O CONFLITO DE NORMAS NA PANDEMIA DA COVID-19: UM ESTUDO DE CASO SOBRE A INSEGURANÇA JURÍDICA ENTRE ESTADO DO RJ E O MUNICÍPIO DE SÃO JOÃO DE MERITI

Resumo

A crise sanitária enfrentada à nível internacional, vem deixando cada vez mais claras as diversas deficiências no Brasil, que partem desde a estrutura do Sistema Único de Saúde até mesmo ao entendimento de quais e como as medidas de isolamento serão adotadas a fim de conter o avanço da doença. Tal fato demonstra que a COVID-19 trouxe não só um profundo problema sanitário, mas também diversos desafios ao pacto federativo. A decisão do STF na ADPF 672 e na ADI6341 que determinou a autonomia dos entes da federação para tratar do assunto, evidenciou divergências na interpretação do texto constitucional e das regras de conflito de normas no espaço já prevista na legislação. Tais divergências têm colocado em conflito normas estaduais e municipais, gerando profunda insegurança jurídica e pior ainda, agravando o problema sanitário atual.

Artigo

O CONFLITO DE NORMAS NA PANDEMIA DA COVID-19: UM ESTUDO DE CASO SOBRE A INSEGURANÇA JURÍDICA ENTRE ESTADO DO RJ E O MUNICÍPIO DE SÃO JOÃO DE MERITI

  

Autoras: Gracy Helen Marinho de Andrade1 Júlia Ellen Ramos Martins Pedro2

Orientador: Carlos Eduardo S. Gonçalves 3

RESUMO: A crise sanitária enfrentada à nível internacional, vem deixando cada vez mais claras as diversas deficiências no Brasil, que partem desde a estrutura do Sistema Único de Saúde até mesmo ao entendimento de quais e como as medidas de isolamento serão adotadas a fim de conter o avanço da doença. Tal fato demonstra que a COVID-19 trouxe não só um profundo problema sanitário, mas também diversos desafios ao pacto federativo. A decisão do STF na ADPF 672 e na ADI6341 que determinou a autonomia dos entes da federação para tratar do assunto, evidenciou divergências na interpretação do texto constitucional e das regras de conflito de normas no espaço já prevista na legislação. Tais divergências têm colocado em conflito normas estaduais e municipais, gerando profunda insegurança jurídica e pior ainda, agravando o problema sanitário atual.

PALAVRAS CHAVE: autonomia; entes da federação; normas; pandemia; covid-19;

INTRODUÇÃO

 A crise sanitária instaurada a nível mundial pela pandemia da COVID-19 já foi responsável por milhões de óbitos no mundo todo, e quase 300 mil apenas no Brasil. Não obstante a crise sanitária, há ainda que se falar em diversas outras questões como as econômicas e jurídicas que são provenientes das medidas de isolamento social. Um ano após ser decretada a pandemia, diversos foram os problemas enfrentados pelo Brasil para conter o avanço da doença, e tais problemas não se restringem apenas à esfera da saúde.

A carta magna prevê em seu art.196 que: “A saúde é direito de todos e dever do Estado”, tal redação ocasionou um desentendimento sobre a que ente da federação cabia a responsabilidade de legislar e adotar medidas para o enfretamento da pandemia, o que resultou na arguição de descumprimento de preceito fundamental de número 672 levada ao STF para julgamento.

Antes de entrar no mérito da decisão, há que se analisar que a carta magna já previa em seu art. 23 II a competência comum entre todos os entes da federação para cuidar da saúde, observando-se o disposto no art.24 XII que determina a competência concorrente para legislar sobre o assunto. Neste diapasão a decisão do Ministro do STF Alexandre de Morais, determinou que seja respeitada a autonomia dos entes da federação, conforme os preceitos da constituição, para que no exercício de suas atribuições, e observados os limites territoriais, pudessem autonomamente, adotar ou manter medidas para o enfretamento da pandemia.

Fato é que o presente artigo observou um conflito entre uma norma estadual e uma norma municipal no Rio de Janeiro que gerou insegurança jurídica sobre quais medidas adotar, e consequentemente tornou ineficaz a obrigação final do ente: proteger e cuidar da saúde de todos.

