REFLEXÕES SOBRE AS TESES ACERCA A DISCRIMINAÇÃO FEMININA NO ILUMINISMO JURÍDICO E SEUS REFLEXOS NOS PROCESSOS DE CODIFICAÇÃO DO SÉCULO XIX

Artigo

REFLEXÕES SOBRE AS TESES ACERCA A DISCRIMINAÇÃO FEMININA NO ILUMINISMO JURÍDICO E SEUS REFLEXOS NOS PROCESSOS DE CODIFICAÇÃO DO SÉCULO XIX

 

Ana Lucia Sabadell[1]

NOTA INTRODUTÓRIA

Nas comemorações dos 130 anos do curso de Direito oferecemos ao público uma reflexão acerca dos mecanismos de controle e de exclusão limitada aos quais as mulheres foram submetidas entre 1750-1800. Nos referimos às teses elaboradas por teóricos do Iluminismo jurídico e que, posteriormente, serão defendidas pelo positivismo criminológico, na segunda metade do século XIX[2].

Entendemos que a mulher sofre, com a passagem do Iluminismo para o liberalismo, o que denominamos de Inclusão Limitada. Para que o controle sobre as mulheres fosse efetivo era necessário que o legislador criasse normas jurídicas que autorizassem o exercício do domínio masculino. Para tanto, foram produzidas normas que delimitavam e restringiam direitos das mulheres e normas que excluíam propositadamente a mulher da condição de sujeito de direitos, concedendo direitos exclusivamente aos homens.

 Em relação ao primeiro tipo de normas, recordamos aquelas que classificavam as mulheres como parcialmente incapazes e requeriam a representação do marido, pai ou tutor para o exercício de atos da vida civil. Em relação a normas que excluem a mulher sem sequer mencioná-la, podemos citar o voto feminino. Trata-se aqui de um controle exercido de forma negativa. Apesar de serem “silêncios legislativos”, possuem uma grande força ideológica. Recordamos que em Constituições do século XIX (ou em normas sobre o que hoje denominamos de direito eleitoral) expressamente afirmavam que eram considerados  eleitores exclusivamente “os homens”, sem nenhuma referência às mulheres[3]. Uma observação. Quando a norma eleitoral não previa expressamente o voto exclusivamente masculino, lançava-se mão a uma interpretação restritiva de direitos.

É o caso da Constituição do Império do Brasil , de 1824, que  no capítulo IV- das eleições (arts. 90-97), não nominava a exclusão do voto feminino. O art. 91, inciso I, especificava, por exemplo, que teriam votos nas eleições primárias todos os “cidadãos brasileiros”, que se encontravam no gozo de seus direitos políticos. Esta determinação foi interpretada de maneira restritiva, supondo que o constituinte só se referiria aos homens. E de fato, o voto feminino só foi admitido  no Brasil em 1932.

Neste estudo situaremos, a modo exemplificativo, o pensamento de dois autores, para demonstrar  como a discriminação da mulher no discurso iluminista é incorporada pelo discurso jurídico de inícios do século XIX. Trata-se do filósofo Arthur Schopenhauer e do civilista português José Homen de Corrêa Telles.

  1. ILUMINISMO E REFORMA JURÍDICA – REFLEXÃO SOBRE O JUSNATURALISMO

O estudo sobre a relação entre discurso jurídico e concepções naturalistas acerca da inferioridade feminina toma particular importância a partir do iluminismo e influenciará os estudos elaborados pela escola positivista antropológica na segunda metade do século XIX, quando esta se ocupa da criminalidade feminina. Trata-se de concepções que objetivaram legitimar, ainda que em períodos distintos, a prática de ações patriarcais contra as mulheres que condicionaram sua evolução social.

O ponto inicial deste texto se situa no Iluminismo, que apresenta uma proposta revolucionária de organização social. Está na base da Revolução Francesa de 1789 (liberdade, igualdade e fraternidade; direitos naturais do indivíduo). Este movimento atinge as ciências em geral, tendo muitas repercussões no plano jurídico.

O slogan Liberdade, Fraternidade e Igualdade, que fundamenta a revolução francesa[4], é juridificado por meio da criação de normas e princípios, referidos em textos constitucionais do período, de forma genérica.

