POLÍTICA, IDEOLOGIA E MOVIMENTO ESTUDANTIL: A participação do C.A.C.O. na greve dos bondes de 1956

Resumo

Este artigo procura resgatar a memória da participação do Centro Acadêmico Candido de Oliveira (CACO) em um dos maiores episódios de manifestação estudantil da história do Brasil: a Greve dos Bondes de 1956. Para isso, foi realizada ampla pesquisa documental, a partir de consulta aos acervos históricos do CACO, da Biblioteca Carvalho de Mendonça da Faculdade de Direito da UFRJ, e da Biblioteca Nacional, bem como entrevistas com testemunhas oculares dos episódios investigados. Foram entrevistados: Danillo Joaquim Guilhermino dos Santos, Eduardo Seabra Fagundes, Gessé Oliveira e Safira Saragossy. As entrevistas foram filmadas, e sua realização e análise conjugou métodos de história oral e de análise de discursos. A pesquisa buscou compreender a participação do CACO na Greve dos Bondes a partir das suas inserções no contexto político nacional e na conjuntura internacional da Guerra Fria. Assim, os depoimentos coletados e documentos consultados foram utilizados em conjunto, para compreensão dos discursos, mentalidades, e ideologias da época.

Artigo

POLÍTICA, IDEOLOGIA E MOVIMENTO ESTUDANTIL: A PARTICIPAÇÃO DO C.A.C.O. NA GREVE DOS BONDES DE 1956[1]

 

Alexandre de Oliveira Demidoff[2]

Marcus V. A. B. de Matos[3]

RESUMO: Este artigo procura resgatar a memória da participação do Centro Acadêmico Candido de Oliveira (CACO) em um dos maiores episódios de manifestação estudantil da história do Brasil: a Greve dos Bondes de 1956. Para isso, foi realizada ampla pesquisa documental, a partir de consulta aos acervos históricos do CACO, da Biblioteca Carvalho de Mendonça da Faculdade de Direito da UFRJ, e da Biblioteca Nacional, bem como entrevistas com testemunhas oculares dos episódios investigados. Foram entrevistados: Danillo Joaquim Guilhermino dos Santos, Eduardo Seabra Fagundes, Gessé Oliveira e Safira Saragossy. As entrevistas foram filmadas, e sua realização e análise conjugou métodos de história oral e de análise de discursos. A pesquisa buscou compreender a participação do CACO na Greve dos Bondes a partir das suas inserções no contexto político nacional e na conjuntura internacional da Guerra Fria. Assim, os depoimentos coletados e documentos consultados foram utilizados em conjunto, para compreensão dos discursos, mentalidades, e ideologias da época.

PALAVRAS-CHAVE: Greve dos Bondes; Política; Ideologia; história do Movimento Estudantil; Centro Acadêmico Candido de Oliveira; Faculdade Nacional de Direito.

INTRODUÇÃO

“Falam que o Brasil é o país das greves. A oposição afirma que as paredes são insufladas pelo próprio Governo. E a imprensa oficial proclama que as greves são dirigidas pelos comunistas” (Editorial, Panfleto, 1954).

Este artigo tem como objetivo resgatar e analisar a memória da atuação do Centro Acadêmico Candido de Oliveira (CACO) na Greve dos Bondes, que foi um movimento histórico extenso, tendo como epicentro a paralisação dos bondes por estudantes em diversos bairros da capital do país, entre maio e junho de 1956 – e que culminou com a vitória do movimento estudantil (ME) carioca, que teve suas reivindicações atendidas pelo poder público. O CACO foi, sem dúvida, um dos protagonistas neste movimento – bem como um dos centros acadêmicos mais atuantes nas questões políticas e sociais do país, nos seus mais de 100 anos de existência. Este artigo busca elucidar parte desta história, por vezes ofuscada pela brilhante atuação deste Centro Acadêmico na década posterior, quando seus integrantes se levantaram contra a ditadura que viria a ser instalada no país. Acreditamos que este resgate ajuda a compreender as condições de possibilidade que tornaram possíveis o papel e a relevância do ME em geral, e do CACO em particular, nas lutas que se travaram a partir de 1964.

Nesta análise, levamos em consideração as divisões políticas internas (os “partidos”) dos estudantes da Faculdade Nacional de Direito (FND) na década de 1950 e buscamos, em particular, elucidar a atuação e a compreensão que cada um destes grupos teve do episódio da Greve dos Bondes. Para isso, observamos as influências políticas e ideológicas de três partidos do ME que disputavam liderança e eleições no CACO, na época: a Aliança Libertadora Acadêmica (ALA), o Movimento de Reforma, e o Movimento Universitário Independente (MUI) – que surge posteriormente aos dois primeiros. Nos três partidos, tentamos analisar as influências ideológicas, as mentalidades e discursos dos seus militantes, bem como sua compreensão e a participação que tiveram na Greve dos Bondes.

Foto: Gessé Oliveira, por Thiago Pereira, 2006

Na época da pesquisa, realizada em 2006, conseguimos localizar ex-diretores e lideranças estudantis que foram testemunhas e/ou protagonistas dos acontecimentos investigados, o que contribuiu para a escolha da história oral como método, como meio de resgatar uma história não contada em livros ou documentos. O método utilizado é, na verdade, o primeiro tipo de narrativa histórica desenvolvida e instrumento de grande importância na conservação da história (THOMPSON, 1992). Esta foi também uma estratégia para driblar uma das dificuldades que encontramos já na pesquisa exploratória: a falta de arquivos e documentos sobre a época. Logo na primeira entrevista realizada, nos deparamos com uma realidade que permeou a vida de muitos dos integrantes do CACO, na época: a perda de registros e documentos, devido à perseguição e ao exílio, ocorridos na decada seguinte – o período da ditadura militar.

Na entrevista inicial, com Gessé Oliveira, da Reforma, vimos um exemplo típico desta situação: ele conta que se viu obrigado a fugir do Brasil para a República da Tchecoslováquia, e que, no processo de retorno ao país – convidado pelo governo Geisel a retomar um emprego público e integrar os quadros de tradutores da Petrobrás –, perdeu boa parte do material histórico que possuía: material que foi considerado subversivo e confiscado pelo governo militar. O confisco teria ocorrido já na ocasião de sua chegada à alfândega do Aeroporto Internacional do Galeão, no Rio de Janeiro. Este também foi o motivo pelo qual decidimos que todas as entrevistas deveriam ser filmadas: a compreensão de que o saber histórico passa tanto pela imagem quanto pela palavra escrita (FERRO, 2004).

Somamos a estas entrevistas, realizadas com estudantes da FND e diretores(as) do CACO, uma pesquisa documental. Onde foi possível, incluímos nela o acervo histórico do próprio CACO, disponível desde 2002, e também pesquisa bibliográfica realizada na Base Minerva da UFRJ. Consultamos livros, periódicos, monografias de graduação e teses de mestrado e doutorado sobre a época. Mas são os testemunhos orais que nos deram a dimensão das lutas em que os estudantes do CACO se envolveram, nas mais diferentes esferas: desde enfrentamentos internos contra professores e diretores da FND; reivindicações que envolviam questões políticas estaduais, nacionais e internacionais; e, por vezes, disputas que diziam respeito a todos esses elementos juntos.

Em âmbito internacional, podemos observar o apoio do CACO à Revolução Cubana que derrubou o ditador Fulgêncio Batista, revolução esta que inicialmente não possuía a bandeira da ideologia comunista e que, por isso, foi vista com bons olhos pelos dois partidos (ALA e Reforma), e pela maioria dos estudantes da FND. O episódio da nacionalização do canal de Suez também obteve apoio do CACO, bem como a posterior defesa da retirada das tropas Israelenses, Francesas e Britânicas do território Egípcio. Além desses, o CACO se posicionou quanto ao massacre imposto pela URSS ao povo húngaro em 1956, e apoiando universitários chilenos em questões políticas daquele país. Internamente o CACO expressou sua opinião em questões que envolveram o Deputado Carlos Lacerda, que teve o seu mandato ameaçado por ter defendido um regime de exceção. Posicionou-se favoravelmente a transferência da capital para Brasília, e participava ativamente das discussões sobre os rumos do ensino no Brasil. No ambiente acadêmico, o CACO liderou um fortíssimo movimento contra a nomeação de um professor, em virtude de supostas irregularidades no concurso por ele prestado. Por algumas vezes, o CACO teve que protestar contra invasões ilegais do seu espaço, realizadas por autoridades militares e policiais (DE MATOS; DEMIDOFF, 2006, p. 171).