As normas em questão são a lei estadual 9224/2021 e decreto estadual 47.540 versus o decreto municipal 6522/2021 da prefeitura de São João de Meriti. A lei estadual em questão determinava medidas de isolamento bastante restritivas para o período de feriado prolongado compreendido entre os dias 26/03 e 04/04. Adverso ao dispositivo estadual, há o decreto municipal, que por sua vez adotava medidas muito mais amenas, desconsiderando inclusive o parágrafo único do artigo 4º da lei estadual que determinava que em havendo conflito de normas estaduais e municipais, prevaleceria aquela que fosse mais restritiva.

O presente artigo traz, portanto, a importante discussão que gira em torno da autonomia dos entes da federação, com o questionamento de qual o limite dessa autonomia e quais considerações deve-se adotar quando essa autonomia gera insegurança jurídica sobre que norma deve ser levada em consideração não somente para fins jurídicos e econômicos, mas também, e principalmente, para os fins sanitários a que ela se preza.

Para tanto, este trabalho apresenta-se como uma pesquisa qualitativa com coleta de dados de forma bibliográfica e de estudo de casos, para analisar à luz do direito constitucional e dos princípios que regem o pacto federativo, os limites da autonomia dos entes no enfretamento da pandemia da covid-19.

1)      COMPETÊNCIA CONCORRENTE E O CONFLITO DE NORMAS NO ORDENAMENTO JURÍDICO

 

A competência dos Estados-membros pode ser estudada sob a ótica do viés não legislativo (competência administrativa ou material) e também sob o viés legislativo, disposto nos artigos 22, 24 e 25 da carta magna.

Sobre a competência legislativa, vale destacar que temos a competência expressa, disposta no art. 25 da CRFB/88, que trata basicamente da auto-organização dos estados- membros. Há também a competência residual (art. 25 §1º CRFB/88), que versa sobre a capacidade dos estados materializarem aquilo que não for competência expressa de outro ente.

A competência delegada se dá por meio de lei complementar, onde a União conforme art.22 § único da CF, autoriza aos estados a legislar sobre matéria específica de sua competência privativa. Há ainda a competência concorrente e suplementar.

A competência concorrente está no art. 24 da CF que autoriza todos os entes a legislarem sobre determinado assunto, obedecendo o seguinte critério: a União legisla sobre norma geral, enquanto os estados sobre normas específicas, e os municípios, quando for o caso, ainda mais especificamente dentro de seus territórios e em harmonia com o que já foi dito pelos demais entes.

Discorrendo-se sobre a temática ordenamento jurídico, pode-se conceituar o mesmo como sendo o conjunto de normas de determinado Estado que tem o objetivo de regrar as relações entre os indivíduos daquele local com vistas a ensejar um convívio mais harmônico e a consequente paz social.

Ocorre que pelo fato de cada ordenamento jurídico ser um composto de plúrimas normas, a tendência é de haver concorrência entre as mesmas. É o que aduz o Jurista Norberto Bobbio (1995, p.31) em sua doutrina Teoria do Ordenamento: […] “Essa definição geral de ordenamento pressupõe uma única condição: que na constituição de um ordenamento concorram mais normas (pelo menos duas) e de que não haja ordenamento composto de uma norma só”.

Nesse sentido, entende-se que o Direito pode apresentar um vício por excesso de normas. É a chamada antinomia, que nas palavras de Maria Helena Diniz (1998, p.19), acontece quando há “a presença de duas normas conflitantes sem que se possa saber qual delas deverá ser aplicada sobre o caso singular”

Diante do vício supramencionado que pode surgir no ordenamento jurídico o poder Judiciário tem como tarefa sana-lo nos casos demandados. Para tal, aplica-se o processo de purgação que deve seguir os seguintes critérios: critério hierárquico, critério de especialidade ou critério cronológico.

De acordo com o critério hierárquico, em havendo conflitos entre normas jurídicas, a norma superior derrogará a inferior (Lex superior derogat inferiori). Ademais, pelo critério de especialidade a norma especial prevalecerá sobre a geral (Lex specialis derogat generali). Por fim, segundo o critério cronológico a norma posterior suplantará a norma anterior (Lex posterior derogat priori).

Explica o célebre doutrinador Flávio Tartuce (2015, online) que dentre os critérios acima mencionados “o cronológico, constante do art. 2º da LINDB, é o mais fraco de todos, sucumbindo frente aos demais”. Menciona ainda que “o critério da especialidade é o intermediário e o da hierarquia o mais forte de todos, tendo em vista a importância do Texto Constitucional, em ambos os casos”.

