MEDIAÇÃO E “COMUNIDADE”

Resumo

Este artigo propõe uma análise aprofundada da mediação comunitária através dos seguintes pontos: acesso à justiça; o próprio instituto da mediação; e as especificidades da mediação em âmbito comunitário.

Artigo

MEDIAÇÃO E “COMUNIDADE”

Valeria Ferioli Lagrasta1

 

RESUMO: Este artigo propõe uma análise aprofundada da mediação comunitária através dos seguintes pontos: acesso à justiça; o próprio instituto da mediação; e as especificidades da mediação em âmbito comunitário.

Palavras-chave: acesso à justiça; mediação; bairros marginais (“favelas”)

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO; 1. ACESSO À JUSTIÇA – NOVA PERSPECTIVA; 2. MEDIAÇÃO 3. ESPECIFICIDADES DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA; 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS

  

 

INTRODUÇÃO

 Os grandes centros urbanos são marcados atualmente pela proliferação de bairros marginais, que refletem o processo de reprodução social do operariado industrial no capitalismo periférico.

Os cidadãos deslocam-se para os centros urbanos, na busca de melhores opções de trabalho e ascendência econômica, entretanto, devido à superpopulação, acabam no trabalho informal e vivendo em bairros marginais, com todas as dificuldades deles advindas.

As chamadas “favelas” chegam a abrigar mais de ¼ (um quarto) da população total das grandes cidades, como São Paulo e Rio de Janeiro, sendo todas essas ocupações, em princípio, ilegais, em propriedades privadas que, depois, através de desapropriações, passam para a propriedade do estado.

Da mesma forma, as construções nelas existentes, como barracos e até casas de tijolos, também são ilegais, devido não só à falta de título de posse ou propriedade, como também violação a disposições legais sobre construção em área urbana.

Em outras palavras, constroem-se sobre um estatuto de ilegalidade, que constantemente ameaça a sobrevivência coletiva, pois não contam com saneamento básico, rede elétrica, abastecimento de água, pavimentação de ruas, etc, sofrendo, além das dificuldades do quotidiano, pressões para remoção para bairros marginais da cidade, diante da especulação imobiliária e intenção de utilização dos terrenos ocupados para empreendimentos urbanísticos.

Diante desse quadro, os habitantes das “favelas” tendem a se organizar para melhorar sua condição e vida, criando redes de água e de eletricidade paralelas, organizando mutirões de trabalho, para melhoria de ruas e equipamentos coletivos; praticando, enfim, a gestão coletiva de recursos e se unindo na busca de habitações condignas e melhores condições de vida.

Essa união de esforços em torno da gestão visa garantir também a segurança e a ordem nas relações sociais entre os habitantes, tendo em vista que o aparato estatal dificilmente consegue atender essa parte da população; e o reflexo dessa organização é o aumento dos custos políticos e sociais numa eventual remoção forçada.

Toda essa organização paralela se sustenta através da criação de associações de moradores, que são as responsáveis pela coordenação das ações da vida coletiva e pela defesa dos interesses da comunidade, de acordo com seus estatutos; mas que também acabam exercendo outras funções, sendo a principal delas a solução de conflitos, intervindo em relações de vizinhança, disputas de habitações e terrenos, questões de família, enfim, nas relações sociais entre os habitantes e entre esses e a comunidade como um todo, levando essa forma de intervenção à pacificação da sociedade e permitindo a convivência harmônica.

Importante notar, que alguns desses conflitos, tratados pela associação de moradores ou líderes da comunidade, tem origem em contratos, como por exemplo, de compra e venda, arrendamento, etc, e outros negócios jurídicos que envolvem a propriedade, a posse, direitos reais, de vizinhança, etc e que, portanto, as soluções encontradas, à luz do direito oficial brasileiro, por se referirem, muitas vezes, a terrenos ilegalmente ocupados e construções clandestinas, são ilegais ou juridicamente nulas.

Entretanto, para a comunidade e para aqueles que dela participam, os quais vivem à margem da sociedade e do Direito, são válidas e legais, representando importantes instrumentos de pacificação, que não podem ser desconsiderados.

Cria-se, então, diante da carência da proteção jurídica oficial, um direito paralelo, válido apenas no seio da comunidade, e que acaba por inverter o direito de propriedade, pois ali a ocupação ilegal acaba sendo reconhecida como posse e propriedade legais. E o interessante é que para o direito paralelo são transportados normas e princípios do direito estatal, como, por exemplo, o princípio da propriedade privada e as consequências dele decorrentes.

