RACISMO E INJÚRIA RACISTA: A EXUNÊUTICA COMO SUBVERSÃO EPISTEMOLÓGICA JUS-QUILOMBISTA

  

Resumo

Este artigo analisa o racismo e sua relação com Direito Penal no Brasil considerando que ao negar tutela jurídica à dignidade do povo negro, a farsa abolicionista de 1888 decretou a ilegalidade de um sistema de controle que foi reconstituído pelo Código Penal de 1890. Partindo de uma filosofia branca supostamente “igualitária”, tal ordenamento reformulou o sistema de controle racista ao criminalizar todas as rodas negras, complementado pela Criminologia racista que legitimou, através do racismo científico. É imprescindível a consciência de que o campo jurídico penal oferece muito pouco em termos de reconhecimento e conquista de direitos dos negros. Precisamos subverter a lógica colonial punitivista, para ampliar possibilidades para o (re)conhecimento de direitos ancestrais.

Abstract

: This article analyzes racism and its relation to Criminal Law in Brazil, considering that by denying legal protection to the dignity of the black population, the abolitionist farce of 1888 decreed the illegality of a control system that was reconstituted by the Penal Code of 1890. Stemming from a supposedly "egalitarian" white philosophy, this legal framework reshaped the racist control system by criminalizing all black gatherings, complemented by racist Criminology that legitimized it through scientific racism. It is essential to be aware that the penal legal field offers very little in terms of recognition and acquisition of rights for black individuals. We need to subvert the punitive colonial logic to expand possibilities for the (re)recognition of ancestral rights.

Artigo

 Texto 2_________________________________________________________     RACISMO E INJÚRIA RACISTA: A EXUNÊUTICA COMO SUBVERSÃO EPISTEMOLÓGICA JUS-QUILOMBISTA

Luciano Góes

Resumo: Este artigo analisa o racismo e sua relação com Direito Penal no Brasil considerando que ao negar tutela jurídica à dignidade do povo negro, a farsa abolicionista de 1888 decretou a ilegalidade de um sistema de controle que foi reconstituído pelo Código Penal de 1890. Partindo de uma filosofia branca supostamente “igualitária”, tal ordenamento reformulou o sistema de controle racista ao criminalizar todas as rodas negras, complementado pela Criminologia racista que legitimou, através do racismo científico. É imprescindível a consciência de que o campo jurídico penal oferece muito pouco em termos de reconhecimento e conquista de direitos dos negros. Precisamos subverter a lógica colonial punitivista, para ampliar possibilidades para o (re)conhecimento de direitos ancestrais.

Palavras Chave: Racismo, Direito Penal, Povo Negro

Abstract: This article analyzes racism and its relation to Criminal Law in Brazil, considering that by denying legal protection to the dignity of the black population, the abolitionist farce of 1888 decreed the illegality of a control system that was reconstituted by the Penal Code of 1890. Stemming from a supposedly "egalitarian" white philosophy, this legal framework reshaped the racist control system by criminalizing all black gatherings, complemented by racist Criminology that legitimized it through scientific racism. It is essential to be aware that the penal legal field offers very little in terms of recognition and acquisition of rights for black individuals. We need to subvert the punitive colonial logic to expand possibilities for the (re)recognition of ancestral rights.

Keywords: Racism, Criminal Law, Black People

1 Doutor em Direito (UnB), professor, advogado abolicionista quilombista e Prêmio Jabuti (2017) com o livro “A ‘tradução’ de Lombroso na obra de Nina Rodrigues: o racismo como base estruturante da criminologia brasileira”.

Introdução

   388 anos de desumanização legalizada não foram suficientes para o Brasil reconhecer seus crimes contra a humanidade negra. Ao negar tutela jurídica à dignidade do povo negro, a farsa abolicionista de 1888 decretou a ilegalidade de um sistema de controle objetificante que foi quase imediatamente reconstituído pelo Código Penal de 1890. Embora norteado pela filosofia branca “igualitária”, tal ordenamento reformulou o sistema de controle antinegro ao criminalizar todas as rodas negras, complementado pela Criminologia racista que legitimou, através do racismo científico, a criminalidade negra nata (Góes, 2016).