Assim, há muitos elementos passíveis de análise neste período, a partir deste recorte temático. Foram vários os acontecimentos políticos da década de 1950 nos quais o CACO atuou, direta ou indiretamente, firmando suas posições por manifestos, comunicados ou manifestações que contagiavam os estudantes de então. É nesse ambiente de resgate da história que buscamos contribuir com a historiografia da atuação do movimento estudantil e do CACO. Nesse sentido, optamos por conjugar o método da história oral empregado com uma análise de discursos focadas nas ideologias e as mentalidades expressas pelos entrevistados, e registradas nos documentos da época (SCHÖTTLER, 1995).

Em específico, acreditamos na importância do resgate e análise da atuação do CACO na Greve dos Bondes: trata-se de um movimento sobre o qual há pouquíssimos registros, apesar de ter provocado intensa mobilização na sociedade – notadamente entre estudantes e sindicatos de operários. Faremos isto a partir da discussão das conjunturas nacional e internacional, intercalando análises e dados coletados nas entrevistas, com os achados na pesquisa documental.

A GUERRA FRIA E “O MUNDO POLARIZADO AO EXTREMO”

 

Para a compreensão da pesquisa que resultou neste artigo, a conjuntura política international em que se passam os fatos que são objetos deste trabalho deve, ainda que brevemente, ser analisada. Ao gravarmos as entrevistas e coletarmos todo o material documental pudemos observar traços da influência exercida pelos contextos político–ideológicos nacionais e internacionais sobre os estudantes de então, e seu forte reflexo na configuração das correntes políticas defendidas pelos partidos estudantis da época – em particular, a ALA e o Movimento de Reforma.

A geopolítica internacional era dominada pelas repercussões da Guerra fria e da Descolonização. O comunismo avançava no mundo bipolar fazendo com que o planeta permanecesse dividido entre comunistas e anticomunistas – situação que perdurou até o surgimento do bloco dos países não alinhados. No entanto, o avanço da ideologia difundida por Moscou, não impediu que o capitalismo vivesse na década de 1950 um de seus melhores períodos de crescimento econômico. Várias revoluções estouraram pelo globo. Dentre elas, destacamos a Revolução Cubana, que teve fortes reflexos na América Latina. Algumas das investidas nacionalistas, como a nacionalização do canal de Suez, apesar de sofrerem forte resistência por parte das grandes potências neocolonizadoras, deram certo, assim como a grande maioria das lutas pela descolonização das colônias africanas e a ascensão do princípio da autodeterminação dos povos (HOBSBAWM, 1994).

 

Foto: Danilo Joaquim Guilhermino dos Santos, por Thiago Pereira, 2006

 

As grandes potências que ascenderam após a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos da América (EUA) e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), investiram em suas estratégias político-ideológicas para buscar o avanço de seus respectivos modelos econômicos. No que concerne a atuação norte-americana na América Latina, podemos notar o apoio da potência capitalista a determinados setores políticos dos países latino-americanos que se caracterizavam como anticomunistas, que eram, em sua maioria, simpáticos a soluções golpistas para garantir sua manutenção no poder. É nesse contexto, como um dos países latino-americanos, que se encontrava o Brasil (LAFEBER, 2002).

Esta política norte-americana teve reflexos importantes no Brasil, onde encontrou um forte aliado na Uniado Democrática Nacional (UDN), que tinha como um de seus principais nomes o jornalista Carlos Lacerda. Este, conforme documentos encontrados nos arquivos do CACO, correu o risco de ter o seu mandato de Deputado cassado após fazer pronunciamentos defendendo um regime de exceção. (DE MATOS; DEMIDOFF, p. 171). A URSS, por sua vez, atuou também em nível internacional. Na América Latina os partidos comunistas constituíam o grande núcleo de atuação da URSS. No Brasil, essa atuação também se fez sentir e o Partido Comunista, apesar de enfrentar fortes dificuldades, era bastante ativo – como evidenciam as manchetes dos jornais da época (Diário de Notícias, edição de 26/04/1956), bem como as entrevistas realizadas.

 

“DENTRO TAMBÉM ESTAVA POLARIZADO”: AS CORRENTES POLÍTICAS DO CACO NA GREVE DOS BONDES.

Quanto a influência das questões político-ideológicas nacionais e internacionais sobre os estudantes da Faculdade Nacional de Direito, em especial seus reflexos sobre o CACO, podemos observar uma maior preponderância dos fatores internacionais sobre o movimento estudantil, como elemento de sua divisão. Isso ocorreu, aparentemente, sem demérito das questões políticas nacionais, das quais os estudantes participavam ativamente – e muitas vezes, em acordo.  Chamou-nos atenção, longo no início da pesquisa, o fato de que, por longo tempo, o CACO encontrava-se dividido de maneira bipolar, entre ALA e Reforma, embora dentro de cada um destes grupos houvesse estudantes filiados a diferentes correntes políticas nacionais. As divergências quanto às questões político-partidárias nacionais não eram tão fortes, a ponto de gerar grandes divisões nos estudantes. Tanto na análise dos documentos do CACO, quanto nas entrevistas, percebemos a predominância de um nacionalismo Juscelinista no ME, embalado pela construção de Brasília – o “movimento mudancista” (DE MATOS; DEMIDOFF, 2006, p. 192).

É certo que a política nacional gerava debates internos, e podemos averiguar a comprovação desse fato analisando documentos, em particular uma nota, onde a diretoria do CACO defendeu sua posição apartidária em relação ao contexto político nacional. Nesse documento, os estudantes defenderam a continuidade do mandato do Deputado Carlos Lacerda, que se encontrava ameaçado de cassação. Os entrevistados, porém, não enxergavam uma forte influência das divisões partidárias nacionais entre os estudantes, predominando o nacionalismo nos três partidos estudantis (DE MATOS; DEMIDOFF, 2006, p. 197).

Foto: Eduardo Seabra Fagundes, por Thiago Pereira, 2006

Questionado quanto a influência dos partidos políticos nacionais no contexto estudantil, Eduardo Seabra Fagundes nos aponta que:

Naquela época havia uma militância muito grande do PC, mas eles se filiavam invariavelmente ao movimento de Reforma. Então a militância deles era no movimento de Reforma (…) você não tinha propriamente um conflito de Partidos políticos lá dentro. (…) Havia os dois partidos: Ala e a Reforma. E aquilo ali, naturalmente, que deram àqueles Partidos o espectro político nacional todo. Mas os Partidos políticos não tinham participação na nossa política interna. (DE MATOS; DEMIDOFF, p.115).

A partir das quatro entrevistas realizadas e do exame de documentos e jornais da época, podemos constatar que as ideologias clássicas da Guerra Fria, manifestada na bipolaridade entre capitalismo e comunismo, influenciaram muito mais os estudantes do que as questões da política partidária nacional. Este é o ponto de vista é Eduardo Seabra Fagundes, para quem:

Naquela época estava fervendo aquilo. Era exatamente a época do começo da Guerra Fria. O mundo estava polarizado e lá dentro também estava polarizado. E o pessoal do PC era extremamente atuante na articulação do movimento estudantil voltado para a esquerda. (DE MATOS; DEMIDOFF, p.115).

No mesmo sentido, Danillo Guilhermino afirma que “o CACO não fazia reunião, não tinha nada disso. Quem mandava era o partido comunista”. (Opus cit., p.115). Já em escrito onde relembra um pouco de suas memórias, o ex-militante da Reforma, Gessé Oliveira, assim descreve a relação das ideologias da época com o movimento estudantil:

A pauta do Movimento estudantil daquela época era riquíssima. Misturava um conjunto de influências e de interesses, de ideologias e, sobretudo, de confrontos, dentre os quais, o célebre maniqueísmo direita, esquerda, herdado da Revolução Francesa de 1789. A característica da Guerra Fria (…) foi a de levar os confrontos ao limite extremo e não dar-lhes consequências para evitar o apocalipse, mas deixando em seu caminho uma esteira de vítimas pela disputa do Poder (Opus cit., p.87).

A representação dos estudantes simpáticos aos regimes de esquerda ocorria, no CACO, através do Movimento de Reforma que, mesmo nos anos em que não venceu as eleições para a diretoria do Centro Acadêmico, se constituía como força política de grande influência no ME da FND, muito por conta das ideologias que proclamava. Para Eduardo Seabra Fagundes, “na época não se perguntava se o comunismo chegaria ao Brasil, mas sim quando ele chegaria ao Brasil.” (Opus cit., p.115).