Explanando- se ainda sobre a antinomia das normas jurídicas a mesma pode ser classificada em antinomia de 1º grau quando o conflito de normas envolve apenas um dos critérios outrora expostos, ou antinomia de 2º grau quando há colisão entre normas envolvendo, no entanto, dois dos critérios analisados.

Outrossim, aduz a ilustre doutrinadora Maria Helena Diniz outras classificações para a antinomia, quais sejam: antinomia aparente e antinomia real. Parafraseando a autora, a antinomia aparente se dá quando um dos critérios (hierárquico, especialidade, cronológico) puderem ser aplicados para a solução do conflito entre normas. Por outro lado, a antinomia real ocorre quando não há nenhum critério aplicável ao caso concreto, sendo, então, imprescindível para a composição do conflito a edição de uma nova norma jurídica.

Acostando- se às classificações supracitadas, devem ser analisados minuciosamente os casos práticos da ocorrência de conflitos. Nesse sentido, ocorrendo conflito entre norma nova e norma antiga, prevalecerá a primeira pelo fundamento do critério cronológico, hipótese está de antinomia de 1º grau aparente. Além disso, acostado ao critério da especialidade, norma especial deverá se sobrepor sobre a norma geral, caso este que configura outra hipótese de antinomia de 1º grau aparente.

Por fim, havendo conflito entre norma superior e norma inferior aquela deverá ser aplicada ao caso concreto pelo critério da hierarquia, exemplificando outra situação de ocorrência de antinomia de 1° grau aparente.

Por outro lado, passando- se à análise dos casos de antinomia de 2º grau aparente, em havendo conflito entre norma especial antiga e norma geral nova, o critério a ser aplicado é o da especialidade, prevalecendo, portanto, a norma especial ainda que antiga.

Ademais, ocorrendo conflito entre norma antiga superior e norma inferior posterior, o conflito há de ser sanado pelo critério da hierarquia, sendo triunfante, portanto, a norma superior.

Porém, para o conflito entre norma geral superior e norma especial inferior, entende-se que há a presença de uma antinomia real, não havendo por isso um critério fixado para a pacificação do conflito.

Assim sendo, caberá ao Poder Legislativo editar a terceira norma dizendo qual das duas normas conflitantes deverá prevalecer. Outro caminho possível para se sanar o conflito seria a intervenção do Poder Judiciário a fim de que seja definida qual norma deverá ser aplicada em cada caso concreto.

2)      PRINCÍPIO    DA    AUTONOMIA    DOS    ENTES    E    O    CONFLITO    DE COMPETÊNCIAS NA PANDEMIA

 

O Brasil caracteriza-se por ser um Estado federal orgânico, trata-se de uma organização político-administrativa de poderes superpostos, onde os estados-membros devem se espelhar no exemplo da União, explica Maluf (2019, p.270), que “suas Constituições particulares devem espelhar a Constituição Federal, inclusive nos seus detalhes de ordem secundária; e suas leis acabam subordinadas, praticamente, ao princípio da hierarquia.”

Streck e Morais (2003, p.159) explica ainda que a federação se trata de uma forma de descentralização do poder político, onde as competências são repartidas desde o órgão de poder central, chamado de União para as organizações regionais, entendidas como estados-membros. “O poder político é partilhado entre os governos federal e estaduais – e, se for o caso, as demais unidades federativas, tais como os municípios”.

Esse poder é imbuído de autonomia para que os entes da federação o exerçam. O princípio da autonomia dos entes da federação encontra-se disposto no art. 18 da CRFB/88 que aduz que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” (Grifo nosso).

Para entender tal princípio destacamos a explicação de Lenza (2020, p.511) que diz que os entes federados são autônomos por terem a plena capacidade de se auto governar, organizar, administrar e legislar. Lembrando que não se deve confundir a autonomia com a soberania, e que a autonomia de que gozam esses entes são previamente e constitucionalmente definidas, delimitadas e asseguradas.

Como já explicitado no capítulo anterior, a autonomia legislativa do ente se perfaz dentre outras formas, na competência concorrente, onde cabe a todos os entes da federação legislar sobre determinado assunto, respeitando os limites constitucionais já estabelecidos.