    Assim, ao conferir concretude a um Jim Crow à brasileira - segregando corpos negros sem reconhecer legalmente -, o Brasil promulgou, durante a transição de uma Monarquia escravagista para uma República racista, a única política estatal de reparação (da segurança, pública e jurídica, da branquitude), modernizando as senzalas e inaugurando o encarceramento da massa negra que nos faz, hoje, a terceira maior população em situação de cárcere do mundo.

   Mesmo após a revogação desse “Código Negro” e a criminalização constitucional do racismo, o Direito penal não cumpriu (e nunca cumprirá) a igualdade prometida pela branquitude (condenar seus crimes raciais próprios), por ser, em essência, um sistema de controle racial cuja função básica é garantir sua supremacia. Por isso, o manuseio do arcabouço punitivo tem como resultado, lógico e invariável, o genocídio negro, materializado pela “pena de morte paralela” legalizada pela guerra antinegra (chamada “contra às drogas”).

   Portanto, não se pode combater o racismo antinegro com o Direito Penal, cláusula pétrea racista que garante a vigência, revisão e reformulação ininterrupta, do Contrato Racial (Mills, 1997). É através da legalização de práticas desumanizantes, ordenadas pela sistematização do direito ao uso da violência colonial e do dever de proteger a supremacia da branquitude, que a (des)ordem racista, estruturante do próprio “Estado moderno”, é assegurada e afiançada.

   Essa impossibilidade, de reduzir direitos naturalizados da branquitude para reconhecer a dignidade humana negra, é comprovada pela evolução histórica da (des)criminalização das manifestações do racismo, em especial pelo epistemicídio (Carneiro, 2023) (re)executado pela hermenêutica, uma reformulação sofisticada do racismo científico que estabelece normas e regras 46 para a (única juridicamente verdadeira) interpretação do que é (e se existe) crime racial. Ou seja, do que a branquitude, em seu monopólio sobre uma justiça pálida e monocromática, determina o que (não) é crime de racismo e/ou de injúria racista (Góes, 2022), qual e se existe bem jurídico que mereça proteção e, ao final, se há e quem é a vítima.

    Assim, sob o discurso “todos somos iguais”, a colonialidade jurídica é sacralizada e Themis mantem a desigualdade racial de sua balança, garantida pela espada que protegerá a branquitude, em “legítima defesa”, contra “ataques a seus direitos”. Alegando “imparcialidade” por ter seus olhos vendados,2 a branquitude executa, sem qualquer receio ou vergonha, os (des)mandos do sistema de injustiça racial em razão da simbiose colonial que exige morte negra.

    Porém, se, por questão básica de sobrevivência, o racismo antinegro brasileiro nos impõe a impossibilidade de renunciar a qualquer espaço de disputa, é imprescindível a consciência de que o campo jurídico penal nos oferece muito pouco em termos de reconhecimento e conquista de direitos (em verdade, nos tira). Isso porque, ao manusearmos seu instrumental de violências legalizadas, findamos por legitimar e fortalecer nosso encarceramento e as múltiplas manifestações genocidas que caracterizam o realismo racial marginal brasileiro.

    Nesse sentido, precisamos subverter a lógica colonial punitivista, cuja razão orbita nossos corpos em permanente estado de exceção da humanidade negra, (des)ordenando a estrutura antinegra desde uma exunêutica3 para abrir caminhos e ampliar possibilidades para o (re)conhecimento de direitos ancestralizados. Ao incorporarmos a “boca que tudo come”, devoramos direitos e princípios epistêmicos e devolvemos, apenas, saberes humanizantes.

