OS CONTRATOS BUILT TO SUIT E A PANDEMIA DO COVID-19: IMPACTOS E COROLÁRIOS NA NECESSÁRIA RENEGOCIAÇÃO

Resumo

O presente artigo tem o como objetivo analisar os impactos da pandemia do covid-19 nas relações contratuais, em especial nos contratos de locação na modalidade Built to Suit, que possuem regramento próprio na Lei 8.245/91, em razão das suas peculiaridades. Dessa forma, a análise das possíveis consequências da pandemia do Covid-19 observará as peculiaridades deste contrato, em especial, no que se relaciona ao equilíbrio contratual e o dever de renegociar. O estudo tem como objetivo possíveis soluções diante destes impactos que poderão se ajustar aos eventuais imprevistos que podem surgir no decorrer deste contrato, que possui como uma de suas características a sua longa duração.

Artigo

OS CONTRATOS BUILT TO SUIT E A PANDEMIA DO COVID-19: IMPACTOS E COROLÁRIOS NA NECESSÁRIA RENEGOCIAÇÃO.

Thiago Côrtes Florido de Souza[1]

Lidiane Rodrigues Alves[2]

RESUMO

O presente artigo tem o como objetivo analisar os impactos da pandemia do covid-19 nas relações contratuais, em especial nos contratos de locação na modalidade Built to Suit, que possuem regramento próprio na Lei 8.245/91, em razão das suas peculiaridades. Dessa forma, a análise das possíveis consequências da pandemia do Covid-19 observará as peculiaridades deste contrato, em especial, no que se relaciona ao equilíbrio contratual e o dever de renegociar. O estudo tem como objetivo possíveis soluções diante destes impactos que poderão se ajustar aos eventuais imprevistos que podem surgir no decorrer deste contrato, que possui como uma de suas características a sua longa duração.

PALAVRAS-CHAVES: Contratos Built to Suit, Impactos Pandemia Covid-19, Dever de Renegociar, Reequilíbrio Contratual, Revisão Contratual

  1. Introdução:

Os conceitos jurídicos dos mais variados temas não podem ser observados com critérios estanques, sem que se compreenda os contornos que os variados eventos humanos de maior ou menor proporção trazem à interpretação e aplicação desses conceitos.

É oportuno entender que os eventos humanos moldam a compreensão e aplicação dos conceitos jurídicos. Sobre o tema, temos a brilhante lição de Pietro Perlingieri. Veja-se:

Todo conceito é plasmado pelos valores do contexto do qual se origina. Não existem institutos jurídicos válidos em todos os tempos e em todos os lugares: eles são construídos pelo jurista levando em conta a realidade que o cerca.  [3]

No início de 2020, a humanidade foi chacoalhada por um evento de magnitude ímpar na história: a pandemia do coronavírus (COVID-19), o qual ainda se encontra em desenvolvimento e que não permite que a ciência atual preveja quando vai acabar e os danos que por ela foram e ainda serão causados.

Os eventos experimentos nos últimos 15 (quinze) meses possuem precedentes longínquos na história, somente sendo comparável às guerras mundiais e as pandemias de doenças existentes na idade média e em inícios do século XX, notadamente a gripe espanhola.

Certamente o direito não passou alheio a isso, e a pandemia do coronavírus lhe trouxe grandes desafios e mudanças, haja vista que o ordenamento jurídico não pode ficar alheio às alterações do comportamento humano que se impõe a cada época. Caso contrário, o direito como forma de regulação das relações sociais, acabaria por se romper face a não evolução e a sociedade estaria fadada ao caos social.

  Com isso, não há como supor que a sistemática contratual permaneceria ilesa aos graves impactos da pandemia do coronavírus. Conceitos clássicos da estrutura contratual precisaram ser revistos e por imposição da dura realidade, instrumentos que até então eram excepcionalíssimos – como a renegociação e a revisão contratual – passaram a se tornar frequentes e constantes.