Muito interessante é a repercussão, na política interna do CACO, do movimento iniciado pelos países do chamado Terceiro Mundo, que teve o seu marco na Conferência de Bandung de 1955, e que inaugurou o “Terceiro Bloco”, ou “Bloco dos não alinhados”, que viria depois a assumir a denominação de Terceiro Mundo. Embora houvesse grande simpatia da Reforma por esse movimento, ele abriu espaço – devido a sua busca pela neutralidade em relação as posições ideologicamente determinada no mundo Bipolar – para o surgimento do Movimento Universitário Independente (MUI), que viria a ser um terceiro partido acadêmico na FND. Em entrevista com Gessé Oliveira constatamos que, por diversas vezes, sociólogos que encampavam a tese da necessidade de um terceiro bloco eram convidados para palestrar na Faculdade, o que reforça a tese de que o MUI surgiu no embalo dos movimentos dos não-alinhados (Opus cit., p.87).

Porém, Danillo Guilhermino dos Santos, fundador do MUI, contesta essa tese. Segundo ele:

Qual era a ideologia do MUI? Nenhuma. A ideologia nossa naquela época era edições, gravar e dar pra cada um as aulas gravadas dos professores. Isso era o nosso trabalho. Porque, pensando bem, o que que nós tínhamos pra reivindicar? Nada. Era tudo dominado pelo movimento estudantil. (…) todo movimento nosso era nacionalista. Não era nem de esquerda nem de direita (…) Era tido como esquerda, mas era nacionalista (Opus cit., p.141).

No concernente à política nacional, a situação era bastante peculiar. O governo de Juscelino Kubitschek (JK) é tido por todos os entrevistados como um período em que houve grande liberdade política. Juscelino era nacionalista, segundo Gessé Oliveira, porém, encontrava-se em uma situação de forte instabilidade, pois as correntes políticas representantes da bipolaridade advinda da Guerra Fria – notadamente a UDN e os comunistas, buscavam ampliar seu espaço de influência no governo (Opus cit., p.89).

Os comunistas atuavam, prioritariamente, organizando manifestações e apoiando medidas contrárias aos interesses norte-americanos. A UDN, por sua vez, foi a grande adversária do Partido Social Democrático (PSD) de JK, através dos pronunciamentos de seu Deputado Carlos Lacerda, que desferia fortes ataques ao governo de Juscelino. Porém, dois acontecimentos abalaram as lealdades nacionais da época. O primeiro, foi a construção de Brasília, que causou grande euforia em setores do ME, contando, inclusive, com o apoio direto da gestão do CACO de 1957. A construção da nova capital gerou a sensação de que seria um primeiro passo para o “estouro” do desenvolvimento brasileiro (DE MATOS; DEMIDOFF, 2006, p.98). O segundo fator marcante da época, e que possuiu estreita relação com o evento da Greve dos Bondes, foi a alta inflacionária do período, que serviu como munição contra o governo de JK (Diário de Notícias, edição de 26/04/1956).

Segundo os depoimentos, o surgimento do MUI, embalado pelo esgotamento político dos dois partidos que se polarizavam em torno da Guerra Fria, e pelo aparecimento do bloco dos países não alinhados a essa bipolaridade, teve forte impacto no CACO. Essa terceira força política agregou uma série de estudantes que se articulavam em torno de bandeiras comuns ao cotidiano da FND, e era gerida por um grupo relativamente coeso, de alunos que frequentaram um mesmo colégio. Quanto a isso, Danilo Guilhermino Santos, atesta que:

O MUI surgiu pra ganhar, não foi pra perder. Ninguém era do MUI. Nós estávamos contra a Reforma, que era do Partido Comunista, e éramos contra a ALA, que era da polícia (…) Como é que uma faculdade pode ter facções assim, se matando? (…) O MUI foi criado em 1955 (…). O MUI não era dissidência de ninguém (DE MATOS; DEMIDOFF, 2006, p.141).

No que concerne à posição dos partidos estudantis em relação à política nacional, não se percebe um posicionamento definido em relação aos partidos políticos nacionais, nos relatos e documentos coletados. Apenas a influência do Partido Comunista que, na clandestinidade, investia na formação de seus quadros através do ME. Havia, no CACO, uma relação dos militantes do movimento de Reforma com o PC brasileiro (Opus cit., p.97).

No relato de Gessé Oliveira, o MUI parece ter sido o partido universitário que mais se aproximou da ideologia nacionalista encampada, na época, por Juscelino. Contudo, nas entrevistas de Safira Saragossy e Eduardo Seabra Fagundes, percebemos que não havia, nos outros dois partidos, Reforma e ALA, um sentimento de oposição direta e frontal ao governo JK. O clima político no ME não parecia propício para que estas críticas fossem exteriorizadas, ou prioritárias – críticas que acabavam sendo minoradas diante de questões políticas nacionais e internacionais, e ideológicas (Opus cit., p.97-99).

Nesse sentido, o partido comunista parecia ser a única força política que realmente investia com peso na formação de quadros e fortalecimento de sua atuação na conjuntura político-acadêmica do período. Gessé Oliveira reforça essa ideia em sua fala:

Os jovens comunistas constituíam, indiscutivelmente os mais articulados. A Juventude Comunista alimentava um fluxo anual de alguns novos membros na Faculdade (…) vindos já organizados do Movimento Estudantil Secundarista. Este grupo era o mais barulhento e participativo de todos os acontecimentos internos (…) A característica marcante era a de que eles atuavam mais perifericamente, como que fazendo o trabalho bruto, uma vez que os concorrentes a cargos oficiais do Centro Acadêmico eram, frequentemente, aliados simpatizantes que, uma vez no poder, seguiam as iniciativas da base comunista. Era raro um comunista “manjado” concorrer à Presidência do CACO. Esta estratégia visava a não mexer com os escrúpulos. Contudo, eles tinham dentre seus ativos participantes, judeus (sobretudo os da linha socialista, enquanto os “sionistas” eram congelados, embora algumas vezes participassem da frente única), árabes, cuja convergência já se encontrava na luta do Oriente Médio. Sua principal representante desse grupo, na Faculdade, foi a jovem Sylvia Grabois que, posteriormente, na época da ditadura militar, viu um filho e o tio, deputado Maurício Grabois, serem assassinados. Deve-se lembrar que nesta oportunidade o Estado de Israel estava recém-criado e os “imperialistas” ocidentais ocuparam militarmente o Canal de Suez na defesa dos seus interesses, enfrentando a resistência do Coronel Násser, nacionalista egípcio anti-Estado de Israel. Este bloco árabe era muito animado e… nem sempre consequente. Figura caricata desse bloco era o Elias Turquinho, indiscutivelmente, o deflagrador do que passou a ser conhecida como a Campanha dos Bondes, que resultou na paralisação do Rio de Janeiro em maio de 1956. A mídia comunista também era bem organizada fora do Movimento estudantil, transmitindo sua influência panfletária para dentro da Faculdade (Opus cit., p.60).

Eduardo Seabra Fagundes também reforça essa ideia em sua entrevista:

Naquela época, o Partido Comunista, que estava na clandestinidade, tinha uma penetração muito grande na faculdade, havia muitos líderes estudantis que pertenciam ao Partido e esses líderes, de certa forma, mobilizavam a turma. Eles eram grandes oradores (…) e agitavam as nossas assembleias, inflavam os estudantes. Foi um período muito interessante (Opus cit., p.115).

 No bloco da direita, os expoentes da ALA tinham sua estrutura orgânica baseada na Juventude Universitária Católica (JUC), na Juventude Estudantil Católica (JEC) e na Juventude Operária Católica (JOC). No CACO, assim como em outras faculdades, havia a presença da JUC, enquanto a JEC era a entidade dos secundaristas (Opus cit., p.61). Nesses grupos, existia uma variedade de pensamentos e posicionamentos políticos que, por vezes, os levavam a posições não homogêneas. Na realidade, os desencontros entre JUC e JOC, por exemplo, não eram tanto na área da ação, mas, principalmente, do conflito ateísmo comunista versus cristianismo de ação.

Este conflito teórico, nos anos da ditadura, passou a um segundo plano nas lutas da resistência dos anos 1960 e 1970. Havia ainda um bloco semiclandestino, segundo Gessé Oliveira, envergonhado, que seguia já a linha dura do Almirante Botto com sua Cruzada anticomunista (Opus cit., p.97-100). Dessa forma, dentro desse bloco que, no CACO, integrava a ALA é possível identificar tendências políticas várias, algumas das quais seriam, hoje, consideradas de esquerda, ou ao menos, de centro-esquerda. Entretanto, devido a conformidade política da época, por serem opositoras do chamado socialismo real, e do comunismo, e, principalmente, do materialismo dialético, eram tidas como tendências políticas de direita, e ocupavam espaço na ALA. 