2 A quem interessa uma justiça de olhos fechados? Mantê-los assim serve para 1) não precisar ver, pois já se sabe quais cabeças rolarão com a execução da sentença colonial (e a seletevidade racial comprova essa norma); e, 2) não precisar ver o sangue que jorra e escorre nos territórios racializados, pois o “olhar civilizado” tem pavor da violência (contra si, por isso conta com o corpo negro colonizado que, sonhando em ser o colonizador, como ensina Fanon (2008), maravilhado com o poder colonial de desumanização negra que lhe é terceirizado apenas com essa finalidade, se faz capitão do mato), se mantendo longe da realidade que os golpes fatais de sua espada/caneta/mouse (re)produzem. 3 Método vivencial e vívido para interpretação de direitos e normas, visando efetividade prática, assentado nas encruzilhadas de saberes e na cosmopercepção para a abertura de caminhos antidogmáticos e sentidos contracoloniais e antiepistemicidas. Incorporando a juridicidade de Exu, enquanto o “senhor da terceira cabaça” e a “boca que tudo come”, nenhum conhecimento é desprezado pela rotulação de “mal”, o que possibilita sua subversão como “bem” e a multiplicidade de sentidos comprometidos com a vida e a dignidade em aspectos pluriversais são devolvidos, (retro)alimentando preceitos e princípios ancestrais que tecem filosofias afros entrelaçadas e vinculantes na diáspora negra. Por isso essa insurgência epistemológica rasga e deslegitima a hermenêutica colonial, um instrumento de espoliação e domínio relacionado a Hermes, o deus grego mensageiro e protetor dos ladrões (não por acaso).

    Assim, rompendo com a polarização entre bem e mal, e com a aliança negra ao pacto da branquitude, multiplicamos sentidos contracoloniais para reescrever, coletivamente e em sankofa, o Contrato Quilombista, assentado no princípio da responsabilização sentenciada a golpes de Oxês, nos exatos termos da justeza que estrutura o sistema de justiça afrodiaspórico.

1. Breve histórico da (des)criminalização dos crimes raciais

   Após o racismo gestar o nazismo, legalizando o Holocausto antissemita, com o fim da Segunda Guerra Mundial, o “terror racial” (de ser novamente alvo da desumanidade) impôs à branquitude o enfrentamento ao racismo e ao genocídio através da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Fonte primeva para a tipificação dos crimes raciais, esse contrato branco foi resultado da “indignação narcísica” (Cida, 2022) da branquitude com sua desumanidade, construindo um arcabouço internacional para reconhecer as violências, restituir a sua dignidade e adotar medidas para evitar novos campos de concentração.

    A declaração da humanidade branca como universal foi mais uma condenação ao epistemicídio por decretar que os princípios da igualdade e da liberdade eram direitos da branquitude, eis que naquele mesmo contexto, países africanos lutavam pela independência. No Brasil, a influência do “mandamus antirracista” fez com que, após 451 de omissão estatal dolosa, fosse inaugurado nosso “arcabouço antidiscriminatório” (com mais uma “lei para inglês ver”) depois do racismo sofrido pela dançarina negra estadunidense Katherine Dunham.

     Após o episódio, o deputado Afonso Arinos (UDN) apresentou o Projeto de Lei nº 562/1950, defendendo o ideal de democracia étnica-social, mas o real objetivo era o desarme do Movimento Negro, desmobilizando as manifestações negras para manter a segurança da branquitude. Houve, inclusive, uma tentativa de incluir no Projeto a proibição da formação de “frentes negras” ou de quaisquer associações políticas baseadas na cor, pois “as organizações negras deveriam ser eliminadas porque alimentariam o racismo dos negros contra os brancos” (Westin, 2020).

    Tal emenda não obteve apoio necessário e, sem grandes debates ou qualquer contribuição do povo negro, o projeto foi aprovado por unanimidade. A 48 Lei nº 1390/51 (Lei Afonso Arinos), então, iniciou o “combate ao racismo brasileiro”, limitado na tipificação como contravenções penais as manifestações racistas de cunho segregacionista em espaços públicos ou privados.

   A não responsabilização pelas práticas racistas foi o tom (branco) do ordenamento antirracista brasileiro até 1989, quando o Movimento Negro, após construir coletivamente o documento O Negro e a Constituinte, levou para a Assembleia Nacional Constituinte todas as principais demandas, dentre elas, a criminalização do racismo, a única que foi incluída na Carta Magna de 1988, explicitando o racismo como crime inafiançável e imprescritível.

    No centenário da farsa abolicionista, o povo negro arrancou a confissão do racismo perpetrado pela “democracia racial”, mas, o combate ao racismo se limitou à sua criminalização, reforçando o Direito penal. A constitucionalização do crime de racismo foi regulamentada pela Lei nº 7.716/1989, mais uma conquista negra, porém, nossas “conquistas” quase nunca são, de fato, conquistas, já que a branquitude, detentora do monopólio do poder criminalizante, tomou as medidas para (re)equilibrar a balança de sua (in)justiça.

