O ATO DA ENTREGA DE UM FILHO PARA A JUSTIÇA DA INFÂNCIA: PELA ABERTURA DO SISTEMA EM UMA NOVA POLÍTICA DA ADOÇÃO

Resumo

Este artigo se propõe, a partir da regulação da entrega legal de um filho para a Justiça da Infância e da Juventude pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, a trazer a reflexão quanto à política da adoção fechada no Brasil, cujas características são o anonimato da família de origem e a salvaguarda da privacidade dos envolvidos. O sistema fechado da adoção perpetua o mito da criança abandonada, repleta de segredos e identidades desconhecidas? A quem interessa de fato o anonimato? Em que medida esse anonimato não incentiva as adoções consentidas, as adoções à brasileira e outros caminhos fora da legalidade estrita? Regular a entrega do filho em adoção evita o abandono, a permanência da criança em condições desumanas, na rua, seu abrigamento forçado, a desobediência ao cadastro, mas é preciso compreender como fazê-lo. Ao final, conclui-se pela dificuldade da entrega para adoção dentro de um sistema de política de adoção fechada. As mães e famílias biológicas muitas vezes querem conhecer e saber o destino de seus filhos. Portanto, é preciso pensar se no ato da entrega as mães ou a família biológica podem conhecer os habilitados por meio do sistema da rede protetiva, se assim desejarem, ainda que mantido o sigilo da entrega com relação à prática desse ato; se os habilitados podem optar por uma adoção aberta ou fechada, assim como podem optar pelo perfil desejado de crianças quanto à idade, raça, grupo de irmãos e questões de saúde, através de uma releitura do princípio da exclusividade que impõe um sistema de rompimento absoluto sem respeito à história e individualidade de cada um; se o sigilo e a ausência de contato e informações entre a família biológica e a família adotiva é uma regra absoluta e protetiva, levando-se em consideração todos os interesses convergentes dos seus principais atores, dentre eles, o do filho em saber com efetividade sua origem e sua história como uma pessoa inteira; o dos pais adotivos a terem uma vida tranquila, sem sobressaltos e questionamentos, quanto à parentalidade; o dos pais biológicos ao sigilo, quando assim o desejarem, sem serem blindados e descartados depois da entrega e, ainda o interesse do próprio Estado em promover adoções estáveis e uma política de adoção confiável e segura, afastando as incertezas mostradas em inúmeros julgados em que o Poder Judiciário é chamado a decidir o dilema entre a prevalência do cadastro e a adoção consentida consumada.

Artigo

O ATO DA ENTREGA DE UM FILHO PARA A JUSTIÇA DA INFÂNCIA:

 PELA ABERTURA DO SISTEMA EM UMA NOVA POLÍTICA DA ADOÇÃO

                         Carla Ferreira Fernandes[1]

SUMÁRIO: 01. Introdução; 02. A regulação do ato da entrega pelo Estatuto da Criança e do Adolescente; 03. Referências

RESUMO: Este artigo se propõe, a partir da regulação da entrega legal de um filho para a Justiça da Infância e da Juventude pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, a trazer a reflexão quanto à política da adoção fechada no Brasil, cujas características são o anonimato da família de origem e a salvaguarda da privacidade dos envolvidos.  O sistema fechado da adoção perpetua o mito da criança abandonada, repleta de segredos e identidades desconhecidas? A quem interessa de fato o anonimato? Em que medida esse anonimato não incentiva as adoções consentidas, as adoções à brasileira e outros caminhos fora da legalidade estrita? Regular a entrega do filho em adoção evita o abandono, a permanência da criança em condições desumanas, na rua, seu abrigamento forçado, a desobediência ao cadastro, mas é preciso compreender como fazê-lo. Ao final, conclui-se pela dificuldade da entrega para adoção dentro de um sistema de política de adoção fechada. As mães e famílias biológicas muitas vezes querem conhecer e saber o destino de seus filhos. Portanto, é preciso pensar se no ato da entrega as mães ou a família biológica podem conhecer os habilitados por meio do sistema da rede protetiva, se assim desejarem, ainda que mantido o sigilo da entrega com relação à prática desse ato; se os habilitados podem optar por uma adoção aberta ou fechada, assim como podem optar pelo perfil desejado de crianças quanto à idade, raça, grupo de irmãos e questões de saúde, através de uma releitura do princípio da exclusividade que impõe um sistema de rompimento absoluto sem respeito à história e individualidade de cada um; se o sigilo e a ausência de contato e informações entre a família biológica e a família adotiva é uma regra absoluta e protetiva, levando-se em consideração todos os interesses convergentes dos seus principais atores, dentre eles, o do filho em saber com efetividade sua origem e sua história como uma pessoa inteira; o dos pais adotivos a terem uma vida tranquila, sem sobressaltos e questionamentos, quanto à parentalidade; o dos pais biológicos ao sigilo, quando assim o desejarem, sem serem blindados e descartados depois da entrega e, ainda o interesse do próprio Estado em promover adoções estáveis e uma política de adoção confiável e segura, afastando as incertezas mostradas em inúmeros julgados em que o Poder Judiciário é chamado a decidir o dilema entre a prevalência do cadastro e a adoção consentida consumada.

