O Esquecimento Proposital do Papel de Getúlio Vargas na Segunda Guerra Mundial

Artigo

O Esquecimento Proposital do Papel de Getúlio Vargas na Segunda Guerra Mundial

 

João Claudio Platenik Pitillo – Doutor em História Social pela UNIRIO.

Roberto Santana Santos – Doutor em Políticas Públicas pela UERJ.

 

A Segunda Guerra Mundial foi um dos maiores acontecimentos da humanidade, os estudos ao seu respeito parecem nunca se esgotar. A magnitude desse momento produziu feitos em todas as áreas do conhecimento humano. Os seus reflexos ainda estão vivos na sociedade contemporânea e as suas consequências parecem perdurar por muito tempo. De matiz imperialista, antagonizando Estados capitalistas de sistemas políticos distintos, a Segunda Guerra Mundial foi consequência direta da maneira como a Primeira Guerra foi encerrada. A postura arrogante dos países centrais (Estados Unidos, Inglaterra e França), que pautaram os acordos de Versalhes, produziu um ressentimento tamanho nos derrotados que instigou uma revanche previsível.

A Segunda Guerra Mundial é contabilizada no Ocidente a partir da Invasão da Polônia em 1º de setembro de 1939 e terminada em 8 de maio de 1945 com a derrota da Alemanha. Na Federação Russa e países da ex-União Soviética, o conflito é denominado Grande Guerra Patriótica, tendo o seu início com a invasão da mesma em 22 de junho de 1941 e o término datado em 9 de maio de 1945 (quando os alemães cumprem a exigência de se renderem ao Exército Vermelho e não só aos ocidentais, como fizeram na véspera). As operações que os Aliados e soviéticos fizeram contra os japoneses até 15 de agosto de 1945 são tratadas como continuação do conflito global de forma local, afastado do teatro de operações europeu. Dentro de um aspecto mais amplo, a Segunda Guerra Mundial pode ser considerada iniciada com a invasão japonesa à China em 7 de julho de 1937 e finalizada em 2 de setembro de 1945, quando as tropas chineses recuperaram a integridade de seu território, derrotando o Japão.

O envolvimento da União Soviética destoou de todos os outros contendores. Atacada pela Alemanha e seus satélites em 1941, lutou praticamente só contra uma invasão que objetivava a destruição do seu Estado e a escravização de seu povo. Desde o Acordo de Munique em 1938 que a União Soviética fez insistentes apelos para a criação de um sistema defensível que evitasse uma conflagração geral, mas os países centrais que comandavam a Liga das Nações pouco se importaram. A aliança anti-Eixo só se concretizaria após os soviéticos tomarem a iniciativa da Guerra e mostrarem condições de derrotar a Alemanha nazista, mesmo com o maior número de baixas e maior volume de destruição causado pela defrontação.

Em conflitos de grandes proporções as figuras de lideranças civis e militares acabam sendo decisivas. No comando de exércitos, Estados ou iniciativas da sociedade civil, a Segunda Grande Guerra promoveu o despontar de lideranças que carimbaram a história, independente dos conceitos que sejam usados para defini-las. A Segunda Guerra Mundial notabilizou políticos, militares, diplomatas e também cidadãos comuns, que expressaram de alguma forma liderança diante dos desafios postos, promovendo ou execrando seus nomes ao longo da história.

Entre os chefes de Estado, da parte dos Aliados, temos a emergência de três grandes nomes: Franklin Roosevelt presidente dos Estados Unidos; Winston Churchill, primeiro-ministro britânico; e Josef Stálin, líder-máximo da União Soviética. O Eixo “Berlim-Tóquio-Roma” também tinha três expoentes: Adolf Hitler, chanceler do Reich alemão; Hideki Tojo, primeiro-ministro do Japão; e Benito Mussolini, primeiro-ministro italiano. Essas seis figuras se tornaram as mais conhecidas durante a Guerra. No Brasil, entretanto, foi diferente. Getúlio Vargas figura mais central da história brasileira no século XX, que por mais tempo ocupou o cargo de Presidente da República e responsável direto pela entrada do Brasil na Guerra, não tem o seu nome ligado ao conflito, muito menos é visto com a glória de vencedor.

Ao localizarmos a Segunda Guerra Mundial no Ocidente saltam aos olhos duas figuras, Roosevelt e Churchill, como chefes de Estado de países centrais que enfrentaram o Eixo no Oceano Atlântico, Europa Ocidental e norte da África. Esse processo passou pela cooperação da América Latina, como área periférica do capitalismo, dentro do contexto do pan-americanismo, onde a figura de Getúlio Vargas e de sua diplomacia tiveram papel determinante. Quando da promulgação da Carta do Atlântico em 14 de agosto de 1941, as duas lideranças anglo-estadunidenses não só pactuaram para resistir ao avanço fascista, como lançaram as bases para uma nova ordem no pós-guerra, que visava evitar o surgimento de outro bloco com os mesmos desígnios do Eixo. Vargas também foi signatário de tal tratado, sendo um dos primeiros líderes a defender que o continente americano estivesse unido contra as aspirações fascistas.

Contudo, Vargas de uma forma majoritária é tratado pela historiografia brasileira como uma figura “dúbia”, “oportunista”, “pendular” no que tangia a decisão de apoiar o campo Aliado. Da mesma forma equivocada, sem observar a conceituação correta, tentam adicionar à figura de Vargas algum tipo de ligação com o fascismo. O centralismo e o autoritarismo do Estado Novo, por mais perverso que tenha sido, não confirma na atuação de Vargas um comportamento “proto-fascista”. Tais acusações, sem a correta fundamentação científica, caracterizam um equívoco brutal em tais pesquisas e um desserviço para a compreensão da história brasileira, em especial o período Vargas e a participação do país na Segunda Guerra. Esse erro crasso, comum na historiografia do século XX, principalmente na utilização do não-conceito de “populismo” (até mesmo por parte da esquerda comunista), contribuiu para que a figura de Vargas fosse descolada dos louros da vitória contra o fascismo e atendeu aos objetivos políticos da Guerra Fria, estendendo seu anticomunismo contra todas as experiências nacionalistas da América Latina. “Os extremistas da direita e da esquerda, que, sob formas variadas, pretendiam, afinal, a mesma coisa – a nossa escravização -, foram repelidos e já não constituem perigo imediato para as instituições.”1

A bordo do encouraçado Minas Gerais em 11 de junho de 1940, Vargas falou em seu discurso que o Estado Novo havia superado os “radicalismos externos” e que o Brasil tinha criado um sistema político próprio. Essa abordagem era uma maneira de se afastar ao máximo das contradições políticas que a guerra na Europa gerava naquele momento. Vargas percebeu que seus objetivos em edificar no Brasil uma indústria de base, que pudesse acabar com a dependência nacional de produtos industrializados, correria risco, caso o país fosse envolvido pelo conflito mundial. O referido discurso foi tratado pela imprensa nacional como uma sinalização de Vargas ao fascismo, uma interpretação equivocada, fruto da propaganda de guerra, que foi aceita por parte dos pesquisadores brasileiros sem a devida observação da conjuntura interna e os reflexos da externa na sociedade brasileira.

