O DIREITO DO TRABALHO NO BRASIL DE HOJE: DO PESADELO AO SONHO

Artigo

O DIREITO DO TRABALHO NO BRASIL DE HOJE: DO PESADELO AO  SONHO(*)

 Marcio Tulio Viana[1]

“Tateando pela casa

Toda escura

Esbarrando em degraus

Seguindo o medo

Das paredes”

(Alberto Bresciani, “Breu”)

  1. Introdução

Dizem que, na  Idade Média,  as pessoas sabiam muito menos da vida – e por isso tinham  muito mais medos.

Medo do mar, dos bosques, dos raios, do diabo, das bruxas e seus feitiços. Medo dos loucos, das almas, das ruivas, do céu, do inferno, do fim do mundo…

Medos da noite: quem podia ter uma cama dormia recostado em travesseiros, para que o anjo da morte – se viesse busca-lo – o  encontrasse alerta, pronto para lutar.

Medo também do sono – pois a qualquer momento podia aparecer Incubus, o demônio que se deitava sobre o corpo da mulher, ou Sucubus, sua versão feminina, que procurava o homem.

Em sua fúria de sexo, tanto Incubus como Sucubus violavam os corpos e as almas de suas vítimas. E por isso elas acordavam suando, aflitas, com sensação de peso no peito.

Em Italiano, a palavra “incubo” significa “pesadelo”. Mesmo em nossa língua, o verbo “incubar” lembra  um pouco a ação daqueles demônios. A palavra inglesa “nightmare” tem igual origem histórica.

Pois bem.

Hoje, não sem razão,  notícias sobre reformas nos enchem de medo. Qual será  o pesadelo que desaba sobre o Direito do Trabalho?

  1. O pesadelo

Como sabemos, há mais de três décadas o Direito do Trabalho vem sofrendo fortes  pressões – como se recebesse o peso de Incubus ou de Sucubus sobre o seu corpo. E essas pressões não são apenas econômicas, políticas ou ideológicas. São também emocionais.

Num tempo que celebra – muito mais intensamente –  as liberdades,  e tem muito menos certezas,  sonhos e projetos, é bem mais fácil criticar  um Direito forte, impositivo, com uma meta a cumprir.

E o Direito do Trabalho é assim: um Direito com um projeto, um Direito imperativo, um Direito sonhador. Não quer, e nunca quis, outro sistema. Mas sempre quis, e quer ainda, humanizar um pouco o sistema que existe.

Hoje, não só ele sofre pressões, como os meios de pressioná-lo  se disseminam.  Eles estão presentes no novo modelo produtivo, nas novas formas de consumir, nos novos contratos de emprego e até nos objetos à nossa volta.

Vejam-se, por exemplo, a influência que as empresas em rede exercem sobre as fontes materiais do Direito do Trabalho. Como não é segredo para ninguém, o novo modo de produzir divide cada vez mais a classe operária, diminuindo o seu poder de fogo para criar as  normas de proteção.

Pois o Direito do Trabalho não é como o Direito Civil, que se constrói e se realiza sem grandes traumas. Ele opõe uma classe a  outra, e desse modo só consegue crescer com a força do grupo. Até o seu grau de efetividade depende disso.

Outro exemplo são os modos de trabalho que isolam os trabalhadores – como os prestados em casa. E ainda as terceirizações, que – mesmo na fábrica – os dividem em duas classes, com problemas e interesses diferentes.

Por outro lado, estamos muito mais voltados para nós mesmos, celebrando o nosso eu. Até os objetos – cada vez mais variados, abundantes, personalizados – acentuam essa nossa tendência, na medida em que temos muito mais ocasiões de afirmar  – em cada compra, em cada escolha – a nossa vontade, o nosso modo de ser.

Ora, naturalmente, afirmar o nosso eu tem o seu lado bom.  Mas também nos afasta das solidariedades, a não ser daquelas pontuais, emocionais, de circunstância, sem ligação com os grandes sonhos, como as provocadas por um terremoto ou um tsunami.

Cada vez mais, queremos ser leves, livres e soltos, o que  também pode ser  bom, mas nos deixa desgarrados das bandeiras,  dos ideais, dos compromissos,  que ajudavam a dar sentido às nossas vidas. E desse modo também enfraquecem o Direito do Trabalho, levando embora a lembrança das lutas operárias e nos fazendo esquecer da importância de conspirarmos juntos.