PALAVRAS-CHAVES: Entrega legal. Adoção. Anonimato. Infância.

  1. Introdução

Não há vulnerabilidade maior dentro de uma família do que a entrega voluntária de um filho, com a ruptura de uma criança com a família biológica e o início de uma nova trajetória com pais adotivos, igualmente vulneráveis, diante das circunstâncias do início de uma adoção.

A Lei 13.509/2017 alterou o Estatuto da Criança e do Adolescente para regular o ato da entrega pela mãe ou família biológica, ainda que timidamente, no artigo 19-A[2]. O intuito da regulação da entrega voluntária é impedir o abandono e a permanência da criança com uma mãe ou família sem o mínimo de condições necessárias para cuidá-la.

A entrega voluntária e regular para a rede de proteção da infância, porém, teria o condão de evitar a entrega dirigida para conhecidos e amigos integrantes da rede pessoal social dos pais biológicos? Pois muito mais do que casos noticiados pela mídia de abandono de recém-nascidos em ruas, em lixeiras e outros lugares ermos, sempre com o enfoque na crueldade dos adultos, o que é habitual e frequente são as entregas dirigidas para conhecidos. Prova disso é o embate constante entre os defensores da observância rigorosa e inflexível do cadastro da adoção e da possibilidade da adoção consentida ou dirigida nos julgados dos tribunais de todo o país.

Alguns importantes estudos na área da assistência social, da psicologia e da antropologia[3] já foram realizados na dissecação dos vários aspectos da entrega voluntária de recém-nascidos a conhecidos da rede social pessoal de mães ou pais da família biológica, havendo, porém, poucos estudos jurídicos sobre como estruturar a política nacional de adoção a partir desses dados.

Para além da regulação normativa do ato da entrega em consonância com o atual sistema do cadastro da adoção[4], é preciso que se analise se a atual adoção, legalmente fechada, ou seja, sem permitir que a família biológica e a família adotiva se comuniquem e se relacionem antes e após a adoção é um fator impeditivo para uma entrega regular efetiva ou, se contrariamente, a adoção aberta permitiria mais entregas à rede de proteção e menos adoções diretas.

Defender a observância rigorosa do cadastro, com a devolução das crianças às instituições de acolhimento e a responsabilização dos pais guardiães/adotivos pela infringência ao princípio de igualdade de acesso às adoções pelo sistema do cadastro ou, por outro lado, defender a sua desconsideração em homenagem ao melhor interesse da criança pela teoria do fato consumado, é simplesmente continuar a ignorar o porquê de tantas dessas ocorrências.

Por outro lado, é possível tentar conjugar o sistema do cadastro com entregas regulares a partir da aproximação das partes envolvidas na adoção, com a mudança do paradigma que a adoção impede que a família biológica tenha ao menos notícias de seus filhos e de seus destinos. O direito previsto no artigo 48 do Estatuto da Criança e do Adolescente refere-se apenas ao direito do filho de conhecer a sua origem biológica e de ter acesso ao processo referente à sua adoção, e só[5], o que já seria questionável, mas que foge ao tema deste trabalho. Por que os pais biológicos não são titulares de um direito à informação sobre a vida e a história de seus filhos entregues, autônomo e independente da renúncia ao poder familiar e da própria maternidade/paternidade? Aos pais biológicos nenhum direito sequer assemelhado foi reservado, afinal se entregam seus filhos, se renunciam ao poder familiar e a própria parentalidade, são tratados como sujeitos de não-direitos, à margem do ordenamento jurídico. Devem entregar seus filhos e esquecê-los, para sempre, sob a lógica do Estatuto.

O Estado, a partir da entrega de uma criança e da renúncia à parentalidade, passa a ser o responsável por decidir sozinho o futuro daqueles a si confiados, inclusive seus novos pais. Nenhuma manifestação de vontade dos pais biológicos deve ser levada em consideração a partir da lógica de que se não serão os pais, tampouco poderão indicar quem poderia ser ou ter notícias de seus filhos ou ainda garantir, de alguma forma, o respeito à memória e a história de suas origens.

E se no ato da entrega, a família biológica pudesse condicioná-la ao conhecimento dos pretendentes a pais e a ter notícias periódicas sobre seus filhos? Essa aproximação entre os envolvidos não poderia facilitar a entrega e tornar mais humana e menos burocrática esse ato cercado de tanta vulnerabilidade, para todos os participantes?

De acordo com Maria Antonieta Pisano Motta[6] a política da adoção fechada no Brasil, cujas características são o anonimato da família de origem e a pretensa salvaguarda da privacidade dos envolvidos, acaba por perpetuar o estigma e as fantasias do adotado a respeito da realidade de sua entrega em adoção, dentre elas a de que foi abandonado, não querido, rejeitado pela própria mãe. De acordo ainda com a autora a política da adoção fechada, verdadeira blindagem da família biológica para o próprio filho e sua nova família, é alimentada pelo preconceito existente em relação às mães biológicas, elaborada socialmente como uma pessoa desumana, sem princípios morais e éticos, que precisa ser apagada da história e da vida de seus próprios filhos, como um equívoco que precisa ser ultrapassado. No entanto, o ato da entrega não necessariamente é uma rejeição, podendo ser um ato de cuidado e proteção, na tentativa lógica e compreensível de garantir a um filho uma vida melhor e não miserável.

