A NEGOCIAÇÃO NA PREVIDÊNCIA COMPLEMENTAR: ANÁLISE DE UM CASO ILUSTRATIVO

  

Resumo

Negociação na Previdência Complementar. Construção de um acordo para o redesenho de planos previdenciários geridos por entidade fechada de previdência complementar (EFPC). Redimensionamento de direitos e obrigações dos patrocinadores e dos participantes e assistidos junto a tais planos de benefícios. Migração de participantes e assistidos para um novo plano previdenciário. Motivações para a construção de um acordo consistente e duradouro. Ausência de estabilidade jurisprudencial para os conflitos relacionados à previdência complementar. Fases e métodos para um processo negocial de sucesso. Principais conceitos que orientam um processo de negociação.

Artigo

A Negociação na Previdência Complementar: Análise de um Caso Ilustrativo

Adacir Reis

RESUMO: Negociação na Previdência Complementar. Construção de um acordo para o redesenho de planos previdenciários geridos por entidade fechada de previdência complementar (EFPC). Redimensionamento de direitos e obrigações dos patrocinadores e dos participantes e assistidos junto a tais planos de benefícios. Migração de participantes e assistidos para um novo plano previdenciário. Motivações para a construção de um acordo consistente e duradouro. Ausência de estabilidade jurisprudencial para os conflitos relacionados à previdência complementar. Fases e métodos para um processo negocial de sucesso. Principais conceitos que orientam um processo de negociação.

Neste artigo pretendo analisar o instituto da negociação na resolução de conflitos relativos às entidades fechadas de previdência complementar (EFPC), apresentando ao leitor um case que considero de sucesso e que pode servir para reflexões sobre o tema. As entidades fechadas de previdência complementar apresentam relações jurídicas bilaterais e plurilaterais, com várias facetas, algumas integradas, outras autônomas, de onde emergem os mais variados conflitos. Na esfera do regulamento do plano previdenciário (contrato previdenciário), que define direitos e obrigações em relação aos benefícios programados (aposentadoria) ou não programados (cobertura por invalidez ou morte), encontramos controvérsias de natureza civil, assim definidas pelo Supremo Tribunal Federal (RE 586.453/SE).

Exceto em alguns temas societários, relacionados a investimentos realizados pelas EFPC, o caminho mais comum para a resolução de conflitos tem sido o Poder Judiciário. Apenas recentemente, há poucos anos, alguns contenciosos estão sendo resolvidos pela mediação ou negociação. A partir dos anos 1990, houve diversos processos de migração de planos de benefício definido (BD) para contribuição definida (CD) ou contribuição variável (CV). Na maioria das vezes, tais processos de migração ocorriam num contexto de preparação dos patrocinadores estatais para a privatização ou mesmo entre patrocinadores privados que pretendiam reduzir o risco atuarial de suas obrigações. Embora tais processos de migração, antes de sua operacionalização, sejam examinados e aprovados pelo órgão federal de supervisão das entidades fechadas de previdência complementar (no passado a Secretaria de Previdência Complementar e, hoje, a Superintendência Nacional de Previdência Complementar - PREVIC), durante muitos anos houve uma enorme judicialização de tal matéria. Os processos judiciais arrastavam-se indefinidamente, com idas e vindas, ocasionando em muitos deles a anulação, pelo menos parcial, de tais migrações entre planos previdenciários. Foi nesse contexto que pude participar, como advogado e consultor jurídico de uma EFPC, de um processo de negociação para redimensionamento de um plano previdenciário BD, cisão parcial de tal plano e ajustes no plano de benefícios CD, com a consequente possibilidade de migração do BD para o CD, em um contexto de fusão entre duas grandes empresas privadas. Na época em que se deu tal negociação com participantes, assistidos e patrocinadores dos planos previdenciários, os meios alternativos de resolução de conflitos – ou meios de composição de conflitos – eram ainda menos usuais do que hoje, especialmente no campo da previdência complementar. Passados muitos anos, vejo nesse leading case em que atuei um bom exemplo de que a negociação pode levar a resultados muito positivos e duradouros.

