O SUPERENDIVIDAMENTO – INCLUSÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO DE FORMAS DE PREVENÇÃO E POSSIBILIDADES DE NEGOCIAÇÃO

Resumo

O presente artigo cuida de analisar as alterações incluídas na Lei nº 8.078 de 11 de setembro de 1990 - Código de Defesa do Consumidor (CDC), pela Lei nº 14.181, de 1º de julho de 2021 promulgada durante o período de decretação de estado de calamidade pública onde se agravaram a situação econômico-financeira de empresas e trabalhadores formais e informais e também a situação da economia nacional agravada pelas condições impostas no mundo globalizado também afetado pelas restrições de circulação impostas.
Analisa, ainda, a forma contida na Lei nº 14.181 quanto a simplificação e celeridade dos mecanismos adotados para a negociação e conciliação, com posterior homologação pelo Poder Judiciário, sem prejuízo de utilização da mediação para igual objetivo guardadas as especificidades dos institutos com a inclusão do Capítulo IV-A no Código de Defesa do Consumidor e a inclusão no parágrafo 3º no artigo 96 do Estatuto do Idoso

Artigo

O SUPERENDIVIDAMENTO – INCLUSÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO DE FORMAS DE PREVENÇÃO E POSSIBILIDADES DE NEGOCIAÇÃO

Bianca Mauricio da Rocha[1]

Magda Hruza de Souza Alqueres Ferreira[2]

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO; 1. O FENÔMENO DO SUPERENDIVIDAMENTO; 2. A HIPERVULNERABILIDADE DO CONSUMIDOR IDOSO E O ASSÉDIO DE CONSUMO; 3. BREVES CONSIDERAÇÕES À LEI 14.181 DE 2021; 3.1 DAS VEDAÇÕES E OBRIGAÇÕES IMPOSTAS ÀS CONCEDENTES DE CRÉDITO E O CRÉDITO RESPONSÁVEL; 3.2 DA CONCILIAÇÃO NO SUPERENDIVIDAMENTO; CONSIDERAÇÕES FINAIS; REFERÊNCIAS

RESUMO

O presente artigo cuida de analisar as alterações incluídas na Lei nº 8.078 de 11 de setembro de 1990 – Código de Defesa do Consumidor (CDC),  pela Lei nº 14.181, de 1º de julho de 2021  promulgada durante o período de decretação de estado de calamidade pública onde se agravaram a situação econômico-financeira de empresas e trabalhadores formais e informais e também a situação da economia nacional agravada pelas condições impostas no mundo globalizado também afetado pelas restrições de circulação impostas.

Analisa, ainda, a forma contida na Lei nº 14.181 quanto a simplificação e celeridade dos mecanismos adotados para a negociação e conciliação, com posterior homologação pelo Poder Judiciário, sem prejuízo de utilização da mediação para igual objetivo guardadas as especificidades dos institutos com a inclusão do Capítulo IV-A no Código de Defesa do Consumidor e          a inclusão no parágrafo 3º no artigo 96 do Estatuto do Idoso .

PALAVRAS-CHAVES:

Consumidor, Defesa, Superendividamento, Assédio de Consumo, Proteção ao vulnerável, Idosos, Mecanismos de solução de conflitos, Conciliação.

INTRODUÇÃO

  1. O FENÔMENO DO SUPERENDIVIDAMENTO

O superendividamento é um fenômeno social e jurídico, presente na maioria dos países e vem crescendo nos dias atuais devido à democratização do crédito e também ao tipo de sociedade de consumo e imediatista da contemporaneidade. Neste sentido, nos ensina Cláudia Lima Marques:

“O superendividamento do consumidor é, na atualidade, um dos temas mais instigantes e socialmente relevantes, no que respeita à proteção do consumidor. Trata-se de um fenômeno social que assola, por fatores diversos, muitas das sociedades ocidentais, que se caracterizam como sociedades de consumo massificado. Todavia, tratar do superendividamento é tratar de um tema tão antigo quanto o próprio direito.” (MARQUES, 2006)

Segundo o Banco Central (Bacen), o superendividamento não se limita à taxa de inadimplemento, o conceito “é o resultado de um processo no qual indivíduos e famílias se encontram em dificuldade de pagar suas dívidas a ponto de afetar de maneira relevante e duradoura seu padrão de vida.”