Nesse sentido, a adoção fechada perpetua o mito da criança abandonada, repleta de segredos e identidades desconhecidas, que mais alimentam um estigma do que protegem direitos das partes envolvidas. A quem interessa de fato o anonimato? Em que medida esse anonimato não incentiva as adoções consentidas[7]?

Acerca da política da adoção, Claudia Fonseca destaca que a evolução da legislação protetiva da criança e do adolescente no país transcorreu sobre dois pontos completamente diferentes[8]. O primeiro refere-se à igualdade absoluta de direitos entre filhos adotivos e filhos biológicos, consagrando-se apenas uma única forma de adoção, a plena, em que todos os filhos, independentemente de sua origem, possuem exatamente os mesmos direitos. O segundo ponto, interligado pelo sistema artificialmente ao primeiro, é o princípio da exclusividade dos direitos parentais, em que todos os laços entre a criança adotada e seus pais biológicos são cortados[9], possuindo os Tribunais o poder de decidir quem poderá ter acesso aos registros de nascimento. Sob o pretexto de igualar os filhos, a legislação impôs o princípio da exclusividade, apagando a origem da criança adotada e qualquer tipo de vínculo, com um rompimento radical, quando na verdade o que há de ser estabelecido com precisão em um processo de adoção são os vínculos parentais e o poder familiar, sendo os direitos informativos autônomos.

Ainda segundo a antropóloga, o princípio da exclusividade foi imposto pela lei a despeito do que culturalmente acontece na realidade brasileira. Uma das normas de circulação de crianças entre as famílias mais vulneráveis é a sua criação concorrente por pais, familiares, padrinhos e amigos, mantendo-se sempre presente por seus cuidadores a identidade biológica e o contato com a família de origem. Arranjos adotivos informais fazem, portanto, parte da organização familiar de muitos trabalhadores e mesmo quando são incapazes de criar seus filhos esperam ter contatos episódicos com eles e notícias suas. Assim, o princípio da exclusividade e a norma sociocultural de circulação de crianças, que permite o acúmulo de figuras parentais e a identidade consanguínea das crianças, colidem frontalmente, criando-se um abismo, nesse ponto, entre os fatos e o direito[10].

Não à toa, ao se sentirem alijados no processo de escolha e do conhecimento dos pais adotivos pelos órgãos oficiais, os pais biológicos optam pela adoção à brasileira ou pela adoção consentida por serem caminhos que os tornam autores e protagonistas da vida de seus filhos. Contrariamente, a entrega para o sistema é interpretada pelos pais biológicos como um abandono, vez que desconhecem, além da funcionalidade das políticas de recolocação de crianças, o próprio destino e a nova família de seus filhos[11]. Entre uma burocracia incompreensível e distante, em que sequer os próprios direitos e deveres são bem compreendidos de um lado, e familiares, padrinhos, amigos e os conhecidos dos conhecidos do outro, opta-se pelo que lhes parece mais humano.

A profilaxia da entrega é de suma importância para todo o sistema de proteção à criança e ao adolescente pois é o ponto de partida de todos os envolvidos nesse processo. Aproveitar a sua regulação pela Lei 13.509/2017 e debatê-la ao máximo, em todos os aspectos que a circundam e se relacionam, é permitir se avançar na proteção da infância, e, sair do dilema intransponível e eterno entre a prevalência do cadastro e a adoção consentida consumada. Regular a entrega evita o abandono, a permanência da criança em condições desumanas, na rua, seu abrigamento forçado, a desobediência ao cadastro para os seus defensores. Mas para isso o sistema precisa se abrir, se flexibilizar e se aproximar das mães e famílias biológicas e objetivar o ato da entrega, sem críticas morais e pejorativas, cercadas de anonimato e estigmas.

O Estatuto da Criança e do Adolescente segue as Convenções Internacionais sobre os direitos da criança, é considerado uma das legislações mais modernas da atualidade, mas ignora o fato social histórico de circulação de crianças entre a rede social pessoal dos pais biológicos, tentando impor um sistema formal de adoção fechada e mediado com exclusividade pelo Estado. Por que não trazer a abertura que as adoções consentidas e à brasileira autorizam para dentro do sistema?

A proposta deste trabalho é compreender se a regulação da entrega pela Lei 13.509/2017 estaria mais uma vez em desacordo com as dinâmicas sociais; porque a adoção aberta é interpretada como infratora dos direitos da criança e do adolescente; porque a adoção fechada e o princípio da exclusividade, por outro lado, são benéficos para as crianças.  Essas são algumas inquietações que esse estudo, mais do que responder, se propõem a questionar e iluminar, sendo certo que suas conclusões não podem ser obtidas com subsídio apenas no território jurídico.

