Um Ensaio Acerca Do Instituto Da Quarteirização

Resumo

O presente estudo se volta para a investigação jurídica, histórica e sociológica da quarteirização, tendo como pano de fundo o atual cenário das reformas trabalhistas. Para tanto, realiza-se um estudo acerca das origens e do desenvolvimento do instituto, estabelece-se um panorama geral de sua evolução normativa, traça-se uma análise jurisprudencial acerca de sua incidência e estuda-se seus novos contornos legais delineados pela Lei nº 13.429/2017.

Abstract

The object of the presente study seeks to investigate the sociological, historical and legal aspects of “fourth party services”, mainly in what concerns the new labor reform that is taking place in Brazil. In this perspective, this article aims to study the origin and development of the institute, stablishing a general view of its normative development. Therefore, it’s necessary the analisys of the most important Court decisions and the new legal provisions in the Law 13.429/2017.

Artigo

Um Ensaio Acerca Do Instituto Da Quarteirização

 Lia Rodrigues Fontoura[1]

Vitor Rodrigues Fontoura[2]

 SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Terceirização e Quarteirização, 2.1) Conceituação dos institutos, 2.2) Contexto histórico brasileiro, 2.3) Evolução normativa no Brasil; 3) Análise jurisprudencial do instituto da quarteirização; 4) A normatização da quarteirização na Lei nº 13.429/2017; 5) Considerações finais; 6) Referências bibliográficas.

RESUMO: O presente estudo se volta para a investigação jurídica, histórica e sociológica da quarteirização, tendo como pano de fundo o atual cenário das reformas trabalhistas. Para tanto, realiza-se um estudo acerca das origens e do desenvolvimento do instituto, estabelece-se um panorama geral de sua evolução normativa, traça-se uma análise jurisprudencial acerca de sua incidência e estuda-se seus novos contornos legais delineados pela Lei nº 13.429/2017.

PALAVRAS-CHAVE: Quarteirização; Terceirização; Reforma Trabalhista; Lei nº 13.429/2017; Lei nº 6019/74.

ABSTRACT: The object of the presente study seeks to investigate the sociological, historical and legal aspects of “fourth party services”, mainly in what concerns the new labor reform that is taking place in Brazil. In this perspective, this article aims to study the origin and development of the institute, stablishing a general view of its normative development. Therefore, it’s necessary the analisys of the most important Court decisions and the new legal provisions in the Law 13.429/2017.

KEYWORDS: Fourth party services, outsourcing, labor reform, Law 13.429/2017; Law 6019/74.


[1] Bacharelanda em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Bolsista de iniciação científica do PIBIC.

[1] Bacharelando em Direito pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).

 1) INTRODUÇÃO

 Este estudo se baseia, primordialmente, na investigação jurídica, histórica e sociológica do instituto da quarteirização, analisado no contexto das reformas trabalhistas que ocorrem nos dias de hoje.  Entender a dinâmica das relações de trabalho é entender os fundamentos mais intrínsecos de uma sociedade capitalista – o que não é missão simples, nem polpa certos esforços. Por essa razão, a compreensão de fenômenos como a terceirização e a quarteirização não pode – e nem deve –, ater-se aos aspectos meramente legais, distantes dos contextos sociais nos quais tais institutos foram pensados. Ao contrário, o bom entendimento acerca da temática repousa necessariamente em uma análise complexa e abrangente, que mescle os aspectos jurídicos aos pormenores histórico-sociais.

Em virtude dessa necessidade veemente de compreender as transformações sociais à luz de uma análise racional, o presente estudo se volta para as mudanças ocorridas na Lei 6019 de 1974, que passou a dispor sobre as relações de trabalho na empresa de prestação de serviços a terceiros. Tal lei, que outrora versava apenas sobre o trabalho temporário, foi alterada a ponto de trazer para o bojo de suas disposições a regulação do instituto da terceirização e a permissão legal para a chamada quarteirização. Ignorar essas mudanças jurídicas seria o mesmo que permitir que o destino dos trabalhadores corresse à revelia, sem a atuação dos mesmos na construção de sua própria história. A fim de impedir tamanho dissenso, impõe-se a necessidade de reflexões acerca de cada alteração ocorrida, posto que o debate é a essência da verdadeira democracia. Sob essa impecável lógica, as linhas que seguem são marcadas por incessantes ponderações a respeito de uma mudança específica – a regulação legal do instituto da quarteirização.

O contrato de prestação de serviço a terceiros e as relações de trabalho dele decorrentes há muito tempo careciam de uma regulamentação legal, posto que nada melhor do que uma lei para dar segurança jurídica às relações sociais. Tudo o que havia até então a respeito do tema era a Súmula nº 331 do Tribunal Superior do Trabalho, incapaz de proporcionar a segurança jurídica que um tema dessa complexidade requer. Por esse motivo, várias foram as tentativas de se aprovar leis acerca da temática em voga, todas ineficazes, a exemplo do Projeto de Lei 4330/2004. Contudo, nesse ano de 2017 que se inicia, o Congresso Nacional aprovou o Projeto de Lei 4032-E de 1998, transformado na Lei Ordinária nº 13.429. Com isso, os institutos da terceirização e da quarteirização passaram a ter uma regulamentação legal. No entanto, essa regulamentação se deu de forma pouco inteligente, prejudicando mais do que ajudando o equilíbrio das relações sociais. Por esse motivo, imperioso corrigir a afirmação feita anteriormente: nada melhor do que uma boa lei para dar segurança jurídica à sociedade. Uma lei ruim, como a agora estudada, é a essência da ruína do direito.

Diante das acusações feitas, forçoso agora fundamentar as críticas. A Lei nº 13.429/2017, ao invés de regulamentar a terceirização em uma lei específica capaz de lidar com a complexidade do assunto, simplesmente acrescentou alguns artigos à Lei 6019 de 1974, como se lidasse com algo de menor relevância. E mais: a quarteirização, que nunca teve respaldo legal no Brasil, passou a ser admitida pelo art. 4º-A, § 1º, que, longe de se aprofundar no tema, apenas mencionou a possibilidade da empresa prestadora de serviços poder subcontratar outras empresas para a realização dos serviços acordados. Isso sem falar que a aprovação do projeto ocorreu sem os debates necessários ao bom andamento da democracia, quase que à revelia do povo. Por essas razões, passa-se agora a uma análise de cunho objetivo a respeito da quarteirização, na tentativa de se estabelecer contornos acerca da temática e de se lançar alguma luz sobre o universo de controvérsias incidentes sobre o assunto.