            Segue o mesmo viés a definição dada pela professora Maria Cláudia, na qual o superendividamento é conceituado como a “impossibilidade global de o devedor pessoa física, consumidor, leigo e de boa-fé, pagar todas as suas dívidas atuais e futuras” (MARQUES, 2006).

            O superendividamento passou a ser previsto pelo ordenamento jurídico brasileiro, especificamente na inclusão do Capítulo IV-A pela Lei nº 14.181, de 1º de julho de 2021 na Lei nº 8.078 de 11 de setembro de 1990 – Código de Defesa do Consumidor (CDC), que cuida da PREVENÇÃO E DO TRATAMENTO DO SUPERENDIVIDAMENTO incluindo os artigos 54-A a 54-G_iniciando pela definição do fenômeno do superendividamento em decorrência do comportamento do consumidor voluntário ou involuntário, contida no Art. 54-A, parágrafo 1º, in verbis:

“Art. 54 -A.

[…]

  • Entende-se por superendividamento a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação”.

Ele consiste no fato do consumidor ter tantas dívidas que não consegue arcar com elas sem afetar seu sustento e de sua família, estando atrelado ao mínimo existencial, que deverá ser analisado no caso concreto.

Importa frisar que o superendividamento não está relacionado diretamente com a inadimplência dos consumidores, pois existem consumidores superendividados que estão adimplentes com seus pagamentos mas estão vivendo sem dignidade, sem ter preservado um mínimo para sua existência.

Ademais, existem dois tipos de superendividados, os ativos e os passivos. O primeiro é o consumidor que consome mais do que seu orçamento permite, de forma voluntária; já o segundo caso, o consumo acima do orçamento ocorre por questões alheias à vontade do consumidor, que não eram esperadas, como doença, desemprego ou morte de algum familiar, e nos últimos anos pela decretação de estado de calamidade pública provocado pela pandemia do COVID que alterou a situação econômico-financeira de empresas e trabalhadores, genericamente aqui considerados.

Há ainda a distinção entre os superendividados ativos: conscientes – aquele que age de má fé e contrai dívidas sabendo que não irá pagar – e os superendividados ativos inconscientes – aqueles que agem de forma impulsiva, sem fazer uma análise do seu orçamento. Neste sentido, Schmidt Neto (2009) assevera:

“1) Superendividamento ativo: o consumidor se endivida voluntariamente, em virtude de má gestão do orçamento familiar, contraindo dívidas maiores do que ele pode pagar, por mero impulso ou apelo comercial. Subdivide-se em ativo consciente e ativo inconsciente.

  1. A) Ativo consciente: o consumidor age de má-fé, pois sabe que não tem recursos para adimplir e sua intenção é não pagá-las, visando ludibriar o credor. O mesmo não receberá proteção do Estado para recuperar-se, pelo simples fato da ausência da boa-fé, que é requisito essencial.
  2. B) Ativo inconsciente: age de forma irresponsável e impulsiva, deixando de controlar seus gastos. Pode ser chamado também de pródigo, pois se deixa seduzir pelo mercado, adquirindo produtos supérfluos. Nesse caso, o Estado o auxilia pelo fato de haver onerosidade e vulnerabilidade.

2) Superendividamento passivo: ocorre quando o devedor fica nessa situação por motivos externos e imprevistos, os chamados “acidentes da vida”. Não age de má-fé e não ocorre má gestão. Somente encontra-se nesta situação por motivos alheios, tornando-se vulnerável. Por isso, o Estado tem desejo de ajudá-lo, dando maior dignidade à sua vida.”