Para Boaventura de Sousa Santos, no artigo “O discurso e o Poder” (Sousa Santos, 1980, p. 5), “a atividade da associação de moradores, enquanto fórum jurídico, reparte-se por duas áreas distintas: a ratificação de relações jurídicas e a resolução das disputas ou litígios delas emergentes.”.

A atividade de ratificação das relações jurídicas caracteriza-se pela orientação e esclarecimentos que o presidente da associação de moradores presta às partes na assunção de obrigações através de contratos que, na maioria das vezes, são escritos pelos próprios envolvidos e assinados também por duas testemunhas, recebendo um carimbo da associação e sendo arquivados. O presidente da associação verifica a autonomia da vontade das partes e a seriedade do compromisso por elas assumido quanto ao cumprimento das obrigações, sendo comum o uso de fórmulas de rotina semelhantes às usadas nos contratos do mesmo tipo celebrados perante o direito oficial.

Com isso, a associação de moradores contribui para a prevenção de conflitos na comunidade, pois ao esclarecer os envolvidos sobre a relação jurídica em si e os compromissos assumidos, ratificando documento escrito, por eles criado, gera uma fonte de segurança que acaba evitando seu descumprimento.

A outra atividade da associação de moradores, que é o foco desse artigo, é a solução dos conflitos que surgem na comunidade.

Claro que o procedimento utilizado é diverso do oficial, muito mais informal e flexível, superlativamente oral, mas atua o presidente da associação de moradores, muitas vezes, como árbitro, chegando a proferir decisão, que deve ser cumprida pelas partes.

E, as decisões não resultam da aplicação das leis, mas sim de paradigmas da comunidade, lugares comuns, opiniões ou pontos de vista comumente aceitos, apesar de, muitas vezes, fazerem referência às leis para criar atmosfera de oficialidade. E isso aumenta o seu poder de persuasão.

Também interessante notar que, tratando-se de direito paralelo, ao receber o caso, o que é feito oralmente, o presidente verifica, tanto a competência material, quanto a competência territorial, apenas tratando de conflitos afetos à comunidade que representa, e ainda, a razoabilidade do pedido, afastando aqueles de propósitos desonestos.

E, apesar de, muitas vezes, o líder comunitário ou presidente da associação de moradores agir como árbitro, proferindo decisão, mais comum tem sido, nos últimos tempos, a prática da mediação nessas comunidades marginais, com elevado índice de cumprimento dos acordos obtidos, diante do fator psicológico que agrega, pois havendo a assunção de obrigações perante o líder comunitário, que é pessoa respeitada em toda a comunidade, gera- se nos envolvidos o compromisso com o resultado obtido, que leva em última análise, à pacificação social.

Entretanto, a pacificação social, escopo magno da jurisdição, é, em princípio, obrigação do Estado, que praticamente não atua no seio dessas comunidades.

E então, diante desse panorama, que demonstra a existência de comunidades à margem da sociedade e do Direito, necessário repensar a efetividade dos princípios do acesso à justiça e da dignidade da pessoa humana, constitucionalmente garantidos a todos os cidadãos brasileiros.

1.      ACESSO À JUSTIÇA – NOVA PERSPECTIVA

 Na visão processual, através do discurso de Mauro Cappelletti sobre o movimento de acesso à justiça, podemos concluir que nos encontramos no que ele denomina de terceira “onda renovatória” do processo, que centra sua atuação na simplificação dos procedimentos, do direito processual e do direito material e no conjunto geral de institutos e mecanismos, pessoas e procedimentos, utilizados para processar e mesmo prevenir litígios.2

Então, apesar de não superadas totalmente as “ondas” anteriores preocupadas com a representação legal dos economicamente necessitados e com a efetividade de direitos de indivíduos e grupos, a “terceira onda” do acesso à justiça aproveita suas técnicas, e busca

reformas, apontando para alterações no direito substantivo, nas formas de procedimento e na estrutura dos tribunais, com o uso de pessoas leigas e de mecanismos privados e informais de solução de litígios, visando atingir o escopo magno da jurisdição, de pacificação social. E, portanto o incentivo à utilização dos métodos alternativos ou consensuais de solução de conflitos, principalmente da conciliação e da mediação, no curso do processo, acompanha a terceira “onda renovatória” do processo.