  1. Dos contratos:
  1. Dos contratos em geral:

Os contratos estão inseridos no gênero dos negócios jurídicos. Os contratos, em apertada conceitualização, são negócios jurídicos bilaterais ou plurilaterais, decorrentes de manifestação de vontade sobre mesmo objeto, visando criar, modificar ou extinguir direitos sobre ele.

A legislação, ao tratar sobre os contratos, prevê uma variada gama de contratos cujas formalidades e traços característicos estão ali definidos, sendo estes os contratos típicos.

Contudo, face a autonomia da vontade que permite aos particulares lhe fazerem tudo que não é pela lei vedado, temos que é notória a possibilidade de realização de contratos sem que as formalidades e caracteres distintivos estejam categorizados na lei.

Importante ressaltar que a possibilidade de existirem contratos atípicos é “fórmula” acertada, pois privilegia a manifestação de vontade das partes, dando segurança jurídica a essa manifestação de vontade.

Além disso, a possibilidade de realização de contratos atípicos é causa e consequência da evolução do estudo do direito dos contratos. Causa porque permite aos particulares que desempenhem negócios jurídicos que perfectibilizem as suas manifestações de vontade dando-lhes segurança jurídica. E consequência porque isso representa a constante evolução do direito contratual em si.

Por óbvio, este singelo artigo não possui por escopo tecer considerações às minucias acerca do direito contratual, mas sim apresentar um olhar e considerações acerca dos impactos que os hodiernos acontecimentos podem gerar sobre uma espécie específica de contrato: o contrato built to suit.

Para tanto, é necessário categorizar esse contrato e passar pelo subgênero que o acolhe, qual seja, o contrato de locação.

  1. Dos contratos de Locação:

Por ser subespécie de contrato, obviamente o contrato de locação é um contrato que representa a manifestação de vontade e corporifica a locação de bens móveis ou imóveis.

É um contrato de inegável importância social: permite que proprietários de bens, sejam imóveis ou móveis, possam ceder o uso e gozo – atributos da propriedade – desses bens mediante remuneração do interessado em usar e gozar os mencionados bens.

Torna-se um contrato central no ordenamento jurídico pátrio especialmente no que toca a locação de bens imóveis urbanos, dadas as peculiaridades inerentes ao Brasil: concentração de renda e consequentemente de propriedades imóveis em mãos de poucos, a elevada desigualdade social e o elevado déficit de moradias, que faz com que o acesso a esses bens se torne caro e objeto de tensões sociais.

Em razão da importância social da locação de bens imóveis urbanos, o legislador editou a Lei 8.245/91 para tratar dessa relação jurídica. Essa legislação estabelece os principais direitos e deveres dos locadores (art. 22 da Lei) e dos locatários (art. 23 da Lei).

Em que pese a Lei 8.245/91 tratar sobre a locação de bens imóveis urbanos, o art. 1º, p. u., dispôs que permanecem regidos pelo Código Civil e pelas leis especiais: (a) as locações de imóveis de propriedade da União, dos Estados, dos Municípios e de suas autarquias e fundações públicas; (b) de vagas autônomas de garagem ou espaços para estacionamentos de veículos; (c) de espaços destinados a publicidade; (d) em apart hotéis, hotéis-residencia ou equiparados, assim considerados aqueles que prestam serviços regulares a seus usuários e como tais sejam autorizados a funcionar.

É de se ressaltar que a Lei 8.245/91 buscou sistematizar todos os aspectos relevantes para a locação: a formalização dos contratos, os direitos e deveres básicos das partes do contrato de locação, a forma de extinção dos contratos e as ações judiciais de que podem se valer os locadores para resolverem os contratos face o inadimplemento contratual, as formas de retirarem inquilinos infratores de seus imóveis (ações de despejo – previstas nos arts. 59 e ss. da Lei) e as possibilidades de cumulação para receberem valores de aluguéis e multas por ventura devidos.