  1. O ASSÉDIO DE CONSUMO E A HIPERVULNERABILIDADE DO CONSUMIDOR IDOSO

            Como em qualquer serviço ou produto, para sua venda, é preciso ofertá-los, o que corre por meio de publicidades inseridas nos veículos de comunicação em todas as suas formas; e com o crédito não é diferente. Contudo, o que se vê dessas instituições são propagandas extremamente insistentes, abusivas e muitas vezes com inverdades – como crédito com “taxa zero” ou financiamento “sem juros”. Na mesma linha, coaduna o Senador Ricardo Ferraço:

“As piores armadilhas para o consumidor são as ofertas de dinheiro fácil e as promoções tentadoras de bens e de produtos, com prestações que cabem em qualquer bolso. Propagandas muitas vezes enganosas, cláusulas contratuais mal explicadas e abordagens até mesmo agressivas para tomada de crédito popular acabam confundindo os mais desavisados e levando ao superendividamento”. (FERRAÇO, 2014)

Cada vez mais as instituições financeiras apostam em publicidade agressiva, “mediante estratégias engenhosas que exploram necessidades específicas de um lado e oferecem a solução do outro, maculando qualquer percepção mais apurada sobre os efeitos práticos da tomada do crédito”. (ATAÍDE; SOARES, 2017)

Essas práticas de marketing configuram o que a doutrina convencionou chamar de assédio de consumo. Assim, o assédio de consumo é caracterizado pela publicidade agressiva, insistente e inconveniente, que tira do consumidor a possibilidade de contratar de forma consciente, levando-o a assinar contratos imediatamente sem fazer as ponderações necessárias.

Entendendo essa prática de mercado e os riscos a ela inerentes, a comissão responsável pela atualização do CDC inseriu o artigo 54-C, da Lei nª 14.181, de º1 de julho de 2021, a vedação ao assédio:

“Art. 54-C. É vedado, expressa ou implicitamente, na oferta de crédito ao consumidor, publicitária ou não:

IV – Assediar ou pressionar o consumidor para contratar o fornecimento de produto, serviço ou crédito, principalmente se se tratar de consumidor idoso, analfabeto, doente ou em estado de vulnerabilidade agravada ou se a contratação envolver prêmio”. [grifo nosso]

Observa-se que a lei previu a vedação ao assédio, principalmente quando se trata de hipervulneravéis, pois percebe-se que estes são o público-alvo deste tipo de assédio (especialmente o idoso), sendo, por isso, importante compreender esta vulnerabilidade.

No que diz respeito à vulnerabilidade do consumidor idoso, é necessário iniciar com alguns apontamentos. Pode-se dizer que o idoso é um “fenômeno” do mundo moderno, uma vez que até oito décadas atrás a expectativa de vida era de 45,5 anos. Em 2018 essa expectativa aumentou em mais de 30 anos e passou a ser de 76,3 anos, o que fez com que a população idosa, até então com ínfima representatividade na população, aumentasse em demasia. Conforme divulgado pelo IBGE, o Brasil tem mais de 28 milhões de idosos, o que representa 13% da população do país. A expectativa é que esse percentual dobre nas próximas décadas.

Além disso, em estudo realizado pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) e pelo Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil), mostrou-se que a forma de organização dos chefes de família vem mudando, em especial diante da pandemia do Covid-19. Hoje os idosos representam 91% dos brasileiros que contribuem financeiramente para o sustento da casa, sendo que 52% são os principais responsáveis em prover o sustento da família.