E esses métodos consensuais de solução de conflitos passaram a ser reconhecidos e utilizados porque se verificou que a sentença judicial não pacifica os contendores,  pois resolve apenas a controvérsia aparente ou lide processual (jurídica, dos autos), baseada nas posições trazidas na inicial e na contestação, mas não resolve a controvérsia social (lide sociológica), que está à sua base e que caracteriza o verdadeiro conflito, pois reflete os interesses e necessidades das partes; de onde se depreende que o modelo tradicional não satisfaz o interesse da população.

Em outras palavras, podemos dizer que somente a resolução integral do conflito conduz à pacificação social, ou seja, não basta resolver a lide processual (aquilo que foi trazido pelas partes no processo) se os verdadeiros interesses e necessidades que motivaram as partes a litigar não forem identificados e resolvidos.

Por outro lado, a decisão judicial é heterônoma, está fora do controle das partes, vindo do Estado, mediante uma das expressões de sua soberania: o Poder Judiciário. E o Poder Judiciário apenas pode decidir a partir de certas premissas, dentre as quais as regras que regem o procedimento, com a observância dos princípios processuais; não podendo o juiz decidir “citra”, “extra” ou “ultra” petita.

Já a decisão consensuada, obtida através dos métodos consensuais de solução de conflitos, é autônoma, ou seja, resulta da transigência mútua, discutida, dialogada, das partes, após mútuo consentimento.

Desta forma, a última, sob o ponto de vista ético, pode ser considerada mais adequada, pois advém da participação efetiva das partes, devolvendo a elas a cidadania, a sua autonomia, capacidade de ter vontade e resolver os próprios conflitos, o que leva a uma solução mais legítima. Em lugar de ser objeto de decisão judicial, o ser humano passa a ser o artífice da composição; não é mais alvo da lei, mas arquiteto da solução justa, compreendendo o que é o justo humano possível.

Em suma, a decisão consensuada é mais ética, dialógica, pois permite que os envolvidos no conflito dialoguem, afinem suas perspectivas, recoloquem as suas divergências e cedam, desde que convencidos a isso, participando efetivamente da busca da solução que, uma vez encontrada, atende aos interesses de todos, resolvendo a controvérsia social, o que a torna efetiva e duradoura.

A verdadeira Justiça, então, só se alcança quando os casos se solucionam mediante consenso que resolve não só a parte do problema em discussão, mas também todas  as questões que envolvem o relacionamento entre os interessados.

E assim, conforme afirma Roberto Portugal Bacellar (Bacellar, 1999, p. 128), pode-se concluir que “O Poder Judiciário, com sua estrutura atual, trata apenas superficialmente da conflitualidade social, dirimindo controvérsias, mas nem sempre resolvendo o conflito”, motivo pelo qual, busca-se o resgate dos métodos consensuais de solução de conflitos.

E então, os métodos consensuais de solução de conflitos não podem ser vistos apenas como meios ou métodos praticados fora do Poder Judiciário, como sugere o adjetivo “alternativo”, utilizado para qualificá-los, mas devem ser vistos também como importantes instrumentos, à disposição do próprio Poder Judiciário, para a realização do princípio constitucional do acesso à justiça, havendo uma complementaridade entre a solução adjudicada, típica do Poder Judiciário, e as soluções não adjudicadas.

E não se quer, com isso, diminuir a importância do Poder Judiciário, dos magistrados e de suas sentenças, mas pelo contrário, o que se deseja é contribuir para a melhora da prestação jurisdicional, reservando-se aos juízes e à solução adjudicada as causas mais complexas, as que versam sobre direitos indisponíveis, ou aquelas nas quais as partes, apesar de poderem, não querem se submeter a outro tipo de solução, que não a sentença.

O que se busca, então, é aumentar o leque de opções disponíveis para a solução dos conflitos, continuando a figurar a solução estatal, através da sentença, como a principal delas, havendo uma relação de complementaridade entre esta última e as demais, o que afasta a ideia de que tais formas de solução de conflitos ferem o monopólio da jurisdição (art. 5º, inciso XXXV, da CF – “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”); pois, nada impede que a parte, após receber as explicações e informações pertinentes sobre os outros métodos de solução de conflitos, opte por ingressar diretamente em juízo.