O movimento iluminista criticava e questionava o Antigo Regime como um todo. Dentre as principais críticas, destacam-se algumas de cunho jurídico: a desigualdade diante da lei mantida pelo regime estamental; a existência da servidão; a limitação do direito de propriedade; a violência do sistema de justiça penal laico ou religioso[5]. Trata-se de um direito natural não mais fundado em uma visão estática da sociedade, mas na ideia de que a razão humana, da qual todos são dotados, é capaz de impor outra forma de aprendizado ao “homem”.

A esperança do iluminismo era que a lógica e a ciência formassem o fundamento desse novo aprendizado seguro para toda a Europa civilizada, combatendo todas as formas do pensamento dogmático. A proposta é de renovação radical, guiada pela razão humana, que deve ser utilizada livremente e publicamente para uma revisão crítica de todos os princípios da vida social. O objetivo era alcançar a felicidade do ser humano, que ganharia a sua autonomia intelectual, tornando-se finalmente “maior de idade”.[6]

Ocorre que o direito natural medieval fundamentava-se em uma arquitetura estática do mundo, onde era decisivo o conceito da hierarquia e autoridade. Na concepção iluminista, ao contrário, o direito deve ser fundamentado no princípio da liberdade do indivíduo e pode ser justificado somente se permite a realização do bem comum e do bem-estar das pessoas. A estática da hierarquia natural é então substituída pelo princípio da racionalidade e da utilidade do direito para as pessoas[7].

Consequentemente, deve-se atentar para a redação, descrevendo as leis com clareza, precisão e ordem lógica. Não podem existir leis obscuras, é necessário que sejam estabelecidos princípios gerais que permitam “trabalhar” com o direito sob uma outra perspectiva. Por isso mesmo, um dos objetivos dos juristas ilustrados é a construção de um sistema jurídico que possa ser aplicado a toda sociedade. Há uma evidente necessidade de desenvolvimento de formas mais precisas de controle social. Trata-se da tentativa de aplicação massiva do direito, com o intuito de condicionar as grandes massas às regras do sistema capitalista que se encontrava em franco desenvolvimento[8].

Portanto, abandona-se o sistema casuístico -que marcou o desenvolvimento do direito real nas idades média e moderna- e também o pluralismo jurídico e político que ainda imperava na Europa. Foi neste contexto que surgiu a ideia moderna de Constituição política, que se desenvolverá ao longo do século XIX, conhecido pelos jushistoriadores como o período da codificação. No decorrer deste século foram elaborados em muitos Estados da Europa e da América os primeiros códigos (civil, penal, comercial etc.), que objetivavam estabelecer normas jurídicas simples, coerentes e ordenadas de forma sistemática.

Apesar das rupturas introduzidas com o discurso iluminista, este (a grosso modo) recorre a uma construção de corte naturalista das relações sociais. A razão em si mesma é entendida como um dado natural.

Ocorre que o tratamento jurídico concedido aos negros e às mulheres constitui um indício de profundas contradições que marcaram não só o discurso iluminista bem como o processo de codificação do século XIX.

 

  1. A MULHER NO RACIONALISMO ILUSTRADO

O racionalismo ilustrado, fundamentado no uso da razão, também não consegue  romper com a lógica patriarcal, movendo-se em uma ambiguidade fundamental. Não se trata obviamente de um discurso unitário, que promove a discriminação da mulher.  Sob a égide do movimento iluminista desenvolve-se uma polêmica sobre a questão feminina, identificando-se autores que reivindicam direitos para as mulheres, como Mary Wollstonecraft que, com sua pluma, questiona o discurso patriarcalista de Rousseau[9].