    Apesar da ordem constitucional para a criminalização primária do racismo, o direito da branquitude em ser racista foi garantido pela (des)criminalização secundária. Com efeito, com toda a estrutura punitiva nas mãos, a branquitude se certificou que a inaplicabilidade da Lei Afonso Arinos atravessasse o texto constitucional e a Lei nº 7.716/1989, demonstrando que o funcionalismo do Direito penal não decorre da tipificação, mas de quem merece (ou não – conforme o olhar racista, que vê apenas o que quer) ser punido.

   A Lei Caó, de modo geral, reproduziu diretrizes anti-aparthedianas, criminalizando em razão do lugar, deixando de fora do seu rol as manifestações racistas verbais, gestuais ou escritas, sem o uso de meios de comunicação ou publicação (que são as mais comuns, sobretudo a ofensa “macaco/a”).4 Nesse contexto, o Deputado Federal Paulo Paim apresentou o Projeto de Lei nº 1.240/95 para proteger a reputação, o decoro, a honra e a dignidade das pessoas  negras, objetivando criminalizar tais práticas e atacar a impunidade branca.

4 Importante explicitar que esse tipo de violência possui a certificação do racismo científico. Na Criminologia, por exemplo, Lombroso, seu fundador, manipulou o crânio de um homem negro para provar sua periculosidade, aquela que projetou o “criminoso nato” e que concebeu a construção do Direito penal do autor (construído racialmente até hoje, e legalizado pela Lei 11.343/06 na (in)diferenciação entre usuário e traficante de drogas), por ele ser descendente dos primatas, daí sua animalidade e condicionamento de instintos primitivos. (Góes, 2016).

 A Lei nº 9.459/1997, originária do projeto supramencionado - cujo texto final foi estabelecido por uma emenda substitutiva apresentada em Plenário da Câmara Federal -, alterou o art. 20 da Lei Caó, incluindo as violências racistas verbalizadas e introduzindo o § 3º no art. 140 do Código Penal. Assim foi concebida a “injúria racial”, esvaziando a conquista do direito negro em não ser discriminado sob o garantismo (branco de não ser punido), justificado pela necessidade de “adequação técnica” para “efetivar” a criminalização primária, duplicando tipos penais idênticos com vista à (in)diferenciação.

    A confusão causada pela hermenêutica sobre os elementos normativos de cada tipo, resultou na impunidade da branquitude por seus crimes raciais através da desqualificação do racismo em injúria racista, extraindo o potencial pedagógico resultante da explicitação do ser-racista, que projeta em si as múltiplas manifestações do racismo, eis que não restrita à “simples” ofensa.

2. A hermenêutica e a diferenciação branca entre o crime de racismo e o crime de injúria racista

    Entre 1997 e 2023, a discussão sobre como responsabilizar a branquitude por seu racismo (verbalizado, escrito ou gestualizado) foi dicotomizada entre o crime de racismo5 e a injúria racista.6 A confusão promovida entre a similitude das tipificações trouxe graves consequências no sentido propagado por uma legislação que se propunha a combater o racismo (sem reconhecer sua existência) e, ao considerar (quando muito) violências racistas como injúria, as ordens antirracistas constitucionais eram negadas.

   Ao ser interpretada e manipulada pela branquitude nesse sentido, nossa legislação antirracista se traduzia, na prática, na garantia do direito branco em ser racista, sobretudo pela sanção penal.7 Portanto, a ideia de prisão, como sinônimo de justiça, já demonstrava que nosso sistema era (e continuará sendo) de injustiça racial, eis que, enquanto a imunidade da branquitude foi assegurada pelo próprio garantismo penal, alcançamos o posto de terceira maior população em situação de cárcere do mundo, graças ao encarceramento da massa negra (inaugurado no pós-abolição).

5 Lei nº 7.716/89, art. 20: “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Pena: reclusão de um a três anos e multa.” 6 Código Penal, art. 140, § 3º: “Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião ou origem: Pena: reclusão de um a três anos e multa.” 7 As penas idênticas para os dois tipos comprovam a desconsideração da dignidade humana negra como bem jurídico tutelável, resultando na impossibilidade de prisão da branquitude em caso de condenação, eis que conduziam à substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos. Ou seja, utilizando seu monopólio punitivo, a branquitude assegurou sua imunidade penal, reforçando seu sistema de controle que ordenou a reformulação das senzalas, transformadas em prisões com a Lei Áurea, garantindo o direito branco em desumanizar corpos negros ao aprisioná-los nos devidos lugares, onde a desumanização é naturalizada, legitimada e legalizada.