  1. A regulação do ato da entrega pelo Estatuto da Criança e do Adolescente

De acordo com a Lei 13.509/2017, a gestante ou mãe que manifeste interesse em entregar seu filho para adoção, antes ou logo após o nascimento, será encaminhada à Justiça da Infância e da Juventude. Nos parágrafos seguintes ao artigo 19-A do Estatuto da Criança e do Adolescente são apresentados como requisitos e procedimentos para a concretização da entrega: (I) a elaboração de relatório pela equipe interprofissional; (II) a busca pela família extensa no prazo máximo de 90 dias; (III) a designação da audiência do §1º do artigo 166 com a confirmação pelos pais biológicos da vontade de entregar e, na ausência de comparecimento, a suspensão do poder familiar com a colocação da criança sob a guarda provisória de quem estiver habilitado para adoção e, por fim (IV) o direito ao sigilo do ato de entrega à adoção.

A fim de uniformizar os procedimentos e trabalhos do ato da entrega o I Fórum dos Juízes da Infância e da Juventude do Rio de Janeiro (FOEJI-RJ) apresentou 12 enunciados, merecendo destacar alguns. De acordo com o 3º enunciado, na hipótese da genitora ou os pais não comparecerem a audiência do artigo 166 do Estatuto, deverá o juiz decretar extinto o poder familiar da genitora que tenha manifestado seu interesse de promover a entrega de seu filho em adoção, nos próprios autos da entrega. Desta forma, torna-se desnecessário o ajuizamento de ação de destituição do poder familiar apenas para esse fim, desburocratizando a entrega e a definição da situação jurídica da criança.

                    Com relação à implementação da regra do §10 do artigo 19-A, pela qual serão cadastrados para adoção recém-nascidos e crianças acolhidas não procuradas por suas famílias no prazo de 30 (trinta) dias, contado a partir do dia do acolhimento, de acordo com o 6º enunciado isso só deve ocorrer no caso de pais ignorados ou órfãos com dados insuficientes que impossibilitem a busca pela família extensa.

                   Aliás, sobre a busca pela família extensa, a regra do §3º trouxe uma limitação temporal de 90 dias, prorrogável por igual período, e, apenas deverá ocorrer se a mãe renunciar ao direito ao sigilo no ato da entrega, previsto no parágrafo 9º do mesmo artigo. Caso a mãe opte pelo sigilo do ato da entrega, não deve se procurar pela família extensa de acordo com o 5º enunciado do I Fórum do FOEJI-RJ, sob pena desse direito não ser respeitado, o que pode comprometer a própria entrega. Aqui a lógica da lei parece ter sido dar a mãe o apoio necessário ao difícil ato da entrega, mantendo-lhe a salvo das críticas morais que seus familiares e conhecidos poderiam tecer.

                  É importante pontuar que o sigilo que cerca o ato da entrega não se traduz em absoluto anonimato quanto à identidade biológica materna, não tendo o Estatuto da Criança e do Adolescente acolhido o instituto do parto anônimo, de acordo com o 4º enunciado do FOEJI-RJ[12]. O parto anônimo se diferencia do sigilo previsto para o ato da entrega na medida em que permite que nenhum registro com relação à origem biológica seja feito nos assentos estatais, comprometendo o direito do filho ao conhecimento de sua ascendência genética. O sigilo permitido pelo § 10 do artigo 19-A do Estatuto refere-se tão somente ao ato da entrega, mantendo-se um registro civil da criança com os dados da Declaração de Nascido Vivo-DNV. Nesse ponto, o legislador ponderou tanto os interesses da mãe biológica no momento da entrega quanto do filho ao conhecimento de sua origem genética, mantendo possível a efetivação da regra do artigo 48 do Estatuto[13].

                  Apesar de ser o sigilo uma opção e do espectro variado do perfil das mães que entregam seus filhos em adoção, não parece ser, segundo os estudos realizados e supracitados, uma necessidade da maior parte das mães. A necessidade de se esconder uma gravidez não planejada ocorrida fora do casamento nos dias atuais não é mais tão relevante como já foi para mães solteiras socialmente estigmatizadas pelo exercício de sua sexualidade fora do matrimônio[14]. Hoje o estigma não é mais contra a gravidez fora do casamento, mas contra o não exercício da maternidade diante do mito do amor materno. Sob este enfoque da censura a recusa da maternagem o sigilo pode ajudar às mães no ato da entrega. Mas não parece ser esse o pondo nodal da entrega. A realidade mostra que muitas mães entregam seus filhos para parentes ou amigos ou conhecidos destes, nas adoções consentidas, sem que estes atos se revistam de sigilo.

                A questão chave está na entrega para quem. Entregar para um juiz, um sistema, um cadastro, uma rede protetiva da infância é por demais despersonalizado e complexo para quem em situação de extrema vulnerabilidade precisa tomar uma decisão dificílima, senão a mais de toda uma vida. A sanção civil materializada na perda do poder familiar prevista pela Lei 13.509/2017, no inciso V do artigo 1.638 do Código Civil,[15] para quem entrega de forma irregular seu filho não surte praticamente qualquer efeito diante da renúncia da própria parentalidade. Seu único alcance poderia ocorrer na hipótese de arrependimento posterior da mãe biológica que quisesse reassumir seu filho.