Em suma, o monopólio da jurisdição, previsto no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, apesar de representar uma conquista, no que diz respeito à imparcialidade, segurança jurídica e manutenção do Estado de Direito, não é capaz de dar vazão ao crescente volume de conflitos que surgem diariamente na sociedade.

Assim, paralelamente ao monopólio da jurisdição, torna-se necessário o incentivo aos métodos consensuais de solução de conflitos que, sem a intenção de afastar, desprestigiar ou criticar o primeiro, devem ser vistos como “equivalentes jurisdicionais”, diante do reconhecimento da incapacidade estrutural do Estado-Juiz de acompanhar o crescimento da população e a consequente multiplicação dos conflitos.

Nesta perspectiva, podemos concluir que, com a utilização das soluções ditas alternativas de conflitos, deixamos de ter um Estado interventor e provedor geral, passando a permitir a participação efetiva das partes na solução de seus conflitos, o que fortalece o Poder Judiciário, na medida em que afasta a sua morosidade e se atinge a pacificação social e, em última instância, a Justiça Real.

Conclui-se, portanto, que o incentivo à utilização dos métodos consensuais (ou alternativos) de solução de conflitos pelo Poder Judiciário visa tornar efetivo o acesso à justiça, como “acesso à ordem jurídica justa”, que segundo o Professor Kazuo Watanabe (Watanabe, 2005, p. 684-690), reflete não só o direito do jurisdicionado de recorrer ao Poder Judiciário, mas também e principalmente o direito de obter uma solução, célere, justa, adequada e efetiva para o seu conflito.

Partindo dessa premissa, a Resolução do Conselho Nacional de Justiça n. 125, de 29 de novembro de 2010, que institui Política Judiciária Nacional de tratamento adequado de conflitos de interesses, e apresenta como cerne o acesso à justiça, contempla os métodos consensuais de solução de conflitos, principalmente a conciliação e a mediação, permitindo sua utilização em fase anterior à propositura da ação (fase pré-processual).

E claro que tal regulamentação não impede, mas, pelo contrário, incentiva a utilização dos métodos consensuais de solução de conflitos fora do âmbito do Poder Judiciário, que é o caso da mediação privada e da mediação comunitária, que também contribuem, e muito, para a pacificação social e, em última instância, para o acesso à justiça.

2.      MEDIAÇÃO

 A mediação é um meio de solução de conflitos, no qual um terceiro facilitador, num ambiente sigiloso, auxilia as partes em conflito no restabelecimento do diálogo, investigando seus reais interesses, através de técnicas próprias, e fazendo com que se criem opções, até a escolha da melhor, chegando as próprias partes à solução do problema, o que redunda no seu comprometimento com esta última.3

Esse terceiro imparcial, ao buscar a reconstrução da comunicação entre as partes e a identificação do conflito, estimula a negociação (cooperativa), sendo as próprias partes as responsáveis pela obtenção de um eventual acordo.4

Em outras palavras, a mediação é um processo cooperativo, que leva em conta as emoções, as dificuldades de comunicação e a necessidade de equilíbrio e respeito dos conflitantes e que pode resultar num acordo viável, fruto do comprometimento dos envolvidos com a solução encontrada.

Para tanto, exige-se que os participantes sejam plenamente capazes de decidir, pautando-se o processo na livre manifestação da vontade dos participantes, na boa-fé, na livre escolha do mediador, no respeito e cooperação no tratamento do problema e na confidencialidade. Esta última pressupõe que as questões discutidas numa sessão de mediação sejam cobertas pelo sigilo, que compreende o mediador e as partes.

Em princípio, então, todos os conflitos interpessoais podem ser trabalhados na mediação e, se esta não culminar num acordo, pelo menos os participantes terão esclarecido o conflito e aprendido a dialogar entre si de forma respeitosa e produtiva, pois o verdadeiro objetivo do mediador não é obter um acordo, mas sim restabelecer o diálogo entre as partes, permitindo que melhorem o relacionamento, para que, por si sós, cheguem às soluções de seus problemas.

Assim, como a mediação visa, em última análise, a pacificação dos conflitantes, seus recursos técnicos são utilizados, inclusive, como estratégia preventiva, criando ambientes propícios à colaboração recíproca, com o objetivo de evitar a quebra da relação entre as partes. E, por esse motivo, a mediação representa uma fusão das teorias e das práticas das disciplinas da psicologia, assessoria, direito e outros serviços do campo das relações humanas, sendo interdisciplinar.