 Na Biblioteca Carvalho de Mendonça da FND, foi possível encontrar documentos da década de 1950 que demonstram a ativa participação do CACO em eventos do período, que refletem estes paradoxos entre a bipolarização do mundo, e as múltiplas agendas políticas que disputavam o CACO. Neles, encontramos um edital de convocação para deliberar sobre uma licença para processar o então deputado Carlos Lacerda. Também há nota oficial em que o Centro Acadêmico demonstra contrariedade à cassação do mandato do mesmo, que se achava ameaçado. Esta nota provavelmente causou controvérsia a respeito do apartidarismo do CACO, uma vez que encontramos uma segunda nota, esclarecendo o posicionamento, como uma atitude apartidária em defesa do Estado Democrático. No entender dos integrantes do Centro Acadêmico daquela fase, não havia razões para a cassação do mandato do parlamentar (Opus cit., p. 171).

Fotos: Viagem dos Estudantes do CACO aos EUA. A direita, estudante do CACO observa movimento grevista em Nova Iorque. Década de 1950. Acervo cedido para digitalização por Danillo Guilhermino do Santos. S/d.

Também encontramos documentos que se relacionavam a questões internacionais. Entre eles, mensagens de apoio a estudantes de Cuba e do Chile e convites para participação de manifestações de apoio ao povo Húngaro, vítima do massacre soviético, além de correspondências a respeito das questões do Oriente Médio, notadamente as relativas à nacionalização do Canal de Suez. Nos acervos privados, especialmente os cedidos por Danilo Guilhermino, encontramos imagens de viagens de alunos e diretores do CACO aos EUA, em entrevista, informações sobre a histórica devolução das armas, bandeiras e troféus da Guerra do Paraguai, organizada pelo CACO com a embaixada daquele país, em 1954, movimento que sofreu oposição de ex-integralistas (Opus cit., p. 171 e p.143).

 

NACIONALISMO: NEM DE ESQUERDA, NEM DIREITA, MAS “MUITO HOMEM PARA POUCA MULHER”

 Antes de abordarmos, os fatos, as causas e as consequências do movimento que gerou a Greve dos Bondes, entendemos ser de grande importância destacar um relato específico, mas que chama atenção na entrevista de Safira Saragossy: as relações de gênero e a participação política feminina no CACO. Na realidade, esta foi uma das dificuldades que não conseguimos superar na realização das entrevistas, e que aqui reconhecemos: não foi possível encontrar “o equilíbrio social dos relatos coletados” (THOMPSON, 1992, p.254), e conseguimos o depoimento de apenas uma liderança feminina do CACO, daquela época.

Foto: Safira Saragossy, com Hermes Lima e Pedro Calmon, acervo pessoal de Safira Saragossy, s/d

Já no início de sua entrevista, Safira nos mostra o quanto a desproporção de gênero entre os estudantes era significativa:

Num primeiro momento eu confesso que eu fiquei um pouco perdida porque era uma faculdade nacional, você tinha gente de todas as camadas sociais. Eu sempre tive uma facilidade de me relacionar com qualquer nível social. Mas no princípio, era muito homem para pouca mulher. E naquele tempo, nós estamos falando na década de 50. As meninas eram muito recatadas, então eu fiquei meio ‘zonza’ no primeiro instante de me ver no meio daquele mundo de rapazes, sabe? Era uma coisa assim muito nova. (DE MATOS; DEMIDOFF, 2006, p.127).

Dessa forma, ser aluna da FND já era, por si só, algo que se colocava como uma séria questão de gênero. Se a universidade em si não era vista como um ambiente propício para mulheres, muito menos eram os movimentos políticos e estudantis da época. Assim, o ME e o CACO eram realidades muito distante da participação feminina ativa, e essa é uma das razões pelas quais, em sua entrevista, Safira Saragossy relatou-nos que participou dos eventos muito mais como observadora do que como protagonista, assim como a maioria das mulheres de sua época – com algumas exceções, como Lucia Reis, que exerceu liderança na entidade. Safira, no entanto, se descreveu como observadora do ME:

CACO eu não frequentava muito no início. Eu nunca fui uma mulher de grandes atividades políticas, eu nunca fui. E como eu estava te dizendo, o pessoal me olhava assim meio de lado, porque o meu sobrenome era o nome de uma marca de roupa muito importante na época. Então até os professores mexiam comigo. Hoje não existe mais e então eu era considerada assim, eu era olhada meio de banda pelo CACO, entendeu? Porque não é das nossas, sabe como é que é? Não é das nossas. Mas… (Opus cit., p.130)

Essa situação foi explicada por Safira evocando fatores culturais e familiares da época, que desestimulariam a participação feminina na política de maneira generalizada, embora tenha sido nessa época que as mulheres de sua geração votaram pela primeira vez, na decada de 1950. Citamos:

Nós não éramos preparadas para nada disso (…) tínhamos uma formação dentro de casa, dentro da escola, que não te dirigia para nada disso, entendeu? Nós éramos completamente despolitizadas, quase que alienadas, e era muito bonito ser assim. (…) tinha uma colega na faculdade que fugia a esse padrão. (Opus cit., p.127).

Ainda assim, a participação feminina na deflagração do movimento que gerou, quase que espontaneamente, a Greve dos Bondes, foi significativa, como veremos a partir dos documentos e depoimentos, a seguir.

A LIGHT, BRAZILIAN TRACTION: COMBUSTIVEL PARA A GREVE DOS BONDES

A Greve dos Bondes teve enorme cobertura na imprensa da época, e foi possível encontrar diversas manchetes e notícias sobre o episódio. O ME teve destaque sobre sua participação, principalmente pelo Diário de Notícias, que publicava diariamente uma seção com informações sobre as universidades e os centros acadêmicos. O CACO tinha uma coluna no jornal, que foi citada algumas vezes pelos entrevistados, onde eram publicadas convocatórias, convites e informações internas do movimento estudantil da FND em suas diversas correntes – especialmente Reforma e a ALA.

É importante situar a Greve dos Bondes, em seu contexto social. Pode-se afirmar que esta greve se enquadrou em uma conjuntura já antiga de pressão inflacionária, que ocorreu em praticamente todo o governo de Juscelino Kubitschek, associada a um profundo clima de nacionalismo e ativismo político (Diário de Notícias, 26/04/1956). Eduardo Seabra Fagundes relatou que havia aumentos de preço sequenciais em diversas áreas e produtos, o que alimentava uma insatisfação popular generalizada:

Havia uma certa insatisfação. Naquela época, a inflação estava muito alta, a economia não estava num bom momento, havia (…) muito desemprego, essa coisa toda. Tinha havido o desfecho da crise de 54. Então, (…) quando o Governo deu aumento dos ônibus, aquilo funcionou como um rastilho. E aí aquelas insatisfações todas, aquela agitação lá. Como eu disse, a história da Guerra Fria, a Light, os bondes pertenciam a uma empresa canadense, a Light, Brazilian Traction, e isso ajudou a incendiar um pouco. O povo canadense que vem sugar as riquezas do país. (…) O nacionalismo ali estava começando a efervescer. (DE MATOS; DEMIDOFF, 2006, p.115).

Nesse sentido, localizamos várias notícias dos jornais de então, que apontam a dimensão desse problema. Uma manchete do periódico Diário de Notícias estampa, inclusive, o aumento das custas judiciais em 400% e o aumento das taxas postais em 100%. (Diário de Notícias, edição de 26/04/1956). Neste ambiente de pressão inflacionária, iniciaram-se protestos por parte dos funcionários de diversas empresas para que fossem aumentados seus salários. Dentre essas empresas encontrava-se a Light, que era, na época, a concessionária dos serviços de transporte, e dos bondes. Diante dos protestos dos seus funcionários, as empresas do setor passaram a condicionar o aumento deles ao aumento das passagens. Não apenas a Light que era concessionária dos bondes, mas também outros grupos que cuidavam do transporte público – como o grupo Carreteiro, que detinha a concessão das barcas, iniciaram uma pressão pelo aumento das tarifas (Diário de Notícias, edição dos dias 05 e 17 de abril de 1956).