Inicialmente, a entidade fechada de previdência complementar, gestora dos principais planos previdenciários existentes em tal relação, nos pediu uma avaliação jurídica sobre a situação existente. Após análise dos regulamentos do plano BD e do CD, identificamos os principais problemas jurídicos, as limitações de cobertura de cada plano previdenciário e informamos o cliente sobre o quadro de insegurança jurídica junto ao Poder Judiciário. Na sequência, os dirigentes da EFPC e de seu principal patrocinador decidiram que o redimensionamento dos planos previdenciários deveria se dar por meio da negociação com os representantes dos participantes e assistidos. No caso, tais representantes eram uma importante entidade sindical e uma dinâmica entidade associativa dos aposentados. Fizemos um planejamento estratégico sobre as possíveis fases do processo de negociação, embora reconhecendo que, pela complexidade da matéria e diversidade de atores, tais fases não seriam rígidas ou estanques. Em seguida, identificamos quais eram os interesses que deveríamos defender, fazendo um grande esforço de não confundirmos “interesses” com “posições”. Embora classicamente os conflitos relacionados à previdência complementar tenham caráter distributivo, fizemos à época várias simulações de cenário e concluímos que poderia haver um “ganha/ganha” (win/win) para as partes, a depender da conformação dos ajustes nos planos envolvidos. É claro que há conflitos da previdência complementar que não comportam negociação. Um exemplo poderia ser o famoso caso das ações judiciais em que assistidos (aposentados) postulavam em juízo a extensão do chamado auxílio-cesta-alimentação aos benefícios de aposentadoria complementar. Como tive a oportunidade de salientar da tribuna do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em sustentação oral por ocasião do julgamento da matéria 1 , a EFPC não poderia pagar, de forma alguma, algo que não estava previsto no contrato previdenciário (regulamento do plano de benefícios) e nem lastreado em reservas técnicas garantidoras.

1 REsp 1.023.053/RS e REsp Repetitivo 1.207.071/RJ, ambos de Relatoria da Ministra Maria Isabel Gallotti.

Já no caso objeto deste artigo, o que a EFPC e os patrocinadores buscavam era a modernização do novo plano previdenciário CD, de modo a capacitá-lo a receber e harmonizar os direitos e obrigações dos participantes do antigo plano BD, melhorar as expectativas dos então já vinculados ao plano CD e torná-lo mais atraente e flexível para os futuros empregados dos patrocinadores (futuros participantes). Portanto, observada a legislação, não havia óbice para se construir um grande acordo em torno desse novo elenco de direitos e obrigações dessa relação previdenciária plurilateral. Com isso, pretendíamos sair daquilo que os norte-americanos e britânicos chamam de fixed-pie fallacy, ou seja, a percepção de que, a priori, se um ganhar, a outra parte necessariamente tem que perder, numa camisa de força distributiva de “ganha/perde”. Tal visão preconcebida, e às vezes preconceituosa, pode acabar gerando, no final do dia, um “perde/perde” para as partes em conflito. Embora alguns críticos do instituto da negociação apontem como um dos problemas a possível assimetria entre as partes quanto à boa-fé e à real motivação para a construção de um acordo, as experiências no mundo dos negócios têm demonstrado que negociar pode ser uma alternativa legítima e eficaz à judicialização de determinados temas. Em matéria tão complexa como a reformulação de planos previdenciários, a visão da EFPC era, no caso, a de colaborar para uma integração dos interesses em jogo. A EFPC sempre procurou adotar uma postura de cooperação, não de confronto. A EFPC às vezes até parecia mais uma mediadora, um tanto equidistante entre patrocinadores e participantes, procurando fazer um meio de campo entre as partes financiadoras dos planos previdenciários. De fato, a EFPC pode experimentar essa situação atípica, em que é parte, já que é a gestora dos planos de benefícios e diretamente envolvida no resultado das negociações, mas não é uma das partes no sentido clássico, pois não concorre para o financiamento da nova engenharia em andamento.