“Felizmente no Brasil, criamos um regime adequado às nossas necessidades, sem imitar outros nem filiar-se a qualquer das correntes doutrinárias e ideológicas existentes. É o regime da ordem e da paz brasileiras, de acordo com a índole e a tradição do nosso povo, capaz de impulsionar mais rapidamente o progresso geral e de garantir a segurança de todos”.2

Ao estourar a guerra na Europa, o governo brasileiro assinalou que o mesmo era um problema europeu e que o país estava ligado à solidariedade pan-americana, completamente distante do conflito. Durante os anos de 1939 e 1940, o Brasil tentou melhorar a relação comercial com Washington a partir da “Missão Aranha”, que discutiu a retomada do pagamento da dívida externa brasileira. Mas já havia por parte  de Vargas a solicitação da compra de material bélico. A neutralidade que o governo brasileiro sonhava em manter tinha como intuito driblar a recessão que poderia se manifestar como na Primeira Guerra Mundial. Em 1940 não se tinha a ideia que o conflito fosse se estender a ponto de envolver outros continentes, muito menos as Américas.

Não se pode ignorar a percepção que o presidente Vargas e seus colaboradores tinham da realidade. Sua diplomacia tinha clareza total dos reflexos do Acordo de Munique realizado em 1938 que revelou a fragilidade dos anglo-franceses e demonstrou o poder da Alemanha. Ao comentar o apelo de paz do presidente estadunidense Franklin Roosevelt ao líder alemão Adolf Hitler quando do fracasso diplomático de Munique, Vargas disse: Em lugar de gastar palavras seria melhor cuidar logo de ir preparando os Estados Unidos para a guerra.”3 A afirmação de Vargas sugere que ele sabia exatamente qual era o caminho a seguir: aproveitar ao máximo as boas relações com potências como Alemanha e Estados Unidos para conseguir a transferência de tecnologia, a despeito das contradições internacionais que ainda não faziam parte da sociedade brasileira.

Durante esses quatro anos (1937 a 1941) o Brasil construiu uma relação com as forças do Eixo de grande prosperidade, principalmente com a Alemanha, que viria a ruir com o escalonamento ascendente do conflito, com destaque para a entrada dos Estados Unidos na Guerra. A partir daí, foi necessário edificar uma nova parceria com os anglo- estadunidenses através das demandas geopolíticas Aliadas. Internamente, recrudesceu a perseguição aos fascistas e aos comunistas, a fim de não reproduzir a confrontação ideológica mais aguda da Guerra na sociedade brasileira. Enquanto o mundo entrava em um momento conturbado, Vargas organizou uma força diplomática que se converteu em olhos e ouvidos do Estado Novo nos quatro cantos do mundo. A mesma foi capaz de manter o governo brasileiro atualizado sobre todos os movimentos grandiosos da Guerra, ajudando o mesmo a escolher o melhor caminho a seguir para assegurar os interesses nacionais.

Durante o período de neutralidade, Vargas manteve uma relação comercial com a Alemanha excepcionalmente lucrativa por conta do “marco compensado”. Quando se transformou em contendor, conseguiu dos estadunidenses uma valiosa parceria, que lhe rendeu a tão sonhada siderúrgica (em Volta Redonda/RJ) e outros bons investimentos. Todo esse proveito se materializou em avanços nos setores econômicos, sociais e militares, instituindo assim um projeto que permitiu ao Brasil se tornar o país mais desenvolvido economicamente da América Latina e com grande respaldo no cenário internacional. Com relação ao governo alemão, nunca houve por parte de Vargas qualquer compromisso político-ideológico, pelo contrário, Vargas sempre sinalizou sua preferência pelo campo Aliado.

Em 24 de março de 1939, Getúlio Vargas, em uma cerimônia de entrega de novos canhões adquiridos da Alemanha para o Exército, abordou o cenário internacional ressaltando que o mundo construído pelo Tratado de Versalhes estava em crise e que o caminho brasileiro era o da neutralidade, lembrado a solidariedade pan-americana:

“Assistimos ao espetáculo de um mundo atormentado pela incerteza do amanhã e dividido por ideologias estranhas. Os velhos institutos em que, até agora, se baseavam as organizações sociais e políticas abrem falência. Os povos procuram novas formas de equilíbrio, e os grandes blocos nacionais expelem do seu seio todas as forças de desagregação e negativismo. Não nos filiamos a ideologias estranhas aos nossos interesses e tradições, nem devemos, tampouco, fazer política de isolamento ou de hostilidade a outros povos. Nada temos com a organização interna de outros países, como não aceitamos interferências estranhas na nossa organização. Estejamos Unidos por um sentimento de defesa do continente americano, sem espirito de hostilidade a quem reconheça a nossa soberania e respeite as nossas leis. Instituímos um regime nacional, no interesse do povo, de acordo com as nossas tradições e como instrumento mais apropriado a forjar  o nosso progresso”.4

O discurso que Vargas fazia para justificar o Estado Novo partia da crítica ao liberalismo, que ele abominava como sendo o culpado pela Crise de 1929. Vargas também era um crítico ferrenho do Tratado de Versalhes e do imperialismo, que focalizava no colonialismo anglo-francês e na sanha monopolista do capitalismo estadunidense. Essas também eram as críticas que edificaram o fascismo na Itália e o nazismo na Alemanha. Vargas foi, a partir de 1937, tratado pela imprensa ocidental e pelos movimentos de esquerda como simpático ao Eixo. O regime de força instaurado no Brasil a partir de novembro de 1937 e as ótimas relações com a Alemanha fizeram com que os anglo-estadunidenses duvidassem da posição do Brasil, caso entrassem em guerra contra o Eixo. Vargas fez o discurso supracitado, sob o espectro da ocupação nazista da Áustria realizada no último dia 12 de março.