                  Por outro lado, a condenação dos pais adotivos, previamente cadastrados ou não, que recebem essas crianças nas adoções consentida em danos morais coletivos[16] tampouco será um fator determinante para quem entrega ou ainda para quem recebe, até mesmo pelos valores baixíssimos dessas condenações, de acordo com a tradição dos nossos tribunais na quantificação de danos extrapatrimoniais. A única sanção capaz de intimidar entregas dirigidas para quem recebe as crianças fora da ordem cronológica do cadastro seria a certeza da perda da guarda e do vínculo com o adotando, mesmo após muito tempo de convivência, em ações de adoção malsucedidas.

                  Não são poucos os casos em que diante de uma entrega dirigida, o Ministério Público propõe ação de destituição do poder familiar cumulada com medida protetiva de acolhimento institucional tendo como causa de pedir a entrega irregular da criança pela mãe biológica a terceiros[17]. Para este órgão é preciso defender o respeito à ordem cronológica dos habilitados, que se submetem às regras legais e judiciais do sistema, aguardando, muitas vezes com ansiedade e persistência, pelo seu momento, sob pena inclusive do próprio sistema ruir e perder a credibilidade[18].

     O Poder Judiciário, no entanto, tem levado em consideração, nessas hipóteses, o tempo de convivência e o vínculo firmado com os pais pretendentes à adoção, sendo o melhor interesse da criança, mesmo diante de possíveis ilegalidades, o norte e a diretriz desses julgamentos[19]. Para o Poder Judiciário, na maior parte dos julgados, o cadastro não pode ser considerado um fim em si mesmo, de observância irrestrita e absoluta, mas apenas um dos meios em que a adoção pode ser estabelecida, em que pese haver decisões contrárias que enfatizam o respeito total ao cadastro, salientando que sua dispensa ocorre tão somente nas hipóteses do §13 do artigo 50 do Estatuto.  Além das adoções unilaterais ou por parentes com vínculos afetivos, apenas quem detenha a guarda legal ou a tutela de crianças maiores de 03 anos poderá dispensar a inscrição e a ordem cronológica do cadastro.

      Cientes da jurisprudência que se formou no Superior Tribunal de Justiça e nos Tribunais locais, guardiões de fato, não raro,  esperam o decurso do tempo para só então ajuizar as ações de adoção com base no melhor interesse da criança ou judicializam apenas pedidos de guarda, para após a obtenção da guarda legal, com base no inciso III do § 13 do artigo 50 do Estatuto, alcançarem a adoção. Depois do transcurso do tempo e da formação do vínculo, o melhor interesse da criança prevalece sobre a entrega, dita irregular, e sobre o cadastro, que deixa de ser a única porta de entrada do sistema adotivo para os adotantes.

                  As vacilações e ausência de delimitação precisa e da qualificação jurídica da adoção consentida pelo próprio Poder Judiciário se percebe claramente no enunciado 10 do 1º encontro dos Juízes da Infância e da Juventude do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em que se ressalta que “em que pese não ser a priori ilegal, a adoção dirigida não é recomendável, devendo-se adotar cautelas quanto à legitimidade do consentimento materno, bem como promover, como regra a observância do Cadastro de Pretendentes à  adoção, inclusive advertindo e responsabilizando entidades e pessoas que promovam o agenciamento de crianças para adoção”[20]. Ora, é certo que a adoção consentida não é um ilícito penal como o abandono e a adoção à brasileira, mas é preciso situá-la como ilícito civil ou não de uma vez por todas, e quais as consequências para quem a pratica, sendo as dúvidas e vacilações do julgador prejudiciais a todo sistema protetivo. Como caminhar com segurança, se o Poder Judiciário, instância de resolução de conflitos e criação de certezas, considera não ser a adoção dirigida, a priori, ilegal, mas não recomendável. Não pode existir recomendações ou conselhos na última instância de definição de litígios.

       A todo esse confuso estado de coisas, some-se que o perfil mais comum das crianças entregues nas adoções consentidas é justamente de recém-nascidos, sendo para as mães biológicas, segundo depoimentos delas, mais fácil pela não criação do vínculo, e, ao mesmo tempo o perfil mais procurado pelos pais adotivos habilitados nos cadastros.

       Por outro lado, é importante mencionar que a competência exclusiva da Justiça especializada da Infância e da Juventude para a realização de adoções[21], com a abolição de sua instrumentalização por escrituras públicas, teve como objetivo proteger integralmente crianças e adolescentes, remediando a vulnerabilidade fática e jurídica em que se encontram. Inclusive, no que diz respeito, ao cadastramento de adotantes também unicamente pelas varas da infância, após sua certificação pela equipe técnica auxiliar dos juízos, a preocupação foi de entregar crianças apenas para mães e pais preparados para assumir essa função. Nesse sentido, a habilitação à adoção não constitui uma mera formalidade, mas é parte integrante de um sistema engendrado e criado para efetivar com a maior eficiência possível o direito à convivência familiar, já que a circulação de crianças, após possíveis devoluções, é uma grave infringência a esse direito tão caro e fundamental.