Pois bem, já no início das reflexões internas havíamos definido que essa primeira rodada de simulação de cenários seria introdutória, mas que seria revisitada após ouvir os representantes dos participantes e assistidos. Para não incorrermos no equívoco do exemplo da “divisão da laranja”, convencionamos que seria preciso um amplo diálogo. Na clássica ilustração do caso da divisão da laranja, duas crianças brigavam e choravam pela mesma laranja. A mãe, vendo tal situação, resolveu cortar a laranja ao meio e dar a metade para cada um dos filhos. O choro e a briga aumentaram! Por quê? Na verdade, uma das crianças queria chupar a laranja. Já a outra pretendia brincar com a casca. Caso a mãe, antes de arbitrar o conflito, perguntasse o que os dois filhos realmente queriam, identificando inclusive os interesses em jogo, e não as posições, veria que se tratava de interesses conciliáveis. Em geral, posições são antagônicas. Mas os interesses, nem sempre. Num outro exemplo singelo, vamos imaginar um casal de namorados divergindo sobre o restaurante para jantar. O namorado afirma que quer ir ao restaurante X. A namorada, porém, que na vez anterior não simpatizou com o gerente, diz que lá não volta mais. Há aqui, de pronto, uma divergência. No entanto, conversando um pouco mais, constata-se que a preferência do namorado pelo restaurante X é apenas uma posição, não um interesse. Seu desejo, na verdade, é comer uma boa comida japonesa (interesse). Portanto, a divergência pode ser facilmente superada com a sugestão de um outro restaurante que seja capaz de satisfazer ambas as pretensões (uma boa comida japonesa, evitando-se o gerente antipático). Após os primeiros debates internos, iniciamos a fase de ouvir separadamente as entidades de representação, procurando identificar suas queixas, insatisfações com os planos previdenciários, bem como suas pretensões, num esforço inclusive de separar o que é uma posição de confronto daquilo que representa os verdadeiros objetivos de cada parte. O caminho foi o de ouvir e perguntar. Ouvir e perguntar. É impressionante o poder benigno de se ouvir atentamente outra pessoa. Ou, como dizem os especialistas, “ouvir ativamente”. Isso se dá no campo pessoal,

mas também institucional. Além de se conseguir mapear com muito mais eficiência os limites e características da controvérsia, o ato de ouvir, em si, cria uma grande empatia e demonstra respeito pelo outro. Já foi dito que a arte da sedução está no ato de ouvir. Em um processo institucional de negociação, ouvir é simplesmente fundamental. Em minha experiência como advogado que acredita no sistema “multiportas” de resolução de conflitos e que, ao longo dos anos de advocacia, já ajudou a destravar pela negociação alguns litígios que se arrastavam há anos no Judiciário, devo registrar que, embora seja comum supor que toda negociação será viabilizada apenas com o foco nos aspectos materiais e financeiros, a natureza humana é bem mais complexa, razão pela qual o processo decisório para ensejar um acordo nem sempre é tão linear e racional. Interromper a outra parte abruptamente por discordar de seu ponto de vista, ser hostil ou frio pela carga emotiva envolvida, adotar uma postura de superioridade intelectual ou moral, usar de expressões peremptórias como “de jeito nenhum”, “essa proposta é inaceitável”, todos esses aspectos, enfim, podem criar prevenções ou mecanismos de autodefesa que saem do campo da objetividade e se revelar fatais para o avanço das negociações. No processo de negociação para viabilizar a reengenharia de um grande plano de benefícios de previdência complementar, nosso objetivo inicial era entender não só “o que” a outra parte queria, mas também o “porquê”. Outro cuidado exigido pela negociação é separar as pessoas dos problemas. A literatura sobre esse tema é hoje lugar comum. Sobretudo no ambiente corporativo, não se pode confundir o interesse com o seu porta-voz. A pessoa que está à mesa defendendo outro interesse não é seu inimigo. Embora as pessoas envolvidas na negociação concorram, em grau maior ou menor, para seu êxito ou fracasso, o negociador deve manter o filtro necessário e identificar o que é interesse, o que é uma simples posição barganhável e o que é idiossincrasia do ser humano. Encerrada essa primeira rodada de interação com os participantes e assistidos, e também com o principal patrocinador, voltamos para um trabalho interno de simulação de situações e cenários.