Por outro lado, a lei também possibilitou aos locatários de imóveis comerciais a possibilidade de ajuizarem ação renovatória de locação, desde que cumpram os requisitos previstos na Lei, protegendo assim o ponto comercial dos locatários face eventual abusividade do locador na tentativa de não renovação contratual.

Além disso, a Lei prevê em seu art. 19, que caso locatário e locador não cheguem à consenso quanto ao valor da locação, após passados três anos de relação contratual, é possível o ajuizamento de ação revisional, com procedimento sumário, prevista no art. 68 e ss. da Lei.

Como se vê a Lei de Locações buscou regular de forma ampla as relações locatícias. Porém, a realidade se impunha mais uma vez, e surgia então a figura dos contratos buil to suit[4].

  1. Dos contratos Built to suit:

Como dito, a legislação não é capaz de prever todas as hipóteses e nem todas as figuras contratuais que possam perfectibilizar as mais variadas manifestações de vontade das partes envolvidas em um cenário de economia cada vez mais globalizado em que os investidores buscam a redução de custos a qualquer tempo.

Neste cenário, começaram a surgir os contratos built to suit. O que seriam esses contratos? Esses contratos são espécie de contrato de locação em que o dono do imóvel (locador) construa ou faça reformas no imóvel a ser alugado de forma a torna-lo completamente adequado às necessidades do locatário. Em algumas hipóteses, o locador deve até mesmo buscar no mercado e comprar um imóvel específico para ali erigir as construções necessárias aos interesses do locatário.  Em retribuição, o locatário obriga-se a pagar aluguel mensal em que esteja abrangido a amortização dos custos da aquisição e obras do imóvel.

Trata-se, portanto, de contrato de locação comercial em que o objeto do contrato, qual seja, o imóvel comercial, não existe no mercado. O locador deverá comprar, construir ou reformar substancialmente.

Trata-se de modalidade de contrato de locação utilizado para hipóteses em que os investimentos envolvidos são extremamente altos, geralmente destinando-se a locação de imóveis para grandes empresas ou grupos econômicos de relevância. Em geral, os contratos built to suit possuem prazo de vigência entre 10 a 30 anos, tempo considerado adequado pelo mercado para que ocorra a amortização dos custos de aquisição/obras do imóvel e a justa remuneração do locador.

Dessa forma, o contrato built to suit possui como ponto atrativo para o locador a possibilidade de dar destinação a um imóvel que muitas vezes se encontra sem uso e gerando custos ao seu proprietário.

Em razão do elevado custo que envolve a operação built to suit é comum que os contratos de locação oriundos possuam grande prazo de vigência, para que assim seja possibilitada a amortização dos investimentos e a remuneração do locador.

Já em relação ao locatário, este tem a possibilidade de obter um imóvel sobre medida para as suas necessidades diárias, sem a necessidade de desembolsar grandes quantias de dinheiro, podendo pagar por este imóvel de forma parcelada por um longo período de tempo, através de pagamentos ao proprietário.

Logo que esta novidade foi inserida no Brasil, houve questionamentos se a Lei 8.245/91 seria aplicável ou não a esses contratos, em razão que, por força de seu art. 45, algumas de suas normas seriam cogentes, ou seja, sua aplicação não poderia ser afastada pela vontade das partes[5].

O grande problema seria a inafastabilidade do art. 19 da Lei 8.245/91 que prevê a possibilidade de revisão dos aluguéis, o que interferiria no equilíbrio contratual do contrato, posto que a alteração do valor dos aluguéis inicialmente previstos, poderia afetar a amortização dos investimentos e a remuneração do locador.[6]

Tais questionamentos foram solucionados, quando a novidade foi reconhecida pela legislação pátria em 2014, com a Lei 12.744 de 2012 que inseriu o art. 54-A na Lei de Locações, o qual pedimos vênia para transcrever:

Art. 54-A.  Na locação não residencial de imóvel urbano na qual o locador procede à prévia aquisição, construção ou substancial reforma, por si mesmo ou por terceiros, do imóvel então especificado pelo pretendente à locação, a fim de que seja a este locado por prazo determinado, prevalecerão as condições livremente pactuadas no contrato respectivo e as disposições procedimentais previstas nesta Lei.      (Incluído pela Lei nº 12.744, de 2012)