Diante dessas características, não há dúvida que se trata de importante instrumento de pacificação social e que, não só pode, como deve ser utilizada, tanto no âmbito do Poder Judiciário, quanto no âmbito das comunidades marginais (“favelas”).

3.      ESPECIFIDADES DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA

 A mediação comunitária, devido ao ambiente em que se desenvolve, apresenta características próprias, que a diferenciam da mediação privada e, principalmente da mediação realizada no âmbito do processo.

Em princípio, conforme já dito acima, todo o diálogo facilitado pelo líder comunitário ou presidente da associação de moradores (que é quem atua como terceiro facilitador ou mediador) é pautado em paradigmas da comunidade, lugares comuns, opiniões ou pontos de vista comumente aceitos, sendo os principais aqueles do equilíbrio, da cooperação e do “bom vizinho”, segundo Boaventura de Sousa Santos5. O paradigma da cooperação é utilizado em todos os tipos de conflito da comunidade, já o do equilíbrio, tende a ser dominante nos conflitos entre vizinhos, como por exemplo, na discussão sobre a natureza do contrato firmado, e o do “bom vizinho”, nos conflitos nos quais se opõem os interesses de algum morador aos interesses da comunidade como um todo, como por exemplo, o caso de  obstrução de uma rua devido à construção de um barraco.

E o que se deve ter em mente é que a mediação se estrutura num espaço de concessões mútuas e ganho recíproco; porém, na mediação comunitária, o mediador (líder comunitário ou presidente da associação de moradores) tem um papel muito mais ativo e constitutivo que na mediação comum, mantendo uma distanciação precária que lhe permite afirmar-se como sede da decisão, mas sempre permitindo que a decisão seja construída pelos próprios envolvidos.

Nota-se assim, que a fim de manter a paz na comunidade, a mediação comunitária se estrutura de modo a corresponder às necessidades do direito paralelo que ali se institui, apresentando-se como mediação/decisão, pois, na verdade, sob a roupagem de mediação, constroem-se de fato, adjudicações, que visam contribuir para a convivência pacífica de seus habitantes, em substituição ao aparato do Estado.

Em outras palavras, utiliza-se, nessas comunidades, a mediação comunitária, pois a mediação é o método de solução de conflitos mais adequado quando existem relações duradouras ou de múltiplo vínculo entre os envolvidos, e quando é necessária a continuidade dessas relações, para a convivência pacífica.

Por outro lado, a mediação é benéfica à população, diante falta de poder coercitivo do chamado direito paralelo. E assim, é mais salutar que as decisões se assentem na cooperação, com aumento do poder de persuasão delas advindas, pelo comprometimento dos envolvidos com o resultado obtido em conjunto com o líder comunitário ou presidente da associação de moradores, que, em última análise, é o detentor do poder de decisão.

Como já dito acima, os paradigmas da comunidade, lugares comuns, opiniões ou pontos de vista comumente aceitos são as peças fundamentais do discurso na mediação, mas é comum também haverem referências ao Direito estatal, a fim de estabelecer um ar de oficialidade, apesar de prevalecer sempre a persuasão sobre a coerção.

No diálogo que se instaura também são utilizados termos e expressões próprios da comunidade, reconhecidos pelos envolvidos, que permitem avançar ou retardar o discurso argumentativo do mediador (líder comunitário ou presidente da associação de moradores),  que dosa a velocidade, de certa forma, direcionando-o. Ou seja, a partir da pré-compreensão do caso, que o mediador colhe nos primeiros contatos com os envolvidos, já estabelece algumas alternativas, que vão diminuindo, à medida que o discurso progride, apesar desse discurso ser marcado por marchas e contra-marchas, e ser basicamente um discurso aberto, que aceita e incentiva contribuições de todos os que dele participam.

Disso se depreende que o objeto do conflito não é fixado, desde logo, no início do procedimento, cabendo ao mediador sua investigação, mas também seu direcionamento, algumas vezes, diante do interesse maior da comunidade, como por exemplo, o interesse de não envolver a associação em conflitos que dizem respeito à atuação da polícia no interior da comunidade. Então, afastada essa hipótese, onde é necessário certo direcionamento, a estratégia do mediador é de reconstruir o objeto de modo a aumentar a possibilidade de uma “decisão” construída pelos próprios envolvidos, e que transforme a hostilidade entre elas existente em entendimento, pondo fim ao conflito.