Esse processo de personalização, de supervalorização do eu, acaba desgastando as estruturas que construímos. Já não aceitamos do mesmo modo as regras, as ordens, as hierarquias e as instituições em geral  – dentre as quais se insere  o sindicato.

Desse modo, embora sejam suas maiores vítimas, os trabalhadores são também     sujeitos dessas transformações.  Os novos modos de sentir e de viver a vida  – turbinados,  em boa parte, pela mídia – .invadem suas subjetividades, num processo de contaminação recíproca. Assim é, por exemplo, que  a pressão por rapidez os faz aceitar mais facilmente os contratos precários, a rapidez de tudo os adapta aos novos ritmos de trabalho, a busca por performances do corpo os leva a exigir sempre mais de si mesmos e a sede de mudanças torna mais natural a alta rotatividade de seus empregos.

Em nome da igualdade, fica também mais fácil defender a ideia de que as partes devem discutir seus contratos sem interferências – como se a relação de forças fosse também igual. Em nome da liberdade, a empresa se vê mais à vontade para se libertar do próprio Direito. Juntos, os discursos (e aspirações) por mais  liberdade e igualdade – que à primeira vista seriam  sempre positivos – ajudam  a legitimar a “livre negociação”, por menos igual que ela seja. .

É verdade que não é todo o Direito do Trabalho que sofre tensões. As normas que protegem o empregador, por exemplo – a começar do poder diretivo   – continuam vivas e até mais fortes. O mesmo acontece com aquelas que entram em sintonia com outros valores do nosso tempo, e não colidem diretamente com os grandes interesses empresariais – como as que combatem as discriminações e os assédios, especialmente os mais visíveis.

Aliás, nem mesmo se pode dizer que essas  últimas regras sejam mesmo trabalhistas, em sentido próprio, pois não visam distribuir renda, só o fazendo de forma circunstancial e indireta. Têm  natureza civilista, e por isso o seu espectro é muito mais amplo que o da fábrica: afinal,  não há diferença  entre impedir que um operário negro se torne chefe, só por ser negro, e proibir que um pobre de pés no chão entre numa igreja para rezar.  Além disso, como dizíamos, são normas que se alinham com as ideias de  igualdade e liberdade, que também podem ser úteis à empresa..

Mais de um autor já escreveu  que as tensões  que o  Direito do Trabalho vêm sofrendo,  em todo o mundo, não são nenhuma novidade; afinal, a crise é a sua “companheira de viagem”. No entanto, é possível que a crise atual –  nascida nos anos 60, e  agravada nos anos 80 –  seja  diferente de todas as outras, pois tem ajudado a  empresa a resolver uma contradição histórica.

Essa contradição  é  a de ter de reunir os trabalhadores para disciplina-los e organizar a produção, sem conseguir, ao mesmo tempo, impedir o resultado disso –  ou seja, a união deles, tanto no aspecto  físico,  como no plano das ideias e emoções. Ora, nas últimas quatro ou cinco décadas, a empresa foi aprendendo a produzir sem reunir, e mesmo quando reúne consegue desunir os trabalhadores – seja, por exemplo,  pelos contratos desiguais, seja pelo status diferente..

Em síntese, houve um reaparelhamento do sistema, e também em vários planos: objetivo e subjetivo, concreto e abstrato, material e imaterial, tecnológico e científico, cultural e emocional. Tudo reunido, sincronizado, cada elemento interagindo com o outro, e todos se reforçando entre si. Em termos trabalhistas, ou sociais, esta parece ter sido (e é ainda) a mais grave crise da história do Direito do Trabalho.

Na verdade, não foi apenas o emprego que se tornou estrutural; a própria crise se fez assim, instalando-se com armas e bagagens no cenário social, a tal ponto que muitos já nem a percebem. É como se tivéssemos trocado para sempre a marcha do nosso automóvel – digamos, da primeira para a quinta – alterando assim a velocidade, o consumo de gasolina e os riscos da estrada.