As influências da guerra a ponto de se tornarem um problema para o Estado Novo começaram a aparecer com maior ênfase em 1940, quando os setores ligados ao Eixo começaram a conspirar contra Vargas. No dia 1º de maio de 1940, em seu tradicional discurso para os trabalhadores, Vargas fez questão de reafirmar o papel do Estado Novo contra o fascismo e contra o comunismo. Não deixou também de atacar a Velha República, a qual ele responsabilizava pela carestia nacional. Em seus discursos desde 1939, Vargas marcava posição contra as influências das “ideologias estrangeiras”, principalmente em seus discursos voltados para a classe operária. Para além da guerra que se avizinhava, Vargas mostrou preocupação com o fronte interno, isto é, a tão praguejada “quinta-coluna”.

“Embora deixados ao abandono, os nossos trabalhadores souberam resistir às influências malsãs dos semeadores de ódio, a serviço de velhas e novas ambições de poderio político, consagrados a envenenar o sentimento brasileiro de fraternidade com o exotismo das lutas de classe. O ambiente nacional tem reagido sadiamente contra esses agentes de perturbação e desordem”.

O discurso que Getúlio Vargas proferiu em 11 de junho de 1940 a bordo do encouraçado Minas Gerais, demonstrou qual seria a orientação do Estado brasileiro para aquele momento. As palavras de Vargas soaram como uma bomba entre os anglo- estadunidenses, a impressa ocidental taxou o discurso de uma saudação ao nazismo, ao mesmo tempo em que foi aplaudido pelas lideranças do Eixo, acarretando em um telegrama de congratulações enviado por Mussolini a Vargas.6 A voraz crítica que Vargas fez ao liberalismo foi em virtude da guerra. Vargas acreditava que a guerra novamente ascendia como fruto da ganância imperialista. A imprensa dos Estados Unidos destacou que Vargas exaltava os regimes de força ao passo que a imprensa inglesa apontava o discurso como um elogio ao fascismo. Depois desse dia, a diplomacia estadunidense decidiu encaminhar de forma mais consequente as demandas brasileiras.

“A Ordenação política não faz, agora, à sombra do vago humanitarismo retórico que pretendia anular as fronteiras e criar uma sociedade internacional sem peculiaridades nem atritos, unida e fraterna, gozando a paz como um bem natural e não como uma conquista de cada dia. Em vez desse panorama de equilíbrio e justa distribuição dos bens da Terra, assistimos à exacerbação dos nacionalismos, as nações fortes impondo-se pela organização baseada no sentimento da pátria e sustentando-se pela convicção da própria superioridade. Passou a época dos liberalismos imprevidentes, das demagogias estéreis, dos personalismos inúteis e semeadores de desordem. A democracia política substitui a democracia econômica, em que o poder, emanado diretamente do povo e instituído para a defesa do seu interesse, organiza o trabalho, fonte de engrandecimento nacional e não meio e caminho de fortunas privadas. Não há mais lugar para regimes fundados em privilégios e distinções: subsistem, somente, os que incorporam toda a nação nos mesmos deveres e oferecem, equitativamente, justiça social e oportunidades na luta pela vida”.7

O modelo autoritário e centralizador do Estado Novo realmente causava desconfianças em muitos atores. Não era difícil para um estrangeiro confundir o governo Vargas com uma ditadura fascista, mas o dever daqueles que se prestam em usar as ferramentas científicas da pesquisa precisam compreender diferenças e similitudes que margeavam o Estado Novo e o nacionalismo de Vargas com relação aos regimes fascistas. Ao pronunciar o referido discurso, Vargas já estava completamente compromissado com os Estados Unidos. O discurso do dia 11 de junho tinha como alvo o público interno. Vargas tinha a intensão de preparar o povo brasileiro para as dificuldades que estavam por vir com a guerra. Desde o início de 1939 que Vargas efetivou uma série de conversas e acordos com o governo estadunidense. Durante esse período de neutralidade, Vargas nunca esboçou dúvidas com o porvir da guerra e muito menos dubiedade em integrar qualquer iniciativa continental de defesa do Oceano Atlântico.8

Por mais que as liberdades pessoais, de reunião e opinião estivessem restritas no Brasil de 1941, setores da sociedade brasileira pressionaram o governo para uma posição contrária a do fascismo. As necessidades Aliadas suplantaram qualquer ideia de que Vargas pudesse ser um “Mussolini dos trópicos”. O governo inglês, um dos países mais críticos ao Estado Novo, teve que rever gradualmente os seus conceitos com relação ao Brasil, já que a aliança “Brasil – Estados Unidos” colocou por terra as especulações de que o Brasil ficaria neutro para beneficiar o Eixo. As necessidades econômicas e militares contribuíram para a mudança no pensamento de Londres. Ao passo que o Brasil se tornou o principal país da América Latina no fornecimento de matérias-primas para o esforço de guerra Aliado.

Para evitar um isolamento comercial, Vargas direcionou a sua diplomacia para tentar estabelecer com os estadunidenses uma relação comercial que pudesse compensar a perda dos mercados do Eixo. A decisão estadunidense de apoiar os ingleses na luta contra a Alemanha possibilitaria ao governo brasileiro suprir os norte-americanos no  seu esforço de guerra de forma mais volumosa do que outrora, colocando o Brasil na condição de parceiro preferencial. Com o objetivo de capitalizar a conjuntura, Vargas girou sua diplomacia em direção às necessidades Aliadas. Mas, para que isso fosse materializado, era necessário criar condições internas favoráveis. Esse projeto dependia diretamente da forma que a Guerra se conformaria na Frente Leste e a posição que o governo brasileiro escolheria tomar. Para apoiar ingleses e soviéticos, os Estados Unidos precisou dos governos latino-americanos, onde o Brasil tinha uma grande relevância, principalmente na América do Sul.

Entretanto, o maior problema do governo Vargas naquele momento não era a guerra, mas sim as condições internas. As críticas ao autoritarismo e ao centralismo do Estado Novo eram frequentes, mesmo com a censura e a repressão política. O descontentamento era bem visível no seio da sociedade. Setores ligados à indústria e ao comércio também sentiam a falta do liberalismo econômico tão badalado nos países centrais. Os militares, que formavam um dos principais pilares de sustentação do Estado Novo, faziam críticas à aproximação com os Aliados, como também se ressentiam pela falta de investimentos e infraestrutura de suas forças. Muitos estavam seduzidos pelos avanços alemães na Europa e não tinham a menor vontade de apoiar os Aliados.