Porém, a nova “cultura” patriarcal consegue impor-se por meio da defendida imagem da mulher-mãe rousseauniana. Surge um novo paradigma patriarcal, onde se assigna à mulher uma posição subalterna, recluindo-a ao espaço privado.[10]

Se na idade medieval o discurso patriarcalista fundamentava-se em uma concepção teológica das relações entre homens e mulheres, onde estas se encontram subordinada aos homens devido a sua “natural” inferioridade -definida no plano “divino”-, e sua natural destinação ao nobre ofício da maternidade; a discriminação feminina no iluminismo será fundamentada, agora, em um discurso sobre a incapacidade natural das mulheres, de corte fisiológico,  que a impede de ter as mesmas “virtudes” e, por conseguinte, os mesmos direitos que os varões.  Por isso, sua condição natural é a de dependente e submissa, devendo mover-se, sobretudo, na esfera privada[11].

Nessa esfera ela pode aprender o ofício da maternidade e do cuidado para com a família. Não se nega especificamente “educação” à mulher, se estimula, na verdade, o aprendizado dirigido ao exercício das funções de cuidado e funcionamento do lar. Em um livro intitulado Emílio, ou da Educação Rousseau apresenta suas ideias sobre o papel que cumpre a mulher na sociedade e como ela deve ser educada. A educação deve ser diferenciada em função do gênero. Ela deve ser educada para as tarefas do lar, lembrando que o direito moderno do século XIX, um direito masculino, afirmará que a “chefia da sociedade conjugal[12] deve pertencer ao homem, cuja decisão “prevalece em o governo doméstico”![13].

Ou seja, ademais da ideologia do “confinamento feminino” que contribuía para a configuração da mulher ideal vinculada ao lar (mãe, filha, esposa de Rousseau), esta enfrentava uma situação de “exclusão” de exercício de direitos fundamentais nos próprios textos constitucionais! Por tal motivo, afirmo que o controle por meio do direito se exerce por momentos de silêncios do constituinte e do legislador da época, quando não expressa os direitos da mulher, mas também  por momentos em que o controle requer uma atuação positiva de quem legisla, no sentido de prescrever um determinado comportamento à mulher. Daí a afirmação de que se desenvolve uma inclusão limitada da mulher, que não permite o seu reconhecimento como sujeito de direitos.

Porém, o confinamento ao espaço privado, ao lar, funcionava, mais que tudo, como um discurso ideológico neste período histórico. As mulheres pobres (zona rural e urbana), as mulheres escravas nas Américas, sempre “trabalhavam fora do lar”, apesar de que a mulher ideal era aquela recluída ao ambiente familiar.

Desenvolveu-se, a partir de então, sob a égide desse novo paradigma, a ideia de que a mulher não podia participar da esfera pública. Não podia ter propriedades sem estar assessorada por um tutor, não podia ter uma profissão, cursar a universidade e para muitos atos da vida civil precisaria do aval de um marido, pai, irmão ou tutor legal.

Inicialmente, a ideia que se debatia seria de uma total exclusão, mas prevaleceu uma parcial inclusão, incluindo a adoção de medidas de “silêncio legislativo”. Interessante destacar como o direito se relaciona com a invisibilidade feminina. A mulher que não goza de autonomia para negociar, estudar, trabalhar, é uma mulher oprimida. Ceifada pelo direito ela é apenas um “meio sujeito”. Trata-se de uma retaliação, na qual se eliminam aqueles direitos que são essenciais para que a mulher possa ter representação, voz, na esfera pública. Privada de poder na esfera pública, por um lado, e “imersa” na  esfera privada, por outro, a existência da  mulher estava contida dentro de um marco de valores que a induziam a crer que essas restrições eram “naturais” e necessárias.

Argumentos de corte naturalista, que objetivavam a exclusão feminina do espaço público foram desenvolvidos inicialmente pelos antigos gregos. Posteriormente, já na idade média, esses argumentos foram retomados mas a estes foram agregados os valores do cristianismo. Por tal motivo, São Tomás de Aquino, Santo Agostinho, entre outros teólogos, mencionam os textos de autores gregos para fundamentar a exclusão

 

  2.1. Reflexos da divisão entre esfera pública e privada no direito moderno

As feministas historiadoras argumentam que a divisão entre espaço público e privado foi construída, a partir do discurso iluminista, com base em uma distinção hierárquica dos gêneros[14].