Contudo, o idoso, devido a questões como “o   analfabetismo   e   a   escolaridade   baixa; a   situação   financeira (considerando   os   gastos   com   remédios   e   saúde,   que   aumentam   na   velhice); fragilização  da  saúde  (embora  envelhecer  não  seja  uma  doença,  o  risco  de  contrair  uma aumenta);  e a  desvalorização  do   idoso   no   mundo   contemporâneo,   marcado  pelo consumismo, precarização das relações e instabilidade, o que o torna  uma vítima fácil para práticas abusivas, marketing agressivo e crimes.” (OLL; CAVALLAZZI apud MARQUES; BARBOSA, 2019), é considerado vulnerável. Também é considerado como vulnerável o consumidor, conforme o art. 4º do CDC, in verbis:

“Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: (Redação dada pela Lei nº 9.008, de 21.3.1995)

I – reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo; [grifo nosso]”

Assim, o idoso consumidor é duplamente vulnerável, uma por ser idoso e outro por ser consumidor. Diante dessa dupla vulnerabilidade, os doutrinadores entendem que o idoso é hipervulnerável, ou ainda, que possui uma vulnerabilidade potencializada:

“Tratando-se do consumidor ‘idoso’ (assim considerado indistintamente aquele cuja idade está acima de 60 anos), é, porém, um consumidor de vulnerabilidade potencializada (…) Certo é que a vulnerabilidade especial dos idosos está ligada a sua ‘idade’ e ‘condição social’, como especifica o CDC, que torna alguns serviços (serviços de saúde) ou produtos (remédios) essenciais à manutenção da vida”. (OLL, Johannes; CAVALLAZZI, Rosangela Lunardelli apud MARQUES Cláudia, 2016)

Como visto acima, as financeiras e os bancos têm preferência pelo público idoso devido a sua vulnerabilidade e a possibilidade de consignação, que se desdobra nas 4 questões já mencionadas. Somado a isso, os idosos dificilmente ficam inadimplentes no que tange à consignação em folha de pagamento, uma vez que o valor devido é retido diretamente em folha de pagamento de seus benefícios, à exceção de quando estes descontos são suspensos por decisão judicial. Assim, são  devedores adimplentes embora desta adimplência possa decorrer o não atingimento de suas necessidades básicas comprometendo a sua qualidade de vida.

Aqui cabe considerar a introdução do parágrafo 3º  ao art. 96 da Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003 (Estatuto do Idoso)

“Art. 96

  • Não constitui crime a negativa de crédito motivada por superendividamento do idoso

Em que pesem e respeitadas as opiniões em sentido contrário entendem as Autoras que constitui uma maior proteção ao idoso a  possibilidade que surge com a negativa de crédito de ampliação de seu endividamento.

  1. BREVES CONSIDERAÇÕES À LEI Nº 14.181/2021

A discussão para atualizar o Código de Defesa do Consumidor – CDC, inserindo normas para proteger o consumidor do superendividamento, não é tema novo e já se encontrava em debate no Congresso Nacional há quase 10 anos. A partir do Projeto de Lei do Senado Federal nº 283/2012, de autoria do então Senador José Sarney, pretendeu-se alterar o Código de Defesa do Consumidor para “aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção do superendividamento”.

O mencionado projeto tramitou no Senado Federal até 2015, quando após aprovado por unanimidade na Casa, foi renumerado, passando a ser Projeto de Lei nº 3.515/2015. No mesmo ano, o PL foi encaminhado à Câmera dos Deputados a fim de ser revisado, tendo tramitado até 2021, quando foi apresentado um substitutivo (PL 1805/2021), posteriormente aprovado.

O PL 1805/2021 aprovado converteu-se na Lei nº 14.181/2021, chamada popularmente de Lei do Superendividamento. Esta lei é de grande valia para o direito consumerista e inclui dois novos capítulos ao Código de Defesa do Consumidor, Capitulo IV-A “Da prevenção e do tratamento do superendividamento” e Capítulo V “Da Conciliação no superendividamento”, além de acrescentar um parágrafo ao art. 96 do Estatuto do Idoso.

Os novos artigos introduzidos no Código de Defesa do Consumidor -CDC delimitam o alcance da norma, uma vez que a prevenção, o tratamento e a conciliação do superendividamento somente são cabíveis quando se tratar de pessoa natural e a dívida for decorrente da relação de consumo. Ademais, exclui de seu alcance os devedores de má fé e os consumos e produtos considerados “luxo de alto valor”.