É que a crítica de já não se limita a um ou outro artigo de lei. O Direito do Trabalho, hoje, é questionado por dentro.  Sua própria existência é posta em xeque, embora nem sempre se explicite isso. A lógica do “sempre mais”, vivida pelo sindicato, e que entrava em compasso com a mesma lógica do capital, dá lugar à do “sempre menos”, em descompasso com o acúmulo crescente de poder em poucas mãos. A própria ideia da proteção se inverte: num tempo regido pela esquizofrenia, passa-se a acreditar que quanto menor ela for, mais empregos irá abrir, ou seja, maior ela será.

Mas a crise do Direito do Trabalho, entre nós, tem também  uma dimensão nacional. Em outras palavras, há uma crise dentro da crise, que emergiu desde a segunda eleição da Presidente Dilma Rousseff.

O que estará acontecendo no Brasil?

Basicamente, a esquerda brasileira levantava duas bandeiras  – a  ética e a  social. Como, infelizmente, a prática da ética nem sempre acompanhou o discurso correspondente, a classe conservadora conseguiu, com suas denúncias  – e por tabela – enfraquecer o discurso e a prática do social.

O resultado é que hoje, depois de tantos processos e  prisões,  é o Direito do Trabalho que se torna réu. Ele é o  Exterminador do Futuro,  o inimigo que supostamente proíbe o País de crescer e impede o trabalhador até mesmo de continuar trabalhando.

A onda conservadora traz de volta a ideia  da “mão invisível”, de Adam Smith, segundo a qual a liberdade total, ou quase total, é capaz de produzir a igualdade geral, ou quase geral.  Assim, formalmente, não se critica o Direito do Trabalho por distribuir riquezas, mas por evitar que as riquezas sejam melhor distribuídas. Diminuir os direitos passa a ser a solução para que o trabalhador viva melhor, ou seja, para que os próprios direitos – milagrosamente –  aumentem.

Ao lado da “mão invisível”, espremendo o Direito, o discurso lembra uma outra mão – a de Getúlio Vargas, “um ditador”, que teria criado a CLT sob inspiração de Mussolini.  Afirma  ainda o discurso que a lei é  “anacrônica”, escondendo ou ignorando o fato de que já sofreu mais de  600 alterações.

Além dos sofismas – presentes nas falas e nos textos – o marketing político invade espaços supostamente  neutros, fora do seu campo de influência e na aparência confiáveis –  como “programas de auditório”, nas rádios, e esquetes humorísticos na TV. Exemplo do último caso aconteceu recentemente no “Zorra Total”, da Globo, que em dois ou três episódios tentou (talvez sem grande êxito, face ao seu baixo nível) ridicularizar os fiscais do Ministério do Trabalho e as normas de proteção ao trabalhador.

Outro elemento estratégico é o medo. Se, na Idade Média, ele podia ser explicado também pela ignorância, nas eras moderna e pós-moderna tem servido sobretudo estrategicamente, para justificar até as mais sanguinárias ditaduras. E como, em geral, “há mais medos de coisas más do que coisas más propriamente ditas”, aceitamos de boa vontade os controles. Um exemplo é a Muralha da China, em cuja construção morreu provavelmente mais gente do que teria morrido sem ela, pela ação dos inimigos.

Eduardo Galeano também nos fala sobre o medo:

Os que trabalham tem medo por ter trabalho. Os que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho. Quando não temos  medo da fome, temos medo da comida. Os civis têm medo dos militares. Os militares têm medo da falta de armas. As armas, da falta de guerras.  

Ora, desde as últimas guerras já não temos a mesma fé na razão, no progresso da ciência, na evolução incessante: se a ciência nos oferece computadores, vida mais longa e até melhores vinhos, também nos ameaça com transgênicos, efeito estufa e bombas atômicas. Hoje, mais do que nunca, o futuro nos parece incerto, aberto. Tudo pode acontecer, como já está acontecendo: de repente, um rio pode se encher de peixes mortos, um caminhão  avançar sobre as pessoas ou um novo vírus infectar o ambiente.

Por tudo isso – mas também pelo clima criado estrategicamente  –  o trabalhador de hoje vive com medo. A cada notícia de desemprego, ou a cada comentário do Jornal Nacional ou da Globo News,  ele  passa a ser convencido de que – como diz o provérbio – “mais vale um pássaro na mão do que dois voando”. Também assim, cria-se um contexto favorável à destruição de seus direitos.