No dia 6 de abril de 1956 foi divulgada a proposta oficial da Light à prefeitura do Rio de Janeiro, para que fosse efetuado o aumento das passagens dos bondes. (Diário de Notícias, edição de 06/04/1956). No dia 17 de abril de 1956 se iniciou uma tensa discussão na Câmara de Vereadores sobre o aumento de 100% no custo das passagens dos bondes. Dez dias depois, o mesmo jornal noticia a forte divergência ocorrida entre os políticos com relação à decisão de conceder ou não o aumento. Em virtude do impasse, a câmara de vereadores decide por abdicar da competência em favor do Prefeito, que na época era o Sr. Francisco Negrão de Lima. As fortes divergências que ocorreram entre os vereadores evidenciaram como esta decisão repercutiria fortemente na sociedade, uma vez que a população já estava saturada com os aumentos sucessivos, e o bonde era um meio de transporte muito utilizado na época. Por outro lado, as empresas concessionárias ameaçavam demitir em massa, em virtude da inviabilidade de manutenção dos serviços caso não houvesse o aumento (Diário de Notícias, edição de 08/05/1956).

Mesmo contrariando os anseios populares, o Prefeito Francisco Negrão de Lima decide pelo aumento de 100% no preço das passagens. Foi estampada na capa do segundo caderno do Diário de Notícias de 13 de maio de 1956 a seguinte manchete: “Valeu-se o prefeito da licença da câmara para atender a Light. Mais um golpe no bolso do povo. Duplicado a partir de hoje o preço das passagens”. O mesmo jornal noticia que a empresa havia condicionado o aumento de 22% no salário dos funcionários à majoração de 100% no preço das passagens, e que por isso foi atendida pelo prefeito. (Diário de Notícias, edição de 13/05/1956).

A repercussão negativa é mencionada por Eduardo Seabra Fagundes, que nos lembra que foi a partir da divulgação do aumento que os movimentos sociais começaram a agir, seguindo os protestos iniciados por estudantes (DE MATOS; DEMIDOFF, 2006, p.115). O Diário de Notícias de 15 de maio de 1956 traz em sua manchete a frase: “Repulsa unânime ao ato de Negrão de Lima”. A partir de 15 de maio os jornais noticiam uma sequência de protestos estudantis em vários pontos da cidade onde os bondes começaram a ter sua passagem bloqueada por estudantes. Destaca-se uma grande manifestação ocorrida na Cinelândia no dia 16 de maio de 1956 (Diário de Notícias, edições de 15 e 16 de maio de 1956).

No dia 19 de maio de 1956, o Diário de Notícias publica uma convocação estudantil para um grande comício de protesto em frente à Câmara de Vereadores, para o dia 23 de maio. Durante a realização deste comício os estudantes dão um prazo limite para que o prefeito volte atrás em sua medida. Esta atitude foi exposta na manchete do dia 24 de maio de 1956 pelo mesmo jornal, com a seguinte frase: “Ultimatum dos estudantes contra o aumento das passagens dos bondes” (Diário de Notícias, 14 de maio de 1956). A tensão aumenta por parte dos estudantes e das autoridades. Fagundes relatou em entrevista a ocorrência de conflitos intensos entre estudantes e policiais bem como a depredação de bondes por parte de alguns estudantes: “Foi uma coisa muito pesada. Havia depredação de ônibus, de bondes. Tentativa de invasão da faculdade pela polícia. Os estudantes se entrincheiravam na faculdade” (DE MATOS; DEMIDOFF, 2006, p.115).

O depoimento pode ser confirmado por notícias destes conflitos entre policiais e estudantes, no Diário de Notícias de 25 de maio de 1956 e em diversas outras edições subsequentes. No entanto, como forma de demonstrar serem contrários as depredações, as entidades estudantis fizeram um comunicado a sociedade através da capa da segunda seção do Diário de Notícias de 27 de maio de 1956. Nesse texto, afirmaram que condenavam as atitudes de depredação e destruição do patrimônio e que procuraram realizar um grande Pacto de União e Ordem, para lutar contra o aumento das passagens. (Diário de Notícias, edição dos dias 25 e 27 de maio de 1956).

As manifestações continuaram, e no dia 29 de maio de 1956 é noticiada uma agressão contra uma estudante que participava de uma manifestação para paralisar um bonde. É interessante observarmos, conforme nos mostram, afirma Fagundes, que a grande resistência às paralisações advinha das autoridades públicas, pois, na grande maioria das vezes, os funcionários da Light não se opunham a parar seus bondes diante dos estudantes. (DE MATOS; DEMIDOFF, 2006, p.115).

No dia 30 de maio de 1956 é findo o prazo concedido pelos estudantes para que o prefeito reveja sua decisão. Em virtude do silêncio por parte da prefeitura é decretada uma paralisação geral de todos os bondes, medida que foi apoiada por vários sindicatos. A partir de então, o objetivo do movimento passou a ser impedir que qualquer bonde se locomovesse na cidade do Rio de Janeiro. (Diário de Notícias, edição de 30/05/1956).

A situação tomou grande vulto, e os rumores de uma greve geral de bondes, de nível nacional, começaram a se intensificar. A gravidade da situação fez com que o prefeito do Distrito Federal Negrão de Lima tomasse a decisão de transferir a responsabilidade de solucionar a crise para o presidente da República, Juscelino Kubitschek. Assim, no dia 03 de junho de 1956, novamente, o Diário de Notícias traz reportagens a respeito de outros Estados do país que ameaçam aderir a greve, e as tensões intensificam-se. No Rio de Janeiro, no bairro de São Cristóvão, um total de 44 estudantes são presos, por protestarem contra o aumento das passagens. Diante do caos instaurado na cidade e com ameaças de espalhar-se pelo país, o presidente Juscelino Kubitschek se vê forçado a intervir diretamente na crise. Mesmo diante das promessas de que o problema seria resolvido pelo presidente, a Greve acaba por se alastrar por todo o país, sendo liderada pelos Centros Acadêmicos das faculdades dos diversos Estados (Diário de Notícias, edição de 30/05/1956).

Finalmente, no dia 06 de junho de 1956, o Diário de Notícias estampa a seguinte manchete, em letras maiúsculas: “VITORIOSO O MOVIMENTO ESTUDANTIL. REDUZ O PREFEITO O PREÇO DAS PASSAGENS QUE ELE PRÓPRIO HAVIA AUMENTADO.” O jornal noticia que o pronunciamento fora realizado as vinte e duas horas do dia anterior, na presença de dez jornalistas e do Reitor da Universidade do Brasil, o professor Pedro Calmon. No mesmo dia foi apresentado ao poder legislativo um projeto para abonar as faltas dos estudantes universitários que perderam aulas participando das manifestações (Diário de Notícias, edição de 06/06/1956). Resta detalhar, agora, qual foi a participação direta do CACO em todo este episódio.

“CIRANDA CIRANDINHA/ VAMOS TODOS CIRANDAR”: O CACO NA GREVE DOS BONDES DE 1956

A partir da análise das publicações em sua coluna no jornal Diário de Notícias e em documentos armazenados, podemos perceber a importância que o CACO tinha no ME. Exemplificando tal afirmativa, há vários requerimentos, para diversas entidades, solicitando desde “tanques” (carros de combate) e “bandas” para desfiles organizados pelo Centro Acadêmico, até passagens para que os diretores do CACO pudessem representar os estudantes em outros países. Diversas destas solicitações eram atendidas, conforme revelou a entrevista com Danilo Guilhermino dos Santos (DE MATOS; DEMIDOFF, 2006, p.141).

O também estudante na época, Eduardo Seabra Fagundes confirma este status social, e o imenso capital político do CACO, em sua entrevista:

O prédio, aquele prédio tinha tradição, nós tínhamos muito orgulho do nosso prédio, da nossa tradição, da nossa biblioteca, do próprio CACO. E era… O CACO era uma entidade muito respeitada, muito ouvida naquela ocasião. Tinha muito prestígio no meio estudantil e na própria imprensa. O CACO era muito bem falado.” (Opus cit., p.115).

Esse protagonismo do CACO no ME, e sua influência na sociedade era, também, um produto da sua simbiose com o prestígio da FND na época. Essa opinião é expressa por Safira Saragossy, que em sua entrevista se considerou uma estudante despolitizada, mas reconhecia o prestígio do CACO, junto ao da FND:

O CACO já estava lá, já era o grande acontecimento você ir para uma Faculdade Nacional de Direito com o CACO representando todo aquele movimento; já era um negócio muito sério você cursar uma Faculdade Nacional de Direito (Opus cit., p.131).

Embora não existam registros nos documentos do CACO sobre a sua participação na Greve dos Bondes, verificamos que os estudantes da FND tiveram um papel relevante no movimento. Essa constatação fizemos através dos relatos de jornais da época, mas, principalmente, através das entrevistas realizadas.