O discurso iluminista de Rousseau limita o espaço de atuação da mulher à esfera privada, onde se exercem as funções de cuidado da família. Basta recordar que o movimento feminino da segunda metade do século XIX na Europa reivindicava a igualdade jurídica, econômica e política entre os gêneros, exigindo que a mulher “saísse de casa” e se liberasse da tutela do homem (pai, irmão, marido). Naquele momento, o direito exercia uma espécie de tutela que colocava as mulheres em posição subalterna. As mulheres eram excluídas da vida política e do exercício de uma série de profissões (sobretudo as de caráter liberal), possuíam acesso muito limitado à instrução, sofriam restrições ao direito de administrar o seu próprio patrimônio e, no âmbito do casamento, eram tidas como uma espécie de acessório do homem. Tudo isso confinava a mulher ao espaço privado.

Muitas dessas restrições constavam, como mencionamos anteriormente, em textos constitucionais e em normas infraconstitucionais. Passamos agora a analisar o exemplo de um importante civilista português, muito influente entre os juristas brasileiros do século XIX.

Trata-se de José Homem Corrêa Telles, destacado jurista e deputado das Cortes de 1821 e 1826  de Portugal, estudioso do direito civil, sustentava a inclusão limitada das mulheres[15]. Em seu tratado dos direitos e das obrigações civis, entende que a mulher casada, salvo raras exceções, “não pode fazer contracto algum sem auctoridade do marido[16]. A explicação é simples: “O marido é o chefe da sociedade conjugal; a sua decisão prevalece em o governo doméstico”[17]. Ou seja, no âmbito das relações domésticas prevalece o poder patriarcal. Uma rápida observação: o jurista não se preocupa em fundamentar a “negativa de exercício de um direito” justamente devido a “naturalização” dessa restrição imposta pelo Racionalismo ilustrado.

Não vamos encontrar em Corrêa Telles nenhuma justificativa porque é simplesmente desnecessário! Trata-se de uma lógica similar aos “silêncios legislativos” anteriormente mencionado. Não é necessário justificar o que é autoevidente e que não precisa de justificação! Então , não há motivo para dissertar, esclarecendo os motivos da retaliação de direitos da mulher.E este não será o único civilista do século XIX que disserta desta forma.

A divisão entre as esferas pública e privada cria dois problemas. Por um lado está o problema da exclusão feminina (sobretudo do exercício da política) e por outro, o grave problema da não intervenção do Estado na esfera privada, local não só de reclusão da mulher, mas de manifestação do poder de dominação masculino.  A ausência de juridificação do espaço privado reforçou, assim, a ideia da submissão feminina.

Somente a final do século XIX e início do século XX são feitas reformas permitindo uma parcial inclusão da mulher na esfera pública[18], sem, contudo, contestar o poder masculino e a predominância dos homens tanto no espaço público como no espaço privado.

  1. SCHOPENHAUER: O FILÓSOFO QUE NÃO AMAVA AS MULHERES

O século XIX assistira o desenvolvimento de várias teorias oriundas das ciências naturais que serviram para justificar o domínio masculino.

Como sabemos, uma das grandes contradições do pensamento jurídico-iluminista refere-se à discriminação que sofre a mulher. Igualdade e liberdade não constituem “direito de todos”,

Neste contexto, a mulher é objeto muito incidental de tutela posto que é controlada pelo direito ao mesmo tempo que é “excluída”, em determinadas áreas, de seu exercício. Sua suposta “inferioridade” marca o exercício (e as formas lícitas de exercício) de direitos. Por isto, as primeiras constituições explicitamente excluem a mulher da concepção de espaço público impedindo-a de votar, de estudar, administrar, exercer uma profissão, exercer cargos políticos etc.

A maioria dos países europeus, que atravessaram o período iluminista, trata a figura feminina desta forma. Ser inferior deve ser controlado, ser passível de vigilância e ao mesmo ser efetivamente limitado em sua possibilidade de atuação. Obviamente que a história indica que tais modelos conheceram várias exceções. Muitas mulheres viúvas, no Brasil-colonial, por exemplo, cuidavam de seus negócios. Mas o discurso jurídico aqui, curiosamente, repete-se, de forma similar, em todos os reinos europeus do período e também no Brasil Imperial.