Um dos parâmetros para se definir quem deve legislar sobre o que, é o de levar em consideração o interesse do assunto. Sendo assim, pode-se dizer que matérias de interesse nacional, devam ser tratadas pela União, ao passo que matérias de interesse predominantemente estadual, pelos estados e de interesse local pelos municípios.

No atual cenário de pandemia que o Brasil se encontra desde março de 2020, diversos são os conflitos de normas e medidas a serem adotadas para o enfretamento da doença. A lei federal 13.979/2020 foi o primeiro dispositivo criado para apontar as medidas que seriam adotadas para o enfrentamento da pandemia no Brasil. A referida lei trazia no escopo de seu artigo 3º a redação de que para o enfretamento da pandemia “as autoridades poderiam adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas: isolamento, quarentena, determinação de realização compulsória de exames entre outros, uso de máscaras (incluído pela lei 14.019/2020), entre outras medidas. Vemos aqui, portanto, uma matéria que dialoga corretamente com o que dispõe a legislação, tratando de normas gerais.

A partir daí os estados do Rio de Janeiro e São Paulo foram os primeiros a editarem normas de restrições mais drásticas, de interesse predominantemente estadual, como a suspensão das aulas e de eventos com os decretos 64.862/2020 em SP e 46.970/2020 no RJ, e posteriormente a decretação da quarentena que suspendeu o atendimento presencial no comércio e na prestação de serviços (decretos 64.881/2020 em SP e 46.973 no RJ). No Rio de Janeiro houve ainda a suspensão de meios de transporte intermunicipais e interestaduais, aeroviário e portuário com o decreto 47.006 em 27 de março de 2020. Posteriormente foi editada a medida provisória 926/2020 que estabeleceu algumas ressalvas importantes, principalmente no que se tratava a definição de serviços essenciais e a partir daí a discussão sobre a constitucionalidade das normas começou a ser arguida.

Na ADPF 672 proposta pela OAB, fora discutida questões relativas a atos omissivos e comissivos do poder executivo federal durante a gestão da saúde pública na pandemia. Na decisão o ministro relator Alexandre de Moraes ressaltou que lamentavelmente na condução da crise causada pela pandemia da COVID-19, há uma grande divergência de posicionamentos entre as autoridades acarretando por consequência em insegurança, intranquilidade e justificando o receito em toda a sociedade.

Aduz ainda que o respeito à separação dos poderes e aos princípios do federalismo devem ser observados na interpretação de todas as leis ora criadas para lidar com o cenário de crise, o que justifica, portanto, a necessidade da ADPF para que não se ponha a risco os preceitos fundamentais da republica, dentre os quais merece destaque a proteção à saúde e o respeito ao federalismo e suas regras de distribuição de competências.

No tocante em específico aos princípios do federalismo e a proteção à saúde, o ministro ressalta que é dever do Estado desde o preâmbulo da carta magna, garantir o bem estar da sociedade, por meio da garantia de uma das principais finalidades do Estado: a efetividade das políticas públicas relacionadas à saúde, pois bem entende-se que o direito à vida é uma consequência imediata da consagração da dignidade humana, nas palavras dele, e que tal dignidade é fundamento da republica federativa do Brasil.

Com relação especificamente à distribuição de competências, o ministro relator apontou para os incisos II e IX, do artigo 23 da CRFB/88 que trata sobre a competência administrativa comum dos entes da federação. Complementando ainda com o artigo 24, XII, que prevê a competência concorrente entre União, Estados e DF para legislar sobre proteção e defesa da saúde, relembrando que no tocante aos municípios a competência está regrada no artigo 30, inciso II que traz a possibilidade de suplementar a legislação federal e a estadual no que couber, desde que haja interesse local. (Grifo nosso).

Na expressão da decisão o ministro relator decidiu da seguinte maneira ipsis litteris: RECONHECENDO E ASSEGURADO O EXERCÍCIO DA COMPETÊNCIA CONCORRENTE DOS GOVERNOS ESTADUAIS E DISTRITAL E SUPLEMENTAR DOS GOVERNOS MUNICIPAIS. (Grifo nosso).

Outro importante julgado que merece destaque é a ADI 6341 que tratava do mesmo assunto, destacando o entendimento do voto do ministro Alexandre de Moraes, que bem lembra que o federalismo, a separação dos poderes e os direitos fundamentais são pedras basilares da democracia que tem uma finalidade em comum: limitar o poder. Neste sentido ainda que se entenda a complexidade e gravidade da crise enfrentada, não se pode aceitar desrespeito à constituição. Pelo contrário, é sendo guardada a devida observância ao texto constitucional que os entes poderão trabalhar em sintonia e consonância para o atingimento dos fins necessários ao cumprimento dos deveres do próprio Estado.