O envolvimento do Brasil na Segunda Guerra Mundial obedeceu a uma dinâmica interna, que em 1941 enfrentou três grandes desafios que foram transformados em pilares do projeto de desenvolvimento autônomo de Vargas: primeiro, a elevação do nível social dos brasileiros. De base agrária e com baixa industrialização, a sociedade brasileira carecia de saúde, transporte, educação e habitação. Segundo, a industrialização, que visava substituir gradativamente as importações de produtos manufaturados. Vargas tinha em mente fortalecer o mercado interno ao mesmo tempo em que diminuiria as importações, evitando assim a evasão de capital. Por último, a modernização das forças armadas, a garantidora do processo revolucionário de 1930 e a única instituição presente em todo o território nacional (além da Igreja católica). Vargas sabia que as forças armadas era a única capaz de garantir as decisões no cenário interno e contra ameaças externas. A Revolução Constitucionalista de 1932 provou o quanto a lealdade das forças armadas eram importantes.

“Se todos os governos do pré-30 não reconheciam a prioridade da questão social no Brasil, era justamente porque encaravam o problema da pobreza como inevitável e até funcional à ordem socioeconômica. Mas tal perspectiva precisava ser radicalmente transformada, uma vez que cumpria dar ao homem brasileiro uma atuação digna de vida. A grande finalidade da obra revolucionária era justamente a de enfrentar este estado de constante necessidade em que vivia o povo brasileiro, estado desumanizador que identificava o trabalho como um apanágio da pobreza. Na verdade, a “pobreza” e o trabalho precisavam dar entrada na cena política brasileira, e era justamente este o esforço do novo Estado Nacional”.9

Até meados de 1941 duas coisas inquietavam muito o presidente Vargas: a dificuldade da industrialização nacional e a impossibilidade de modernização das forças armadas. Essas duas demandas eram a tônica da política interna. Sem a solução desses problemas, o governo Vargas ficaria seriamente ameaçado em momento que Aliados e Eixistas disputavam os canais de influência da sociedade e uma crise econômica poderia potencializar uma mudança de regime. Por isso Vargas acelerou as ações brasileiras no campo diplomático com Washington. Vargas não se furtou em sinalizar que um movimento de “quinta-coluna” poderia emergir. Vargas orientou a sua política externa a partir da sua política interna, que tinha como preceitos o desenvolvimento e a justiça social. A política social que Vargas desenvolveu foi em parte fiadora do seu compromisso com os Aliados. As convergências na área social entre Roosevelt e Vargas contribuíram para aproximar os dois líderes.10

Sobre a política social do Estado Novo, a professora Ângela Maria de Castro Gomes apontou:

“A questão social assume, neste contexto, a dimensão simbólica de encarnação dos males brasileiros e de bandeira identificadora do cerne do projeto político-ideológico do Estado Novo. Apenas mediante a identificação da questão social como centro das preocupações governamentais, os objetivos de retomada de nosso território e de realização de nosso homem poderiam ser cumpridos. A questão social, o problema das massas trabalhadoras no Brasil, encontrava-se na própria origem da revolução”.11 

Uma inevitável baixa no preço das commodities brasileiras, devido ao cenário de guerra, prejudicaria os avanços sociais, algo que preocupava a equipe econômica do governo que se movimentou para estabelecer com Washington contratos que pudessem contrabalancear o problema. Com o fim das relações comerciais com o Eixo, devido ao Bloqueio Atlântico, só restou ao governo brasileiro tentar extrair o máximo de cooperação de Washington, mas, inicialmente, dentro da política de neutralidade. Vargas não abria mão nesse momento da condição de Estado neutro, onde mantinha a sociedade brasileira longe da guerra. O que ele tinha a oferecer aos Aliados era a garantia de um Brasil distante do Eixo, mas para tanto, ele precisava estar seguro no cargo e isso só seria possível com a economia funcionando bem. Essa linha política gerou segurança interna e garantia à autonomia política do Estado Novo. A segurança continental era o único ponto que Vargas aceitou discutir sob a ótica militar até o final de 1941.

O ataque nazista à União Soviética em 22 de junho de 1941 deu um novo contorno à conjuntura da Guerra. Automaticamente os anglo-estadunidenses manifestaram ajuda aos soviéticos. A necessidade de derrotar o Eixo se tornou maior, já que uma vitória nazista contra a União Soviética iria prover o Eixo de grande quantidade de matérias-primas e insumos, além de gigantesca mão de obra escravizada, que elevaria a capacidade militar da Alemanha a níveis extraordinários. A invasão da União Soviética também fez com que os Estados Unidos acelerassem os seus planos de proteção ao Atlântico Sul. A presença dos nazistas no Norte da África ameaçava a navegação Aliada e em caso de uma vitória no Leste, esses operativos poderiam aumentar em direção às Américas.

Embora o comando do Exército (Dutra e Góes Monteiro) continuasse reticente à aliança do Brasil com os Estados Unidos, preferindo que o país continuasse com boas relações com o Eixo, Vargas enxergou de outra maneira: percebeu que a Guerra se aproximava do Brasil e, com os desdobramentos no Oriente, se tornava global. As dubiedades dos governos argentino e chileno no cenário internacional também causavam desconfianças no governo brasileiro. No início de julho, o embaixador estadunidense no Rio de Janeiro, Jefferson Caffery, entregou ao presidente Vargas uma carta do presidente Roosevelt. Ela falava das ameaças que os nazistas representariam para o continente americano caso eles ocupassem Dakar (Senegal). Discorreu sobre o risco que o Oceano Atlântico passaria a ser para os navios Aliados com os alemães na região e do perigo iminente de invasão do Nordeste brasileiro a partir da África. Ele também convidou o governo brasileiro a cooperar mais efetivamente com os Estados Unidos, sugerindo a participação de tropas brasileira nos Açores, Cabo Verde e Guiana Holandesa (hoje Suriname). Roosevelt advertiu que em um cenário de vitória alemã na União Soviética, uma infinidade de homens e armas do Eixo estariam disponíveis contra a Inglaterra e o continente Americano.12

Enquanto os Estados Unidos apresentavam um latente estado de beligerância, ao suportar a Inglaterra, o Brasil brandia a sua neutralidade como escopo da sua política interna. Os militares, parte substancial do Estado Novo, não tinham o menor interesse em se opor ao Eixo, assim como, a maioria da população não via sentido em uma guerra que estava restrita à Europa, como fora a Primeira Guerra Mundial. O embaixador estadunidense Caferry alertou o seu Secretário de Estado, Cordell Hull, que o Brasil estava do lado dos Estados Unidos, disposto a cooperar com a defesa do Hemisfério. Mas, o desejo de Washington em enviar tropas para o Nordeste brasileiro só iria acontecer se o governo brasileiro percebesse que a ameaça nazista era iminente. Antes disso, nada aconteceria até que Washington enviasse material adequado para que os brasileiros pudessem se defender.13