       A normatização da entrega pela Lei 13.509/2017 no artigo 19-A mostra a preocupação do legislador em regular não apenas o instituto civil da adoção, mas todas as fases do direito maior constitucional à convivência familiar até se chegar a ação de adoção, com repulsa as entregas ditas irregulares pelos defensores do sistema, trazendo essa responsabilidade também para os órgãos públicos e reduzindo o papel do Poder Judiciário como mero chancelador das ditas adoções prontas. No entanto, prever, sob o ponto de vista legal, a possibilidade da entrega não é suficiente para efetivá-la e eliminar as entregas dirigidas, uma realidade social e antropológica confirmada pelas pesquisas, sendo notória a circulação de crianças entre a rede social pessoal dos pais há muitos anos. A se descurar mais uma vez essa realidade, será perpetuado o abismo existente entre as normas legais e as normas sociais, sendo infinitas as alterações legislativas a que o Estatuto continuará sendo submetido. A experiência com a instituição do cadastro já mostrou que a sua adesão é limitada e que as adoções fora dele continuam acontecendo.

      É preciso pensar se no ato da entrega as mães ou a família biológica podem conhecer os habilitados por meio do sistema da rede protetiva, se assim desejarem, ainda que mantido o sigilo da entrega com relação aos seus familiares e conhecidos; se os habilitados podem optar por uma adoção aberta ou fechada, assim como podem optar pelo perfil desejado de crianças quanto à idade, raça, grupo de irmãos e questões de saúde, através de uma releitura do princípio da exclusividade que impõe um sistema de rompimento absoluto sem respeito à história e individualidade de cada um; se o sigilo e a ausência de contato e informações entre a família biológica e a família adotiva é uma regra absoluta e protetiva, levando-se em consideração todos os interesses convergentes dos seus principais atores, dentre eles, o do filho em saber com efetividade sua origem e sua história como uma pessoa inteira; o dos pais adotivos a terem uma vida tranquila, sem sobressaltos e questionamentos, quanto à parentalidade; o dos pais biológicos ao sigilo, quando assim o desejarem, sem serem blindados e descartados depois da entrega e, ainda o interesse do próprio Estado em promover adoções estáveis e uma política de adoção confiável e segura, afastando tantas incertezas reveladas nos próprios julgados.

Cuidar do momento da entrega de uma criança, ponto onde tudo se inicia, rechaçando o ideal de que o sigilo da história da origem de uma vida a protege, e deve permanecer inacessível por muitos anos, é curial para que as mães biológicas se aproximem do sistema, sendo ouvidas e se tornando atores do processo. A oposição criada, no plano legislativo, entre família biológica e família adotiva, num sistema em que o centro dos interesses é a proteção e defesa de crianças e adolescentes, pessoas com identidades, histórias e sentimentos, nem sempre funciona, sendo inviável a perpetuação da lógica do tudo ou não, em que é preciso desaparecer com uma história para que outra possa se estabelecer.

Apesar de já ter sido muito veiculado e reiterado que os verdadeiros pais são aqueles que cuidam de seus filhos, o sistema parece ainda caminhar sobre velhos preconceitos. O vínculo e a origem biológica não é, e nem precisa ser, um fantasma para o sistema da adoção, rodeada em sigilo. O cuidado das crianças e a assunção das responsabilidades por filhos não biológicos é o cerne da relação familiar, a ser protegida e respaldada pela justiça da infância por esse fundamento. O legislador da infância não pode ignorar os fatos sociais, tampouco tentar combatê-los com regulações opostas, sob pena de sucumbir na ineficácia. A entrega tem que ser atraente, transparente e segura para quem está renunciando ao poder familiar e a parentalidade. Desconsiderar a forma de agir e a história de boa parte da população e impor, por via legislativa, uma nova maneira de cuidar das crianças, ainda que em obediência a normas internacionais protetivas dos direitos da infância, é chancelar o insucesso. É preciso repensar a máxima de que a mãe biológica não tem o direito de saber e de influir na escolha da família de seu filho, e, a partir daí, como fazer isso dentro da justiça da infância.

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Notas:

[1] Mestra em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ

Advogada e membro da comissão de Direito da Criança e do Adolescente da OAB/RJ

[2] ECA, artigo 19-A: “A gestante ou mãe que manifeste interesse em entregar seu filho para adoção, antes ou logo após o nascimento, será encaminhada à Justiça da Infância e da Juventude”.

[3] Dentre os estudos se destacam o trabalho de Dalva Azevedo Gueiros, Maria Antonieta Pisano Motta, e Claudia Fonseca descritos ao final na bibliografia.

[4] ECA, artigo 50: “A autoridade judiciária manterá, em cada comarca ou foro regional, um registro de crianças e adolescentes em condições de serem adotados e outro de pessoas interessadas na adoção”.

[5] ECA, artigo 12: “O adotado tem direito de conhecer sua origem biológica, bem como de obter acesso irrestrito ao processo no qual a medida foi aplicada e seus eventuais incidentes, após completar 18 (dezoito) anos”.

[6] MOTTA Maria Antonieta Pisano. Mães Abandonadas: a entrega de um filho em adoção. 4 ed. São Paulo: Cortez, 2015, p. 36.

