DIREITO DE MANUTENÇÃO DE CONTRATO COLETIVO DE PLANO DE SAÚDE PARA O APOSENTADO E O EX-EMPREGADO DEMITIDO SEM JUSTA CAUSA – BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O JULGAMENTO DO RESP Nº 2097609/RJ

  

Resumo

O presente ensaio busca fazer uma reflexão crítica sobre a controvérsia existente acerca da possibilidade de manutenção do contrato de plano de saúde coletivo após o fim da relação de emprego e seus reflexos para as partes envolvidas. A ideia é enfrentar os entendimentos usados pelos tribunais para decidir as ações que buscam o reconhecimento do direito de manter o contrato para utilização dos serviços dos planos/seguros saúde após a extinção do vínculo empregatício, tendo em vista a polêmica envolvendo o serviço de natureza essencial e a defesa dos direitos dos consumidores vulneráveis. Para tanto, será feita uma abordagem técnica sobre as regras e institutos jurídicos envolvidos, bem como a análise dos entendimentos dos tribunais sobre o tema, e modo a demonstrar o atual estágio da discussão e das principais linhas de argumentação usadas pelas partes que tem interesses econômicos diametralmente opostos. No julgamento do REsp nº 2097609 (decisão monocrática proferida pelo Relator Ministro Humberto Martins) foi reconhecido o direito de manutenção do contrato, como será demonstrado. A abordagem será feita a partir da análise do julgamento do REsp nº , base concreta para nortear a discussão que afeta milhares de pessoas em todo o país e que precisa de uma análise técnica adequada, iluminada pelos princípios que regem as relações de consumo contemporâneas. A provocação para uma reflexão é o principal objetivo do artigo, cujas conclusões são abertas a um necessário diálogo das fontes normativas e o imperioso aperfeiçoamento dos mecanismos usados na defesa dos direitos dos cidadãos consumidores.

Artigo

1- DA PROTEÇÃO DA SAÚDE E A BUSCA PELA HARMONIZAÇÃO DOS INTERESSES ENVOLVIDOS NA RELAÇÃO DE CONSUMO:

No Brasil atualmente há mais 51 milhões de pessoas que mantem contrato para utilização dos serviços prestados pelos planos de saúde. Dados divulgados em julho de 2024 comprovam que praticamente um em cada quatro cidadãos possuem cobertura contratual, com um aumento de 0.49% em relação aos números divulgados entre janeiro e maio. Este crescimento comprova a necessidade de proteção pelos órgãos competentes, especialmente quando temos mais de 80% do público ligados a contratos de natureza coletiva; muitos deles caracterizados pelos denominados “falsos coletivos”. No segmento dos planos médico-hospitalares houve um crescimento considerável, com um acréscimo de 843.601 beneficiários em comparação ao mesmo período do ano anterior. A análise dos dados setoriais realizada entre maio e abril de 2024 indica um aumento de 154.118 usuários. Constata-se a predominância dos planos coletivos, que representam um universo de mais de 42.136.564 inscritos. Os contratos da modalidade coletivo empresarial representam 36.067.153 beneficiários, enquanto o plano individual/familiar tenha uma base de aproximadamente 8.770.548 brasileiros. A demonstração destes números permite uma visão geral que deveria gerar a adoção de políticas públicas voltadas à preservação destas relações, mas o que percebemos é justamente o oposto, pois são muito frequentes os relatos de problemas enfrentados pelos usuários de planos de saúde que vêm sofrendo com sucessivos cancelamentos contratuais em massa, cenário agravado pelas mudanças econômicas que atingem o mercado, cada vez mais concentrado e sem efetivas alternativas para os consumidores. Esta é a base para o enfrentamento do problema ora discutido, analisar o cenário de uma forma macro para compreender as mudanças setoriais nos últimos anos e os impactos negativos que são gerados para os usuários, que a ada dia têm menos opções de mobilidade na estrutura de mercado que aumenta a já reconhecida dependência aos serviços de natureza essencial, base mínima para assegurar uma existência digna. O mercado está cada vez mais concentrado nas grandes cidades, com grupos internacionais adquirindo o controle de planos de saúde tradicionais e deixando de ofertar novas opções de contratação de planos individuais/familiares. Tal fato tem gerado reflexos negativos para os consumidores, que sofrem com a limitada possibilidade de contratarem um novo plano se não puderem mais serem mantidos em empregos onde os empregadores sejam estipulantes, dada a ausência quase que completa de novas vagas para a modalidade individual. A concentração de mercado e a ausência de novas vagas para contratação de planos individuais é uma característica marcante do mercado atual. Este fato deve ser reconhecido para que as provocações feitas sejam compreendidas em sua plenitude. Muitos problemas nascem quando uma pessoa que tem o seu vínculo empregatício extinto; seja por sua própria iniciativa ou quando feita alheia à sua vontade. Encontrar um novo plano de saúde adequado não é tarefa simples, mesmo para corretores experientes. Nos últimos anos os empresários do setor mudaram suas estratégias comerciais e deixaram de ofertar novas vagas para a contratação de planos individuais e familiares. Tal fato é notório e vem gerando muitos problemas, como será adiante demonstrado. O mercado sofreu profundas modificações desde a edição da Lei nº 9.656/98, a lei dos Planos de Saúde. Havia muitas opções de mobilidade e diversas formas e contratação, o que permitia uma escolha adequada e segura para os usuários que tiveram seu vínculo empregatício extinto e desejavam continuar com um plano de saúde. Com o passar do tempo os planos reagiram às decisões judiciais que reconheciam a necessária intervenção na relação contratual para resguardarem a saúde e a vida dos consumidores, verdadeiro e necessário dirigismo contratual. Esta atuação sempre esteve sintonizada com os mais elevados princípios jurídicos de matiz constitucional: boa-fé e função social. Para combater os abusos praticados os tribunais reforçavam a necessidade e análise sistemática do direito e a necessária aplicação da teoria do diálogo das fontes normativas, contidas no art.7º da Lei 8.078/90 – o Código de Proteção e Defesa do Consumidor, norma de ordem pública e interesse social.