Em outras palavras, o próprio objeto do conflito pode ser objeto de negociação entre os envolvidos que, na medida de sua participação, vão influenciando o procedimento e, o resultado, não existindo, em princípio, matéria relevante e matéria irrelevante, pois questão não suscitada originariamente pode vir a ser aventada, do mesmo modo que pode ficar claro, durante o procedimento, finalidade desviada de uma das partes e que acabará por interromper o procedimento; ou seja, todas as matérias podem ser levadas à discussão, ampliando ou diminuindo o objeto do conflito, na medida das necessidades e interesses dos envolvidos.

Há também as questões explícitas e implícitas, sendo as últimas fundamentais na construção do resultado e cabendo ao mediador investigá-las, pois detém grande parte das necessidades e interesses dos envolvidos, e neles deve se pautar a “decisão”.

Importante notar também, que no âmbito da comunidade, diferentemente do que ocorre em outros tipos de mediação, assumem relevância, além das colocações dos envolvidos diretos, as colocações dos acompanhantes (vizinhos, parentes, etc), que diante do reflexo do conflito sobre suas vidas, podem participar do procedimento, desde que direcionados pelo mediador.

O procedimento é superlativamente oral, devendo atentar o mediador para a linguagem verbal e não verbal dos envolvidos, que muito lhe auxiliará na captação de pontos relevantes para o diálogo e a construção da “decisão”. E a linguagem verbal, devido à característica dos participantes, é marcada pela linguagem comum, vulgar, cabendo ao mediador identificar-se com ela, a fim de que os envolvidos se sintam acolhidos, gerando confiança, apesar de ser importante também, em alguns momentos, a utilização de termos técnicos do direito estatal, como “sanções”, “contratos”, “guarda”, “alimentos”, etc, em sentido que pode por vezes ser diferente do oficial, mas que tem papel relevante na criação do ar de oficialidade.6

Ainda, no controle da comunicação e do discurso como um todo, o mediador (líder comunitário ou presidente da associação de moradores) deve saber lidar com o silêncio, sopesando este com a fala e equilibrando-os, conforme a fase do procedimento. Na primeira fase, que é a da fixação do objeto do conflito, por exemplo, deve prevalecer o silêncio do mediador, que deve ter falas interrogativas curtas, permitindo que os envolvidos falem mais, sob a ilusão do controle do discurso, o que levará á obtenção de maiores informações, fornecidas pelas partes. Já na segunda fase do procedimento, a situação se inverte, passando o controle da fala para o mediador, pois se caminha para a “decisão” e, perguntas específicas, acompanhadas de discursos curtos, entrecortados por alguns momentos de silêncio, permitem ao mediador conhecer o que precisa, e ignorar o que é irrelevante, direcionando-se o discurso para a construção do consenso.

Por fim, a estrutura material e física do espaço onde se realiza a mediação comunitária, qual seja, a sede da associação de moradores, também merece atenção.

Nada obstante a informalidade que caracteriza todo o procedimento, procura-se manter na sede da associação algo similar à estrutura das repartições públicas, como mobiliários, fichários, computadores, formulários, livros, etc, e funcionários burocráticos, o que tem o objetivo de criar uma distância entre ela, enquanto instituidora do direito paralelo, e a vontade das partes, a fim de gerar legitimidade no exercício de autoridade.

Em resumo, o procedimento da mediação comunitária, apesar da existência do chamado direito paralelo, é informal, e então, a partir da fixação do objeto do processo, que vai sendo construído pelos envolvidos junto com o procedimento em si mesmo, o mediador investiga os interesses e necessidades implícitos, permitindo que se criem opções de solução para o conflito, até que se chegue a uma solução final, construída pelos envolvidos; apesar de algumas vezes, como mencionado acima, haver certo direcionamento do mediador, diante do interesse maior da comunidade que representa.

E assim, pode-se concluir que a associação de moradores, apresenta-se, ao mesmo tempo, como representante dos interesses da comunidade e poder paralelo ao Poder Estatal; o que lhe permite decidir os conflitos no âmbito de sua competência quer impondo decisões, e atuando, neste caso, o líder comunitário ou presidente da associação como árbitro, quer direcionando procedimentos que visam a construção de decisões dialogadas, atuando o líder comunitário ou presidente da associação de moradores como mediador comunitário.