O ministro expressa ainda em seu voto que, não é possível que a União possa monopolizar o controle de mais de 5 mil municípios, entretanto, por outro lado, também é absolutamente irrazoável que o município se valha da competência comum para agir como “república autônoma dentro do próprio Brasil”. Ressalta que o Brasil é um federalismo cooperativo à base da predominância do interesse.

Acompanha o entendimento o ministro Luíz Fux ao afirmar que o atual estado de emergência não configura justificativa para ignorar a normatividade constitucional, ainda que a notória gravidade do contexto fático inspire a adoção de medidas ágeis, pois nem toda medida protetiva será legítima constitucionalmente.

Em seu voto, o ministro Edson Fachin aponta que as regras constitucionais vão além da proteção da liberdade individual, mas abrangem também o exercício da própria racionalidade coletiva para se fazer valer a capacidade de coordenar as ações de maneira eficiente. Nessa toada, para o ministro Gilmar Mendes o SUS é a própria materialização do federalismo cooperativo.

O ministro Luís Roberto Barroso ainda que se declarando suspeito e se eximindo da participação ao julgamento, inteirou com o entendimento de que a pandemia necessita sim de coordenação, liderança, racionalidade e cooperação, entretanto, há que haver o equilíbrio, para que não haja de um lado a monopolização das decisões pela União, mas também que por outro não se tenha decisões controversas entre os entes.

Votando a ministra Rosa Weber reconheceu que o pano de fundo das principais discussões jurídicas a cerca do enfrentamento da pandemia são relativas ao federalismo e à distribuição de competências, e que nesta seara é imprescindível ater-se ao que está delineado no texto constitucional para a manutenção da ordem democrática do Estado de Direito. Bem como a autonomia reconhecida como princípio constitucional, não confere aos entes plena liberdade para exercício da competência legislativa, ao contrário, em que pese a autonomia mitigue a centralização de poder, ela está delimitada aos princípios do federalismo de cooperação e ao princípio da predominância de interesse e dever de proteção dos direitos fundamentais.

Na prolação de seu voto, a ministra Carmem Lúcia relembrou o Regulamento Sanitário Internacional da OMS que foi promulgado pelo Presidente da República através do decreto

10.212 em 30/01/2020 que tem como finalidade “estipular parâmetros mínimos de atendimento à capacidade de vigilância e resposta”, para afirmar que “políticas contrárias à dignidade humana, não podem ser consideradas constitucionais, pois agridem expressa e frontalmente o texto constitucional já em seu art. 1º.

Desta feita resta claro que há a competência concorrente dos entes da federação para legislar sobre o tema de acordo com as características de seus próprios territórios, entretanto, assim como já restava claro no texto constitucional, a decisão do STF também reafirma que a competência dos municípios é de maneira suplementar ao que os demais entes decidirem, não cabendo, por tanto, legislação adversa ou contrária aquilo que já fora determinado pelo outro órgão, ainda que ambos os entes sejam autônomos e não exista entre eles hierarquia.

3)      ANÁLISE DO CASO CONCRETO DA LEI ESTADUAL DO RJ 9224/2021 E O DECRETO ESTADUAL 47540/2021 VERSUS O DECRETO MUNICIPAL 6522/2021 DE SÃO JOÃO DE MERITI

Diante do que aduz a Constituição Federal de 1988 sobre a autonomia dos entes federativos e da ratificação de tal princípio pelo Supremo Tribunal Federal é que cada ente tem editado suas respectivas leis no sentido de formalizar inúmeras medidas para a contenção da pandemia da COVID-19.

Ocorre que, ante a autonomia legislativa supracitada o que se tem percebido, em alguns casos, é a ocorrência de certa dissonância entre as leis editadas por cada ente da federação, a fim de regulamentar as providências a serem adotadas com vistas a impedir o alastramento da pandemia.

Tal conflito entre as normas tem gerado extrema insegurança jurídica e diante disso, o que se tem percebido é a imposição de medidas mais cerceativas através de leis promulgadas em certo local, diversamente de outras legislações que tem optado pela imposição de medidas mais brandas. Fato este que tem refletido negativamente no alcance do objetivo comum do Estado que é o abrandamento da pandemia e da consequente crise sanitária atual.