O art. 54-A, §1º da Lei de Locações, em prestígio a autonomia da vontade, estipulou que as partes contratantes podem convencionar a renuncia ao direito de revisão do valor dos alugueis durante o prazo de vigência da locação, como se mostra, in verbis:

Por sua vez, o art. 54-A, §2º da Lei de Locações, buscando trazer equilíbrio e paridade de armas entre as partes, disciplinou que caso o locatário promova a denúncia antecipada do contrato de locação built to suit, este pagará a multa convencionada entre as partes.

Nada mais justo! Afinal, o contrato de locação built to suit aperfeiçoa relação jurídica que envolve elevados custos para o locador. Isso porque, na grande maioria dos casos, ele deverá buscar a aquisição de imóvel específico para atender aos interesses do locatário, bem como realizar obras e/ou reformas requeridas especificamente para as atividades do locatário.

Caso não se permitisse a fixação de multa para o caso de denúncia antecipada pelo Locatário, estaria se inviabilizando a figura contratual. Quem assumiria os elevados custos da operação face o risco que a ausência de uma pesada multa compensatória lhe colocaria? A multa nesse caso, além de função compensatória apresenta nítido caráter dissuasório.

Contudo, evitando eventuais abusos de direito por parte do Locador, o legislador estabeleceu que a multa pactuada não pode exceder a soma dos valores dos aluguéis a receber até o termo final da locação originariamente entabulada. Veja-se:

  • 2oEm caso de denúncia antecipada do vínculo locatício pelo locatário, compromete-se este a cumprir a multa convencionada, que não excederá, porém, a soma dos valores dos aluguéis a receber até o termo final da locação.       (Incluído pela Lei nº 12.744, de 2012)

Essa previsão possui amparo na própria lógica subjacente ao contrato de locação built to suit. Isso porque, entende-se que o prazo alongado de locação seja necessário para que ocorra a amortização dos elevados custos assumidos pelo locador, bem como a promover sua justa remuneração.

Ora, caso se permitisse que a multa pactuada em caso de denúncia do locatário fosse superior aos valores a receber até o final da locação originariamente firmado, se estaria forçando o locatário a permanecer vinculado a uma locação que lhe fosse até mesmo prejudicial em razão dos elevados encargos financeiros.

  1. Do Princípio do Equilíbrio Contratual e o Advento da Pandemia do Coronavírus:

Como demonstrado, o art. 54-A, §1º da Lei de Locações estabelece que poderá ser pactuado entre as partes a renuncia ao direito de revisão do valor contratual. Nos parece, contudo, que a previsão contratual não tem o condão de impedir a revisão contratual caso assim não seja expressamente pactuado.

Outro ponto de questionamento é o seguinte: seria a previsão do art. 54-A, §1º da Lei de Locações apta a impedir a revisão dos contratos face a eventos imprevisíveis e extraordinários?

Bem, em primeiro momento, entendemos que caso não tenha sido pactuado expressamente a renuncia ao direito de revisão contratual, pela própria dicção da lei, seria possível a mencionada revisão ante a acontecimentos imprevistos e extraordinários que provoquem de maneira extraordinária a posição das partes contratantes.

Esse entendimento é o que melhor se adequa ao princípio do equilíbrio dos contratos. Esse princípio, implícito a todas as relações contratuais, nos ensina que as relações contratuais devem ser equitativas e equilibradas. Nesse sentido é a lição dos eminentes doutrinadores Gustavo Tepedino, Carlos Nelson Konder e Paula Greco Bandeira, na icônica obra “Fundamentos do Direito Civil. Volume 3: Contratos”. Veja-se:

O princípio do equilíbrio no âmbito dos contratos, como destacado no capitulo III, é corolário da opção constitucional pelo objetivo de construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3, I), que irradia imperativos de justiça e proporcionalidade no âmbito do direito contratual, de forma a temperar a força obrigatória do contrato e a intangibilidade de seu conteúdo. A igualdade substancial não suprime a liberdade contratual, nem coíbe as posições de vantagem legitimamente conquistadas na negociação dos contratos, contendo-se, no entanto, desproporções excessivas e injustificadas.