    É por essa (in)eficácia que desmascaro as impossibilidades de solucionar os problemas e conflitos originários do racismo antinegro (e seus efeitos genocidas contrários) ao legitimarmos o Direito penal que reconhece as ofensas racistas enquanto manifestações exclusivamente individuais, ignorando as disposições necropolíticas do Contrato Racial e, portanto, do próprio Estado democrático e de direito antinegro. Assim, refaço a pergunta clássica: Para você, qual a diferença entre os crimes de racismo e injúria racista?

    A principal diferença, apontada de modo quase unânime pela hermenêutica (pela branquitude e por quem reproduz seus dogmas), era/é a concepção colonial que segregou o indivíduo negro de sua coletividade, considerando a conduta de xingamento racista como violação à honra subjetiva, individualizada em detrimento da coletividade. Isto é, para a branquitude e suas ordens colonizantes asseguradas pela colonialidade jurídica, a diferença é se a ofensa for dirigida à “raça” (no sentido colonial de coletivo esvaziado), temos crime de racismo, mas se for ao indivíduo, o crime seria/é de injúria racista.

   Em 2023, com destaque para o protagonismo do grupo formado em 2022, por juristas negras e negros, na formulação do projeto para reformar a legislação penal antirracista, a Lei 14.532 alterou substancialmente a Lei nº 7.716/89 (Lei do Crime Racial), assim como o Código Penal, “tipificando” como crime de racismo a injúria racista (art. 2º-A), estabelecendo pena de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa, que pode ser aumentada de metade se o crime for cometido mediante concurso de 2 (duas) ou mais pessoas (Parágrafo único).

   O artigo 20 também foi alterado para criminalizar manifestações racistas cometidas: 1) através dos meios de comunicação social, de publicação em redes sociais, da rede mundial de computadores ou de publicação de qualquer natureza (reclusão de 2 a 5 anos e multa, conforme art. 20, § 2º); 2) no contexto de atividades esportivas, religiosas, artísticas ou culturais destinadas ao público negros ao aprisioná-los nos devidos lugares, onde a desumanização é naturalizada, legitimada e legalizada. 51 (com pena de reclusão, de 2 a 5 anos, mais a proibição de frequência, por 3 anos, a locais destinados a práticas esportivas, artísticas ou culturais destinadas ao público, conforme o caso, nos termos do art. 20, § 2º-A); 3) por quem obstar, impedir ou empregar violência contra quaisquer manifestações ou práticas religiosas (criminalização do racismo religioso, segundo o art. 20, § 2º-B).8

   Não obstante, com a alteração, os crimes previstos na Lei 7.716/89 terão suas penas majoradas de 1/3 até a metade, quando: 1) ocorrerem em contexto ou com intuito de descontração, diversão ou recreação (art. 20-A, tipificando, assim, o racismo recreativo); e os crimes previstos nos arts. 2º-A (injúria racista) e 20 (crime de racismo), quando forem praticados por funcionário público no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las (art. 20-B).

    Chamo a atenção para 3 questões importantes sobre essa “inovação” criminal (muito comemorada). A primeira é que o sentido da reforma foi basicamente o recrudescimento penal, manifestado explicitamente na majoração das penas, portanto, fortalecendo o Direito penal e apostando cegamente que sua estrutura antinegra combaterá o racismo. Isto significa que o sistema de injustiça racial foi (re)fortalecido em sua legitimidade e poder genocida, garantindo a supremacia da branquitude através da colonialidade jurídica, invocada por pessoas negras para nos salvar da própria branquitude (?).

