.

Fora dialogado com mulheres usuárias das varas de violência doméstica e familiar na Bahia e foi a elas perguntado o que significa para você pensar que existe uma resolução junto ao Conselho Nacional de Justiça para que nas varas de violência doméstica e familiar seja implantada a justiça restaurativa?Seguem abaixo relatos sem identificação de mulheres vítimas de violência com a devida autorização:

Ciclo de paz…os homens não estão respeitando a mulher, imagine fazer mediação…conversinha de paz, me poupe, gostaria que a lei fosse ainda mais dura sem direito a nada e que todos os processos tivessem condenação dura…e que a Lei Maria da Penha fosse realmente cumprida. (E.M.)

Mediar a violência por si só é um paradoxo. Como pode “negociar” um direito humano fundamental, a integridade física, psíquica e patrimonial. (R.F.R.M.)

Difícil , desafiador!! Acho que nas varas de violências e na justiça que trata a mulher como vítima ,negociação com ciclos de paz inviável! Quando chegamos para dar entrada acabou a razão, o equilíbrio  e não será lá que irá desfazer as atrocidades praticadas pelos homens!! Deformação de caráter não cessar lá  em varas!! É desumano e proporciona massacre com nós mulheres!! Caminhar e quem sabe perdoar o que aconteceu pode acontecer , para melhorar nossa reforma intima e mental, mas não significa que é preciso conviver com eles , pelo menos o meu caso distância é bem vinda e preso por isso. (L.R.)

Não há como existir mediação de conflito com quem não nos ouve, para quem nos culpa por simplesmente sermos quem somos e mesmo não sendo o que querem não nos deixam ir embora. Para quem bate como se estivesse batendo em um saco de pancadas porque sentiu vontade ou pq criou na cabeça dele uma história onde a justificativa de tais atos só existe lá e não é real. Onde o erro é unilateral, e só vem da mulher. Há que existir punições mais duras não mediação de um conflito que é criado por um ser somente. Temos nossas vidas e direitos roubados e somos tratadas como se fossemos mercadorias adquiridas por eles, sem direito de pensar, sentir ou questiona-los. Apenas obedecê-los, não nos é dada outra opção. Caso esses ciclos de paz sejam aceitos, acho que só vai fazer com que a gente se sinta ainda mais insegura e com mais medo de denunciá-los. Porque só quem passa por esse terror sabe o que é feito com o nosso psicológico, como é nos ver a cada dia a um passo de morrer. É um absurdo, acharem que pode ser feito acordo de paz com o nosso torturador, estuprador, sequestrador ou assassino. (F.R.S.)

Sinceramente uma grande merda!!!! Eu me sinto revitimizada, eu quero q meu agressor pague pela violência que ele cometeu contra mim… até porque se chegou o nível de ele ameaçar a minha vida, me agredir me machucar é porque não têm mais o que se conciliar! Já chegou ao extremo… Vejo essa justiça conciliatória como uma meio de o agressor ficar impune. Normalmente a mulher que procura ajuda da justiça já sofreu outros episódios de violência já tentou de todas às formas conciliar e negociar a não agressão com o companheiro em casa. (M.H.M)

Super discordo, isso revitimiza e humilha. Eu vi a delegada chamar uma mulher de louca pq foi assediada por um empresário onde ela colocou currículo. É só um exemplo de como isso só prejudica a mulher vítima das várias violência. O abalo psicológico não tem tamanho. Isso só servirá para reafirmar os ditos machistas de q somos loucas, histéricas e vingativas. Quando só quero viver como merecemos e como e direito nosso. Sem violência. Além de q num caso desse o agressor aí vai “ter cumprido sua obrigação ” com a justiça e nos q sofremos veremos ainda mais impunidade do q já existe. Desculpe falar tanto. É q isso me irrita. Tudo feito para aliviar para os homens. As mulheres vão denunciar ainda menos sabendo dessa possibilidade. Eu mesma quase desisto na deam qnd fui para o serviço social e ainda vi uma assistente social fazendo mediação desse nível. (P.C)

Como se eu fosse a culpada por não ter paz em casa. Não preciso de mediação. Preciso de separação e justiça. Leis que me resguardem e apoio para denúncias. Tratamento digno e justiça. Acima de tudo. Separação, proteção, paz, justiça. No mínimo um insulto. É isso o que eu acho, é me colocar no mesmo patamar do agressor. (K.K.)

Dentre os relatos apresentados ha mulheres vitimas de violência do irmão, ou de relacionamento lésbico, mulheres negras e brancas, outras que sofrem torturas físicas, ou seja, a diversos tipos de violência doméstica e familiar, todavia algo é comum e é importante ser pensado e avaliado que é o medo da impunidade e de mais silenciamento ainda das mulheres que sofrem violências diversas em lugares que normalmente não deixam testemunhas, as vezes não deixam marcas físicas, mas as marcas da dor, da vergonha, do medo e da vulnerabilidade elas carregam por toda uma vida e o que elas esperam é ao menos ver um dia em que a Justiça será feita e que terá valido a pena ir a Delegacia da Mulher se expor, falar para varias pessoas sobre a dor que lhe acometeu e destruiu sua família a fim de que outras mulheres não passem por situação igual.

É preciso pensar que todas as mulheres serão violentadas, todavia os números dos últimos dossiês de violência contra mulher e Mapas da Violência mostram que a maioria das mulheres que sofrem violência física e psicológica e feminicidios são as mulheres negras, no último Mapa foi percebido que o número de mulheres brancas vítimas de violência havia diminuído em quase 10% enquanto que no mesmo período o número de violência contra mulheres negras aumentou em 54,2%. É fundamental pensar, como a própria Lei Maria da Penha alerta, na interseccionalidade, são mulheres, mas mulheres diferentes, e as violências irão afetar essas mulheres de forma diferente.

Para concluir este texto, é preciso pensar como a Lei Maria da Penha foi construída de forma democrática e participativa, incluindo realização de audiências públicas em diversos Estados a fim de ouvir das mulheres e das organizações feministas como seria melhor a atuação para as mulheres em situação de violência, entretanto as modificações que são propostas todos os dias à referida Lei no Congresso Nacional, são feitas de cima para baixo, sem ouvir ou dialogar com as principais interessadas em seu pleno funcionamento e efetivação que são as usuárias. Não é possível apagar a história da luta dos movimentos de mulheres e movimentos feministas que todos os dias lutam para que os números da violência sejam menores, que menos mulheres sejam mortas e estupradas, mas infelizmente o que se tem é um Judiciário que é machista, misógino, patriarcal e que revitimiza, culpabiliza, expõe e deixa impune crimes contra as mulheres.

Referências

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Notas de Rodapé:

[1] Advogada feminista e presidenta da ONG TamoJuntas que presta Assessoria multidisciplinar para mulheres em situação de violência. Especialista em Gênero e Raça, pós graduada em Violência urbana e insegurança desde um enfoque de gênero e mestranda em Ciências Criminais. Foi escolhida no ano de 2016 como mulher inspiradora pelo site Think Olga e em 2017 para a lista Under 30 da Revista Forbes Brasil pelo trabalho desenvolvido com mulheres em situação de violência.

Palavras Chaves

Justiça Restaurativa, Vara de Violência Doméstica e Familiar, Resolução 225 CNJ.