Nessa fase, entre nós, promovemos um debate livre de sugestões, sem qualquer censura prévia. Uma ideia que, num primeiro momento, parecia descabida, após uma rodada de observações ganhava os contornos de uma opção criativa, simples e tecnicamente defensável. Com o apoio inestimável dos atuários, e também do comprometimento da direção da EFPC, simulamos algumas situações para que pudéssemos oferecer, em um ambiente construtivo, desenhos alternativos de composição, tais como: -critérios de individualização das reservas matemáticas; -níveis distintos de cobertura pelo plano previdenciário; -formas de recebimento dos benefícios; -fixação de benefício mínimo e abolição de teto para benefícios maiores; -critérios de correção de benefícios; -incentivos, por parte do patrocinador, os quais poderiam se dar de maneira episódica e imediata, como um aporte único ao término da migração; -incentivos, por parte do patrocinador, os quais poderiam se dar de forma continuada, abastecendo-se gradativamente a conta individual do participante que tivesse migrado, conforme o tempo de permanência no plano, com sobras de valores pertencentes a tais patrocinadores; -formas de aproveitamento da fração do superávit do antigo plano BD, com foco nos valores pertencentes aos patrocinadores; -governança dos planos previdenciários. Avaliamos também cenários hostis ou de intransigência da outra parte, lembrando que a outra parte se compunha, na verdade, de várias partes e interesses, pois há participantes com mais tempo de vinculação, outros com menos tempo, além do status dos assistidos. Entre as próprias entidades de representação há também visões distintas, o que é compreensível em colegiados de decisão. Em uma negociação, é desejável ter diversas opções disponíveis, embora a maneira de oferecê-las tenha que ser simples, sem maiores complicações ou

exigências de raciocínios elaborados. Algo confuso, ou complexo, tende a gerar desconfiança ou antipatia, ou ambas as reações. Avaliamos quais seriam as opções disponíveis em caso de não haver acordo. Na doutrina, qual seria nosso BATNA (Best Alternative to Non Agreement), ou seja, a melhor alternativa em caso de não se chegar a um bom termo na mesa de negociação, na célebre linguagem de Roger Fisher e William Ury, em seu famoso livro “Como chegar ao Sim”. 2 Fizemos também, com as equipes técnicas e diretivas da EFPC, um exercício crítico sobre os pontos fracos e fortes da outra parte. Por lógica, quanto mais opções uma das partes tiver em caso de um não acordo, mais ela poderá jogar duro nas negociações. Os representantes dos participantes e assistidos tinham ciência da inadequação do plano BD para a nova realidade do mercado de trabalho, possuíam pleitos históricos para a melhoria de benefícios e também sabiam que a modernização do novo plano CD era uma firme pretensão do patrocinador. Já a EFPC e o patrocinador tinham ciência do quão importante seria manter um construtivo entendimento com as representativas entidades sindicais e associativas dos participantes e assistidos, bem como o quanto era relevante um plano de previdência complementar para uma eficiente gestão de recursos humanos. Para tornar o novo plano CD mais atraente para os potenciais “migrantes”, pretendia-se superar um rol de limitações do antigo plano previdenciário, o qual por exemplo, não oferecia o benefício de pensão por morte. Os empregadores - patrocinadores dos planos de benefícios - estavam convencidos de que, para manter um corpo qualificado e motivado de empregados, era preciso oferecer uma previdência complementar atraente e consistente. Os dirigentes dos patrocinadores e da EFPC tinham clareza de que flexibilizar o plano previdenciário não poderia significar, como infelizmente às vezes tem acontecido, a precarização de tal relação. 2 Os conceitos essenciais desse livro são adotados em vários cursos de negociação, destacando-se o da Harvard Law School e o da London School of Economics.

O objetivo do processo de negociação era também construir uma nova relação previdenciária em bases sólidas e duradouras. Logo no início de tal processo, ao fazer as observações para a EFPC sobre os riscos jurídicos de um processo de redimensionamento e migração entre planos de previdência complementar, fiz questão de enfatizar que pouco adiantaria construir um processo unilateral, ou apenas com a aparência de participação. Na ocasião, compartilhei algumas experiências que evidenciavam que impor aos participantes um modelo que, na visão dos patrocinadores, seria eventualmente o ideal, via de regra tal desenho costumava não parar de pé. Seria preciso ter uma visão realista do processo de migração, o qual deveria ser construído em bases transparentes e objetivas, de modo a ensejar um resultado que fosse duradouro e que não gerasse grandes frustrações entre o conjunto dos participantes e assistidos. Para ilustrar essa situação, após as primeiras negociações, os representantes dos participantes e assistidos manifestaram que precisavam contratar uma assessoria atuarial especializada para assessorá-los. Embora tal empresa de atuária seria escolhida por eles, e ficaria à disposição deles, houve o pedido para que os custos de tal contratação fossem bancados pelo patrocinador ou pela EFPC. Na ocasião, houve algumas problematizações iniciais por parte de um ou outro dirigente do patrocinador e da própria EFPC. Porém, ao final da reflexão todos concordaram que, em nome do objetivo maior de construir um processo negocial em bases duradouras, tais despesas deveriam mesmo ficar com o patrocinador dos planos previdenciários. Tratava-se de um gesto positivo e de uma medida necessária para o avanço das tratativas. Em um processo de negociação que seja satisfatório para todos e perdure no tempo, é fundamental que haja uma simetria de informações. É o princípio da “decisão informada”, essencial para a consistência de um processo decisório. É de se reconhecer que há riscos no compartilhamento de certas informações, seja pela ótica da segurança da informação ou pela ótica da conveniência e oportunidade em disponibilizá-la. Mas é preciso também admitir que ocultar uma informação relevante para a formação de convicção quanto à