As relações contratuais não são indiferentes às situações de desigualdade fática, resguardando-se o legítimo exercício da autonomia negocial, desde que idôneo a atendera interesses merecedores de tutela. Em tal contexto insere-se a justiça contratual e a exigência de equilíbrio entre prestações, para a preservação de interesses e posições jurídicas proporcionalmente negociadas entre as partes

O princípio do equilíbrio contratual no direito contratual, que garante a correspectividade entre as prestações, manifesta-se principalmente, embora não exclusivamente, por meio de institutos como a lesão e a onerosidade excessiva. Enquanto a lesão coíbe contratos celebrados de forma desproporcional, com vício de origem, a onerosidade excessiva atinge os contratos que, embora celebrados de forma proporcional, tornaram-se desiquilibrados por fato superveniente ao longo sua execução.[7]

Vale ressaltar que os contratos de locação built to suit não são contratos de locação puros e somada a locação, temos a aquisição do imóvel e a realização de obras para a perfeita adequação do mesmo aos interesses do locatário.

Ora, dada a variedade de obrigações do locador, não há como se desprezar os efeitos da pandemia do coronavírus para a consecução das obrigações do locador. Como cumprir os cronogramas de obras, se as autoridades públicas determinaram medidas restritivas de isolamento social? Como se manter a precificação do contrato, se os preços dos insumos dispararam por conta da queda de produção advindas das medidas de isolamento social determinadas pelas autoridades públicas para enfrentamento da pandemia do COVID-19?

Caso não se permitisse a revisão contratual, para que sejam ajustados os preços de locação – que como já visto englobam os valores referentes a amortização da aquisição de terreno e realização de obras – bem como sejam ajustados os cronogramas de realização dessas obras, o que teríamos, invariavelmente, seria um quadro de descumprimento generalizado das avenças realizadas sob essa modalidade.

Além disso, provavelmente, teríamos a bancarrota de uma grande quantidade de locadores que aderiram ao formato built to suit e que, em sua maioria, são partes até mesmo mais fracas dos que os locatários, que geralmente compõem-se de grandes grupos empresariais.

Entretanto, seria possível a realização da revisão judicial em casos em que as partes renunciaram o exercício deste, nos termos do art. 54-A, §1º da Lei 8.245/91? Pensamos que sim.

Ab initio, temos que quando da realização da renúncia ao direito de revisão, o Locador encontrava-se em situação de normalidade, sem imaginar e até mesmo supor os efeitos advindos pela pandemia do coronavírus para a contratação de pessoal e de insumos necessários a sua atividade.

Aqui estamos diante da necessidade de ponderação de dois princípios contratuais, de um lado, o princípio da “pacta sunt servanda” e, de outro, o da boa-fé objetiva, com o objetivo de garantir o equilíbrio da equação econômica dos contratos[8].

A pandemia do coronavírus, a qual ainda não terminou, trata-se de evento tão grandioso e complexo, que até o mundo não sabe ao certo como quantificar os prejuízos sofridos, nos campos humano, econômico-financeiro e social.

Toda a ordem até então existente no mundo foi fortemente abalada e não se sabe ao certo quando o mundo retomará sua normalidade.

Com isso, seria impensável que a renúncia formalizada em um momento de grande normalidade, pudesse ser válida face a um evento de tamanha imprevisibilidade e extraordinariedade.

Ademais, do contrário poderíamos estar diante de uma impossibilidade de cumprimento da obrigação por parte de locador, que diante do aumento do custo para construção ou reforma do imóvel segundo os parâmetros do locatário, poderia não ter condições para o término das obras sem uma garantia de efetivo retorno do investimento, se tornando a prestação excessivamente onerosa.