Arthur Schopenhauer nasceu na Prússia em 1788 e faleceu em Frankfurt (Alemanha) em 1860. Era filho de Johanna Trosiener Schopenhauer[19]. Sua mãe escrevia textos literários e tinha expectativas  de se projetar como autora, tendo organizado suas próprias obras completas em 24 tomos. Por frequentar círculos literários acabou entrando em contato com as idéias libertárias sobre o papel da mulher na sociedade. Depois do suicidio de seu esposo (doente) transfere-se para Weimar e conhece um jovem que se torna seu amante.  Schopenhauer não aceitou a situação. A historiografia indica que os problemas que surgiram entre o filósofo, que não aceitava uma Mãe independente e libertária, marcou sua relação com as mulheres.

            Em seu tratado Arte de lidar  com as mulheres (“Die Kunst, Mit Frauen Umzugehen”), datado de 1851, o filósofo trata a figura feminina de forma discriminatória. Porém, Schopenhauer se preocupa em fundamentar e justificar sua posição. Nisto ele se diferencia da maioria dos juristas do século XIX , como o anteriormente citado Corrêa Telles.

 Ele apresenta as mulheres como seres infantis, inferiores, desprovidas de amadurecimento. Por tal motivo, concluirá em suas obras que seus direitos devem ser limitados, submetendo-as ao domínio masculino.

Para amas e educadoras em nossa primeira infância, as mulheres se mostram particularmente adequadas, já que são infantis, tolas e têm visão curta. Em poucas palavras, são crianças grandes: uma espécie de estágio intermediário entre a criança e  o homem, que é, este sim, uma pessoa de verdade”[20]

Essa afirmação inicial é posteriormente objeto de análise mais detalhada quando o autor analisa as causas da inferioridade feminina:

 Quanto mais nobre e perfeita é uma coisa, tanto mais e mais lentamente ela atinge a maturidade. O homem dificilmente alcança a maturidade de sua razão e de suas capacidades intelectuais antes dos vinte e oito anos de idade; a mulher, aos dezoito. Trata-se também de uma lógica: uma lógica bem medida: por isso, as mulheres permanecem crianças ao longo de toda a sua vida, sempre veem apenas o que está próximo, prendem-se ao presente, tomam a aparência das coisas pelas coisas em si e antepõem ninharias aos assuntos mais importantes”[21].

Este discurso de corte  naturalista, está de acordo com a visão da mulher difundida nos textos de Rousseau[22]. Se as condições naturais da mulher a impedem de ter um amadurecimento adequado, justifica-se então, seu confinamento no âmbito doméstico e uma retaliação de seus direitos.

De fato, ao abordar em um capítulo específico os direitos das mulheres o autor inicia criticando aqueles ordenamentos que concede às mulheres igualdade de direitos: “Quando as leis concederam às mulheres os mesmos direitos dos homens, elas deveriam ter lhes dado também um intelecto masculino[23]

Por tal motivo, ele proporá algumas restrições de direitos. No que tange ao direito de propriedade, propõe uma restrição no direito de herança, considerando que a “insensatez feminina” levará a destruição ou ao desperdício dos bens herdados.  As herdeiras deveriam, então, receber apenas uma pensão vitalícia.[24]

E no que tange à administração dos bens, o autor reitera: “quem adquire patrimônio são os homens, não as mulheres. Por isso elas não tem direito à posse incondicional desse patrimonio, assim como não estão capacitadas para a administração dele”[25]. Por tal motivo, concluem que as mulheres sempre necessitam de um tutor[26].

CONCLUSÃO

 

Concluímos recordando que as mulheres não foram incluídas nas  promessas iluministas  revolucionárias de constituição de uma nova sociedade, fundamentada no bom uso da razão pelos seres humanos. Os direitos que decorrem do discurso iluminista e que se materializam em normas jurídicas entre finais do século XVIII e inícios do século XIX  conformam uma nova forma de domínio masculino das mulheres nos estados laicos.