razoabilidade de um acordo poderá resvalar para questões éticas e pôr em risco a pretendida solidez do acordo. Se ao final de um processo de negociação houver um acordo que tenha sido gerado em razão de desconhecimento ou ocultação de informações relevantes, a tendência inafastável é que, mais cedo ou mais tarde, a parte prejudicada se sinta lesada e busque não honrar ou mesmo anular tal acordo. Aliás, para se optar por esse ou aquele método de prevenção ou resolução de conflitos, é recomendável avaliar qual é o nível de relacionamento com a outra parte. Nos métodos adversariais, de onde sobressai o do contencioso judicial, o relacionamento entre as partes fica comprometido durante e, sobretudo, após a solução da controvérsia. A negociação e a mediação tendem a compor interesses preservando a relação entre as partes e evitando que tal relação não se deteriore de um modo irreversível. Portanto, se o objetivo, ou também a necessidade, é preservar uma boa relação com a outra parte após a obtenção do resultado, a opção pela negociação não pode ser apenas retórica. Tem que ser real e lastreada em atos que busquem, ao final do processo negocial, um resultado eficiente e duradouro. No caso concreto, o ato de começar a negociação ouvindo atentamente a outra parte já havia criado um ambiente de empatia e de confiança entre os negociadores. Esse ato da contratação da consultoria atuarial fortaleceu o quadro de disposição para a convergência. Entretanto, os desafios foram enormes: o regulamento do plano BD era extremamente complexo, elaborado há muitos anos, numa época em que não eram escritos por profissionais do Direito; havia no plano previdenciário subgrupos (submassas) que se criaram ao longo dos anos e com status diferenciado; existia uma grande massa de participantes e assistidos, na casa de milhares; as reservas matemáticas eram na casa de bilhão de reais e estavam ancoradas em ativos com níveis distintos de liquidez. Outro ponto de controvérsia era o tratamento que precisaria ser dado para as ações judiciais em curso, que problematizavam aspectos específicos do plano BD.

Pela complexidade da matéria e suas múltiplas facetas, não houve neste caso em questão, pelo menos da nossa parte, o crítico problema de se avaliar se faríamos a primeira proposta (a chamada first offer). Fizemos então a primeira proposição de acordo. Naturalmente, nossas primeiras formulações ficavam aquém do que estávamos dispostos a ceder. Em todo processo negocial as concessões ocorrem gradualmente e, no caso, com variados desenhos de formatação do novo plano previdenciário. Salvo o método de negociação baseado no “é pegar ou largar”, presume-se que as partes estejam inclinadas a fazer concessões recíprocas. Portanto, presumíamos que os representantes dos participantes e assistidos estariam pedindo mais do que suas reais expectativas. Desde o início foi convencionado entre nós, enquanto uma das partes no processo de negociação, que, sob o ponto de vista da segurança jurídica, o desejável seria que todo o processo de negociação fosse validado não apenas pelos representantes sindicais e associativos, mas também, no momento oportuno, por cada um dos participantes e assistidos, por manifestação individual de vontade. Pela natureza da previdência complementar, as pretensões dos patrocinadores, participantes e assistidos deveriam ser equacionadas e aprovadas pelos dirigentes da EFPC em suas instâncias estatutárias. O redimensionamento de direitos e obrigações, no âmbito de um plano de previdência complementar, ou seja, uma transação num contexto de migração de um plano previdenciário para outro, passa necessariamente pela diretoria- executiva, conselho deliberativo e conselho fiscal da EFPC. Não bastasse todo esse processo decisório, havia ainda uma outra instância que precisaria, por mandamento legal, ser consultada e a quem caberia a palavra final: o órgão federal de supervisão das EFPC. E em tal órgão oficial, vale registrar, há também várias instâncias decisórias. Em todo esse processo, foi fundamental o ambiente de boa-fé, a confiança recíproca, a liderança decidida por parte dos diretores e conselheiros da EFPC, além do firme compromisso do patrocinador quanto ao desejo de se evitar a judicialização daquelas mudanças.