“Art. 7° Os direitos previstos neste código não excluem outros decorrentes de tratados ou convenções internacionais de que o Brasil seja signatário, da legislação interna ordinária, de regulamentos expedidos pelas autoridades administrativas competentes, bem como dos que derivem dos princípios gerais do direito, analogia, costumes e eqüidade.”

Nas palavras da professora Cláudia Limas Marques, uma das maiores autoridades em direito do consumidor do mundo, a Constituição passou a ser um “centro irradiador e um marco de reconstrução de um direito privado brasileiro mais social e preocupado com os vulneráveis de nossa sociedade”. Na mesma linha, o professor Bruno Miragem afirma que:

“para recodificação do sistema jurídico brasileiro aplicável às relações de consumo temos que ter em mente à finalidade do CDC. Assim é que se coloca à vulnerabilidade como princípio orientador do CDC, como uma cláusula geral de tutela da dignidade da pessoa humana a fim de garantir, nos casos concretos, os direitos da personalidade.” O Ministro do STJ João Otávio Noronha, em sua obra “Crise de fontes normativas: Código Civil x Código de Defesa do Consumidor”, consagra que:

“o aplicador das leis antes de se pensar na resolução de conflitos mediante eliminação do ordenamento, deve procurar superar estes conflitos através da convivência e conciliação das diversas fontes e diplomas legais, estabelecendo campos de incidência das normas. Desta forma, deve-se sempre, observando a casuística, optar pela harmonização das fontes, de sorte que este sistema seja fluido, mesmo diante de sua pluralidade, mutabilidade e complexidade.”

Em se tratando de relação contratual para utilização dos serviços de plano de saúde deve ser aplicada a teoria do diálogo das fontes:

APELAÇÃO CÍVEL. PLANO DE SAÚDE. RELAÇÃO DE CONSUMO. SUBSUNÇÃO À LEI 8078/90. DIÁLOGO DE FONTES A SER FEITO COM A LEI 9656/98. PRINCÍPIOS NORTEADORES DO CDC. BOA- FÉ OBJETIVA E QUALIDADE DOS SERVIÇOS. INTELIGÊNCIA DO ART. 24 CDC. FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO. NECESSIDADE DE ASSISTÊNCIA DOMICILIAR. HOME CARE, QUE SE INSERE COMO TRATAMENTO COMPLEMENTAR NOS

CASOS DEFINIDOS NO ART. 35-C, I, DA LEI 9656/98. RÉU QUE NÃO JUNTA AOS AUTOS CONTRATO FIRMADO ENTRE AS PARTES. EVENTUAL CLÁUSULA CONTRATUAL QUE LIMITA OS DIREITOS DO CONSUMIDOR, EM DETRIMENTO DE SUA SAÚDE QUE É ABUSIVA E NÃO PODE PREVALECER. INTELIGÊNCIA DO ART. 51 IV E XV, § 1º I, II E III, CDC. FRUSTRAÇÃO ÀS LEGÍTIMAS EXPECTATIVAS DO CONSUMIDOR. DANO MORAL CONFIGURADO. VERBA INDENIZATÓRIA DE ACORDO COM O DUPLO VIÉS COMPENSATÓRIO E PEDAGÓGICO-PUNITIVO. SÚMULA 209 TJRJ. PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS. RÉU QUE DEVE CUSTEAR TODAS AS DESPESAS PROVENIENTES DO TRATAMENTO DE SAÚDE DOMICILIAR DA AUTORA. RECURSO A QUE SE NEGA SEGUIMENTO, NA FORMA DO ART. 557 CAPUT CPC (APELAÇÃO Nº 0434045-40.2012.8.19.00001 - RELATORA DESEMBARGADORA CRISTINA TEREZA GAULIA - JULGAMENTO: 21/10/2014 - QUINTA CÂMARA CÍVEL).