[7] Adoção consentida, também nominada de adoção intuitu personae ou dirigida, é aquela em que a família biológica entrega diretamente seu filho para alguém conhecido, cadastrado ou não pelas varas da infância, e com a adoção à brasileira e o abandono não se confundem. Na adoção à brasileira, os pais adotivos registram como se fossem seus filhos de terceiros, o que constitui o ilícito penal previsto no artigo 242, e, no abandono não há entrega a alguém, expondo-se a vida e a integridade física da criança a risco, sendo por isso também previsto como ilícito penal, previsto no artigo 133 do Código.

[8] FONSECA, Claudia. A política da adoção: direitos da criança no cenário brasileiro. Disponível em: https://claudialwfonseca.webnode.com.br/_files/. Acesso em 20.05.2019.

[9] ECA, artigo 41: “A adoção atribui a condição de filho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo com pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais”.

[10] Em Portugal existe a figura do apadrinhamento civil, em que crianças são criadas e educadas por padrinhos, que passam a ser titulares do poder familiar, mantendo-se, porém, o vínculo de parentalidade, conforme previsão da Lei Portuguesa nº. 103 de 2009. Esse instituto civil é subsidiário da adoção e foi idealizado pelo sistema jurídico português para aquelas crianças com chances remotas de adoção, aqui nominadas de adoções tardias.

[11] Nesse sentido, conferir FONSECA, Claudia. A política da adoção: direitos da criança no cenário brasileiro. p. 17. Disponível em: https://claudialwfonseca.webnode.com.br/_files/. Acesso em 20.05.2019. De acordo com essa autora “a adoção legal é coberta de um manto de segredo. Do momento em que são destituídos do pátrio poder, não tem mais ideia nenhuma do que acontece com seu filho. Assim, muitos dos pais pobres com os quais conversei julgam (talvez, com razão) que não deveriam buscar ajuda estatal a menos que estejam prontas para ver suas crianças etiquetadas de “abandonadas” e transportadas para um destino desconhecido. A adoção à brasileira, pelo contrário, faz dos pais biológicos – e frequentemente outros parentes do grupo familiar mais amplo – participantes ativos na escolha da nova família de uma criança”. Em sentido diametralmente oposto Murillo José Digiácomo defende que as práticas consagradas pelo extinto Código de Menores acabaram por reconhecer, ainda que de forma implícita, um “direito de propriedade” dos pais em relação aos seus filhos, em que eles teriam o direito de indicar ou mesmo escolher, de forma aleatória, os pais adotivos, tendo a Lei 12.010/2009 o propósito de deixar explícito a erradicação definitiva dessas práticas contra legem. Segundo este autor: “(…) o legislador estatutário jamais conferiu aos pais qualquer “direito de escolha” em relação às pessoas que irão adotar seus filhos, pois esta é uma prerrogativa exclusiva da Justiça da Infância e da Juventude que, ainda assim, para seleção dos adotantes de crianças e adolescentes está sujeita à estrita observância das normas e princípios inerentes à matéria, devendo agir com cautela extremada, na perspectiva de aferir a motivação, idoneidade e preparo dos candidatos à medida, de modo a se certificar que esta, de fato, atende aos interesses dos adotandos”. DIGIÁCOMO, Murillo José. Da impossibilidade jurídica da “adoção intuitu personae” no ordenamento jurídico brasileiro à luz da Lei 12.010/2009 e a Constituição Federal de 1988. Disponível em: www.crianca.mppr.mp.br/pagina-1081.html. Acesso em 10.01.2019

[12]4º ENUNCIADO do I Fórum dos Juízes da Infância e da Juventude do Rio de Janeiro (FOEJI-RJ): A Lei 13.509/2017 não instituiu o denominado “parto anônimo”, e sim o direito ao sigilo quanto à entrega à adoção, manifestado em audiência, na forma prevista no artigo 166 do ECA, hipótese em que o registro civil da criança será lavrado com os dados constantes da Declaração de Nascido Vivo, respeitado assim o direito previsto no artigo 48 do ECA. Disponível em: http://www.tjrj.jus.br/noticias/noticia/-/visualizar-conteudo/5111210/6260803. Acesso em: 30.03.2019.

[13] ECA, Art. 48.  O adotado tem direito de conhecer sua origem biológica, bem como de obter acesso irrestrito ao processo no qual a medida foi aplicada e seus eventuais incidentes, após completar 18 (dezoito) anos. Parágrafo único.  O acesso ao processo de adoção poderá ser também deferido ao adotado menor de 18 (dezoito) anos, a seu pedido, assegurada orientação e assistência jurídica e psicológica.

[14] De acordo com Maria Clara Sottomayor “o segredo como interdição de acesso ao conhecimento da verdade biológica e da identidade dos pais, remonta ao período da Segunda Grande Guerra e está relacionado com a mudança do perfil da mãe biológica, o qual passa a ser o da mãe solteira jovem, embora já em períodos anteriores, durante a primeira metade do século XX, o segredo fosse invocado para proteger os pais adoptivos de interferências de pais biológicos e para facilitar o recrutamento de pais adoptivos. Por razões de privacidade, e uma vez que a sexualidade feminina fora do casamento era socialmente estigmatizada, as mães biológicas que davam os seus filhos para a adopção exigiam segredo quanto à sua identidade”. SOTTOMAYOR, Maria Clara. Quem são os “verdadeiros” pais? In: SÁ, Eduardo. Abandono e adoção. Coimbra: Almedina, 2008, p. 149.