Na primeira reunião com o CEO da companhia patrocinadora, certamente uma das maiores do País e, na sua atividade econômica, talvez a maior do Brasil, dois pontos me chamaram a atenção: a primeira foi ouvir desse CEO que ele gostaria de construir algo negociado que resistisse à ação decantadora do tempo; a segunda foi notar que, durante as duas reuniões naquela Presidência, o dirigente maior do patrocinador manteve concentração total no objeto em discussão, sem qualquer distração de celular, bilhete de secretária ou qualquer outra coisa que pudesse desviar a atenção. Como se sabe, um dos desafios do mundo contemporâneo é estar fisicamente num lugar e também estar mentalmente neste mesmo lugar. Em especial por se tratar de um processo de negociação, a concentração e o foco no assunto em questão não é apenas um ingrediente para a eficiência, é também uma demonstração de respeito com os demais interlocutores, o que não deixa de ser igualmente eficiente. Pela EFPC havia um dirigente que também concorreu extraordinariamente para o êxito final, pois conciliava profundo conhecimento técnico, habilidade na gestão de pessoas e notável autocontrole. Ao longo do processo de negociação, houve o esforço de parte a parte para preservar os eixos comuns estruturantes da nova relação previdenciária, discernindo-se o que era essência daquilo que era aparência. Em um momento ou outro pode ter havido algumas exigências que se davam mais em razão da necessidade de preservar alguma liturgia e construir uma “saída honrosa” do que necessariamente alterar algo importante. Nessas situações, sobretudo olhando o caso em perspectiva, creio ter havido sensibilidade e bom senso dos negociadores, de parte a parte, para as concessões recíprocas. É o tal do problem-solving approach. E aqui há outro ponto que merece ser destacado. O advogado negociador deve respeitar a decisão do cliente. O advogado recebe um mandato para, na defesa de interesses, negociar um acordo. Fixados os parâmetros da negociação e das possíveis concessões, o advogado não pode, por idiossincrasias, antipatias ou simpatias pessoais, ou por um interesse próprio, deixar de submeter-se à vontade de quem ele representa na mesa de negociação 3 .

Em relação ao caso aqui reportado, vale registrar que a boa negociação é também aquela que permite que cada uma das partes, a depender do público a que se dirige, possa se gabar das exigências obtidas ou lamentar as exigências concedidas. Apesar da complexidade das matérias em discussão, e de um processo de negociação marcado por momentos de maior ou menor otimismo, foi possível chegar-se a um resultado positivo para todos. Há três evidências objetivas para tal afirmação: -a primeira é o fato de que o pedido de alteração dos regulamentos dos planos previdenciários e do estatuto da EFPC foram protocolados junto ao órgão federal de supervisão com a presença de representantes da EFPC, dos participantes e assistidos, e dos patrocinadores, numa demonstração inequívoca de que havia um consenso sobre a amplo redesenho daquela relação previdenciária. -aberto o processo de migração, o nível de adesão ao novo plano previdenciário foi substancialmente superior à própria meta fixada internamente pelos patrocinadores e pela EFPC. -passados muitos anos do ocorrido, não houve qualquer judicialização sobre a matéria. E o plano previdenciário continua aberto a novas adesões e está bem maior do que há anos atrás. Em relação às migrações entre planos de benefícios de EFPC, tão comuns nos anos 1990 e início dos anos 2000, somente muito tempo depois é que o Poder Judiciário acabaria oferecendo segurança jurídica ao setor de previdência complementar. Por ocasião da negociação aqui relatada, quase todo processo de migração terminava na Justiça. Era então comum o Judiciário anular partes da migração consideradas “nocivas” aos interesses dos participantes e assistidos, preservando-lhes, porém, as partes tidas como “benignas”, em um completo

3 Nos Estados Unidos, a matéria é expressamente disciplinada pelo The American Bar Association’s Model Rules of Professional Conduct: “a lawyer shall abide by a client’s decision whether to settle a matter”.