Segundo Danillo Guilhermino dos Santos, a paralisação dos bondes pelos estudantes foi um marco na história do CACO: “A campanha do Petróleo foi o nosso batismo na faculdade. Logo depois os bondes subiam um real….não, um centavo…a gente parava tudo. Mas não foi uma parada simbólica, não; ou duas. Foram diversas!” (Opus cit., p.146). Essas manifestações relatadas nos jornais, bem como os vários enfrentamentos entre alunos da Faculdade Nacional de Direito e autoridades policiais, demonstram que os estudantes assumiram uma postura extremamente combativa no episódio.

Além disso, em mais de uma das entrevistas foram apresentados indícios que apontam que as grandes entidades representativas dos estudantes, como a UNE e a UMES, sofriam uma forte influência do CACO, e não o contrário. Eduardo Seabra Fagundes alegou que no episódio da Greve dos Bondes, “o CACO teve uma participação muito relevante, porque o CACO exercia uma certa liderança na UNE.” Para ele, a liderança do movimento foi do CACO:

O CACO foi quem liderou. Veja bem, naquela época eu era quase calouro. Deve ter sido no segundo ano, no máximo no terceiro. Então eu não participava das reuniões da Diretoria do CACO, participava das assembléias. As assembléias eram naquelas salas enormes que eu não sei se eles depois redividiram as salas, mas lá no terceiro andar havia salas que comportavam 200, 300 alunos. Nós nos reuníamos lá e (…) os oradores todos participantes da administração do CACO falavam para os alunos reunidos nessa assembleia, e realmente conseguiam transmitir uma mensagem de muito calor (…) E aí o pessoal saía para agir de acordo com o que tinha sido deliberado naquele tumulto. As assembléias eram um pouco tumultuadas (Opus cit., p.73).

Porém, foi no relato de Gessé Oliveira que encontramos uma descrição detalhada não apenas sobre como se deu o início do movimento da Greve dos Bondes de 1956, mas também, novamente, sobre o papel de liderança do CACO no evento. Este teria sido quase que incidental, e ao acaso – como frequentemente ocorre em manifestações políticas públicas (GIRALDES, 2017). Na fala de Gessé Oliveira, há uma explicação para o estopim que levou a adesão dos estudantes do CACO a greve que, segundo ele, foi protagonizada pelo estudante Elias “Turquinho”:

O [Elias] Turquinho foi praticamente o deflagrador de um dos maiores momentos que o CACO conseguiu fazer, que foi aquela parada dos bondes no Rio de Janeiro. Numa dessas tardes, chega o Turquinho no bar: “A Light quer aumentar o preço do bonde. Não pode! Isso é um absurdo! Esses capitalistas, imperialistas. Essa turma entra aqui para explorar o nosso povo!” Aí começou. (…) “Se nós no Centro Acadêmico não tivermos coragem”, aí o pessoal já saiu lá do bar (…) e convocaram uma reunião do CACO. “Temos que combater o preço do bonde”, aí já transferimos o problema para a UNE, para o DCE, aí vamos parar. Vamos parar, vamos. (…) uma quarta-feira, se não me engano, vamos lá para a rua (…)a Escola de Engenharia parava no Largo São Francisco, o CACO parava na Praça da República, ia o pessoal de Medicina na Praia Vermelha. E vamos parar o Rio de Janeiro. Aí realmente quem começou foi o Turquinho. Moral da história: no dia a turma da Ala, a turma da direita, dizia “esses agitadores, isso é o movimento comunista” e tal, sempre os argumentos deles, né? No dia marcado (…) quatro horas da tarde, cinco horas, para. Aí as garotas saíram, aí começaram a fazer ciranda em torno, a gente no meio, aí as meninas: “Ciranda cirandinha/ vamos todos cirandar”. (…) Daqui a pouco estava o Elias Turquinho em cima do bonde: “Porque o imperialismo americano!” (…) Nós tínhamos combinado numa ação sincronizada em várias áreas. Gente, seis horas da tarde o Rio de Janeiro estava parado. Realmente parado. Nós estávamos recebendo notícia que até na Penha, em Cascadura, a turma já tinha parado tudo também. Ali na praça de frente o Ministério da Guerra, o pessoal que chegava para voltar do trabalho, quatro, cinco, seis (…) o pessoal chegando e aderindo, aderindo o movimento. Aí começou (…) O Juscelino estava indo nesse dia para Minas inaugurar a Represa de Três Marias. Voltou correndo (…) o Juscelino para o Rio de Janeiro. (…) Aí o pau comeu, chegou a polícia, esse dia foi fantástico. Os policiais metendo o cassetete e o Elias Turquinho se envolve na bandeira brasileira e (…), o policial batendo nele: “Respeita a bandeira nacional!” “Não tem nada de bandeira nacional!”. Aí todo mundo correu para a faculdade e foi o primeiro grande banho de gás lacrimogêneo que nós levamos para dentro do CACO. Foi uma barra. E o pessoal correu lá para dentro e a polícia jogando bomba de gás. E as meninas chorando, todo mundo chorando lá. E eu não sei se vocês sabem, mas o reitor era o Pedro Calmon. Ministro da Educação, era vaselina. Aí veio o Calmon, todo mundo sai, não sai da faculdade, e aí o Calmon com aquele “não, aqui só entra com vestibular” e tal, bota o pessoal para correr. (DE MATOS; DEMIDOFF, 2006, p.87).

Como podemos perceber pelas entrevistas, o CACO pagou um preço por esta liderança exercida no ME e teve, por diversas vezes, o seu espaço invadido por agentes das forças policiais que pretendiam conter os estudantes. Quanto à questão ideológica, é importante percebermos que, embora o evento da Greve dos Bondes fosse mais confortável para a Reforma, a ALA não se opôs a greve, e participou junto do movimento, porém de forma “um pouco mais tímida” como explica Eduardo Seabra Fagundes (Opus cit., p.115). Essa timidez da ALA talvez seja a única influência das ideologias bipolares da Guerra Fria no episódio da Greve dos Bondes.

As entrevistas permitiram-nos compreender que o movimento da Greve dos Bondes possuiu grande força, e que envolveu a maior parte do corpo estudantil da FND. Dessa forma, ser contrário a Greve dos Bondes não dava popularidade, muito menos ganhos políticos. Sendo assim, o fator político, aliado a uma questão prática – o dramático aumento das passagens – acabou por se sobrepor as divergências das correntes político-ideológicas que disputavam o CACO, gerando assim uma união das duas maiores forças: ALA e Reforma, unidas pela conjuntura. Esse fato foi, inclusive, noticiado em jornal (Diário de Notícias, edição de 19/05/1956). Apesar de todas as diferenças existentes entre os grupos em disputa pelo eleitorado estudantil do CACO, e de uma sutil liderança da Reforma no episódio, não identificamos nenhuma oposição clara ao movimento, que tomou conta da Capital do país no ano de 1956. Até mesmo porque se esta oposição de fato existiu – sobre o que não se tem relatos, certamente foi atropelada pelos acontecimentos da conjuntura em que os grupos estavam inseridos.

Um último indício da influência que o CACO teve no episódio que pensamos ser relevante destacar, diz respeito à escolha do Reitor Pedro Calmon, como representante dos estudantes, para negociar a solução para a Greve junto ao presidente Juscelino Kubitschek. Dos grupos estudantis que participaram do movimento, sem dúvida alguma, os estudantes da FND eram os que possuíam maior contato e amizade com o Reitor, e por esse motivo, somos levados a crer que essa escolha tenha sido fortemente influenciada pelo CACO. Como podemos ver anteriormente, o professor Pedro Calmon foi um dos primeiros a saber que o prefeito Negrão de Lima revogaria o decreto que aumentou o preço das passagens, ademais, é importante registrarmos, por vezes prestou auxílio de maneira inequívoca ao ME, e ao CACO (Diário de Notícias, edição de 21/05/1956).

No dia 30 de maio de 1956 quando terminou o prazo concedido pelos estudantes para que o prefeito revogasse a sua decisão, diretores do Centro Acadêmico Cândido de Oliveira, após o almoço, resolveram descansar em uma toalha quadriculada que é posta sobre a linha dos bondes. Porém, são abordados por policiais que acabam dando voz de prisão aos mesmos, em virtude de negarem-se a se retirar do caminho do bonde. A confusão, uma vez percebida por outros estudantes, faz que estes se posicionem em defesa dos diretores do CACO, o que gerou um confronto entre os policiais e os estudantes, que acabam por se refugiar na FND. Em capa, o jornal Diário de Notícias discorre a respeito de uma intervenção do então Reitor da Universidade do Brasil e professor da FND, Pedro Calmon, em favor dos estudantes (Diário de Notícias, Capa da Segunda Seção, edição de 30/05/1956).