O presente estudo aborda o caso concreto da lei estadual 9224/2021 e decreto estadual

47.540 ambos do estado do Rio de Janeiro em contraste com o decreto municipal 6522/2021 da Prefeitura de São João de Meriti do estado do Rio de Janeiro para fins de ilustração do conflito entre leis que tem ocorrido com o advento da pandemia.

As leis em questão disciplinam acerca das regras de isolamento para o feriado prolongado compreendido entre os dias 26 de março de 2021 à 04 de abril do mesmo ano. Ocorre que a lei e o decreto do Estado do Rio de Janeiro apresentam medidas mais severas de contenção à

COVID-19 daquelas que foram instituídas pelo decreto municipal da Prefeitura de São João de Meriti. Fazendo- se um comparativo entre ambas as leis se revela evidente o conflito entre as mesmas.

No que tange as disposições sobre shows, festas em geral e parques de diversão o decreto estadual decidiu:

Art. 1º – Este Decreto estabelece novas medidas temporárias de prevenção ao contágio e de enfrentamento da emergência em saúde pública de importância internacional, decorrente da COVID- 19, bem como, reconhece a necessidade de manutenção da situação de emergência no âmbito do Estado do Rio de Janeiro.

  • 2º – Ficam suspensas as atividades nos estabelecimentos abaixo listados:
  1. Casas de shows e espetáculos, boates e arenas;
  2. Casa de festas infantis e espaços de recreação infantil (kidsroom);
  3. Parques de Diversões Itinerantes;
  4. Clubes sociais (exceto marinas), parques temáticos;
  • 3º- Ficam suspensas a realização de festas e eventos de qualquer natureza, sendo a vedação extensiva a:
  1. a) eventos culturais, de entretenimento e lazer; b) eventos de entretenimento, tais como shows, festivais culturais, festas etc;

Diversamente das medidas cerceativas impostas pelo decreto estadual, o decreto municipal em seu artigo 8° disciplinou a respeito do mesmo assunto, porém com a aplicação de medidas mais brandas:

Art. 8º – Fica autorizado o funcionamento dos Salões, Casas de Festas e Espaço de Eventos limitado a 30% (trinta por cento) da capacidade máxima do respectivo estabelecimento para a realização de festas e eventos sociais privados (sem venda de ingresso/convite), devendo-se respeitar todas as as regras aqui previstas, bem como o horário limite de funcionamento, até as 00:00hs.

Quanto ao funcionamento das atividades escolares nas redes públicas e particulares, o decreto do Estado do Rio de Janeiro decidiu:

Art. 6° – Ficam suspensas as atividades escolares presenciais nas redes pública e particular de ensino.

Parágrafo Único – Também ficam suspensas as atividades presenciais de cursos livres regularmente em funcionamento no Estado do Rio de Janeiro.

Por outro lado, o decreto do Município de São João de Meriti decidiu da seguinte forma: “Art. 1º – Fica autorizada a realização das aulas de forma híbrida, nas escolas públicas e particulares do Município de São João de Meriti”.

No que que diz respeito ao funcionamento de shoppings e centros comerciais ficaram decretadas no Estado do Rio de Janeiro as seguintes disposições:

Art. 9º – FICA MANTIDO, para todo Estado, o funcionamento de shopping centers e centros comerciais, com funcionamento no período de 12:00 hs as 20hs, conforme normas municipais autorizativos e até o limite de 40 % de sua capacidade total […]

Em oposição ao decreto estadual, o decreto municipal da Prefeitura de São João de Meriti regulamentou os seguintes termos:

Art. 4º – Os shoppings e centros comerciais deverão funcionar com sua capacidade reduzida em 50% (cinquenta por cento) e no horário compreendido entre 10h e 20h.

 Diante da análise dos dispositivos legais fica evidente o contraste entre a lei estadual de nº 9224/2021 e decreto estadual n° 47.540 do estado do Rio de Janeiro com o decreto municipal 6522/2021 do Município de São João de Meriti, sendo aquela legislação mais restritiva e esta mais permissiva. No entanto, aduz a lei estadual de nº 9224/ 2021 no parágrafo único do artigo 4º que “em havendo conflito de normas estaduais e municipais, prevalecerá aquela em que haja a imposição de medidas mais restritivas”.