Diante deste cenário, o locador por força do art. 478 do CC/02 poderia requerer a resolução do contrato, porém estaríamos diante de dois novos problemas: teria este direito de requerer do locatário o ressarcimento dos custos da obra até então, e, estaria ele sujeito a aplicação da multa por denúncia antecipada da locação? Estes pontos serão respondidos no próximo tópico, onde trataremos da questão do dever de renegociar.

  1. O Dever Renegociar no Cenário da Pandemia do Coronavírus

No cenário pandemia do coronavírus, o que observamos é que de certa forma, todos perderam algo e se encontram numa situação pior que a anterior. Os retrocessos na economia global já são visíveis, e os países caminham a passos lentos para uma retomada econômica, o que faz com que diversos investimentos tenham que ser revisto pelas partes.

A esses fatores, soma-se a incerteza científica quanto aos avanços e variantes da doença, as quais podem, inclusive, atrasar os planejamentos de recuperação econômica ao redor do mundo.

E não poderia ser diferente em relações aos contratos da modalidade built to suit, em que tanto locador, quanto locatário podem não estar com as mesmas condições que previam no início das negociações.

Conforme apontado anteriormente, o locador pode se ver impossibilitado de cumprir os cronogramas de obras, sofrer com o aumento dos preços dos insumos, enquanto o locatário pode estar enfrentando dificuldades de honrar o pagamento de alugueis, diante da diminuição dos seus rendimentos, ou até mesmo, diante do impacto econômico sofrido em seu setor, ter que recuar o seu crescimento, sendo necessário o fechamento daquela unidade instalada no imóvel alugado.

Diante dessas hipóteses, devemos recorrer aos ensinamentos do professor Anderson Schreiber[9] que defende a existência de um dever de renegociar, em decorrência do art. 422 do CC/02, que dispõe o dever de observação ao princípio da probidade e boa-fé.

E, diante de um cenário que propiciou o desequilíbrio contratual para ambas as partes, este dever de renegociar para reequilibrar a relação contratual surge como uma via de salvação para os contratos built to suit diante dos impactos causados pela pandemia do coronavírus.

Voltando à hipótese do locatário que enfrenta dificuldades de honrar o pagamento de alugueis, diante da diminuição dos seus rendimentos, ou até mesmo que, diante do impacto econômico sofrido em seu setor, tem que recuar o seu crescimento sendo necessário o fechamento daquela unidade instalada no imóvel alugado.

Este locatário, caso houvesse renúncia ao direito de revisão dos alugueis, estaria sujeito a multa contratualmente prevista, que conforme art. 54-A, §2º, não pode ser superior ao restante do alugueis vigente até o fim da locação.

Tais regras, conforme já esclarecido, tem como o fundamento o investimento realizado pelo locador para disponibilizar ao locatário um imóvel que atendesse todas as suas exigências, posto que em razão do término antecipado da locação o investimento realizado pode não ser recuperado.

Além do fato que, o imóvel estará personalizado para aquele locatário, sendo necessário à sua descaracterização para que seja colocado novamente o mercado para nova locação.[10]

Logo, ao invés de imediatamente requerer a denúncia antecipada da locação, fosse concedido ao locatário o exercício do dever de renegociar, evitaria o pagamento de um valor elevadíssimo em razão da multa, e garantiria a continuação do seu negócio naquela localidade, sendo também benéfico ao locador, posto que este não teria que postular na máquina do Poder Judiciário para executar a multa contratualmente estabelecida, e não teria que se preocupar em encontrar novo locatário para o imóvel, diminuindo assim seu risco de vacância.

Já no cenário do locador que se vê impossibilitado de cumprir os cronogramas de obras e sofre com o aumento dos preços dos insumos, este por força do art. 478 do CC/02, poderia requerer a resolução do contrato.

E se, nessa hipótese, comprovar que antes de requerer a resolução do contrato, tentou renegociar suas cláusulas para conseguir realizar suas obrigações, entendemos que teria o direito de requerer do locatário o ressarcimento dos custos da obra até então.