4 .CONSIDERAÇÕES FINAIS

 Diante do que foi exposto neste artigo, pode-se concluir que a mediação comunitária, assim como a mediação, em si mesma, é fonte de paz; entretanto, essa forma de pacificação social deve ser analisada segundo critérios objetivos.

Não há dúvida que mediação comunitária é instrumento de controle de comunidades marginalizadas, o que se dá, em grande parte, devido à precariedade do aparato estatal no atendimento dessa parcela da população, que vive à margem da sociedade, em vários aspectos: sociais, econômicos, geográficos e até, humanos.

E, assim, a mediação comunitária pode ser vista como instrumento bom ou ruim, dependendo do modo como utilizada, pois o controle da paz interna dessas comunidades ou “favelas”, tanto pode estar nas mãos do Estado quanto, nas mãos de organizações criminosas, que acabam colocando a população a seu serviço (muitas vezes, através do mero silêncio) em troca de paz e de uma pseudo “justiça” interna da comunidade.

O Estado tem investido em tentativas de pacificação nessas comunidades, como é o caso da instalação das UPPs, Unidades de Polícia Pacificadora, nas favelas do Rio de Janeiro, porém, sem muito sucesso.

A mediação comunitária é um bom caminho, entretanto, fundamental que, paralelamente à sua instituição, o Estado invista de forma efetiva, ampla e direta em estrutura, segurança, seleção e formação de líderes comunitários.

Necessário, por exemplo, que após pesquisa de campo nas comunidades que serão atendidas, haja a identificação de líderes comunitários, pessoas legitimadas e reconhecidas pela comunidade; e que, então, lhes sejam fornecidas condições dignas de trabalho e moradia, a fim de eventualmente afastá-las do controle das organizações criminosas, permitindo que atuem com independência, liberdade e imparcialidade. E, finalmente, seja disponibilizado curso de capacitação específico em técnicas de mediação para essas pessoas, habilitando-as a mediar.

Infelizmente, devemos afastar a ideia “romântica” de que a mediação comunitária surge simplesmente para ajudar a sociedade marginalizada nos seus relacionamentos intrínsecos e extrínsecos, sendo fonte de pacificação social; pois, sob o manto desta última pode se esconder uma intenção de dominação e controle, pouco salutar, do ponto de vista da justiça.

Enfim, a mediação em geral e a mediação comunitária, mais especificamente, não podem ser tratadas como panaceia para todos os males e saída para os problemas do Judiciário, sendo imprescindível que haja investimento na organização e estruturação, não só da sociedade, mas também do próprio Poder Judiciário, a fim de que os métodos consensuais de solução de conflitos, entre os quais a mediação, floresçam e passem a ser utilizados como verdadeiros “equivalentes jurisdicionais”, em complementação à solução adjudicada, através da sentença, permitindo que a população consiga resolver seus conflitos de forma mais célere, efetiva e justa, impedindo, assim, que seja manipulada por organizações criminosas, agentes econômicos ou quem quer que seja.

Em outras palavras, não basta investir em métodos consensuais de solução de conflitos, devendo ser priorizado o sistema oficial de resolução de conflitos que, no Brasil, é o Poder Judiciário, no qual o povo, apesar das críticas, ainda confia, devendo ele incentivar os métodos consensuais de solução de conflitos, organizando-os e fiscalizando-os, a fim de que não sirvam de instrumento de controle para agentes econômicos, nacionais e internacionais, e organizações criminosas.

É a nova leitura do princípio constitucional do acesso à justiça, como acesso, não só ao Poder Judiciário, mas a uma solução célere, justa e efetiva para o conflito, cabendo a função de disponibilizar meios para que isso ocorra ao Poder Judiciário, que além de sua função primordial de proferir sentenças, deve incentivar a utilização dos métodos consensuais de solução de conflitos, organizando-os, como complementares à solução adjudicada através da sentença, mas mantendo-se sempre à disposição do povo para fazer cessar qualquer abuso a direito.

Isso não quer dizer, porém, que seja apenas do Poder Judiciário a responsabilidade e o dever de solucionar os conflitos, mas sim, que deve ele se colocar à disposição do cidadão, para que, sempre que necessário, possa ser provocado a fim de fazer valer a lei, afastando qualquer lesão ou ameaça a direito do cidadão, mantendo-se intacto o monopólio previsto no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal.