Assim sendo, conforme a Constituição Federal prevê e em consonância com o que fora apontado no julgamento da ADPF 672, os Municípios exercem competência suplementar à legislação dos estados. Nesse sentido a lei do Município de São João de Meriti não poderia apresentar disposições contrárias daquelas previstas na lei do Estado do Rio de Janeiro.

Todavia, é imperioso destacar que pelo princípio da autonomia dos entes não existe hierarquia entre as normas editadas pelos entes da Federação. Sendo assim, não há de se falar na aplicação do critério hierárquico, mas sim o da especialidade para a composição da antinomia detectada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 Uma pandemia de escala mundial, tal qual a que temos enfrentado desde março de 2020, tende a expor ainda mais as deficiências da administração pública de um país. No caso do Brasil as dificuldades não se limitam apenas à área da saúde, mas administrar um país de dimensões continentais em meio a uma crise sanitária, tem se mostrado um grande desafio, inclusive, na esfera jurídico-constitucional.

O federalismo brasileiro se estrutura de maneira cooperativa em diversas facetas da administração pública direta e indireta. Nesta toada, o texto constitucional estabelece competências comuns e concorrentes as delimitando para o seu fiel e eficiente exercimento.

Fato é que a interpretação do princípio da autonomia dos entes da federação tem sido feita de maneira equivocada por alguns entes em particular, de modo que surgem dispositivos legais que são contrários aos ditames de lei publicada anteriormente por outro ente, inconstitucionalmente em sua matéria, pois extrapolam as delimitações especificadas no art. 24 XII da carta magna bem como afrontam diretamente os próprios princípios do federalismo e do Estado democrático de direito.

Não obstante a gravidade jurídico-constitucional de tais fatos, há que se falar principalmente dos reflexos sociais, sanitários e econômicos de tais incontroversias jurídico-administrativas, dado o contexto fático de pandemia que estamos inseridos, e que quaisquer decisões administrativas impactam diretamente na forma como a doença se agrava no país, comprometendo o sistema de saúde, a economia e fatalmente a vida das pessoas.

Encabeçando mais de 300 mil mortos, não há mais tempo para os governantes terem dúvidas sobre suas permissões ou delimitações. Ainda que o legislador não pudesse prever um caos sanitário dessa magnitude para escrever de forma mais especifica, o texto constitucional e os princípios implícitos na carta magna não deixam dúvidas sobre como se estrutura o federalismo cooperativo, o que torna a desorganização administrativa e jurídica do Estado uma situação lamentável e preocupante que tem custado vidas.

O que se entende analisando os fatos ora aqui sustentados, é que não existe apenas certa ignorância ou imprudência no exercício da competência legislativa, mas também a sobreposição de interesses políticos em detrimento de princípios magnânimos como a dignidade da pessoa humana e o respeito à democracia e ao federalismo, como se observa no caso concreto entre o estado do Rio de Janeiro e o município de São João de Meriti.

O texto constitucional e os julgados pela corte suprema são claros ao determinar a competência suplementar dos governos municipais, defendendo taxativamente o princípio da relevância de interesse e da autonomia dos entes da federação no sentido de explicitar que autonomia se diferencia de soberania, e que suas atribuições estão delimitadas pelo texto constitucional, o que não fora observado e tampouco fiscalizado no caso concreto.

REFERÊNCIAS

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<https://www.editoraroncarati.com.br/v2/Diario-Oficial/Diario-Oficial/DECRETO- ESTADUAL-RJ-N%C2%BA-47-540-DE-24-03-2021.html> Acesso em 31 de março de 2021.

DECRETO    MUNICIPAL    6522     de    24     de     março     de    2021-     Disponível     em

<http://meriti.rj.gov.br/home/wp-content/uploads/2021/03/DECRETO-6522.2021-retoca- decreto-6521.2021-E-ESTABELECE-NOVAS-REGRAS.pdf>                                     Acesso em 31 de março de 2021.

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Notas:

1 Graduanda em Direito – 9º Período – UNIABEU. E pós-graduanda em Direito Trabalhista e Previdenciário –

UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ.

2 Graduanda em Direito – 9º Período – UNIABEU.

3 Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e Mestre em Direito Público pela Universidade de Rouen Haute-Normandie – França (Diploma revalidado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Palavras Chaves

autonomia; entes da federação; normas; pandemia; covid-19;