A coesão interna que respaldava a política externa brasileira se manifestou em alguns casos de tensão do Brasil com ambos os lados beligerantes antes de sua entrada na Guerra: a compra de armamentos alemães, que foram aprendidos pelos ingleses em 1941, quando o Brasil manteve seus protestos até que o material fosse devolvido pelo governo de Londres; ou a ameaça alemã de interromper o comércio com o Brasil (1939), devido ao país manter trocas com os dois campos em conflito.14 Segundo Oswaldo Aranha, o bilateralismo era um complemento indispensável ao pan- americanismo.15

A Guerra estabeleceu uma grande confusão no projeto de edificação de um Estado nacional livre das “influências externas”. A referida “paz interna” que Getúlio tanto preconizou como necessária para o crescimento do país, estava novamente sob ameaça com o desenrolar do conflito, principalmente quando as forças beligerantes passaram a tentar influir nas questões políticas do país. Por isso Vargas passou a tratar a política interna como a principal batalha a ser travada pelo Estado Novo durante a Guerra. A bilateralidade nas relações internacionais que o Brasil gozou até o final de 1941 trouxe lucros e também uma contribuição para a paz interna. Com a opção do governo brasileiro em seguir o campo Aliado, manteve-se o lucro, mas sem a paz. Os contornos que edificaram o Estado Novo foram postos à prova nos campos de batalha.

O ataque japonês à base estadunidense de Pearl Harbor (Havaí) em 7 de dezembro de 1941, intensificou a escalada global do conflito. O governo Vargas percebeu que o Brasil e o continente americano estava ameaçado, já que o ataque japonês colocava os Estados Unidos na guerra contra o Eixo. Puderam também aproveitar a oportunidade de conseguir dos EUA o que já vinha sendo pedido há muito tempo. Solidário à Casa Branca pela questão continental, o governo brasileiro se manifestou contra o ataque japonês. A imprensa brasileira não poupou críticas ao Eixo, fazendo das manchetes um chamado continental à guerra. A população também foi às ruas em vários atos antifascistas. Os estudantes que já estavam mobilizados contra o nazismo foram vanguarda nesse processo, organizando atos e debates sobre as crescentes ações do Eixo contra os Aliados.16

Com a entrada dos Estados Unidos na guerra, Washington passou a pressionar para que o Brasil tivesse uma atitude mais clara e incisiva sobre o apoio aos Aliados. Inclusive solicitaram que Vargas substituísse alguns membros do seu governo, nitidamente identificados com o Eixo.17 O temor de um ataque ao Nordeste e de um golpe de Estado pró-Eixo era nítido entre as lideranças Aliadas. O presidente brasileiro não aceitou tal ingerência, mas recrudesceu a repressão à propaganda dos países do Eixo em território nacional e enfatizou a solidariedade aos estadunidenses condenando diretamente o ataque japonês. Quatro dias depois do ataque à Pearl Harbor, o governo brasileiro proibiu terminantemente toda e qualquer forma de propaganda dos países do Eixo. O DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) tendo como chefe Lourival Fontes, um notório admirador do fascismo, foi encarregado de efetivar a ordem de silenciar a propaganda do Eixo, agora indevida.18

O governo brasileiro entrou o ano de 1942 ciente que as ótimas relações comerciais com a Alemanha não mais prosseguiriam. A participação conjunta dos anglo-estadunidenses na guerra não mais permitiria que os navios do Eixo atracassem nos portos brasileiros e muito menos concordariam com o fornecimento de suprimentos brasileiros aos fascistas. Os positivos acordos militares e tecnológicos firmados com a Alemanha também estavam encerrados; a ideia de reaparelhar as forças armadas brasileiras através dos alemães, assim como a construção de uma siderúrgica, estavam liquidadas. Entretanto, uma parceria com os Estados Unidos poderia viabilizar todas essas demandas, além de garantir segurança ao Brasil em caso de um eventual ataque do Eixo, assim como, neutralizar a “quinta-coluna”, muita ativa nesse período.19

A discordância de setores militares em juntarem-se às fileiras Aliadas na luta contra o Eixo era um problema delicado de se resolver. Foi na III Reunião de Consulta dos Ministérios das Relações Exteriores das Repúblicas Americanas, realizada na cidade do Rio de Janeiro entre os dias 15 e 28 de janeiro de 1942, que o governo brasileiro conseguiu o apoio estadunidense para equipar todas as suas forças armadas e desenvolver parte de sua indústria. Ao final da Reunião, no dia 28 de janeiro, o Brasil anunciou o rompimento das relações com o Eixo.

As negociações que permitiram tal decisão foram complexas. Oswaldo Aranha foi uma figura decisiva, assim como, o bom entrosamento de Roosevelt e sua equipe com Getúlio Vargas. O rompimento das relações com o Eixo visou acelerar e ampliar a cooperação estadunidense, mas também, e talvez principalmente, ajudar na política interna no que tangia à quinta-coluna. Era óbvio que as ameaças de golpe contra Vargas colocariam o Brasil em antagonismo aos Estados Unidos; se Roosevelt queria e Precisava do Brasil, tinha que cacifar Vargas, apoiando a sua política e imiscuindo nela o mínimo possível.

Em junho de 1941 o general Marshall comunicou ao almirante Stark, Chefe de Operações Navais Estadunidense, que se encontraria com o presidente Vargas, ressaltando que a maior ameaça ao Brasil eram as forças internas, que poderiam agir para capturar portos e aeroportos na região Nordeste em combinação com forças do Eixo, que, neste caso, desembarcariam pequenas tropas por céu e mar, formando assim uma cabeça-de-ponte até a chegada de contingentes maiores. Essa análise do almirante Stark, aliada ao temor das movimentações de Chile e Argentina ao sul causaram grande preocupação em Vargas.20

Está claro que Vargas tomou a decisão de romper as relações com o Eixo em comum acordo com os Estados Unidos, trabalhando também para que todos os países americanos o fizessem, mas no horizonte estava o interesse nacional. A figura do Ministro das Relações Exteriores Oswaldo Aranha foi imperiosa para tal fato. Todo esse arranjo fora feito sem o consentimento do comando das forças armadas, que se postaram até o último minuto fiéis à neutralidade. Essa foi uma medida ousada de Vargas, que acabou na conta de Oswaldo Aranha, que já era visto como “homem de Washington”. Os fatores que ajudaram a abrandar as críticas dos militares estavam na efetivação dos acordos estabelecidos com os Estados Unidos, que desde meados de 1941 eram gerenciados pelo chanceler Oswaldo Aranha, que devolvia as críticas que recebia por parte dos militares apontando a inoperância de Góis Monteiro à frente da Comissão Mista, que nada produziu até aquela data.21

De início o rompimento de relações com os países do Eixo estava restrito aos contatos formais, não foi uma declaração de guerra. Contudo, para a população brasileira o rito era de guerra. Embalados pelos jornais, diversos setores da sociedade deram vivas aos Aliados e ao presidente Vargas, como seu repúdio ao Eixo. Não tardou para que a população e o governo sentissem o peso dessa decisão. No dia 15 de fevereiro o navio brasileiro Buarque foi afundado por um submarino alemão, causando uma morte.