desprezo pelo conjunto da migração, concebida como um arcabouço uno e integrado com ônus e bônus para as partes (patrocinadores, de um lado, e participantes e assistidos, de outro). A pacificação da matéria só veio a ocorrer pelo Poder Judiciário anos depois, com a decisão do Superior Tribunal de Justiça, primeiro no AgRg no AResp 504.022/SC 4 , de Relatoria do Ministro Luís Felipe Salomão, um dos mais brilhantes magistrados deste País. Logo depois, em sede de Recurso Repetitivo, no REsp Repetitivo 1.551.488/MS, também de Relatoria do Ministro Salomão, a matéria foi definitivamente pacificada 5 . Em resumo, após anos de insegurança jurídica, o STJ decidiu que: 1) para se anular algum ato em processo de migração entre planos previdenciários é preciso demonstrar, fundamentadamente, nos termos do Código Civil, algum vício de consentimento (erro, dolo ou coação); 2) se for demonstrado tal vício, todo o negócio jurídico, ou seja, todo o processo de migração deve ser anulado, pois se trata de algo uno, um todo orgânico, com ônus e bônus para as partes que transacionaram. Hoje a judicialização de processos de migração se tornou algo raro, seja porque a quase totalidade de EFPC já promoveram ajustes em seus planos de benefícios e migrações entre eles, seja pelo fato de que há uma jurisprudência do STJ que deu autoridade à legislação federal especializada (Leis Complementares 108/2001 e 109/2001).

4 “A migração - pactuada em transação - do participante de um plano de benefícios para outro administrado pela mesma entidade de previdência privada, facultada até mesmo aos assistidos, ocorre em um contexto de amplo redesenho da relação contratual previdenciária, com o concurso de vontades do patrocinador, da entidade fechada de previdência complementar, por meio de seu conselho deliberativo, e autorização prévia do órgão público fiscalizador, operando-se não o resgate de contribuições, mas a transferência de reservas de um plano de benefícios para outro. (REIS, Adacir. Curso básico de previdência complementar. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 76)................ Em havendo transação, o exame do juiz deve se limitar à sua validade e eficácia, verificando se houve efetiva transação, se a matéria comporta disposição, se os transatores são titulares do direito do qual dispõem parcialmente, se são capazes de transigir - não podendo, sem que se proceda a esse exame, ser simplesmente desconsiderada a avença”. Acórdão do AgRg no AResp 504.022/SC 5 “Em havendo transação para migração de plano de benefícios, em observância à regra da indivisibilidade da pactuação e proteção ao equilíbrio contratual, a anulação de cláusula que preveja concessão de vantagem contamina todo o negócio jurídico, conduzindo ao retorno ao statu quo ante”. REsp Repetitivo 1.551.488/MS.

No que diz respeito aos conflitos da previdência complementar passíveis de resolução por meio da negociação, é interessante notar o que se passa atualmente em matéria de retirada de patrocínio. A retirada é um direito do patrocinador, previsto na legislação da previdência complementar. Porém, de acordo com essa mesma legislação e com as normas do órgão regulador, a retirada de patrocínio deve ser conduzida com o conservadorismo e a prudência compatíveis com sua excepcionalidade e sua irreversibilidade. É razoável supor que algumas retiradas de patrocínio, mesmo que se viabilizem com aparente sucesso no curto prazo, venham a ser objeto de arrastados processos judiciais, gerando por um longo tempo insegurança jurídica para as partes em litígio, inclusive para os balanços contábeis das empresas patrocinadoras. Em matéria de resolução de conflitos na previdência complementar, ressalvadas aquelas situações em que não se pode transigir, a negociação pode ocupar um espaço enorme, com custos menores, discrição, tempo menor para uma solução, previsibilidade sobre o dia seguinte ao acordo e, o que em algumas situações também é muito importante, preservação do relacionamento entre as partes. Por todo o exposto, o caso aqui relatado pode ser visto como um exemplo de sucesso do instituto da negociação na previdência complementar.

(*) ADACIR REIS é advogado e sócio do Escritório Adacir REIS ADVOCACIA, sediado em Brasília. Ex-Secretário de Previdência Complementar (2003/2006). É autor do livro Curso Básico de Previdência Complementar (Editora RT). Foi titular da Comissão de Juristas do Senado Federal para a Reforma da Lei de Arbitragem e Mediação. É Presidente do Instituto San Tiago Dantas de Direito e Economia.