  1. TERCEIRIZAÇÃO E QUARTEIRIZAÇÃO

 Conforme outrora apontado, a compreensão do direito não se limita à análise de fundamentos de ordem jurídica e legal, devendo levar em conta aspectos mais abrangentes, tais como os de cunho histórico e sociológico. Não é recomendável que institutos como a terceirização e a quarteirização sejam estudados apartados dos contextos sociais em que foram pensados e desenvolvidos. Cabe ao jurista, portanto, se transvestir de historiador, buscando aferir no transcorrer das épocas o sentido de dado fenômeno.

Nessa necessária digressão histórica, a segunda metade do séc. XX surge como período fundamental, como ponto de partida na construção de um instituto tal qual hoje é conhecido: a terceirização.  Não se trata de afirmar que o século XX, em exímia criatividade, tenha elaborado instituto sem qualquer precedente, nunca antes pensado. Ao contrário, fenômenos similares à terceirização são reconhecíveis ainda no séc. XVIII, com a revolução industrial, quando artesãos e mercadores exerciam atividades no sistema de putting-out. Todavia, a terceirização tal qual conhecida hoje tem origens mais fortes em ainda mais sombrio período da contemporaneidade: a segunda grande guerra.[3]

No período beligerante, a escassez de mão de obra no mercado americano acarretou o surgimento das – até então desconhecidas – empresas de trabalho temporário, que buscavam suprir as graves carências laborativas, geralmente específicas e transitórias, existentes em uma sociedade na qual grande parte da mão de obra abandonava as instalações fabris e marchava rumo a uma Europa em guerra.  Tratou-se de solução providencial para manter o nível produtivo americano em face das contingências que qualquer guerra produz.

A economia e a dinamicidade que surgiram como pontos positivos desse modelo, em um contexto de crise, fez com que a sua popularidade ganhasse contornos até então impensados, principalmente como opção menos custosa para o mercado empresarial. Dessa forma, as relações trabalhistas tidas como típicas no período pré-guerra sofreram com a terceirização um grande e marcante impacto, que até hoje divide opiniões e provoca calorosos debates[4].  Se, durante tempos pretéritos, a dinâmica entre o empregador e o empregado se caracterizava por uma bilateralidade, fruto ainda do apogeu liberal-contratualista do séc. XIX, a partir da segunda metade do séc. XX uma nova perspectiva se fortalece, na qual tal bilateralidade sede espaço a uma, não menos liberal, trilateralidade.

Caminhando um pouco mais além, o mercado foi ainda mais criativo. Uma vez fortalecida a perspectiva da terceirização, surgiu a hipótese, até então pouco comum, da chamada quarteirização – figura na qual há a contratação de diversas empresas em uma cadeia única para a prestação de serviços a um tomador final. A trilateralidade passa a coexistir, então, com a quatrilateralidade.

2.1) Conceituação dos Institutos

Do ponto de vista semântico, terceirização constitui neologismo proveniente do termo “terceiro”, que tradicionalmente é entendido como alguém estranho a determinada relação originalmente considerada. Todavia, como ensina Maurício Godinho Delgado, na dinâmica da administração empresarial na qual o fenômeno teve origem, o termo buscava “enfatizar a descentralização empresarial de atividades para outrem, um terceiro à empresa”[5].

A partir do momento em que a terceirização passou a figurar de forma intensa na realidade econômica, saindo de searas específicas e alcançando abrangência no mercado, uma necessidade se impôs: sua conceituação. Afinal, tratava-se de instituto um tanto quanto específico que não encontrava base na tradicional bilateralidade com a qual o universo trabalhista sempre foi acostumado, mas, sim, em uma nova perspectiva: a trilateralidade.[6]

Dessa forma, embora diversos autores pátrios divirjam quanto ao ideal conceito do instituto, Vólia Bomfim, com a habitual clareza, conceitua terceirização como “a relação trilateral formada entre trabalhador, intermediador de mão de obra (empregador aparente formal ou dissimulado) e o tomador de serviços (empregador real ou natural), caracterizada pela não coincidência do empregador real com o formal”.[7]

Segundo tal definição, pode-se depreender três importantes aspectos que constituem a espinha dorsal do instituto: a relação trilateral; a duplicidade do empregador (real e formal) e a dissociação das relações trabalhista e jurídica. Quanto ao último aspecto, alguns autores, como Maurício Godinho, de forma mais abrangente, consideram-no como a própria definição do instituto, afirmando que “terceirização é o fenômeno pelo qual se dissocia a relação econômica de trabalho da relação justrabalhista que lhe seria correspondente”[8].

Ainda nesse sentido, pode-se notar a presença de três grupos distintos de interesse: a empresa prestadora de mão de obra, os trabalhadores e a empresa tomadora da mão de obra. Observa-se que os trabalhadores possuem, por um lado, vínculo jurídico e trabalhista com a empresa prestadora, enquanto, por outro lado, os serviços são realizados em face da empresa tomadora, que, todavia, não pode ser tida como empregadora, na sua clássica concepção. Daí o reconhecimento da trilateralidade, vez que visíveis são os laços entre tomadora e prestadora, trabalhadores e tomadora e trabalhadores e prestadora.  Dinâmicas como essa correspondem, segundo dados do DIEESE, à realidade de cerca de 13 milhões de trabalhadores brasileiros[9].