O caso de autores iluministas como Schopenhauer, Rousseau e do jurista Corrêa Telles permite-nos, ainda de forma limitada, lançar uma luz sobre o processo de construção da discriminação feminina no discurso iluminista e liberal. Como vimos aqui, os argumentos jusnaturalísticos que fundamentam a inferioridade e necessária submissão feminina mudam com o advento do iluminismo, mas a cultura patriarcal não desaparece, apenas se transforma, adaptando-se aos postulados de uma sociedade capitalista. Esses argumentos serão retomados, aprofundados e em certa forma expandidos, especialmente a partir da segunda metade do século XIX, com o advento da escola criminológica positivista.  Esta prevalência se faz por meio de uma variedade de mecanismos que asseguram a continuidade da dominação masculina.

Importante é observar a importante  ruptura que faz o iluminismo e o liberalismo com o discurso sexista da idade média. Os  argumentos religiosos que demarcavam a discriminação da mulher nas idades média e moderna são totalmente abandonados e paulatinamente substituídos pela força única dos argumentos “pseudocientíficos”. Por isso, a “inferioridade natural” da mulher no século XIX  legitima a sua inclusão limitada de direitos.

BIBLIOGRAFIA

 

Bergmann, U. Johanna Schopenhauer. Lebe und sei so glücklich als du kannst. Romanbiographie. Leipzig, editora Reclam, 2002.

Burke, E. Réflexions sur la révolution de France. Paris, Hachete, 1989.

Cartwright, D. Schopenhauer: A Biography, Londres, Cambridge University Press, 2010.

Cassirer, E. Die Philosophie der Aufklärung. Tünbingen, 1932.

Cattaneo, M. A. Carlo Goldoni e Alessandro Manzoni. Illuminismo e diritto penale.Milão, Giuffré, 1991.

Corrêa Telles, J.H. Digesto Portuguez ou Tractado dos direitos e obrigações civis; accommodada às Leis e Costumes da Nação Portugueza paraservir de subsídio ao novo código civil.Coimbra, Livraria de J. Augusto Oral, 1860, tomo I e II.

Diethe, C. Towards Emancipation.German Women Writersof thre Nineteenth Century, New York, Bergan Books, 1998.

 

Dimoulis, D. Manual de Introdução ao estudo do Direito. São Paulo, RT, 3ª. ed. 2007.

_________. Da “política criminal” à política da igualiberdade. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 29, 2000, pp. 209-231.

Dubois, E. D. Feminism and Suffrage: the emergence of na Independent Women’s Movement in America 1848-1869, Ithaca, Cornell University press, 1980.

___________. Woman Suffrage, Women’s Rights, New York, New York University press, 1998.

Ferrajoli, L. Diritto e Ragione.Milão, Laterza, 1990.

Kant, I. Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung? In: Berlinische Monatsschrift, 1784, H. 12, S. 481–494. Disponível em: http://www.deutschestextarchiv.de/book/view/kant_aufklaerung_1784?p=17.

Landes, J. (org.). Feminism, the public and private. Oxford, Oxford University Press, 1998.

Luhmann, N. Das Recht der Gesellschaft. Frankfurt/M., Suhrkamp, 1997.

Michelet,J. Die Frauen der Revolution. Baden-Baden, Suhrkamp, 1984.

Okin, S.M. Women in Western Political Thought. Princeton, Princenton University Press, 7a.edição, 1992.

Puleo, A. H. (org.) La ilustración olvidada: La polémica de los sexos en el siglo XVIII.

 

Condorcet, De gouges, De Lambert y otros. Madrid: Anthropos, 1993.

Rousseau, J-J. Emílio, o de la Educación. Alianza editorial, Madrid, 1997.

Sabadell, A. L. Manual de Sociologia Jurídica. Uma introdução a uma leitura externa do direito. São Paulo, RT, 7ª. ed. ,2017.

____________. Tormenta juris permissione. Folter und Strafverfahren auf der iberischen Halbinsel dargestellt am Beispiel Kastiliens und Kataloniens (16.-18. Jahrhundert). Berlin, Duncker & Humblot, 2001.

__________. A administração do direito  das mulheres no marco do direito interno e internacional. Dissertação apresentada para obter o grau de mestre em Criminologia pelo programa Erasmus da Comunidade Européia. Faculdade de Direito. Universidade do Saarland, Saarbruecken, 1998.