Os dados da reportagem jornalística complementaram as entrevistas coletadas, neste caso. Na ocasião, quando os policiais ameaçaram adentrar o prédio da Faculdade Nacional de Direito em busca dos diretores do CACO, contou-se que o então, Reitor da UFRJ, Pedro Calmon, teria resistido a investida dos policiais e pronunciado a frase que se tornaria célebre em defesa dos estudantes: para entrar aqui, só com vestibular ou concurso. Os dizeres do Reitor foram seguidos pela euforia estudantil. Acreditamos ser válido registrar a emoção com que os entrevistados relembram esse momento – emoção que nos contagiou enquanto entrevistadores.

Embora as narrativas das entrevistas não sejam exatas – nem seja esse o objetivo por trás do resgate da memória dos entrevistados, conseguimos obter descrições ricas sobre o episódio do dia 30 de maio de 1956. Mesmo não tendo sido testemunha ocular do fato, Eduardo Seabra Fagundes nos descreve, a partir de relatos que ouviu de seus colegas, o que ocorreu:

“Os estudantes se entrincheiravam na faculdade e foi aí que o Pedro Calmon… Ele na época era reitor também. Ele era amigo dos estudantes. Ele não era um homem muito formativo, não era um homem politicamente engajado, mas ele era cioso da independência da universidade. Então a polícia tentou entrar e houve a célebre frase que ele disse: Aqui só se entra ou por concurso ou por vestibular e impediu a polícia de entrar. Depois eu tenho a impressão de que a polícia invadiu mesmo. Esse dia eu não estava lá, não sei como foi. Mas houve tanta efervescência que eu acho que terminaram perdendo a paciência e invadindo a faculdade. Mas, depois continuou a efervescência. O CACO sempre muito ativo” (DE MATOS; DEMIDOFF, 2006, p.65).

Apesar de não recordar claramente se os policiais chegaram a invadir a faculdade posteriormente, o entrevistado lembrou-se de histórias contadas na época, sobre os fortes confrontos entre a polícia e o CACO: “Eu não estava lá, mas os estudantes jogaram as carteiras dos andares superiores nos policiais. Foi uma confrontação braba realmente.” (Opus cit., p.67). Essa fala foi confirmada pela edição do Diário de Notícias do dia seguinte, o qual relata na capa de sua segunda seção que o prédio da Faculdade Nacional de Direito havia sido ocupado durante a noite, no momento em que terminavam de ser editadas as reportagens para aquele dia (Diário de Notícias, Capa da Segunda Seção, edição de 30/05/1956).

Este episódio ficou registrado também nas paredes da FND, onde encontramos no andar térreo, do lado direito de quem adentra a Faculdade de Direito da UFRJ, uma placa que homenageia os estudantes que lutaram contra os policiais naquela noite, com os seguintes dizeres: “Aqui em as noites históricas de 29 e 30 de maio de 1956, os acadêmicos de direito sofreram injustificáveis violências policiais e lutaram brava e heroicamente, para impedir fosse violado o território livre da Faculdade Nacional de Direito.” Os detalhes desta invasão policial foram ainda mais detalhados pelo Diário de Notícias de 01 de junho de 1956, que trouxe o relato completo da invasão da Faculdade Nacional de Direito.

Na mesma edição, é manchete da capa da segunda seção a invasão do prédio da UNE por forças policiais. Percebemos, pelas fotos do periódico, que a ação policial foi muito violenta. Houve inúmeros feridos, incluindo entre estes os Deputados Mario Martins e Adauto Lucio Cardoso – que não tiveram a oportunidade de se identificar, antes de serem agredidos pelos policiais, além de fotógrafos e jornalistas do jornal Correio da Manhã, que sofreram fortes ferimentos. Algumas das pessoas que tentavam resistir à invasão também foram atingidas por estilhaços de bomba, como relata o jornal. Os estudantes chegaram a fazer um buraco em uma das paredes do prédio, para prevenir-se da atuação das autoridades, tendo, assim, um lugar para escapar por trás do edifício (Diário de Notícias, edição de 01/06/1956).

O CACO divulgou nota na primeira página da segunda seção, repudiando os atos praticados pelas autoridades policiais. Os protestos continuaram a se intensificar a partir do dia 01 de junho de 1956. Além das violentas ações da Polícia Militar, a Guarda Municipal e o Exército também passaram a reprimir os estudantes. A primeira página do jornal Diário de Notícias, do dia 02 de junho de 1956, estampa fotografias de estudantes em confronto com homens do Exército e da polícia. A manchete da segunda seção noticiou a atuação dos estudantes em diversos pontos da cidade, parando os transportes de bondes. Noticiou, também, o espancamento de estudantes (Diário de Notícias, edição de 02/06/1956).

Há que se ressaltar que no dia 05 de junho de 1956 os estudantes continuaram uma onda de fortes protestos por toda cidade. Talvez para evitar a repetição dos protestos por mais um dia o prefeito tenha se decidido por anunciar a suspensão dos aumentos assim que a decisão foi tomada. Além disso, no dia 06 de junho de 1956, com o problema do aumento das passagens já resolvido, é constituída uma comissão parlamentar para que fossem investigados os espancamentos dos Deputados Mario Martins, Adauto Lucio Cardoso, de vários estudantes e dos funcionários do periódico Correio da Manhã (Diário de Notícias, edição de 06/06/1956).

 

CONCLUSÕES

  A Greve dos Bondes foi um evento que paralisou não só a cidade do Rio de Janeiro, mas que se espalhou por todo o país durante semanas, e chegou a instância máxima de poder nacional: a alçada presidencial, tamanha foi a gravidade da situação. A análise documental e das entrevistas permite concluir que houve grande atuação dos estudantes no evento, que demonstraram uma disposição extrema na luta pela diminuição das passagens dos bondes. É possível comprovar tal ímpeto ao entrarmos em contato com a brutalidade com a qual as autoridades investiram para conter o movimento de bloqueio dos bondes, mas que, nem por isso, enfraqueceu a mobilização estudantil. Nesse sentido, é necessário destacar o prestígio e a capacidade de mobilização que o CACO possuía, e seu protagonismo no movimento.

Não menos surpreendente foi a confirmação de que os partidos políticos nacionais não possuíam uma grande força no movimento estudantil, a ponto de gerar divisões partidárias correspondentes às respectivas correntes políticas nacionais. Uma hipótese que levantamos aqui para explicar esse fato, é que, talvez, essas correntes políticas nacionais não tinham, ainda, uma proposta política sólida própria que não fosse reflexo das políticas internacionais. Então, provavelmente, isso ocorria em virtude da pressão advinda do conflito ideológico da Guerra Fria, com sua bipolaridade, e o posterior surgimento do bloco dos países não alinhados – quadro que tinha mais representatividade e influência que as questões político-partidárias nacionais.

As manchetes dos jornais da época raramente tinham como destaque questões internas do país. Em nossa pesquisa com acervos de periódicos podemos observar que, diariamente, os brasileiros liam a respeito das questões políticas envolvendo URSS e EUA em sua luta de guerra improvável e paz impossível. Assim, tornava-se difícil que as questões nacionais se sobrepusessem a essa massificação ideológica, até mesmo porque se vivia verdadeiramente uma tensão, com a possibilidade de uma Guerra de consequências apocalípticas.

Sendo assim, os estudantes do CACO seguiram o curso da geopolítica internacional e acabaram por se bipolarizar entre os comunistas no movimento de Reforma e os anticomunistas da ALA. Esta bipolarização, como vimos, posteriormente foi atingida pelo esgotamento deste processo político dualista e pelo início de novas experiências ideológicas, advindas, principalmente, do movimento dos países não alinhados. Esse novo espaço ideológico abriu caminho para a criação do MUI na FND.

Quanto a participação do CACO na Greve dos Bondes, entendemos que, apesar de toda a tensão política gerada pela greve, o movimento acabou por ser um evento que provocou união entre os estudantes, ao invés de divisões. Dessa forma, nos parece que as questões político-ideológicas, tanto nacionais como internacionais, não tiveram força para gerar divisões e partidarismos durante as manifestações. A questão econômica e os interesses comuns e materiais aos estudantes, e para a maioria da população brasileira, prevaleceram.

Ao iniciar esta pesquisa, não sabíamos ao certo qual havia sido o papel desempenhado pelo CACO nas manifestações da Greve dos Bondes. Suspeitávamos com base em relatos orais, que a entidade havia liderado o movimento. No entanto, manifestações aconteceram em muitos lugares ao mesmo tempo, não havendo uma liderança centralizada, mesmo com a participação da UNE. A prova disso foi a constante destruição de bondes por parte dos estudantes, enquanto as entidades representativas claramente condenavam esse tipo de atitude.