Tal entendimento possui como fundamento o fato de que, em geral, nos contratos built to suit, quem realiza a proposta do negócio é o locatário. Logo, ao não exercer o direito de renegociar para ajustar o equilíbrio contratual e garantir o integral cumprimento do contrato, haveria um abuso de direito de sua parte, posto que até aquele momento, o cenário da resolução contratual não lhe traria prejuízo, se consideramos que em geral, nessa modalidade de contratos, os alugueis só são pagos após a entrega do imóvel.

E, em contrapartida, haveria um prejuízo alto para o locador, que só entrou nesta relação após o locatário ter demonstrado interesse na realização desta modalidade contratual, e agora injustificadamente optou pelo não prosseguimento da mesma.

Ademais, na situação narrada acima, o interesse em não renegociar por parte do locatário, pode ser decorrente justamente de uma necessidade de reavaliar os seus investimentos, e a perda de interesse naquela locação diante do cenário da pandemia do covid-19. E, afim de evitar prejuízos decorrentes do descumprimento do contrato de sua parte, simplesmente opta por não renegociar, ensejando que a outra parte requeira a sua rescisão.

Logo, nada mais justo que o locador retorne a condição que estava antes da oferta por parte do locatário, devendo ser ressarcidos pelos custos que teve até aquele momento que ensejou a rescisão contratual.

Já em relação a aplicação da multa, entendemos que neste caso em específico ela não poderia ser aplicada ao locador, justamente porque a resolução contratual não traria prejuízos, a princípio, ao locatário.

Em resumo, a multa por rescisão antecipada no contrato buil to suit, possui valor elevadíssimo, e conforme apontado no presente texto, diversos são os cenários diante da pandemia do coronavírus que pode ensejar o término antecipado do contrato para ambas as partes, e sua aplicação em razão da paridade das cláusulas contratuais.

Neste cenário caótico a incidência desta multa não seria atrativa para ambas as partes, porém simplesmente continuar com as cláusulas vigentes do contrato não é a solução, e, diante destas circunstâncias acaba sendo inevitável recorrer ao judiciário para encontrar uma solução para este impasse.

Porém, recorrer ao judiciário pode não ser o melhor cenário para quem busca uma solução célere para a questão, posto que este também foi afetado com as medidas sanitárias impostas pela pandemia do coronavírus, e as decisões sobre locação durante a pandemia tem sido as mais variadas possível, o que, no mínimo, traz aos contratantes a alea de insegurança jurídica.

Dessa forma, a adoção de uma postura conciliatória para a resolução de eventuais problemas contratuais gerados pela pandemia do coronavírus, muito mais do que o cumprimento de um dever de renegociar, é a melhor alternativa para ambas as partes, posto que pode garantir o reequilíbrio contratual e a preservação do cumprimento do contrato de uma forma célere e menos custosa as partes.

Ainda sobre o assunto, Luiz Antônio Scavone Junior[11] defende que, diante da natureza negocial desta modalidade contratual, a arbitragem seria perfeita para solucionar as controvérsias que surgissem em relação ao contrato built to suit, uma vez que a celeridade do processo arbitral lhe seria muito proveitosa.

Logo, tanto o tribunal arbitral, quanto o judiciário, nos casos em que seja necessário recorrer ao judiciário para a solução conflito, devem observar se o dever de renegociar foi respeitado pelas partes.

  1. Conclusão

O presente trabalho apresentou brevemente alguns obstáculos que o contrato built to suit ainda tem que enfrentar, principalmente em razão de sua longa duração, posto que é impossível a ciência jurídica prever todos os percalços que podem surgir no futuro.

E, a pandemia de Covid-19, apesar de um evento ímpar na história da humanidade, acabou relevando alguns obstáculos que o contrato built to suit pode vir a enfrentar ao longo de sua duração, e as soluções encontradas diante destes obstáculos podem servir de parâmetros, dentro das devidas proporções, para os novos obstáculos há serem enfrentados.