Mas, a despeito dessa seara conceitual, insta indagar qual seria a real utilidade desse sistema. Pois bem, a ideia geral é simples. Empresas economizam custos e ganham dinamicidade quando transferem para contratadas a realização de serviços mais específicos[10].  Como afirma Aline Monteiro de Barros:

Teoricamente, o objetivo da terceirização é diminuir os custos e melhorar a qualidade do produto ou do serviço: alguns especialistas denominam esse processo de ‘especialização flexível’, ou seja, aparecem empresas, com acentuado grau de especialização em determinado tipo de produção, mas com capacidade para atender a mudanças de pedidos de seus clientes.[11]

Por sua vez, a chamada quarteirização – instituto um pouco menos comum na realidade econômica – respeita as características acima elencadas, mas com um plus, com algo novo, com a presença de uma importante e vital característica: a existência de um quarto personagem, responsável por administrar para a empresa tomadora os serviços terceirizados contratados. Na quarteirização, há a contratação de diversas empresas em uma cadeia única para a prestação de serviços a um tomador final. Vez tratar-se, portanto, de espécime bem diverso da terceirização, embora nela tenha nascedouro inconfundível.

Mostrou-se tarefa árdua encontrar na doutrina alguma conceituação satisfatória acerca do instituto da quarteirização. Por esse motivo, o presente estudo trabalhará com a definição apresentada na Lei nº 13.429/2017. Segundo seu art. 4º-A, § 1º, empresa prestadora de serviços a terceiros é aquela que contrata, remunera e dirige o trabalho realizado por seus trabalhadores, ou subcontrata outras empresas para a realização desses serviços. Nessa possibilidade de subcontratação, reside a definição por excelência do ato de quarteirizar. Ou seja, ocorre quarteirização quando uma empresa terceirizada subcontrata outras empresas para contratar, remunerar ou dirigir o trabalho realizado por seus trabalhadores.

2.2) Contexto Histórico Brasileiro

Embora desde 1950 exemplos de terceirização já sejam visíveis no cenário nacional, principalmente com a instalação de indústrias automobilísticas no país[12], é a partir da década de 1970, em um cenário de crise econômica, que ocorre uma adoção um pouco mais intensa do instituto, sob a influência dos novos moldes de organização do trabalho. A crise do petróleo acarretou uma intensa fragilização na economia ao redor do mundo, gerando a necessidade – quase vital – de redução de custos por parte de empresários. O resultado foi drástico. A terceirização, nesse ponto, originou graves danos ao trabalhador, pois, ao mesmo tempo em que diminuiu a expectativa salarial dos mesmos, representou a redução do número de empregos com relação direta com seus empregadores de fato, prejudicando as reinvindicações coletivas e o poder de barganha do trabalhador[13].

A partir da década de 1990, em um contexto neoliberal, a terceirização passou a ser adotada de forma ainda mais intensa no Brasil. Se, anteriormente, a mesma encontrava guarida segura apenas em atividades mais simples, como segurança e limpeza, a partir do final da década de 1990, a sua presença se expandiu para várias outras searas. E a explicação não é difícil: as políticas desregulamentadoras e as medidas de flexibilização adotadas pelo governo, primordialmente por Collor, Itamar e FHC, funcionaram como verdadeiro leitmotiv desse processo. Afinal, em um momento de intensa crise econômica, como a vivenciada à época, as empresas brasileiras necessitavam de uma reestruturação, visando à competição com o mercado estrangeiro, e a terceirização foi uma das medidas amplamente adotadas nesse processo[14].

Tratou-se da chamada superterceirização do trabalho, na qual, com o objetivo de se reduzir custos trabalhistas e melhorar a produtividade, várias atividades como supervisão, gerência, inspeção, entre outras, passaram a ser terceirizadas[15]. Nesse mesmo cenário, a quarteirização encontrou força, pois o mercado percebeu que, por vezes, a empresa despendia muito esforço na própria gestão dos serviços terceirizados, sendo mais dinâmico, mais econômico e mais produtivo, portanto, contratar quarta empresa, com o fito de administrar os serviços realizados pelas prestadoras.

Como consequências principais dessa adoção maciça de trabalhadores terceirizados, as empresas ganharam, de fato, em produtividade. Todavia, a redução do número de empregos e a precarização das relações trabalhistas, da mesma forma, foram absolutamente perceptíveis. Quanto a tal precarização, observou-se a perda de vários direitos dos trabalhadores terceirizados, conforme elenca a doutrina. Nesse sentido, Vólia Bomfim Cassar[16]:

A intermediação de mão de obra fere de morte os princípios: da proteção ao empregado; da norma mais favorável; da condição mais benéfica; do tratamento isonômico entre os trabalhadores que prestam serviço a uma mesma empresa; do único enquadramento sindical; do único empregador, do mesmo enquadramento legal etc. Isso porque os empregados terceirizados possuem direitos inferiores e diversos dos empregados do tomador de serviços.

2.3) Evolução Normativa no Brasil

Analisadas as questões de fato, ou seja, o cenário no qual a terceirização e a quarteirização se tornaram realidade, impõe-se analisar de que forma o ordenamento pátrio se comportou diante do fenômeno. Desde já, convém destacar que o desenvolvimento de tal prática se deu, ao longo do tempo, à margem de qualquer legislação específica. Segundo Maurício Godinho: “Trata-se de exemplo marcante de divórcio da ordem jurídica perante os novos fatos sociais, sem que se assista a esforço legiferante consistente para se sanar tal defasagem jurídica”[17]. Pode-se dizer que apenas agora o legislador saiu de sua habitual inércia, normatizando o tema através da Lei nº 13.429/2017, muito embora esta seja alvo de merecidas críticas.

É do longínquo ano de 1933 a primeira referência (embora sem essa denominação) no que tange à terceirização. Trata-se do caso de subempreitada, previsto no artigo 455 da CLT. Sendo essa, durante muitos anos, a única hipótese de terceirização prevista no ordenamento jurídico pátrio[18].  Cerca de três décadas após essa primeira referência, o Decreto-Lei nº20067 (regulado pela lei nº5.65470), na seara do direito administrativo e com o fito de possibilitar maior descentralização das atividades,  autorizou a contratação de serviços meramente executivos e operacionais perante empresas privadas, no âmbito das entidades estatais.[19] Em 1970, a Lei do Trabalho Temporário regulou de alguma forma a matéria. Em 1983, a Lei 7.102 regulou o serviço terceirizado nas atividades de segurança em estabelecimentos financeiros e de empresas de vigilância e transporte de valores.