O afundamento foi um choque de realidade para a população, principalmente para aqueles que ainda pensavam em consensualizar com o fascismo. O Brasil a partir  de então passou a ser tratado como inimigo. Independente de declaração formal de guerra ou não, a Alemanha atacou a Polônia e a União Soviética; não seria o Brasil o privilegiado a receber uma. Durante o mês de fevereiro mais três navios brasileiros foram afundados pelos submarinos alemães, causando 55 mortes. Nesse momento o núcleo do Estado Novo que definiu pelo rompimento passou a sofrer forte pressão. Tanto por parte dos militares, que nada podiam fazer para defender os navios, quanto, pela população, que exigia uma declaração de guerra, coisa que Getúlio nunca imaginou fazer.

Os ataques de submarinos aos navios brasileiros tiveram um impacto profundo, já que no ano de 1942 as exportações brasileiras para os Estados Unidos e Inglaterra somaram mais de 70% do total. A navegação era de vital importância para a sobrevivência do Estado Novo. Essa relação aparentemente lucrativa foi uma das reesposáveis pelo envolvimento cada vez mais acentuado do Brasil no cenário de guerra. Foram as necessidades internas que se encarregaram dessa decisão, já que a dependência das exportações, a falta de uma indústria de base, a fragilidade das forças armadas e a ameaça de uma “quinta-coluna” criaram um ambiente que impossibilitava outra escolha. Foram ao todo 35 navios afundados, todas embarcações comerciais, causando mais de mil mortes.

O engajamento dos setores populares, como sindicalistas e estudantes, não foi automático, por mais que a guerra exercesse um interesse elevado. O processo desencadeado por Vargas, de valorização do mundo do trabalho, contribuiu para que parcelas da população que nunca haviam participado da vida política do país o fizessem naquele momento. A participação popular, mesmo que muitas das vezes acontecendo de forma a referendar o governo, aproveitou o ensejo para se posicionar contra a repressão, que foi de pronto caracterizada nas forças do Eixo. A declaração de guerra aos fascistas só foi possível graças ao apoio popular, livre e consciente de que o Brasil precisava reagir. Esse apoio também se tornou fiador da aliança com os Estados Unidos, que permitiu a Vargas não só se armar para se defender das ameaças externas, mas também enfrentar as pressões internas dos mais conservadores. “Getúlio, com os Estados Unidos, teve entendimentos comerciais, diplomáticos e políticos. Com a Alemanha,  teve entendimentos comerciais e diplomáticos – políticos, não”.22

Mesmo as forças armadas sendo um dos maiores sustentáculos da Revolução de 1930 e do Estado Novo, Vargas evitou ao máximo ser centralizado por elas. De forma coletiva, ele sempre partilhou as suas decisões com esse setor, que foram recíprocos, pelo menos até 1944. Sobre a decisão de declarar guerra ao Eixo e ampliar as relações com os estadunidenses, foi um ato exclusivo do presidente Getúlio Vargas. É óbvio que existiam setores nas forças armadas que apoiaram tal decisão, mas o comando do Exército Brasileiro e da Marinha de Guerra tinham uma firme posição pela neutralidade. Com essa decisão, Vargas também apostou em uma divisão no seio das forças armadas, que indiretamente, enfraquecia qualquer tentativa golpista.

“Apesar do grande poder dos militares, seria um erro acreditar que fosse absoluto. Todas as suas reivindicações nunca se fizeram longe do jogo político e é certo que muitas vezes tiveram que amargar derrotas para os seus aliados dentro do sistema de poder. Não constituíam um grupo homogêneo, com um programa definido, e sua atuação esteve sujeita à variação das inclinações pessoais. Sua coesão foi moldada por aqueles temas caros aos militares enquanto corporação: a questão da segurança nacional ou a modernização do país. Todos esses fatores permitiram a Vargas não ser um mero objeto dos interesses militares e essa diversidade de opiniões, em questões que transcendiam as preocupações da corporação, permitiu ao hábil político que era Getúlio, coordenar as pressões castrenses com outras mais fracas dos grupos que compunham a administração”.23

O Estado de Beligerância foi decretado por Vargas no dia 22 de agosto, mas só no dia 31 é que a guerra foi declarada oficialmente através do Decreto Nº 10.358. De imediato o governo começou uma luta em duas frentes. Internamente deu início a uma verdadeira caçada aos simpatizantes do Eixo e apoiadores do integralismo. Toda a máquina pública foi investigada e cada órgão produziu a sua apuração, onde listas de simpatizantes do Eixo e elementos ligados ao integralismo foram confeccionadas para a formação de processos de investigação. Comprovado o envolvimento com os inimigos da Nação, o indivíduo era demitido e tendo participado de algum ato de espionagem ou sabotagem, era preso.