Quanto ao quesito da boa-fé ou má fé, Clarissa Costa Lima e Káren Bertoncello explanam:

“Na doutrina estrangeira, encontramos a diferenciação entre o superendividado de boa-fé e o superendividado de má-fé. No primeiro caso estão aqueles consumidores que sofreram um “acidente da vida”, ou seja, que não deram causa ao seu endividamento decorrente de fatores imprevistos. Também estão os consumidores que, em virtude da sua inexperiência ou despreparo, não conseguiram fazer uma boa avaliação da sua capacidade de reembolso antes de assumir novas despesas. Superendividados de má-fé são apenas aqueles que deliberadamente contrataram ou assumiram novas despesas, que sabiam ser incompatíveis com a sua renda, com a intenção de não pagá-las. Os superendividados de má-fé não são admitidos nos procedimentos de tratamento existentes na legislação comparada.” (LIMA; BERTONCELLO,2010)

O normativo traz também a questão de assegurar ao devedor o mínimo existencial, garantindo assim sua dignidade e convergindo com os preceitos Constitucionais. Além disso, introduz a garantia de práticas de crédito responsável, estímulo à educação financeira, possibilidade de revisão e repactuação das dívidas.

Adicionalmente, insere também normas concretas de obrigações, vedações e possíveis soluções ao superendividamento, que serão vistas abaixo.

3.1.DAS VEDAÇÕES E OBRIGAÇÕES IMPOSTAS ÀS CONCEDENTES DE CRÉDITO E O CRÉDITO RESPONSÁVEL

Conforme já visto, as financeiras e bancos se utilizam de práticas abusivas para vender seu crédito. Contudo, a Lei nº 14.181/2021 traz diversas obrigações e vedações às instituições financeiras, objetivando coibir as práticas abusivas e o assédio de consumo.

A mencionada lei acrescentou o artigo 54-B, que obriga uma maior transparência no fornecimento de crédito ou venda a prazo, ficando o fornecedor obrigado a informar, de maneira adequada e prévia, o custo efetivo total da operação, a taxa efetiva mensal de juros, a taxa dos juros de mora e o total de encargos previstos para o atraso no pagamento, além do direito à liquidação antecipada e não onerosa do débito.

Já em seu art. 54-C, veda na oferta de crédito: qualquer menção à ausência de análise da situação financeira do consumidor; ocultar ou dificultar a percepção do consumidor sobre os riscos e ônus da contratação; o assédio; e o condicionamento da contratação à renúncia de demandas judiciais.

Mais à frente, no art. 54-D impõe obrigações de natureza positiva, como o dever de informar e esclarecer o consumidor de todos os custos, bem como todas as consequências da contratação (genéricas e específicas), levando em conta suas peculiaridades, como idade; ainda estipula que é dever do fornecedor fazer uma análise das condições do consumidor mediante os dados existentes nos bancos de proteção ao crédito, além do dever de informar ao contratante a identidade do agente financiador e entregar cópia do contrato a todos os envolvidos (contratante, coobrigado ou garante). Ademais, estipula que o descumprimento poderá acarretar na redução de juros, encargos ou acréscimos, além da dilação para pagamento além do prazo estipulado no contrato.

Veda também, conforme o art. 54-G, a cobrança ou débito de valores que tenham sido contestados pelo consumidor enquanto aberto de solução; condutas que dificultem ao consumidor o pedido ou obtenção de bloqueio ou anulação de pagamentos, quando se tratar de utilização fraudulenta de cartão de crédito ou similar.

Estipula ainda o dever do fornecedor do crédito, quando for caso de contrato de consignação em folha de pagamento, em averiguar junto à fonte pagadora se o consumidor possui margem consignável.