A partir da segunda metade da década de 1980, o Tribunal Superior do Trabalho, em meio as grandes lacunas que envolviam o tema, passou a editar diversas súmulas regendo situações específicas envolvendo a terceirização. Nessa perspectiva, a Súmula nº 239 de 1985, com o fito de coibir fraudes no sistema bancário, afirmava: “É bancário o empregado de processamento de dados que presta serviço a banco integrante do mesmo grupo econômico”.

Já em 1986, a importante Súmula nº256 foi editada pelo TST, na qual se considerava ilegal a contratação por empresa interposta fora das hipóteses que, até então, eram reconhecidas:

Salvo os casos de trabalho temporário e de serviço de vigilância, previstos nas Leis  nºs 6.019, de 03.01.1974, e 7.102 de 20.06.1983, é ilegal a contratação de trabalhadores por empresa interposta, formando-se o vínculo empregatício diretamente com o tomador de serviços.

Todavia, tendo em vista as várias críticas quanto ao conteúdo da mesma, a resolução nº121 de 2003 veio a cancelá-la. Em 2011, contrariando o teor da extinta Súmula nº 261, o Tribunal Superior do Trabalho consagrou seu novo entendimento a respeito da temática da terceirização, exteriorizado na Súmula nº 331:

CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. LEGALIDADE (nova redação do item IV e inseridos os itens V e VI à redação) – Res. 174/2011, DEJT divulgado em 27, 30 e 31.05.2011 
I – A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente com o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalho temporário (Lei nº 6.019, de 03.01.1974).
II – A contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da Administração Pública direta, indireta ou fundacional (art. 37, II, da CF/1988).
III – Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei nº 7.102, de 20.06.1983) e de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta.
IV – O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações, desde que haja participado da relação processual e conste também do título executivo judicial.
V – Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei n.º 8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada.
VI – A responsabilidade subsidiária do tomador de serviços abrange todas as verbas decorrentes da condenação referentes ao período da prestação laboral.

Durante muito tempo, essa súmula foi tudo o que havia no país a respeito da terceirização. Significa dizer que toda a interpretação legal e jurídica acerca do tema era dela extraída, haja vista a inexistência de lei regulamentando a matéria. Observe-se que a referida súmula sequer lida com a hipótese de quarteirização, deixando uma enorme lacuna a respeito da mesma. Daí a ausência de segurança jurídica e de estabilidade social no tocante aos fenômenos da terceirização e da quarteirização, conforme será adiante estudado.

 3) ANÁLISE JURISPRUDENCIAL DO INSTITUTO DA QUARTEIRIZAÇÃO

 Miguel Reale define a jurisprudência como “a forma de revelação do direito que se processa através do exercício da jurisdição, em virtude de uma sucessão harmônica de decisões dos tribunais”.[20] Hodiernamente, sabe-se que é notória a importância da jurisprudência na formação do Direito. Por essa razão, o presente capítulo se destina à análise jurisprudencial da quarteirização, a fim de estabelecer como o instituto tem sido tratado pelos Tribunais Regionais do Trabalho e pelo Tribunal Superior do Trabalho, tendo em vista a inexistência de normas legais ou de súmulas específicas acerca do tema.

Conforme elucidado anteriormente, a única regulamentação que existia no Brasil acerca do instituto da terceirização residia no comando da Súmula nº 331 do Tribunal Superior do Trabalho. Nesse sentido, ainda que inexistisse disposição legal acerca do assunto, ao menos havia uma firme jurisprudência revestida de súmula a gerar um mínimo de segurança jurídica – embora não a segurança necessária. Por esse motivo, malgrado as deficiências da Súmula nº 331, principalmente no que tange à precisão, as decisões tomadas pelos Tribunais tinham um parâmetro ao qual seguir, permitindo certa regularidade entre as sentenças e acórdãos.

Contudo, no que tange à quarteirização, a ausência de uma disposição legal reguladora ou de uma súmula específica gerou uma verdadeira celeuma jurisprudencial, permitindo decisões em vários sentidos. Diante da lacuna existente, cada Tribunal teve que se posicionar por si, através de seus julgados e buscando alguma luz na Súmula nº 331 do TST. Por esse motivo, traçou-se um cenário de insegurança, marcado por decisões por vezes conflitantes e incompatíveis entre si. Nunca houve para o empregador a certeza se podia ou não quarteirizar os serviços de sua empresa, visto que alguns julgados entendiam tal conduta como fraude, com a chancela do Ministério Público do Trabalho. Por outro lado, também nunca houve a certeza por parte do trabalhador de obter seus créditos trabalhistas junto à empresa tomadora de serviços na hipótese de quarteirização, posto que muitos julgados consideravam lícita tal prática.

Diante da diversidade de posições, é impossível estabelecer no presente artigo como cada Tribunal se posicionava especificamente sobre o tema, se é que se pode falar em uma tomada clara de posição, tendo em vista as divergências internas nos julgados. Tal análise requereria uma coleta jurisprudencial mais aprofundada, o que não é objetivo do presente estudo. Por ora, basta identificar quais eram as posições existentes acerca da quarteirização, isto é, quais teses prevaleciam em termos de julgados. Nesse sentido, pode-se destacar três vertentes predominantes, que passarão a ser analisadas.