Concluindo, um Poder Judiciário forte e independente é base da democracia e garantia do cidadão, devendo se fazer presente em todos os âmbitos da sociedade, sem delegar a função de fazer justiça, podendo, quando muito, disponibilizar outros meios de solução de conflitos, estando sempre na retaguarda, à disposição do cidadão, nos rincões mais distantes e nos locais de difícil acesso.

REFERÊNCIAS

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CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Tradução Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988.

LAGRASTA LUCHIARI, Valeria Ferioli. A Mediação de Conflitos – análise da realidade brasileira e sua efetiva implantação no Poder Judiciário do Estado de São Paulo. 2009. 170

  1. Tese (Pós Graduação “Lato Sensu” em Direito) – Escola Paulista da Magistratura, São Paulo.

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SOUSA SANTOS, Boaventura de. O discurso e o poder: ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica. Revista Forense 272/8, Rio de Janeiro, 1980.

VEZZULLA, Juan Carlos. Mediação – Teoria e Prática e Guia para Utilizadores e Profissionais. Edição Conjunta. Lisboa: Agora Publicações Ltda., 2001.

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            . Cultura da sentença e cultura da pacificação. In: MORAES, Mauricio Zanoide; YARSHELL, Flávio Luiz (Coords.). Estudos em homenagem à professora Ada Pellegrini Grinover. São Paulo: DPJ Ed., 2005-b, p. 684-690.

Notas: 

1 Juíza de Direito da 2ª Vara da Família e das Sucessões da Comarca de Jundiaí; Pós-graduada em Métodos de Soluções Alternativas de Conflitos Humanos pela Escola Paulista da Magistratura (2009); Formada em Mediação Judicial (“Mediation and the Judicial System”) e Negociação e Mediação Avançadas (“Negociation and Mediation Advanced”) pela Columbia University (2012 e 2013); Formadora da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados – ENFAM; Instrutora de Técnicas Autocompositivas e Políticas Públicas do Conselho Nacional de Justiça (CNJ); Vencedora do VII Prêmio “Conciliar é Legal”, do Conselho Nacional de Justiça, na categoria Juiz Individual, com o projeto “Juiz Gestor de Resolução de Conflitos” (14/02/2017); Membro fundador da “Confederação Internacional de Mediação por Justiça”, com sede em Paris (França); Integrante do projeto que visa a implementação de “Tribunal de Múlti-Portas” na América Latina (“Investing Social Capital: Exploring the Multi-Door Courthouse to Maximize Latin American Dispute Resolution Systems”) desenvolvido pela “International ADR Research Network” da University of St.Thomas School of Law – Mineapolis/EUA, na categoria juiz; Membro do Comitê Gestor da Conciliação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ); Coordenadora do Centro Judiciário de Solução Consensual de Conflitos da Comarca de Jundiaí/SP; Membro do Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos do Tribunal de Justiça de São Paulo.

2 Sobre o movimento do acesso à justiça e as “ondas renovatórias”, leia-se CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988.

3 Para saber mais sobre o procedimento da mediação e suas técnicas leia-se LAGRASTA LUCHIARI, Valeria Ferioli. Mediação Judicial – Análise da realidade brasileira – origem e evolução até a Resolução nº 125, do Conselho Nacional de Justiça. GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo. (Coords.). São Paulo: Ed. Gen/Forense, 2012, p. 19-44.

4 Nesse sentido, consultar VEZZULLA, Juan Carlos. Mediação – Teoria e Prática e Guia para utilizadores e profissionais, cit., p.87.

5 Para saber mais sobre aquilo que Boaventura de Sousa Santos chama de topoi principais do discurso jurídico pasargadiano, leia-se O discurso e o poder –Ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica, Revista Forense, Vol. 272/8, Rio de Janeiro, 1980, p. 6-7.

6 Boaventura de Sousa Santos, (in O discurso e o poder –Ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica, Revista Forense, 1980, Vol. 272/8, p. 12), para designar essa linguagem introduz o conceito de linguagem técnica popular que, segundo ele, não cria uma distância que implique ruptura, isto é, que altere de modo significativo e permanente o âmbito do auditório relevante.; explicitando que, “…Em Pasárgada, o auditório relevante  abrange não só as partes como os demais acompanhantes, que podem, aliás, participar na discussão…”

Palavras Chaves

acesso à justiça; mediação; bairros marginais (“favelas”)