   A segunda é que o crime de racismo, estabelecido no art. 20, “caput”, da Lei 7.716/89 (o mesmo que não era reconhecido pela branquitude e do qual originou o crime de injúria racista) não teve majoração em sua sanção. Assim, em caso de condenação por ofensa à coletividade (povo negro), não haverá prisão e pior, o crime racial de ofender uma única pessoa negra é mais gravoso do que ofender a coletividade. Portanto, o bem jurídico de maior importância é a honra individual, seguindo a lógica hermenêutica da branquitude.9

   A terceira é que o crime de injúria racista religiosa não foi reconhecido como crime de racismo, permanecendo (conforme as ordens coloniais do garantismo) no Código Penal como “injúria qualificada pela religião”, em seu art. 140, § 3º. Rechaça-se, então, as disposições constitucionais para combater o racismo em suas múltiplas manifestações, tutelando o direito ao epistemicídio da branquitude, perpetrado por suas religiões em cruzadas modernizadas.

8 Através da atuação da “Bancada da Bíblia” (presente desde sempre no Congresso Nacional, eis que nunca tivemos, de fato, um Congresso laico, portanto, nem o Estado, apenas uma alteração de doutrinação religiosa – de Católica para Evangélica). 9 Essa situação pode acarretar uma manipulação legal pela branquitude para garantir seu não aprisionamento - já que a prisão (senzala modernizada) não é seu lugar, segundo sua humanidade universalmente reconhecida – levando à desqualificação do crime de injúria racista para o crime de racismo (art. 20, ”caput”) e até à confissão de ser racista, para fugir de uma possível (embora improvável) condenação à prisão.

   Nos termos do Contrato Celestial – a primeira versão do Contrato Racial, isto é, a aliança da humanidade branca com seu Pai, do qual é “imagem e semelhança” - foi assegurada a colonialidade religiosa10 e sua missão em salvar a humanidade através do embranquecimento. Condenando o pecado original - o nascimento do Ser-negro -, a destruição do inimigo (que incorpora o demônio) foi dogmatizada, perpetuando o genocídio negro por meio da “evangelização”.11

   Desse modo, as alterações apontam para um pacto negro com a branquitude, reforçando o pacto narcísico (que inclusive é “criticado”) ao garantir segurança à colonialidade jurídica através da hermenêutica como caminho único para o reconhecimento, distinção dos crimes raciais e punição. Uma postura colonizada que protege e reforça o monopólio branco nos lugares de decisão sobre os referidos crimes. Essa mesma base brancocêntrica e colonial estabelece a separação e segregação do indivíduo de sua coletividade, que representa uma faceta do epistemicídio escamoteado de dogmática penal.

   Assim, tudo o que sabemos sobre crimes raciais (as “corretas” tipificações e interpretações, incluindo como reagir às suas manifestações), é o que a branquitude entende e reproduz para garantir a “eficácia invertida” (Andrade, 2012) do Direito penal, manuseando instrumentos de controle racial. Todas as “novas” respostas legais dessa reforma (retro)alimentam o recrudescimento penal, apostando no aumento da pena de prisão com a (falsa) esperança de que a promessa (branca) da igualdade punitiva seja, finalmente, cumprida e alcance a branquitude, para tratá-la como se negra fosse (?).

   Se esse tratamento igualitário resta inquestionavelmente impossível, dadas as funções básicas e reais do Direito penal, cumpre-nos pensar nas respostas únicas que virão da branquitude. Ao executar sentenças à título de justiça para pessoas negras, para cada (im)provável pessoa branca presa por crimes raciais a balança de Themis exigirá compensações para manter o desequilíbrio racial (garantido por golpes genocidas de sua espada) que é inerente ao sistema de injustiça racial, ordenado monocr(om)aticamente.

10 Sentença de ser “A” religião, universal e a portadora da única verdade, negando o sagrado das demais. 11 Seguimos, portanto, na disputa jurídica para reconhecimento e responsabilização da injúria racista religiosa (proferida diariamente e incitada, sobretudo, por integrantes das igrejas neopentecostais), que demandará um (re)conhecimento primário do racismo antinegro e do epistemicídio engendrado nos discursos bíblicos para sua correta tipificação como crime de racismo, ou seja, ampliação dos sentidos e ruptura com as colonialidades para (re)conhecer as violências genocidas, formais e informais. Em outras palavras, a exunêutica será necessária para garantir a dignidade humana negra, em seu direito fundamental à ancestralidade, protegida, em maior ou menor grau, nas religiões de matriz africana pelo aquilombamento.