Primeiramente, há de se destacar que a posição preponderante entre os julgados coletados tendia a considerar a quarteirização nas relações de trabalho como algo possível, desde que observados os contornos da Súmula nº 331 do TST. Observa-se, assim, a existência de um mesmo tratamento jurídico dispensado aos institutos da terceirização e da quarteirização. Seguindo os ditames dessa lógica, na hipótese de quarteirização de serviços, onde há a contratação de diversas empresas em uma cadeia única para a prestação de serviços a um tomador final, a responsabilidade dos contratantes em relação aos créditos trabalhistas devidos seria subsidiária, nos moldes do item IV da Súmula 331 do TST. A fim de ilustrar essa posição, seguem os seguintes julgados:

QUARTEIRIZAÇÃO DE SERVIÇOS – O fenômeno da quarteirização ocorre quando o tomador contrata uma empresa de prestação de serviços que, por sua vez, contrata outra entidade para fornecer pessoal necessário à execução do contrato. Na maioria das vezes, o artifício é utilizado para burlar direitos trabalhistas em flagrante prejuízo do trabalhador. Nestas circunstâncias, torna-se imperativa a incidência do art. 9º da CLT e responsabilização subsidiária daquele que se beneficiou diretamente do serviço do trabalhador, nos moldes do entendimento consubstanciado na Súmula 331/TST. (TRT-5 – RECORD: 269006520085050134 BA 0026900-65.2008.5.05.0134, 1ª. TURMA, Data de Publicação: DJ 18/02/2011)

RECURSO DA RECLAMADA. QUARTEIRIZAÇÃO DE SERVIÇOS. TOMADORA. RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA. CONFIGURAÇÃO. Ante o fenômeno da terceirização e da quarteirização, como é o caso dos autos, com escopo de resguardar os direitos dos trabalhadores da empresa prestadora dos serviços, o Tribunal Superior do Trabalho, por meio de sua Súmula nº 331, trouxe a previsão da responsabilidade civil, do tomador de serviços, na escolha e fiscalização do trato das relações trabalhistas da prestadora em relação aos seus empregados. A responsabilidade subsidiária abrange toda a condenação, inclusive em relação às parcelas fiscais e previdenciárias. (TRT-1 – RO: 00120965120135010224, Relator: ENOQUE RIBEIRO DOS SANTOS, Data de Julgamento: 27/09/2016, Quinta Turma, Data de Publicação: 06/10/2016)

EMPRESAS INTERPOSTAS. RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA SUBSISTENTE. Sendo a recorrente beneficiária direta da prestação dos serviços da reclamante, porque a ela interessa o resultado final do trabalho da autora, a interposição de outras empresas entre a 1ª e 2ª reclamadas é meramente formal, não servindo para descaracterizar a realidade que emerge dos autos de mera terceirização (ou quarteirização) de serviços, sendo irrelevante, portanto, o fato dessas empresas não terem figurado na lide. Recurso da segunda reclamada que se nega provimento. (TRT-2 – RO: 00018029420125020466 SP 00018029420125020466 A28, Relator: JORGE EDUARDO ASSAD, Data de Julgamento: 14/05/2015, 12ª TURMA, Data de Publicação: 22/05/2015)

QUARTEIRIZAÇÃO” DE SERVIÇOS – RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA. Ainda que a hipótese seja de “quarterização” de serviços, onde há a contratação de diversas empresas, em uma cadeia única, para prestação de serviços a um tomador final, a responsabilidade das contratantes/tomadoras é subsidiária em relação aos créditos devidos pelo empregador/prestador de serviços. (TRT-3 – RO: 139705 01008-2004-010-03-00-6; Relator: Eduardo Augusto Lobato, Quinta Turma, Data de Publicação: 09/04/2005, DJMG. Página 16. Boletim: Sim.)

RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA. QUARTEIRIZAÇÃO DE SERVIÇOS. A responsabilidade subsidiária se fundamenta na teoria da culpa subjetiva e no princípio da efetividade das normas trabalhistas. Assim, as empresas tomadoras dos serviços são aquelas que, em última análise, criaram o emprego, que será preenchido por empregado de outra empresa idônea, sua contratada. Assim, a empresa tomadora dos serviços é livre para contratar quem lhe aprouver, mas deve, na sua eleição, verificar a idoneidade daquele com quem contrata, visto que deve responder por culpa in eligendo e in vigilando, desde que sua contratada não honre suas obrigações trabalhistas. Esse o sentido e o alcance da jurisprudência consagrada no item IV, da Súmula nº 331 do C. TST, que, ressalte-se, não ofende a nenhum dispositivo legal ou constitucional, mas, ao contrário, explicita a acertada interpretação da Constituição da República, da legislação ordinária e do princípio de proteção aos direitos dos empregados e é perfeitamente cabível à hipótese, em que se operou a chamada quarteirização de serviços. Recurso do capital a que se nega provimento. (TRT-2 – RO: 01631002920095020231 SP 01631002920095020231 A20, Relator: ROBERTO VIEIRA DE ALMEIDA REZENDE, Data de Julgamento: 15/09/2015, 13ª TURMA, Data de Publicação: 29/09/2015

A segunda posição observada tendia a considerar a quarteirização como algo ilícito, como verdadeira fraude cometida na tentativa de se burlar a legislação trabalhista. Nesse sentido, a intermediação ilícita de mão-de-obra ensejaria a responsabilidade solidária das empresas envolvidas, conforme se pode inferir da simples leitura dos seguintes julgados:

QUARTEIRIZAÇÃO. INTERMEDIAÇÃO ILÍCITA DE MÃO DE OBRA. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS ENVOLVIDOS. A quarteirização de serviços é prática ilícita, à luz do entendimento consolidado na Súmula 331, I, do TST e enseja o reconhecimento da fraude e da responsabilidade solidária dos envolvidos pelos créditos devidos aos trabalhadores prejudicados. EXPOSIÇÃO DO TRABALHADOR DE FORMA INTERMITENTE E NÃO EVENTUAL A AGENTES PERIGOSOS. CONSTATAÇÃO POR MEIO DE PROVA PERICIAL. ADICIONAL DE PERICULOSIDADE DEVIDO. O perito concluiu que o reclamante, durante suas atividades laborais, estava exposto de forma intermitente e não eventual a agentes perigosos. Logo, faz jus ao adicional de periculosidade postulado. (TRT-5 – RecOrd: 00012557220115050024 BA 0001255-72.2011.5.05.0024, Relator: JEFERSON MURICY, 5ª. TURMA, Data de Publicação: DJ 25/11/2014.)