[15] Código Civil Brasileiro, Art. 1.638. Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que: V – entregar de forma irregular o filho a terceiros para fins de adoção.

[16] Sobre a regularidade ou não da adoção consentida, existe um intenso debate na doutrina quanto à não proibição expressa pelo artigo 50 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Neste sentido, conferir:  FRANCO, Natália Soares. A entrega de um filho em adoção como ato de cuidado e responsabilidade. In: PEREIRA, Tânia da Silva; OLIVEIRA, Guilherme. Cuidado e responsabilidade. São Paulo: Atlas, 2011, p. 230-236. Com relação à condenação de pais adotivos em ações por danos morais coletivos, conferir o seguinte julgado, em que prevaleceu que a adoções consentidas violam a regra do artigo 50 do Estatuto, pois os pais adotivos desobedecem à lista e a ordem de antiguidade dos adotantes, ferindo o igual direito de acesso às adoções que todos devem ter na hipótese de perfil idêntico dos adotandos: TJ/RJ, 3ª Câmara Cível, Apelação Cível 0011604.73.2016.8.19.0007, Relatora Desembargadora Renata Machado, Data do julgamento: 09.05.2018. Disponível em: http://www4.tjrj.jus.br/EJURIS/ProcessarConsJuris.aspx?PageSeq=0&Version=1.1.4.1     Acesso em: 11.06.2019.

[17] O Ministério Público fundamenta suas ações nas regras do §13 do artigo 50 e §1º do artigo 197-E do Estatuto, pelos quais:

Art. 50: (….)

  • 13.  Somente poderá ser deferida adoção em favor de candidato domiciliado no Brasil não cadastrado previamente nos termos desta Lei quando:

I – se tratar de pedido de adoção unilateral;

II – for formulada por parente com o qual a criança ou adolescente mantenha vínculos de afinidade e afetividade;

III – oriundo o pedido de quem detém a tutela ou guarda legal de criança maior de 3 (três) anos ou adolescente, desde que o lapso de tempo de convivência comprove a fixação de laços de afinidade e afetividade, e não seja constatada a ocorrência de má-fé ou qualquer das situações previstas nos arts. 237 ou 238 desta Lei.

Art. 197-E. Deferida a habilitação, o postulante será inscrito nos cadastros referidos no art. 50 desta Lei, sendo a sua convocação para a adoção feita de acordo com ordem cronológica de habilitação e conforme a disponibilidade de crianças ou adolescentes adotáveis.

  • 1oA ordem cronológica das habilitações somente poderá deixar de ser observada pela autoridade judiciária nas hipóteses previstas no § 13 do art. 50 desta Lei, quando comprovado ser essa a melhor solução no interesse do adotando.

[18] Nesse sentido conferir a opinião de DIGIÁCOMO, Murillo José. Da impossibilidade jurídica da “adoção intuitu personae” no ordenamento jurídico brasileiro à luz da Lei 12.010/2009 e a Constituição Federal de 1988. Disponível em: www.crianca.mppr.mp.br/pagina-1081.html. Acesso em 10.01.2019. Sobre a credibilidade do Poder Judiciário, Fabíola Alburquerque Lobo pontua que é preciso relativizar o caráter absoluto que se pretender dar ao cadastro, como único procedimento viável para a adoção, justamente pela enorme burocracia e prazos a que o sistema está imerso, o que pode prejudicar o direito fundamental de ter uma família, em detrimento das adoções consentidas. Segundo a autora, “(…) é inconcebível uma lei destituída de sua finalidade social, ser aplicada sem considerar o caso concreto e desprestigiando o princípio do melhor interesse. Inexiste qualquer hierarquia legal entre a família biológica e a socioafetiva, o que demanda interpretação da lei de adoção em harmonia com os princípios fundamentais que tutela as relações parentais. In: LOBO, Fabiola Albuquerque. Adoção consentida e o cadastro nacional de adoção: harmonização que se impõe. In: Pensar, Fortaleza, v. 21, n.2, p. 484-506, maio/ago.2016.

[19] Nesse sentido conferir STJ, 4ª Turma, REsp 1.383.040-PR, Relator Ministro Luís Felipe Salomão. Data do julgamento: 04.02.2014. Acesso em 10.06.2019. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=MON&sequencial=31498048&num_registro=201301365155&data=20140204&formato=PDF

[20] Enunciado citado no artigo de autoria de SOUZA, Rodrigo Faria de. Adoção dirigida: vantagens e desvantagens. Revista da EMERJ, n. 45, v.12, 2009, p. 184-194

[21] ECA, artigo 39: A adoção de criança e de adolescente reger-se-á segundo o disposto nesta Lei.

   ECA, artigo 148. Art. 148. A Justiça da Infância e da Juventude é competente para: III -conhecer de pedidos de adoção e seus incidentes.

Palavras Chaves

Entrega legal. Adoção. Anonimato. Infância.