   Portanto, a pergunta básica é: quantos corpos negros serão mortos e/ou presos (presos e mortos, ou ainda mortos presos) para garantir a injustiça racial branca que talvez seja obrigada a jogar um corpo branco na prisão, condenandoo à desumanização (?), isto é, a ser tratado, em tese, como uma pessoa negra?

3. A exunêutica como desordem do epistemicídio: pontos afrojurídicos na diferenciação entre racismo e injúria racista

   Seguindo o caminho oríentado em sankofa para resgatar, nas encruzilhadas das escrevivências que me forja(ra)m como intelectual negro, a exunêutica que nos foi roubada, risco forte epistemologias jurídicas insurgentes, afrocentradas e contracoloniais,12 para ressignificar a distinção entre os crimes de racismo e injúria racista, salientando que o genocídio antinegro, perpetrado através do epistemicídio, é pressuposto para a devida compreensão de ambos.

   Despachando a segregação colonial do eu do nós - fundada no individualismo que sustenta a honra subjetiva apartada do ente coletivizado -, ao contrário da doutrinação branca, restabeleço elos matriciais gestados na cabaçaútero para (rea)firmar que insultos, xingamentos, ofensas e outras manifestações da violência racista, mesmo que direcionadas a uma só pessoa, transcendem os limites da ofensa individual para alcançar a coletividade.

    A injúria racista desmascara a desumanização da matriz colonial “raça”, marca da escravização que massificou, através do cordão ancestral, a coisificação não (de)limitada por fatores geopolíticos ou corpóreos. Apesar de fundamental, a identificação negra não se dá apenas pelo reconhecimento diante das semelhanças fenotípicas, mas pelo compartilhamento de toda violência e traumas coloniais (re)vividos, que nos acorrentam à (re)vitimização colonial, fazendo do indivíduo um caminho para afetar a raça, vítima indireta da violência que interconecta dores ancestrais, de modo aterritorial e atemporal.

12 Ao invocar, nessa roda, a sabedoria quilombista de Nego Bispo (2015), que se ancestralizou quando essa oralitura foi (trans)escrita, celebro sua vida, aqui e em Orum, e agradeço seus ensinamentos que continuarão nos movimentando em começos, meios e começos... Preto velho Nego Bispo, presente!

   Vilma Piedade, ao forjar o conceito de dororidade, nos remete às dores e violências que não ignoram nenhum corpo negro, sobretudo das mulheres negras que sofrem com as feridas interseccionais incicatrizáveis pela multiplicidade da objetificação colonial. O padecimento como instrumento de imobilização diante da dor do “outro” (não outrificado, pois não outrificável), promove nosso (re)encontro com “as sombras, o vazio, a ausência, a fala silenciada, a dor causada pelo Racismo, E essa Dor é Preta” (Piedade, 2017, p. 16).

  Aza Njeri nos empurra ao confronto com a Amérikkka, demonstrando como o trânsito diaspórico compulsório se redimensionou no atravessamento ontológico branco, fraturando, de modo quase incontornável, o Ser-negro. As sistemáticas quebras identitárias, dilaceração subjetiva e destrinchamento da pertença, impulsionam colonizações geográficas e mentais que incidem “de forma precisa na subjetividade negra, assimilando-os e fazendo-os abandonarem o seu trilho civilizatório para imitar o trilho europeu” (Njeri, 2020, p. 174).

  As violências racistas acumuladas por séculos resultam num estado de banzo latente que se manifesta a cada nova violência, sobretudo pelo ato de chamar uma pessoa negra de “macaca/o”, que animaliza, concomitantemente, a vítima e a coletividade, igualmente ofendida dada a ligação umbilical pela qual compartilhamos experiências, existências e condenações que contornam nossas vivências. É dizer que as pessoas negras não se (re)constroem, agem ou sentem de modo isolado em razão da necropolítica, constituinte de uma honra coletiva (ligada também à ancestralidade) que deve ser entendida enquanto concepção reparadora do processo histórico de desumanização.

   A injúria racista decorre do racismo, violentando o povo negro (sujeito passivo indireto) através do corpo negro animalizado, inferiorizado e desumanizado (sujeito passivo direto). A ideia de honra individual, portanto, deve ser substituída pela honra coletiva, pois a dignidade negra individual não pode ser desentranhada da dignidade negra coletiva. O processo subjetivo de (re)conhecimento do Ser-negro somente é viabilizado por meio de laços coletivos 55 que ressignificam as violências em luta por emancipação (epistemológica), a dor em esperança que alimenta e exige aquilombamento.