QUARTEIRIZAÇÃO. FRAUDE. TERCEIRIZAÇÃO DE SERVIÇOS JÁ TERCEIRIZADOS. O fenômeno da “Quarteirização” ocorre quando uma empresa prestadora de serviços, coloca à disposição da empresa Tomadora de Serviços, empregados de outra empresa, em serviços ligados à sua atividade fim. Nesse caso, a Empresa tenta esquivar-se das suas obrigações trabalhistas, por meio da intermediação de mão de obra, o que é vedado, nos termos da Sumula nº 331, Item I, do C. TST. Recurso da Segunda Reclamada não provido no part (TRT-15 – RO: 4283320125150126 SP 026324/2013-PATR, Relator: HELCIO DANTAS LOBO JUNIOR, Data de Publicação: 12/04/2013)

Por fim, havia ainda julgados que consideravam a quarteirização como algo incompatível com a legislação jurídica pátria, sendo indubitavelmente ilícita e ensejando o reconhecimento do vínculo de emprego diretamente com a empresa tomadora de serviços. Ilustram tal pensamento os seguintes acórdãos:

RECURSO DA PRIMEIRA RECLAMADA. QUARTEIRIZAÇÃO ILÍCITA. VÍNCULO JURÍDICO DE EMPREGO DIRETAMENTE COM O TOMADOR DOS SERVIÇOS. A terceirização admitida em nosso ordenamento jurídico, é a prevista na Lei nº 6.019/74 (trabalho temporário), e na Súmula nº 331/TST (serviços de vigilância, conservação e limpeza e serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador). Pretensa quarteirização de serviço, diretamente ligado à atividade-fim do hospital, viola o disposto no artigo 9º da CLT. Vínculo empregatício que se reconhece diretamente com o tomador do serviço. (TRT-4 – RO: 00781009420095040202 RS 0078100-94.2009.5.04.0202, Relator: MARIA MADALENA TELESCA, Data de Julgamento: 31/07/2013, 2ª Vara do Trabalho de Canoas)

HIPÓTESE DE QUARTEIRIZAÇÃO. EXECUÇÃO DE ATIVIDADE-FIM BANCÁRIA. INTERMEDIAÇÃO ILÍCITA DE MÃO DE OBRA. RECONHECIMENTO DE VÍNCULO EMPREGATÍCIO COM O TOMADOR DOS SERVIÇOS (TERCEIRO RECLAMADO – BANCO SANTANDER). 1. Depreende-se do arcabouço fático-probatório produzido nos autos que o reclamante sempre prestou serviços em favor da atividade-fim do banco reclamado, terceiro reclamado, intermediado por meio de nefasta quarteirização, engendrada da seguinte forma: 1º passo: o terceiro reclamado (BANCO SANTANDER) leva a cabo a externalização de parcela de sua atividade-fim, por meio da celebração de um contrato de prestação de serviços com a primeira reclamada (SCOR SERVIÇOS, ORGANIZAÇÃO E REGISTRO LTDA), conforme depoimento do preposto do terceiro réu; 2º passo: por sua vez, a primeira reclamada, por meio de uma típica quarteirização, contrata a segunda reclamada (IDEAL COOPERATIVA DE TRABALHO DE PROFISSIONAIS ADMINISTRATIVOS, TÉCNICOS, OPERACIONAIS E DE TREINAMENTO) com o fito de fornecer mão de obra, a exemplo da força de trabalho do reclamante, para execução do contrato de prestação de serviços ligados à atividade-fim do terceiro reclamado, conforme depoimentos dos prepostos da primeira e segunda reclamadas e da testemunha ouvida a rogo da primeira ré. 2. Lado outro, com fulcro na classificação brasileira de ocupações (CBO) do Ministério do Trabalho e Emprego, no rol de misteres inseridos na função de um escriturário bancário estão (i) dar apoio às atividades dos mais diversos setores do banco; (ii) administrar fluxo de malotes; e (iii) controlar documentação de arquivos. E todas essas atividades eram executadas pelo reclamante, na medida em que procedia a recepção de malote de documentos do terceiro reclamado; separação e conferência da documentação recebida (ex. formulários de cadastro e contratos bancários); conferência dos dados com o sistema e envio dos documentos para o arquivo geral; e inclusão no sistema do banco. 3. É forçoso reconhecer que o reclamante executava atividades típicas de escriturário bancário, intrinsecamente relacionadas à atividade-fim do terceiro reclamado, sem as quais esta restaria inviabilizada. 4. Trata-se, pois, de um perverso processo de intermediação ilícita de mão de obra, classicamente conhecido como “marchandage”, com vistas única e exclusivamente à redução de custos com mão de obra e precarização dos direitos trabalhistas (“dumping” social), bem assim com indubitável intuito de desvirtuar, impedir e fraudar a aplicação dos preceitos referentes à atividade profissional de bancário (art. 9ºda CLT), em franca ofensa não só a um dos princípios reitores da OIT, qual seja, “o trabalho não é uma mercadoria” (Declaração referente aos fins e objetivos da Organização Internacional do Trabalho – anexo da Constituição deste organismo internacional), mas também a todo o edifício constitucional voltado a proteger o trabalhador e o valor social do trabalho (arts. 1º, III e IV; 3º, I e III; 5º, XXIII; 7º, caput; 170, caput e incisos III, VII e VIII; e 193, todos da CRFB). 5. Disso decorre que se tem por nulos de pleno direito os atos praticados pelas reclamadas, nos termos do art. 9º da CLT, consequentemente, reconhece-se o liame empregatício com o tomador dos serviços, real empregador do reclamante, à luz dos artigos 2º e 3º da CLT, responsabilizando-se de forma solidária a primeira e segunda reclamadas pelo adimplemento de eventuais verbas trabalhistas devidas nesta reclamatória, por terem sido coautoras na fraude trabalhista arquitetada (art. 942 do CC). 6. Recurso obreiro provido. (TRT-2 – RO: 00025656120135020078 SP 00025656120135020078 A28, Relator: MARIA ISABEL CUEVA MORAES, Data de Julgamento: 02/09/2014, 4ª TURMA, Data de Publicação: 12/09/2014)

Em resumo, antes da aprovação da Lei nº 13.429/2017, havia três entendimentos possíveis entre os Tribunais Regionais do Trabalho no que tange à quarteirização: o primeiro no sentido de ser esta possível, observados os contornos da Súmula nº 331 do TST, com responsabilidade subsidiária dos contratantes em relação aos créditos trabalhistas; o segundo no sentido de reconhecimento de fraude, com a responsabilidade solidária das empresas envolvidas; o último considerando a quarteirização como algo incompatível com a legislação trabalhista pátria e reconhecendo o vínculo de emprego diretamente entre o trabalhador quarteirizado e a empresa tomadora de serviços.