No Brasil, para piorar a situação, aquele que seria o guardião da Constituição Federal – o STF – parece caminhar a passos largos no mesmo sentido, seja por ter uma visão tradicionalmente mais “civilista” –  que ignora, reduz ou deprecia as razões do Direito do Trabalho – seja por se mostrar  mais sensível às influências políticas ou midiáticas. Há poucos meses,  um de seus ministros, Gilmar Mendes, chegou a comparar a Justiça do Trabalho  a tribunais soviéticos.

Como sabemos, uma das novas propostas quer expandir a terceirização – o que, segundo a leitura mais corrente, teria sido alcançado com a Lei n. 13429, muito embora se possa entender de outro modo. Ora, a essa altura, ninguém ignora os efeitos desta prática – inclusive sobre os não terceirizados. Mas é bom acrescentar que a terceirização é também um discurso: ao transformar o homem em mercadoria, perverte a própria essência do Direito do Trabalho, sinalizando tristemente para o futuro.

De fato, como notamos em outro texto, o Direito do Trabalho  já não  pode dizer – como declara  a OIT –  que “trabalho não é mercadoria”. Tal como o fazendeiro que aluga seu burro de carga  para o vizinho, uma empresa pode alugar um operário – com todos os seus ossos e carnes –  para outra. Assim, o que se compra e o que se vende já não é apenas a “energia humana”, como se dizia, mas  os corpos humanos. Algo não muito diferente, em substância, do tráfico de órgãos.

Como também já escrevemos, esse fator – ao lado de outras razões –  talvez ajude a explicar por que o terceirizado tende a sofrer mais que os empregados comuns. Afinal,  se o seu corpo se torna é mercadoria, nada mais natural do que tratá-lo desse modo – sem considerar a dimensão humana. Aliás, segundo pesquisas, ele próprio tende a se sentir assim, ainda que de forma nebulosa ou confusa. E  se é verdade, por exceção, que um ou outro pode  nada sentir,  é difícil saber o que seria mais trágico.

Outra iniciativa preocupante diz respeito à regra do “negociado sobre o legislado”. Ora, como se sabe, o negociado sempre pôde prevalecer sobre o legislado, desde que fosse mais favorável aos trabalhadores. Era como um elevador que só pudesse subir ou no máximo continuar no andar térreo. Assim, o que se quer, na verdade, é a possibilidade de negociar a lei para baixo. O elevador passaria a ter subsolos. E como, realmente, está cada vez mais difícil subir, o próprio sindicato se vê tentado a aderir ao projeto, que lhe dá nova função – a de evitar que se desça demais – e com isso lhe garante sobrevida, “justificando” (de triste modo) sua existência.  No entanto, sua participação também legitima o processo de desmonte.

A propósito, não custa lembrar, com Arigón, que as normas de  ordem pública envolvem bens jurídicos “inerentes à condição humana”; por isso, além de não poderem retroagir, devem avançar sempre. Também por isso, o legislador simplesmente não pode ignora-las, ou transforma-las em normas de ordem privada. Elas estão fora de seu alcance.

Seja como for, porém,  o bom dos pesadelos é que depois nos despertamos – e a realidade em volta nos alivia um pouco. Mais tranquilos, e já sem o peso de Incubus ou Sucubus, podemos então construir sonhos melhores – e até realiza-los efetivamente.

Qual seria o novo sonho? O que esperar do Direito do Trabalho?

  1. O sonho

Voltaire escreveu certa vez que  “o presente está grávido do futuro”. Cada pequeno pedaço de mundo, por mais novo que seja,  traz dentro de si o germe do outro pequeno pedaço que o irá suceder.

Mesmo os artistas – capazes, tantas vezes, de antecipar o futuro –  tecem os mais loucos delírios com os fios do presente.  E até os nossos  sonhos e pesadelos – que nos parecem tão irreais, imaginários, fantasiosos  – se articulam de algum modo com o nosso dia a dia, com as coisas em volta, com o nosso eu. .

Desse modo, se olharmos bem à nossa volta, examinando um pouco do que se passa nas esquinas, talvez possamos enxergar à frente – e descobrir  algumas possibilidades para o trabalhador, o  sindicato e o Direito do Trabalho.

Pensar o futuro é também enfrentar o  medo.  É abrir a porta de nossa casa, que nos protege, e sair de peito aberto para a rua, enfrentando todos os seus riscos e possibilidades. E é também negociar em dois tempos – com o passado e com  o presente.