Todas as vedações e obrigações trazidas no capítulo VI-A se sustentam através de crédito responsável, conforme explicitado logo em seus primeiros artigos:

Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

[…]

XI – a garantia de práticas de crédito responsável, de educação financeira e de prevenção e tratamento de situações de superendividamento, preservado o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, por meio da revisão e da repactuação da dívida, entre outras medidas. [grifo nosso]

O crédito responsável mitiga os riscos do devedor, uma vez que passa a ser responsabilidade do fornecedor proceder às cautelas de praxe para ter o retorno financeiro e também evitar o superendividamento do consumidor, assumindo práticas saudáveis e sustentáveis, como a transparência em seus atos.

“Quanto à alegação de superendividamento, é certo que as empresas, ao concederem o crédito, devem adotar as cautelas necessárias ao efetivo recebimento do retorno financeiro e, ao lado disso, devem tomar medidas visando coibir a superveniência do superendividamento dos devedores, preservando, assim, o patrimônio mínimo a garantir a dignidade humana. Trata-se da aplicação da teoria do crédito responsável.” (Acórdão 1095565, Relatora Desª. SIMONE LUCINDO, 1ª Turma Cível, data de julgamento: 9/5/2018, publicado no DJe: 15/5/2018) [grifo nosso]

Contudo, as práticas de crédito responsável, contidas na Lei 14.181/2021, vão além da mitigação de risco, elas trazem um novo paradigma para a economia – centrado na responsabilidade, ética e solidariedade.

“Solidariedade aqui compreendida com a preocupação e previsão dos riscos de determinada operação de crédito para a vida financeira do indivíduo contratante, assim, aos fornecedores incumbe o dever de analisar a vida econômica e, para além da persecução do lucro, orientar a conduta dos consumidores para a melhor contratação dentro de suas necessidades e de acordo com suas capacidades econômicas.” (CARQUI, 2016) [grifo nosso]

Essas novas diretrizes da Lei do Superendividamento mostram um movimento atual de sustentabilidade, responsabilidade e colaboração, a que toda a sociedade se inclina e que estão diretamente ligados aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU[3] através do engajamento da sociedade no cumprimento da chamada Agenda 30 e das políticas de ESG que vem ganhando maior movimentação por parte das empresas e seus colaboradores.

Conforme relatório da ONU:

“O caminho para a dignidade até 2030: acabando com a pobreza, transformando todas as vidas e protegendo o planeta

  1. … A força de uma economia deve ser medida pelo grau em que atende às necessidades das pessoas, e pela forma como o faz de forma sustentável e equitativa. […] A transformação dos modelos de negócios para a criação de valor compartilhado é vital para o crescimento de economias inclusivas e sustentáveis.”[4] (tradução livre) [grifo nosso]

3.2 DA CONCILIAÇÃO NO SUPERENDIVIDAMENTO

Para reforçar o viés responsável e colaborativo, a lei traz ainda, em seu Título III Capítulo AV, artigos 104-A a 104-C e seus parágrafos formas de solução do conflito entre fornecedor e consumidor.

Como orientação processual parte-se de um pedido judicial de repactuação de dívida designando-se audiência de conciliação ou com a atuação de conciliador credenciado pelo juízo em que deverá estar presentes todos os credores do devedor e plano de pagamento das dívidas com prazo máximo de pagamento de 5 ( cinco ) anos, possibilitando o pagamento da primeira parcela em até 180 ( cento e oitenta dias ) da homologação do acordo, com a preservação do mínimo existencial nos termos de regulamentação da lei, frise-se ainda não efetuada, e as garantias e regras pactuadas no contrato original.

Excluem-se as dívidas decorrentes de contratos de crédito com garantia real, as de financiamento imobiliário e as de crédito rural.

O inovador do texto legal é a penalidade imposta caso o credor não compareça injustificadamente à audiência  acarretando a suspensão da exigibilidade do débito e a interrupção dos encargos da mora, bem como a sujeição compulsória ao plano de pagamento da dívida se o montante devido ao credor ausente for certo e conhecido pelo consumidor, devendo o pagamento a esse credor ser estipulado para ocorrer apenas após o pagamento aos credores presentes à audiência de conciliação.