    Assim, a injúria racista não viola apenas a honra subjetiva, pois a existência negra só encontra sentido se inserida e preenchida na coletividade, atingindo a honra coletiva. O “eu sou porque nós somos”, a tradução simples do ubuntu, evidencia, desde tempos imemoriais, que a coletividade é a fonte da negritude brasileira desde sua matriz quilombista, entrelaçando práxis na própria essência do Ser-negro (sobre)vivente em diáspora.

Considerações infinalizáveis

  Sob brados e discursos por justiça estão formas punitivas antinegras, instituídas pelo Contrato Racial enquanto Constituição da branquitude, que determina a imposição de deveres norteados pela colonialidade jurídica. Ao pedirmos (maior) punição e (mais) prisão para crimes raciais, estamos pedindo mais do nosso próprio genocídio, pois é isso que garante a manutenção do sistema de injustiça racial que segue imune às críticas orgânicas.

   Urge desfazermos as amarras coloniais e recusar a prisão como caminho hermenêutico, como sentido colonial único que conduz, invariavelmente, à morte negra. Precisamos nos libertar da branquitude e recusar endosso a seu pacto narcísico, invocando a juridicidade exunêutica que encruza métodos de resolução de conflitos ancestrais e possibilitam a confluência de uma justiça restaurativa com o abolicionismo penal, ambos afro-brasileiros e radicados em preceitos que resgatam a potencialidade de rodas comprometidas com a vida das humanidades desumanizadas.

    É preciso reacender os pontos do Contrato Quilombista, a Constituição negra que estruturou a democracia palmarina pluriversal (Ramose, 2011) e estabeleceu como fundamentais os princípios da responsabilização (com)partilhada, não-outrificação, pertencimento e da interseccionalidade que possibilitam (re)instituir nossas rodas resolutivas sobre a cosmopercepção que o desvio individual é resultante do desvio coletivo, portanto, responsabilidade da coletividade (Góes, 2022).

    É fundado na lei ubuntu e em valores civilizatórios africanos, ordenados a golpes de Oxês, que emerge um sistema de justiça afrodiaspórico, nossa garantia de futuro, que será ancestral ou continuará sentenciado à reprodução 56 do passado bem presente, pintado com nosso sangue pela branquitude e com o qual ela assina nossas sentenças condenatórias à sua (in)justiça.

 Referências bibliográficas ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da Criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan, 2012. CARNEIRO, Sueli. Dispositivo de racialidade: a construção do outro como não ser como fundamento do ser. São Paulo: Zahar, 2023. CIDA, Bento. Pacto da branquitude. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2022. GÓES, Luciano. A “tradução” de Lombroso na obra de Nina Rodrigues: o racismo como base estruturante da Criminologia Brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2016. GÓES, Luciano. Direito penal antirracista. Belo Horizonte/MG: Casa do Direito – Coleção Juristas Negras, 2022. FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008. MBEMBE, Achille. Necropolítica. 2ª edição. São Paulo, N-1 Edições, 2018. MILLS, Charles W. The Racial Contract. Nova York: Cornell University, 1997. NJERI, Aza. Reflexões artístico-filosóficas sobre a humanidade negra. Ítaca, Rio de Janeiro, n. 36. Rio de Janeiro, 2020. p. 164-226. PIEDADE, Vilma. Dororidade. São Paulo: Nós, 2017. RAMOSE, Mogobe. Sobre a Legitimidade e o Estudo da Filosofia Africana. Ensaios Filosóficos, v. 4, out. 2011. SANTOS, Antônio Bispo dos. Colonização, Quilombos: modos e significações. Brasília: INCTI/UnB, 2015. WESTIN, Ricardo. Brasil criou 1ª lei antirracismo após hotel em SP negar hospedagem a dançarina negra americana. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-07-21/brasil-criou-1-lei-antirracismo-aposhotel-em-sp-negar-hospedagem-a-dancarina-negra-americana.html. Acesso em: 26 de dez. 2023.

Palavras Chaves

Racismo, Direito Penal, Povo Negro