Ora, como já vimos em outro texto, no universo dos movimentos  sociais  está havendo um mix de tendências variadas, às vezes quase opostas,  que têm levado a novos comportamentos e a novas formas de luta. Das redes às ruas, há de tudo um pouco – como  flash mobs, memes,  robôs virtuais, performances e ocupações reais. Numa das últimas ações no Brasil,  hackers chegaram até a invadir a agenda do Presidente Temer, marcando dia e hora para a sua suposta renúncia…

Para ficar apenas nas ocupações, é curioso notar como elas realizam, a cada dia, pequenos sonhos, invertendo a lógica de teorizar primeiro e praticar depois. Aos poucos, com idas e vindas,  têm ajudado a tecer de novo –  e também de forma nova – solidariedades que pareciam perdidas,  unindo o sem-casa ao sem-terra, o aluno ao professor, a feminista ao militante LGBT.

É certo que também nesse campo há fortes pressões em contrário – interagindo e se fortalecendo mutuamente. Com frequência, por exemplo, a grande mídia não só enfatiza as decisões judiciais que reprimem ocupações, como ignora solenemente as que buscam preservá-las. Ao mesmo tempo, ao divulgar protestos de rua contra o Governo,  fala em “sindicalistas”, não em “trabalhadores”, o que se conecta sutilmente com a crescente demonização do sindicato – seja por parte do empresariado, seja no discurso de muitos teóricos,  seja através  da mesma mídia.

Seja como for, as ocupações contam a seu favor com  um forte elemento emocional – tão comum, aliás, nesses novos tempos – ao lado de uma vontade de agir diretamente, rapidamente, e da forma mais livre e  igualitária que for possível. E como elas vêm tendo sucesso, mesmo em pequenas doses, talvez possam servir de inspiração para que o sindicato se refaça – e o Direito do Trabalho não apenas se fortaleça, mas possa avançar em novas direções.

Nesse último sentido, é importante notar como vem crescendo, em nossa doutrina, a ideia de um Direito do Trabalho  mais humano, menos monetarista, mais sensível às necessidades de auto-realização do homem. E essa ideia –  no limite, ou já no reino da utopia  –  talvez possa nos levar a considerar ilícito o trabalho alienante, tanto quanto a produção de bens nocivos à sociedade, inserindo  no sistema capitalista uma contradição ainda maior – e anunciando, quem sabe, a sua superação.

Na verdade, o próprio Direito do Trabalho  pode e deve ser ocupado. É  preciso inverter a lógica da destruição, relendo, criticando e refazendo – na medida, é claro, do possível – cada pequeno artigo de lei que violar o princípio da proteção ao mais fraco.  E esta tarefa cabe a cada um de nós, em seu pequeno mundo. Um exemplo está na própria Lei n. 13429, já referida:  sua interpretação está em disputa, e, antes que o STF se pronuncie, é importante pressioná-lo para que não siga a direção oposta ao  espírito do Direito do Trabalho.

Fromm usa o mito do Paraíso para ilustrar a nossa relação com a liberdade. Diz ele que quando Adão come a maçã, desobedecendo, assume a verdadeira dimensão humana. Pela primeira vez ele pensa, decide e faz. A partir daí, a cada novo passo, está condenado a escolher, com todos os riscos e possibilidades que as escolhas trazem. . E não tem como voltar atrás: dois anjos, com espadas flamejantes, guardam as portas do Paraíso.

Hoje, mais do que nunca, as encruzilhadas se multiplicam –  e  com elas  as próprias escolhas. Exatamente porque as instituições estão  em crise, os valores morais oscilam e a própria norma é questionada, o futuro passa a depender  muito mais de  nós. Afinal, “sem um sistema de valores, nada do corpo social é capaz de reproduzir-se”.  E   ao escolher  os nossos caminhos – em geral sem buracos, sem curvas  e cheios de luz –  não podemos ignorar as estradas  tortuosas e escuras por onde caminham os oprimidos.

(*)Dedicado ao amigo Jorge Luiz Souto Maior

Notas de Rodapé:

[1] Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, Pós-Doutor pela Universidade de Roma I La Sapienza e pela Universidade de Roma II Tor Vergata. É Professor Associado da UFMG e Professor Adjunto III da PUC-Minas, além de co-coordenador do Programa de Pólos de Cidadania da UFMG.