Ora, se justiça não é loteria, tal situação revela-se mesmo como insustentável. A segurança jurídica é um dos princípios basilares da República Federativa do Brasil. Os cidadãos precisam ter a segurança de que haverá previsibilidade na consequência de suas ações, isto é, de que haverá garantia de presciência das decisões judiciais. Qualquer cenário que se afaste dessa premissa ofende o Estado Democrático de Direito. Por esse motivo, defende-se aqui a necessidade de alguma lei capaz de dar cabo a essa frustrante instabilidade acerca do instituto da quarteirização. Contudo, não a Lei nº 13.429/2017, posto que esta tende a trazer ainda mais controvérsias e inconstância acerca da questão.

4) A NORMATIZAÇÃO DA QUARTEIRIZAÇÃO NA LEI 13.429/2017

Conforme aduzido anteriormente, a Lei nº 13.429, promulgada em 31 de março de 2017, alterou dispositivos da Lei nº 6019/74, que outrora versava apenas sobre o trabalho temporário e agora passou a dispor também sobre as relações de trabalho na empresa de prestação de serviços a terceiros. Significa dizer que a regulamentação legal no que tange aos institutos da terceirização e da quarteirização, antes inexistente, foi feita através do simples acréscimo de alguns artigos à lei que antes regia o trabalho temporário. Só resta observar que o destino é mesmo dado a ironias, uma vez que o tema que antes era tratado superficialmente na Súmula nº 331 do TST, é agora tratado ainda mais superficialmente na Lei nº 6.019/74.

A primeira novidade ocorrida no que toca ao objeto do presente estudo reside na inserção do art. 4º-A à Lei nº 6.019/74. Seu caput passou a definir que empresa prestadora de serviços a terceiros é a pessoa jurídica de direito privado destinada a prestar à contratante serviços determinados e específicos. Dispõe o parágrafo primeiro que a empresa prestadora de serviços contrata, remunera e dirige o trabalho realizado por seus trabalhadores, ou subcontrata outras empresas para a realização desses serviços. Dessa forma, a lei autoriza a subcontratação, isto é, a quarteirização dos serviços prestados. Passa a ser possível, assim, a transferência de parte da gestão dos serviços de uma empresa terceirizada para outra empresa. O parágrafo segundo do dispositivo em comento é categórico ao estabelecer que não se configura vínculo empregatício entre os trabalhadores, ou sócios das empresas prestadoras de serviços, qualquer que seja o seu ramo, e a empresa contratante.

Outra alteração cuja análise se faz pertinente diz respeito à inserção do art. 5º-A à Lei nº 6.019/74. Entre outras disposições, este artigo define que a contratante é pessoa física ou jurídica que celebra contrato com empresa de prestação de serviços determinados e específicos e aduz que a empresa contratante é subsidiariamente responsável pelas obrigações trabalhistas referentes ao período em que houver a prestação de serviços. Dessa forma, fica mantida a responsabilidade subsidiária da empresa tomadora de serviços, tal como preconizava a Súmula nº 331 do TST. A grande mudança é que a terceirização e, consequentemente, a quarteirização, deixam de ser possíveis apenas nas chamadas atividades-meio e passam a ser toleradas também nas atividades-fim. Assim, passa a ser possível a contratação de empregados terceirizados em todas as funções da empresa.

Com isso, certamente haverá uma grande mudança nas decisões tomadas pelos Tribunais Trabalhistas. Se, outrora, grande parte da jurisprudência considerava a quarteirização como fraude ou mesmo como um instituto incompatível com o ordenamento jurídico pátrio, agora tais posições terão que ser revistas. Não será mais possível reconhecer a responsabilidade solidária das empresas envolvidas ou mesmo a existência de vínculo trabalhista diretamente com a empresa tomadora de serviços, tendo em vista a vedação legal. A tendência é que o tratamento dado à quarteirização siga os mesmos contornos do regime aplicado à terceirização. Isso é, será possível em todos os setores da empresa, não se configurando vínculo empregatício entre os trabalhadores, ou sócios das empresas prestadoras de serviços, qualquer que seja o seu ramo, e a empresa contratante. Da mesma forma, a contratante será subsidiariamente responsável pelas obrigações trabalhistas referentes ao período em que houver a prestação de serviços – e não solidariamente.

5) CONSIDERAÇÕES FINAIS

Divagar sobre mudanças recém-acontecidas na sociedade é sempre tarefa árdua. Contudo, tal esforço se faz necessário na tentativa de dar aos fenômenos jurídicos e sociais interpretação racional e coerente. Estudar com afinco as mudanças ocorridas na Lei nº 6.019/74 não é capricho, mas sim obrigação de todos aqueles que desejam entender o novo rumo para o qual as relações trabalhistas têm se encaminhado, ou seja, os novos paradigmas que passam a informar o Direito do Trabalho. Nenhum jurista pode se mostrar relapso ou negligente quando as tentativas de reforma trabalhista apontam para uma possibilidade de precarização na esfera laboral.

Todas as críticas tecidas no presente ensaio revelam o mais profundo receio acerca do cenário que está por vir. Tradicionalmente, os institutos da terceirização e da quarteirização têm sido utilizados como uma forma de se negar aos trabalhadores seus direitos mais inerentes, como um meio de se burlar a legislação trabalhista. Reforçar esses institutos através de uma regulamentação legal pífia, incapaz de definir com nitidez os seus contornos exatos, é o mesmo que incentivar seu uso como um mecanismo para fraudar leis.  A realidade fática tem demonstrado que, em verdade, a intermediação de mão de obra coloca em xeque uma série de princípios justrabalhistas, como a proteção do empregado, a norma mais favorável, a condição mais benéfica, o tratamento isonômico entre os trabalhadores, o único enquadramento sindical etc[21].