O ilustre e saudoso Sylvio Capanema[12] em sua obra, já apontava que o debate da prevalência da cláusula de renúncia ao direito de revisão contratual poderia ser levantado futuramente em razão justamente da longa duração do contrato, se posicionando no sentido de prevalência da renúncia.

Entretanto, tomamos a liberdade de discordar do ilustre mestre, posto que a pandemia do Covid-19 se mostrou um evento imprevisível, que gerou o desequilíbrio contratual para ambas as partes, sendo necessário a relativação desta renúncia, justamente para garantir a eficácia deste contrato.

Tal relativação pode ser necessária diante de outros cenários no futuro, sendo imprescindível nesta análise, garantir que o locador tenha o retorno do seu investimento inicial.

O exercício do dever de renegociar deve ser observado nos contratos built to suit, posto que essencial para garantir o equilíbrio do contrato e a sua preservação durante o curso de sua duração, de maneira harmônica para ambos os contratantes.

Esses pontos podem servir de reflexão para preservar o equilíbrio da relação contratual ao longo do contrato, mantendo a sua atratividade no mercado e cumprindo sua função idealizada pelo legislador e pelas partes durante longo período.

  1. Referências

PERLINGIERI, Pietro. Normas Constitucionais nas relações privadas. Revista da faculdade de direito da UERJ. N. 6 e 7. 1998/1999. Pp. 63-64

TEPEDINO, Gustavo; KONDER, Carlos Nelson e BANDEIRA, Paula Greco. Fundamentos do direito civil, vol. 3 – Contratos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense. Pp. 243-244

SCHREIBER, Anderson. Equilíbrio Contratual e o Dever de Renegociar. 2ªed. São Paulo: Saraiva, 2020.

SCAVONE JUNIOR, Luiz Antônio. Direito imobiliário: teoria e prática. 15ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. E-book. Pp. 1303

SOUZA, Sylvio Capanema de. A Lei do Inquilinato Comentada – Artigo por Artigo. 12ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. E-book. Pp 284. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788530990787/. Acesso em: 23 set. 2021.

Notas:

[1] Advogado. Pós-Graduado em Direito Público. Presidente da Comissão de Direito Processual Civil da 1ª Subseção da OAB/RJ. Mentor do Projeto de Mentoria da OAB/RJ.

[2] Advogada. Pós-Graduanda em Direito Imobiliário, Notarial e Registral. Vice-Diretora da Escola Superior de Advocacia da 58ª Subseção da OAB/RJ. Mentorada do Projeto de Mentoria da OAB/RJ.

[3] PERLINGIERI, Pietro. Normas Constitucionais nas relações privadas. Revista da faculdade de direito da UERJ. N. 6 e 7. 1998/1999. Pp. 63-64

[4] Em tradução livre: construído para servir.

[5] SCAVONE JUNIOR, Luiz Antônio. Direito imobiliário: teoria e prática. 15ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. E-book. Pp. 1303.

[6]SCAVONE JUNIOR, Luiz Antônio. Op.cit.

[7] TEPEDINO, Gustavo; KONDER, Carlos Nelson e BANDEIRA, Paula Greco. Fundamentos do direito civil, vol. 3 – Contratos. Pp. 243-244 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense.

[8] SOUZA, Sylvio Capanema de. A Lei do Inquilinato Comentada – Artigo por Artigo. 12ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. E-book. Pp 284. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788530990787/. Acesso em: 23 set. 2021.

[9] SCHREIBER, Anderson. Equilíbrio Contratual e o Dever de Renegociar. São Paulo: Saraiva, 2020.

[10] SOUZA, Sylvio Capanema de. Op. Cit.

[11] SCAVONE JUNIOR, Luiz Antônio. Op.cit.

[12] SOUZA, Sylvio Capanema de. Op. Cit.Pp.285.

Palavras Chaves

Contratos Built to Suit, Impactos Pandemia Covid-19, Dever de Renegociar, Reequilíbrio Contratual, Revisão Contratual