No dia 2 de setembro (Semana da Pátria) uma manifestação de diversos segmentos foi ao Palácio do Catete protestar contra o Eixo e exigir que o governo brasileiro respondesse aos ataques de maneira mais incisiva. Mais uma vez falando de improviso, Vargas acudiu à multidão e pediu calma. Disse que a população não tinha motivo para temer, que o Brasil estava à altura do acontecimento. Entretanto, no final  do referido discurso disse uma frase intrigante. Solicitou que regressassem às suas oficinas e fábricas para continuarem a produzir para o Brasil, “para que as forças militares e às que tivessem que ser mobilizadas e marcharem para o teatro de guerra nada faltassem”.24

Nesse dia Vargas indicou o desejo de fazer um movimento muito mais significativo do que encampar ativos do Eixo e prender espiões. Mais uma vez as questões internas estavam pautando as atitudes externas do Estado Novo. O desejo estadunidense era que o Brasil tivesse um simples alinhamento; isso não aconteceu porque muitas questões internas precisavam ser sanadas, principalmente o reaparelhamento das forças armadas e a siderurgia para a industrialização. A declaração de guerra feita por Vargas também não foi algo que estava nos planos de Washington, que se viu obrigado a mobilizar mais forças para a defesa do Atlântico Sul, assim como entregar mais armas para os brasileiros. A projeção, por parte de Vargas, de tropas brasileiras em algum teatro de operações foi outro complicador para a Casa Branca.25

O governo brasileiro celebrou uma série de acordos com os estadunidenses, que garantiram ao Brasil vultosos investimentos, devido à importância geográfica que a região Nordeste tinha para a guerra e a representatividade do Brasil no continente. A “Operação Torch”, realizada em 8 de novembro de 1942, utilizou as bases do Nordeste como ponto de partida para desembarcar tropas Aliadas em vários pontos do Marrocos e Argélia. A referida operação teve por objetivo eliminar a ameaça dos ítalo-germânicos no Norte da África. O que facilitou a referida operação foi o entendimento dos Aliados com o almirante Darlan26, que comandava as colônias francesas na África. A partir dessa operação e das vitórias Aliadas no início de 1943 as ameaças de uma invasão ao Brasil usando a África como plataforma praticamente foram eliminadas.

Pressentindo que o Brasil corria o risco de ser tratado como um ente menor, já que a sua importância diminuiu com a expedição Aliada na África, o grupo em torno de Vargas tomou as rédeas do processo e mais uma vez fez um movimento perspicaz para conseguir de Washington os investimentos militares. Esse movimento não só comprometeu Roosevelt, como ajudou a aplacar a oposição “quinta-colunista” e obrigou de uma vez por todas, os militares a se unirem em torno de Vargas. No discurso de 31 de dezembro de 1942 no Rio de Janeiro, Vargas explanou o desejo de enviar tropas para cooperar na luta contra o Eixo.

“O dever de zelar pela vida dos brasileiros obriga-nos a medir as responsabilidades de uma possível ação fora do Continente. De qualquer modo, não deveremos cingir-nos à simples expedição de contingente simbólico. Queremos ser eficientes e, para isso, precisamos dispor de forças completamente treinadas e aparelhadas aguardando a marcha dos acontecimentos, que determinará a forma e o lugar onde tenham de operar”.27

Quando as tropas brasileiras embarcaram rumo à Europa houve por parte da população um apoio muito grande, apesar de algumas descrenças e derrotismos externados por setores menores, que ainda influenciados pela propaganda do Eixo, diziam que os brasileiros seriam “bucha de canhão” dos estadunidenses. Superando todas as dificuldades e descrenças, Vargas falou que a participação efetiva na guerra asseguraria uma posição de vanguarda ao país. Isso facilitaria a participação ativa no mundo pós-guerra. Para tanto, o país precisava de um alto grau de desenvolvimento, principalmente nas esferas de transporte, indústria e combustíveis. Três setores que se mostraram vitais na guerra. Isto é, a sociedade do futuro, iria requerer o dinamismo da guerra e a produtividade da paz.

A Campanha da Itália foi vitoriosa em todos os aspectos, mas não foi capaz de reverter o desejo das oposições em se livrarem de Vargas. A participação brasileira lutando na Europa foi um acontecimento muito importante, que respaldou, posteriormente, o país diante da ONU. Foi um traço da política soberana que Vargas tentou implementar e que causou desacordos entre a elite brasileira e o Presidente. A atuação dos pracinhas (de terra, ar e mar) foi marco na história nacional, mas até hoje é praticamente desconhecida pela maioria da população, ausente das salas de aula em  todo o Brasil.

O desconhecimento sobre a Campanha da Itália só não é maior do que as confusões sobre o conceito de nacionalismo na periferia capitalista. O presidente Vargas havia planejado modernizar as forças armadas e colocá-las entre as potências mundiais, ao mesmo tempo em que tentava transformá-las em um instrumento de coesão social.

As tropas enviadas para lutar no exterior tinham como objetivo mobilizar a sociedade entorno dessa proposta, fazendo da defesa nacional, um projeto de edificação de um Estado autônomo.

O retorno dos combatentes foi triunfal, com mais de um milhão de pessoas ocupando o Centro do Rio de Janeiro para recebê-los. No entanto, a sua precoce desmobilização e o ostracismo que muitos desses homens viveram depois da guerra, ajudaram a enterrar as histórias de glória na Itália. Os combatentes brasileiros foram tratados pelos militares e pelo governo Dutra com desdém. O plano de Vargas de fazer da Campanha da Itália a porta de entrada do Brasil no cenário internacional foi desmontado paulatinamente por Dutra e pela UDN (União Democrática Nacional, partido da direita liberal e pró-imperialista no período 1946-1964). A Campanha da Itália foi condenada ao esquecimento pelos sucessivos governos que fizeram oposição à Vargas e ao trabalhismo.

Outro fator que também ajudou a pasteurizar as análises sobre o papel de Vargas durante a guerra, foi o emprego do “conceito” de totalitarismo para se referir ao Estado Novo e a figura de Vargas, o colocando no mesmo patamar que Hitler e Mussolini. Muito mais útil como propaganda da Guerra Fria do que realmente um conceito científico, o “totalitarismo” serve como um guarda-chuva para defenestrar tudo o que não seja liberalismo (apresentado como sinônimo de democracia), assemelhando comunismo, fascismo e regimes autoritários e centralizados da periferia capitalista, como o Estado Novo varguista.28 Errado na forma e no objetivo, o conceito de “totalitarismo” serviu muito mais para confundir do que para elucidar, permitindo que uma elite ocidental capitalista construísse uma série de mentiras contra as várias tentativas de edificação de governos autônomos no antigo “terceiro mundo”.29

Getúlio Vargas e sua visão nacionalista tornaram-se desafiadoras para o projeto hegemônico que os Estados Unidos definiu como política de Estado no fim da Segunda Guerra Mundial. A construção de um Estado independente na América Latina, que pudesse fazer sombra à expansão estadunidense, era algo impensável, precisava ser detido a todo custo. Com a polarização da Guerra Fria, Washington definiu que a América Latina não poderia se tornar um enclave que desafiasse o imperialismo.

Vargas, um eterno crítico do liberalismo, tornou-se ao fim da Segunda Guerra Mundial o primeiro alvo da Guerra Fria; seu desejo de soberania e autonomia para um Brasil industrializado era perigoso demais. O golpe de 1945 que depois Vargas teve a anuência da diplomacia estadunidense, comandada por Henry Truman30, que edificou a Doutrina Truman, e fez do Brasil um dos seus maiores laboratórios.