Dessa maneira, além da Greve dos Bondes não ter tido uma organização muito centralizada, as diretrizes mais seguidas pelos estudantes não eram diretamente as do CACO como pensamos no início da pesquisa, baseados apenas em poucas histórias contadas. Acreditávamos que o CACO havia dirigido diretamente a greve, o que acabou por ser desmentido durante a pesquisa. A posição de liderança do CACO era exercida através de outros órgãos representativos dos estudantes. Isto ocorria porque nestes órgãos o Centro Acadêmico Candido de Oliveira, por ser uma agremiação estudantil com muita força política, se sobrepunha aos demais grupos que se faziam representar na UNE e nas demais entidades representativas dos estudantes.

No momento em que o problema das passagens se tornou de alçada presidencial, podemos deduzir que a indicação do reitor da Universidade do Brasil, professor Pedro Calmon para estar à frente da representação estudantil junto ao presidente Juscelino Kubitschek tenha sido fortemente influenciada pelo CACO, uma vez que o professor era muito querido pelos estudantes da FND, e reconhecido como um amigo dos mesmos – como se viu nas entrevistas. Percebemos, então, que a liderança do CACO na Greve dos Bondes se mostrou forte, porém, indireta. As decisões que eram tomadas em âmbito interno do CACO eram posteriormente defendidas na UNE, e nos demais órgãos de representação estudantil.

Realizamos a coleta de dados para a pesquisa descrita neste artigo quando ainda éramos estudantes da Faculdade Nacional de Direito. Retornar a ela, ouvir os relatos daqueles que viveram a universidade no tempo de figuras ilustres como Pedro Calmon, Hermes Lima, Haroldo Valladão, dentre tantos outros – cujos nomes estão eternizados nas paredes do histórico prédio de nossa faculdade, proporcionou aos autores uma segunda viagem no tempo. O contato com as fontes primárias utilizadas nos fez, novamente, presenciar os momentos históricos de lutas, injustiças e esperanças. Frases históricas como a do professor Pedro Calmon, que barrou os policiais em frente à Faculdade Nacional de Direito, certamente, deixam marcas – não apenas nas paredes. É preciso, expressar nossa admiração pela força; a determinação; e a disposição do movimento estudantil da época.

A Greve dos Bondes foi mais um episódio na história do Brasil, em que estudantes sofreram diversas agressões – espancamentos, ferimentos por estilhaços de bombas de gás lacrimogêneo, etc., mas que, nem assim, capitularam dos seus objetivos. Tudo para que, como diz a placa em homenagens aos mesmos, o “território livre da Faculdade Nacional de Direito” não fosse violado. Sem dúvida, impressiona o desfecho do episódio: a vitória do movimento estudantil, que conseguiu fazer com que uma questão com profundas implicações sociais chegasse ao Presidente da República, não deixando a este outra alternativa que não negociar e ceder, tamanha era a força das manifestações estudantis.

Finalmente, precisamos dizer que o método de história oral, aqui conjugado com análise de discursos, teve forte impacto sobre a equipe de pesquisa e de gravação de vídeo. Compartilhamos não apenas discursos, mentalidades e ideologias, mas também experiências, sentimentos dos entrevistados. O período histórico estudado, foi uma época fruto de disparidades ideológicas, de polarização entre o indivíduo e o coletivo; entre capitalismo e socialismo. Paradoxalmente, um momento em que se conjugava não só um maior respeito pelo indivíduo, como também um maior sentimento de coletividade. Nas palavras de Safira Saragossy:

Era um tempo em que você (…) pegava o jornal. Tinha dois jornais eu acho, diário de notícias, e saía o seu nome, sabe? O nome de todo mundo. Você não era um número, você ainda era um nome, o que agora mudou bastante (DE MATOS; DEMIDOFF, 2006, p.65).

  Finalmente, é preciso dizer que nos causa certo estranhamento que um dos maiores movimentos de massa da década de 1950 tenha sido deflagrado por estudantes, diante de aumentos das passagens de bondes. Olhar este fato a partir do século 21, quando as maiores manifestações de massa da história do Brasil, em 2013, tiveram também sua ignição por movimentos semelhantes, gera uma inquietação. Estaríamos vivendo uma repetição da história – como farsa? Ou a realidade material, dos meios de transportes concedidos pelo poder público à exploração de empresas internacionais e máfias locais seriam uma realidade que une aqui, presente e passado? Não temos respostas a essas perguntas, mas certamente elas merecem exploração posterior, e a história do movimento estudantil, e do CACO, podem ser úteis para encontrá-las.

REFERÊNCIAS

 

BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. O Governo Kubitschek: desenvolvimento econômico e estabilidade política (1956-1961). Universidade Federal do Rio de Janeiro. Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, 1979

 

CARDOSO, Ciro Flamarion. Domínios da História: ensaios da teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997

CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. São Paulo: Brasiliense, 1997

CINUSP – 5ª Conferencia Internacional de Documentários. São Paulo: USP, 2004. Disponível em: http://www.usp.br/cinusp/mostras/conferencia_2005/index.php

DIÁRIO DE NOTÍCIAS. Acervo da Biblioteca Nacional (BN). Rio de Janeiro. Edições de 26/04/1956 a 06/06/1956

DE MATOS, Marcus V. A. B; DEMIDOFF, Alexandre de Oliveira. Política, Ideologia e Movimento Estudantil: uma análise crítica da participação do C.A.C.O. na greve dos bondes de 1956. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006

FALCÃO, Frederico José. Ilusões de Estratégia: o PCB na política brasileira. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, 1996

FÁVERO, Maria de Lourdes de Albuquerque. UNE em tempos de autoritarismo. Rio de Janeiro: UFRJ, 1995

FERREIRA, Marieta de Morais. História Tempo Presente e História Oral. Topoi, nº 5. Setembro, 2002

FERRO, Marc. Para historiador, o saber de hoje passa pela imagem. Folha Online. São Paulo, 11 set. 2004. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u47303.shtml

GIRALDES, Marcus Vinicius. O Acaso e o Desencontro. As Manifestações de 2013 ao Golpe de 2016. Rio de Janeiro: Garamond, 2017

HAMPE, Barry. A ideia do documentário. NUPPAG – Núcleo de Pesquisa e Produção Audiovisual em Geografia. IGCE/UNESP. Rio Claro, 2005. Disponível em: http://www.rc.unesp.br/igce/planejamento/nuppag1/A%20ideia%20do%20documentario.pdf

HOBSBAWM, E., A Era do Extremos – o breve século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 1995 p.223-281

KOSHIBA, L. Origens Estrutura e Processo. São Paulo: Editora Atual, 2000.

LABAKI, A.; MOURÃO, M. D., Cinema Direto e Cinema Verdade: Tendências e dispositivos do documentário na era digital. São Paulo: USP, 2005

LAFEBER, W., America, Russia and the cold war 1945-2002, 2002

 

NUNES, Marcos Rezende Villaça. A União Nacional dos Estudantes na história política do Brasil (1937-1964). Universidade Federal do Rio de Janeiro. Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, 2000

ROSA, Elaine. Política Salarial na época JK: um estudo das comissões de salário mínimo. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, 1994

SCHÖTTLER, Peter. Mentalities, Ideologies, Discourses – on the “third level” as a theme in social-historical research. Princeton, 1995

SOUZA, ANTONIO CÍCERO CASSIANO. Nacionalismo: Ideologia e Política no Brasil (1953-1964). Universidade Federal do Rio de Janeiro. Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais,1998

THOMPSON, Paul. A Voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992

VIANNA, Alexander Martins. A “Micro” -história Barthiana como uma nova modalidade de História Social. In: Revista Espaço Acadêmico, nº61, junho de 2006.

Notas:

[1] Este texto foi originalmente escrito para o concurso de monografias “CACO 90 Anos de História”, promovido pela Faculdade Nacional de Direito da UFRJ, com o patrocínio da Fundação Universitária José Bonifácio (FUBJ), no qual foi premiado com Honra ao Mérito.

[2] Graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Mestre em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, membro da Advocacia-Geral da União (Advogado da União). Contato: [email protected]

[3] Professor Efetivo (Lecturer) em Brunel University. Doutor em Direito (PhD) pelo Birkbeck College, University of London. Mestre e Bacharel em Direito pela UFRJ. Membro Honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB). Foi Diretor do CACO entre 2004-2005. Contato: [email protected] e Twitter: @mvdematos.

Palavras Chaves

Greve dos Bondes; Política; Ideologia; história do Movimento Estudantil; Centro Acadêmico Candido de Oliveira; Faculdade Nacional de Direito.