Em nosso entendimento as regras processuais impostas privilegiam os processos de negociação e reforçam as habilidades que hoje são exigidas dos profissionais que laboram como gestores das empresas e sobretudo, dos operadores de Direito no que tange à sua forma de atuação nos processos de repactuação das dívidas cabendo aqui reforçar a natureza das justificativas a serem dadas no caso de não comparecimento às audiências que devem ser objetivas permitindo a sua correta avaliação, se justificáveis ou não, e mais as razões de defesa quanto a não concordar com o plano de pagamento apresentado ou de não renegociar, que acarreta maior dinamismo possibilitando atendimento das necessidades e interesses de ambos os atores da relação consumerista.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É nosso entendimento que o aperfeiçoamento das normas do Código de Defesa do Consumidor com a inclusão dos Capítulos mencionados no presente artigo quanto às formas de prevenção e de renegociação e pagamento das obrigações de ambos – consumidor e fornecedor, eleva o patamar das responsabilidades de pessoas físicas quanto ao consumo e das pessoas jurídicas quanto às suas obrigações mormente as de publicidade e ofertas, equilibrando melhor o relacionamento.

Apesar de apenas prever a conciliação decorrente de pedido judicial e de convênios com entidades e associações entendemos que não é obstáculo para que se aceitem outras formas de resolução de conflitos que privilegiem a negociação entre as partes e que tem importante função, ainda, de educar financeiramente os consumidores sendo hoje uma importante demanda dos trabalhadores em seus ambientes de trabalho.

REFERÊNCIAS

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SENADO FEDERAL. Projeto de Lei nº 283/2012. Disponível em: <https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=3910445&ts=1630408580151&disposition=inline> Acesso em 10/10/2021.

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SCHMIDT NETO, André Perin. Superendividamento do consumidor: conceito, pressupostos e classificação. In: Revista do Direito do Consumidor, São Paulo, v. 18, n. 71, p. 9-33, jul./set. 2009. Disponível em: < https://www.jfrj.jus.br/sites/default/files/revista-sjrj/arquivo/36-153-1-pb.pdf> Acesso em: 08/10/2021

UNITED NATIONS. The road to dignity by 2030: ending poverty, transforming all lives and protecting the planet. Synthesis report of the Secretary-General on the post-2015 sustainable development agenda. Genebra: 2014 Disponível em: <https://www.un.org/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/69/700&Lang=E> Acesso em 10/10/2021

Notas:

[1] Advogada, Especialista em Direito Processual pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Mentorada do Projeto de Mentoria desenvolvida pela OAB/RJ – contato: [email protected]

[2] Advogada, Mestranda em Sistemas Adequados de Solução de Conflitos – FUNIBER, Negociadora de Conflitos Individuais e Coletivos de Trabalho – Mediadora judicial e extrajudicial certificada pelo ICFML, Diretora Executiva e Gestora do Grupo Temático RH Legal da ABRH – Associação Brasileira de Recursos Humanos Seccional do Rio de Janeiro e Mentora no Projeto de Mentoria desenvolvido pela OAB/RJ – contato: [email protected]

[3] Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável são um apelo global à ação para acabar com a pobreza, proteger o meio ambiente e o clima e garantir que as pessoas, em todos os lugares, possam desfrutar de paz e de prosperidade. E Estão baseados no quadripé: meio ambiente, sociedade, economia e governança; e sua indissociação para a sustentabilidade do desenvolvimento da humanidade

[4] The road to dignity by 2030: ending poverty, transforming all lives and protecting the planet

  1. …The strength of an

economy must be measured by the degree to which it meets the needs of people, and

by how sustainably and equitably it does so.

[…]

Transforming business models for creating shared value is vital for growing

inclusive and sustainable economies.

 

Palavras Chaves

Consumidor, Defesa, Superendividamento, Assédio de Consumo, Proteção ao vulnerável, Idosos, Mecanismos de solução de conflitos, Conciliação.