O presidente Getúlio Vargas foi sem dúvida a primeira vítima da Guerra Fria, que marcou a sua oposição não só contra as experiências socialistas, como também contra as tentativas de construção de Estados autônomos na periferia sob a ótica do nacionalismo. Não o nacionalismo reacionário e chauvinista da Europa da primeira metade do século XX, mas um nacionalismo de cunho progressista e libertador (adquirindo tons reformistas ou revolucionários de acordo com cada experiência) , que muito caracterizou a América Latina da segunda metade do referido século. A sanha imperialista fez com que Getúlio Vargas, vencedor da Segunda Guerra Mundial, fosse tratado como derrotado, o colocando de forma equivocada entre os déspotas que propiciaram o conflito.

A “quinta-coluna”, que tanto combateu a ideia de Vargas de se juntar ao campo Aliado, transformou-se em adepta preferencial dos Estados Unidos a partir da Doutrina Truman, os maiores interessados no “esquecimento” do papel preponderante de Vargas durante a Segunda Guerra Mundial. Os efeitos desse processo de alienação e de falsificação da História continuam vívidos na historiografia brasileira mesmo 80 anos depois da decisão corajosa de Vargas de decretar guerra ao Eixo. A verdadeira “cortina de ferro” para o Brasil após a Segunda Guerra foi a que encobriu a participação do país e a gloriosa Campanha da Itália e de Defesa do Atlântico, tendo como seu líder maior Getúlio Vargas.

Notas de Rodapé:

1 VARGAS, Getúlio. A Nova Política do Brasil VI, Rio de Janeiro, Editora José Olympio, 1940. P.119.

2 http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/presidencia/ex-presidentes/getulio- vargas/discursos/1940/21.pdf/view- Acessado em 7/02/2018.


2
http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/presidencia/ex-presidentes/getulio- vargas/discursos/1940/21.pdf/view- Acessado em 7/02/2018.1 VARGAS, Getúlio. A Nova Política do Brasil VI, Rio de Janeiro, Editora José Olympio, 1940. P.119.

3 VERGARA, Luiz. Fui Secretário de Getúlio Vargas, Rio de Janeiro/Porto Alegre/São Paulo, Editora Globo, 1960. P.167.

4 VARGAS, Getúlio. A Nova Política do Brasil VI, Rio de Janeiro, Editora José Olympio, 1940. P. 192.

5 VARGAS, Getúlio. A Nova Política do Brasil VII, Rio de Janeiro, Editora José Olympio, 1940. P. 294.

6 SILVA, Hélio. Guerra Inevitável 1939-1942, Rio de Janeiro, Editora Três, 1975.

7 SILVA, Hélio. Guerra Inevitável 1939-1942, Rio de Janeiro, Editora Três, 1975. P. 333.

8 Idem. P.68.

9 OLIVEIRA, Lúcia Lippi, VELLOSO, Mônica Pimenta, GOMES, Ângela Maria de Castro, Estado Novo

– Ideologia e Poder, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1982. P. 121.

10 MUYLAERT, Roberto. 1943 Roosevelt e Vargas em Natal, São Paulo, Editora Bússola, 2012.

11 OLIVEIRA, Lúcia Lippi, VELLOSO, Mônica Pimenta, GOMES, Ângela Maria de Castro, Estado Novo – Ideologia e Poder, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1982. P. 120.

12 Fonte: CPDOC-FGV – GVc. 1941.07.02.

13 SILVA, Hélio. 1942- Guerra no Continente, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1972. P. 74.

14 Decreto Lei 383. Dentre outras coisas, proibia o ensino e a imprensa em linga estrangeira.

15 SEITENFUS, Ricardo Antônio Silva. O Brasil Vai à Guerra, 3º Edição, Barueri, Editora Manole, 2003. P. 159.

16 PRESTES, Anita Leocádia. Da Insurreição Armada (1935) À “União Nacional” (1938 – 1945), São Paulo, Paz e Terra, 2001. P. 69.

17 LOCHERY, Neill. Brasil – Os Frutos da Guerra, Rio de Janeiro, Editora Intrínseca, 2015. P. 138.

18 Documento datado de 11/12/1941. Fonte: CPDOC-GGV – AGM c 1941. 12.11 – 2.

19 RODRIGUES, F; RAHMEIER, A. O pensamento diplomático, político e militar brasileiro dos anos de 1930 e 1940: o caso da aproximação com a Alemanha. In: SILVA, F.C T; PITILLO, J.C.P; NETO, P.G; SANTOS, R.S. A Segunda Guerra Mundial 70 Anos Depois, Rio de Janeiro, Editora Multifoco, 2016. P.172.

20 SILVA, Hélio. 1942, Guerra no Continente, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1972. P. 58.

21 Idem. P. 94.

22 RIBEIRO, José Augusto. A Era Vargas 1882-1950. Rio de Janeiro, Casa Jorge Editorial, 2001. P.186.

23 FARIA, Antônio A. da Costa. BARROS, Edgar Luiz de, Getúlio Vargas e sua Época, São Paulo, Global Editora, 9º Edição, 2001. P. 48.

24 VARGAS, Getúlio. A Nova Política do Brasil IX, Rio de Janeiro, Editora José Olympio, 1942. P. 248.

25 LOCHERY, Neill. Brasil – Os Frutos da Guerra, Rio de Janeiro, Editora Intrínseca, 2015.

26 François Darlan foi assassinado em dezembro de 1942, logo depois de ter aderido ao bloco Aliado.

27 SILVA, Hélio. 1942, Guerra no Continente, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1972. P. 114.

28 KERSHAW, Ian. LEWIN, Moshe. Stalinism and Nazism: Dictatorships in Comparison,

Cambridge, Cambridge University Press, 1997.

29 http://blogjunho.com.br/alguns-problemas-do-conceito-de-totalitarismo/ – Acessado em 02/02/20.

30 SILVA, Hélio. 1945: Porque Depuseram Vargas, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1976. Pág. 221

Bibliografia

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            . 1942- Guerra no Continente, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1972.

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Local de Pesquisa

CPDOC – FGV

Internet

http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/presidencia/ex-presidentes/getulio- vargas/discursos/1940/21.pdf/view- Acessado em 7/02/2018. http://blogjunho.com.br/alguns-problemas-do-conceito-de-totalitarismo/ – Acessado em 02/02/20.