São tantas as consequências temerárias que podem advir da regulamentação ruim que se deu em relação à terceirização e à quarteirização, que fica até difícil enumerá-las em sua totalidade. Os possíveis danos ao trabalhador incluem a diminuição da expectativa salarial dos mesmos e a redução do número de empregos com relação direta com seus empregadores de fato, implicando em prejuízos no que tange às reivindicações coletivas e diminuindo o poder de barganha dos empregados. A permissão para a terceirização e a quarteirização irrestritas, ou seja, alcançando até mesmo as atividades-fim da empresa, piora sobremaneira esse cenário.

Ainda que se tenha mantido a responsabilidade subsidiária da empresa tomadora de serviços, tal como era na Súmula nº 331 do TST, fato é que fica muito mais complicada a execução de possíveis créditos trabalhistas. A prática forense revela o quanto é difícil executar os bens da empresa prestadora de serviços, visto que elas são criadas apenas para prestar determinados serviços e, portanto, são fechadas facilmente. A quarteirização permite a criação de uma cadeia única envolvendo a participação de várias empresas para a prestação de serviços a um tomador final. Indaga-se quanto tempo será necessário para esgotar todos os bens dessa cadeia de empresas até que se possa de fato alcançar os bens do efetivo tomador final. Dissociar a relação econômica de trabalho da relação justrabalhista correspondente é, quase sempre, dificultar a execução e a satisfação dos créditos trabalhistas.

Diante disso, apesar da regulamentação legal da terceirização e da quarteirização pela Lei nº 13.429/2017, defende-se aqui a aplicação do art. 9º da CLT sempre que estas forem utilizadas no intuito de fraudar a lei. A primazia da realidade exige que sejam considerados nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos trabalhistas. Quando isso ocorrer, deve-se afastar o benefício de ordem inerente à responsabilidade subsidiária e considerar a empresa tomadora de serviços solidariamente responsável pelos créditos trabalhistas. Só assim o trabalhador estará protegido de eventuais empresas mal-intencionadas, que veem na intermediação de mão de obra uma maneira de se esquivar do cumprimento da lei.

Em última análise, o que não se pode permitir é que as reformas trabalhistas pretendidas impliquem numa precarização das relações laborais, recaindo sobre os frágeis ombros do trabalhador os preços do desenvolvimento econômico. O Judiciário Trabalhista deve interpretar com cautela as disposições da Lei nº 13.429/2017, de forma a observar sempre a primazia da realidade e, com isso, afastar fraudes. Só o futuro delineará os contornos exatos do alcance da terceirização e da quarteirização, mas desde já é preciso ter circunspecção e cuidado quanto ao tema, no intuito de se minimizar possíveis danos vindouros.

6) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROS, Aline Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho. 10. Ed. São Paulo: LTR,2016.

BOMFIM CASSAR, Vólia. Direito do Trabalho. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014.

BRASIL. Lei nº 6.019, de 03 de janeiro de 1974. Brasília: Congresso Nacional.

BRASIL. Lei Ordinária nº 13. 429, de 31 de março de 2017. Brasília: Congresso Nacional.

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 14 ed. São Paulo: LTR, 2015.

GIAMBIAGI, Fabio; MOREIRA, Maurício (Org.). A economia brasileira nos anos 90. Rio de Janeiro: BNDES, 1999.

MARTINS, Sergio Pinto.  A terceirização e o Direito do Trabalho. 12 ed. São Paulo: Atlas, 2012.

PINTO, José Augusto Rodrigues; FILHO, Rodolfo Pamplona. Repertórios de Conceitos Trabalhistas. Ed. LTr. São Paulo. 2000. Vol. I.

POCHMANN, Márcio. Debates contemporâneos, economia social e do trabalho, 2: a superterceirização do trabalho. São Paulo: Ltr, 2008.

REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 1991.

[1] Bacharelanda em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Bolsista de iniciação científica do PIBIC.

[2] Bacharelando em Direito pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).

[3] MARTINS, Sergio Pinto.  A terceirização e o Direito do Trabalho. 12 e.d. São Paulo: Atlas, 2012, p.2  e 3.

[4] BARROS, Aline Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho. 10. E.d. São Paulo: LTR,2016. Pg. 300.

[5] DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 14 e.d. São Pualo: LTR, 2015 Pg.473.

[6] BOMFIM CASSAR, Vólia. Direito do Trabalho. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014, pg. 515

[7] Idem

[8] DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 14 e.d. São Paulo: LTR, 2015 Pg.473.

[9] Departamento intersindical de estatísticas e estudos socioeconômicos.

[10] PINTO, José Augusto Rodrigues; FILHO, Rodolfo Pamplona. Repertórios de Conceitos Trabalhistas. Ed. LTr. São Paulo. 2000. Vol. I. p. 500.

[11] BARROS, Aline Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho. 10. E.d. São Paulo: LTR,2016. Pg. 300.

[12] A título de exemplo, em 1953, a Volkswagen Brasil é fundada no território nacional.

[13] BOMFIM CASSAR, Vólia. Direito do Trabalho. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014, pg. 516.

[14] GIAMBIAGI, Fabio; MOREIRA, Maurício (Org.). A economia brasileira nos anos 90. Rio

de Janeiro: BNDES, 1999, p.13-41.

[15] POCHMANN, Márcio. Debates contemporâneos, economia social e do trabalho, 2: a superterceirização do trabalho. São Paulo: Ltr, 2008, p;63.

[16] BOMFIM CASSAR, Vólia. Direito do Trabalho. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014 pg. 516.

[17] DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 14 e.d. São Pualo: LTR, 2015 Pg.431

[18] BOMFIM CASSAR, Vólia. Direito do Trabalho. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014. Pg. 524

[19] DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 14 e.d. São Paulo: LTR, 2015 Pg. 478

[20] REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 167.

[21] BOMFIM CASSAR, Vólia. Direito do Trabalho. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014 pg. 516.

Palavras Chaves

Quarteirização; Terceirização; Reforma Trabalhista; Lei nº 13.429/2017; Lei nº 6019/74.