Seelmann, K. Gaetano Filangieri e la proporcionalità fra reato e pena. Imputazione e prevenzione nella filosofía penale dell”Illuminismo. In: Materiali per la Storia della Cultura Giuridica, ano XXXI, núm. 1 (junho 2001), pp. 3-26.

Schopenhauer, A. A arte de lidar com as mulheres. São Paulo, Martins Fontes, 2011.

Wollstonecraft, M.  A Vindication of  the Rights of Woman. London: Penguin Books, 2004.

Notas:

[1] Professora titular de teoria do direito e vice-diretora da faculdade de direito da UFRJ.

[2] O ponto de convergência entre iluminismo e escola positivista criminológica da segunda metade do século XIX em relação à discriminação feminina  é o controle da mulher por meio de um discurso fundamentado nas ciências naturais. A biologia passa a ser um instrumento de controle das mulheres, sendo seus argumentos considerados inquestionáveis. Isto legitima a produção de normas jurídicas discriminatórias ao longo de  todo o século XIX e primeiras décadas do século XX.

[3] Para uma  aproximação com o tema, cf. Dubois, 1980 e 1998.

[4] Sobre a revolução francesa, ver, entre outros, Burke, 1989.

[5] Sobre Iluminismo e sua vertente jurídica, com atenção a questão penal, ver, entre outros, Cassirer, 1932;  Ferrajoli,1990,pp. XVI, 9 e ss., 99-100;Cattaneo, 1991; Kurt, 2001; Alves, 2014 (especialmente sobre a discussão acerca da punição).

[6] O termo é empregado aqui no sentido kantiano, Ver Kant, 1874. A evolução histórica demonstrou que os ideais iluministas de liberdade, igualdade e fraternidade foram temperados pelos fortes interesses capitalistas, que bloquearam os movimentos de crítica e de emancipação intelectual e política.

[7] Luhmann, 1997, p. 27; Dimoulis, 2000, pp. 217-220

[8] Sabadell, 2001.

[9] Wollstonecraft, 2004 (a primeira edição da obra que aqui se cita datado ano de 1792). Para uma  ulterior leitura do papel das mulheres no iluminismo, Cfr., também, Michelet, 1984.

[10] Sobre essa questão, Cfr., entre outras, Okin, 1992, p. 99 e ss; Puleo, 1993.

[11] Trata-se de um discurso ideológico que serve para as mulheres que se encontravam em melhores condições de vida. Tanto na Europa como nas Américas, as mulheres pobres sempre trabalharam. Pensando na questão racial, o feminismo negro questiona em parte essa formulação teórica, recordando que durante e após a abolição da escravatura, as mulheres negras sempre trabalharam para sobreviver.

[12] Corrêa Telles, 1860, T.I, p.65, núm.380.

[13] Ibidem.

[14] Landes, 1998. Como mencionamos anteriormente essa explicação deve ser reconsiderada em relação à situação das mulheres pobres, negras e indígenas.

[15] Citamos aqui as passagens do texto de Corrêa Telles e Schopenhauer porque são relevantes para a análise que se aqui se desenvolve. As obras de Corrêa telles são de fácil acesso no Brasil, justamente dada a sua grande importância no debate sobre o direito civil no país ao longo do século XIX.

[16] Corrêa Telles, 1860, tomo I, p.41, núm. 232.

[17]Corrêa Telles, tomo II, p.65, núm. 380. Curiosamente, o autor apresenta como argumento para a sua afirmação o texto do Genesis e o art. 184 do código prussiano.

[18]Sabadell, 1998.

[19] Há uma biografia, em forma de romance, onde são apresentados  dados significativos sobre a vida de Johanna. Ver, Bergmann, 2002. Para consultar ulteriores estudos sobre sua produção literária, Ver Diethe, 1998 e Cartwright 2010.

[20] Schopenhauer, 2011, p.6.

[21] Schopenhauer, 2011, p.8.

[22] Rousseau, 1997.

[23] Schopenhauer, 2011, p.63.

[24]Schopenhauer, 2011, p.64.

[25]Schopenhauer,2011, p.64.

[26] Ibidem.