O reconhecimento da vulnerabilidade dos usuários de planos de saúde foi uma importante base para combater os abusos praticados por muitas sociedades empresariais que exploram o setor e ganham muito dinheiro. A expressa “hipervulnerabilidade” passou a ser usada pelo Superior Tribunal de Justiça para designar os consumidores que têm a vulnerabilidade agravada, uma espécie de sensibilidade mais aflorada, que demanda uma proteção ainda mais forte e efetiva. Os planos deixaram de abrir novas vagas para captação de clientes em planos individuais/familiares pela atuação correta e protetiva da Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS. A agência reguladora limita o reajuste anual ao percentual máximo divulgado anualmente, bem como proíbe a possibilidade de rescisão unilateral por parte dos empresários do setor. Esta atuação mais protetiva é reflexo inequívoco do reconhecimento da disparidade de forças econômicas e da assimetria de informações entre as partes, tudo para assegurar uma gestão equilibrada que permita o regular desenvolvimento de atividade econômica lícita, sem permitir o abuso de posição dominante na relação contratual. Feitas estas considerações gerais e introdutórias, importante trazer para a discussão situações concretas que geram graves problemas nesta relação desequilibrada em um mercado cada vez mais concentrado, com menores opções de mobilidade e difícil preservação de contratos ativos. A grande dificuldade enfrentada pelas pessoas que perdem seu emprego e desejam manter o seu contrato de plano de saúde é o ponto que justifica a elaboração do presente artigo, bem como a resistência dos empresários do setor em assegurarem meios contratuais para que a relação seja mantida. Existem muitos casos que são judicializados pela falta de uma viável negociação entre as partes, pela impossibilidade de manutenção dos contratos ou a sua readequação a novas bases. Quando uma pessoa é demitida sem justa causa, quando ela pede demissão ou se aposenta, não há garantia de que seu contrato será mantido, ao contrário, em geral ela perde a possibilidade de manter a mesma base do negócio ou manter a rede de prestadores na qual sempre foi atendida. Ela será obrigada a encontrar um outro produto e a se submeter a novos prazos de carência, com real chance de ficar desassistida. Encontrar formas de preservar relações duradouras é tarefa vital ao direito, fato que impõe uma hermenêutica jurídica sistemática e com proteção às partes vulneráveis. As pessoas que são demitidas ou se aposentam encontram grandes dificuldades de encontrar um novo plano que seja adequado às suas necessidades, raramente há oferta de planos individuais e quando existem os valores das mensalidades são impraticáveis. A discussão jurídica merece um maior aprofundamento, o que será feito a seguir com provocações que são o reflexo de desdobramentos de casos reais, quando será feita uma análise de decisões dos tribunais e as suas fundamentações.

DO DIREITO DE MANUTENÇÃO DA PROTEÇÃO CONTRATUAL APÓS A EXTINÇÃO DO VÍNCULO – DEMISSÃO SEM JUSTA CAUSA E APOSENTADORIA – PESSOA CONTRIBUTÁRIA As regras vigentes estão sendo interpretadas de modo mais restritivo pelos empresários que possuem relação contratual com empresas de plano de saúde para utilização de seus colaboradores. Após o desligamento do empregado a maior parte dos empresários rompe a relação e cancela o contrato, impedindo que os ex-funcionários continuem a usar os serviços. Cada situação pode caracterizar uma forma de uso destes serviços, com empresas que custeiam integralmente os serviços, outras pagam parte da mensalidade e algumas oferecem contratos onde há a divisão dos custos quando há atendimento, na modalidade de co-participação. Cada situação tem as suas especiais características, sendo importante considerá-las para a sua correta análise e interpretação dos comandos jurídicos aplicáveis. Os empregados que usam o plano custeado exclusivamente pelos empregadores não possuem o direito reconhecido à sua manutenção após a extinção do vínculo, mesmo que desejassem assumir o pagamento total das mensalidades futuras. Não há obrigação legal para os empresários e nem para os planos de saúde, salvo se existir previsão em acordo coletivo. Superando uma interpretação mais restritiva e literal, deveriam ser consideradas formas de evitar uma possível (e provável) desassistência, especialmente quando a relação tenha perdurado ao longo do tempo, prestigiando a fidelização e o cumprimento dos contratos de forma duradoura. Neste sentido, vale destacar a decisão do STJ proferida no julgamento do REsp nº 1680318:

“RECURSO ESPECIAL REPETITIVO. CIVIL. PLANO DE SAÚDE COLETIVO EMPRESARIAL. EX-EMPREGADO APOSENTADO OU DEMITIDO SEM JUSTA CAUSA. ASSISTÊNCIA MÉDICA. MANUTENÇÃO. ARTS. 30 E 31 DA LEI Nº 9.656/1998. REQUISITOS NÃO PREENCHIDOS. CONTRIBUIÇÃO EXCLUSIVA DO EMPREGADOR. VIGÊNCIA DO CONTRATO DE TRABALHO. COPARTICIPAÇÃO DO USUÁRIO. IRRELEVÂNCIA. FATOR DE MODERAÇÃO. SALÁRIO INDIRETO. DESCARACTERIZAÇÃO.”

O acórdão foi a base para a origem do tema 989, tese para os fins do art. 1.040 do CPC/2015:

"Nos planos de saúde coletivos custeados exclusivamente pelo empregador não há direito de permanência do ex-empregado aposentado ou demitido sem justa causa como beneficiário, salvo disposição contrária expressa prevista em contrato ou em acordo/convenção coletiva de trabalho, não caracterizando contribuição o pagamento apenas de coparticipação, tampouco se enquadrando como salário indireto".

Este é o entendimento que vem sendo replicado , como comprova o julgamento do AgInt nos EREsp 1688854 / SP, ocorrido em 28/05/2024.

As decisões do STJ que reconhecem o direito de continuar com o contrato são mais restritivas, limitam o direito às situações em que o consumidor realizava o pagamento de parte do valor das mensalidades, situação na qual é denominado contributário. O valor ou percentual no pagamento é irrelevante, sendo imprescindível que tenha feito contribuições duradouras e sucessivas para que seu direito á manutenção seja analisado.

A base legal usada para verificar se há eventual direito de manter o contrato após o desligamento da empresa deve ser feita com a aplicação conjunta e simultânea de várias regras jurídicas, verdadeiro diálogo das fontes normativas. O tempo de permanência no contrato deveria ser uma métrica usada para garantir a manutenção por prazo superior aos indicados no art. 30 da Lei 9656/98, com aplicação da teoria do adimplemento substancial. A legislação demanda atualização urgente, existem projetos de lei tramitando e tentando readequar a legislação ao momento atual. A limitação de 24 meses poderia até ser adequada na época, mas com um mercado cada vez mais concentrado e menos ofertas para mudanças adequadas é necessário enfrentar cada caso nas suas especiais características e buscar a preservação dos contratos quando não há prejuízo para os envolvidos.

A legislação atual trata da situação em seus artigos 30 e 31, mas a sua correta aplicação impõe uma análise casuística, superando a literalidade dos comandos ali contidos. A interpretação deverá ser feita de modo mais amplo e protetivo, na linha do que determina a legislação consumerista.

O artigo 30 a Lei nº 9.656/98 estabelece um período de permanência após a perda do vínculo empregatício que varia de 6 a 24 meses, sempre com o pagamento integral das mensalidades por parte do consumidor. Mesmo que pague todo o valor cobrado o consumidor não tem direito garantido de manter o seu contrato, o que revela uma interpretação literal e desconectada dos princípios jurídicos aplicáveis. Preservar as relações jurídicas em que há contrato de caráter existencial é medida que se impõe, uma consequência natural da necessária proteção que visa coibir abusos em relações naturalmente desequilibradas.

O artigo 30 traz a limitação que deve ser flexibilizada à luz do caso concreto, permitindo mais prazo de manutenção quanto mais tempo de relação contratual já tiver transcorrido. Em sua literalidade o comando determina que:

“Art. 30.  Ao consumidor que contribuir para produtos de que tratam o inciso I e o § 1 o  do art. 1 o  desta Lei, em decorrência de vínculo empregatício, no caso de rescisão ou exoneração do contrato de trabalho sem justa causa, é assegurado o direito de manter sua condição de beneficiário, nas mesmas condições de cobertura assistencial de que gozava quando da vigência do contrato de trabalho, desde que assuma o seu pagamento integral.   § 1o  O período de manutenção da condição de beneficiário a que se refere o caput será de um terço do tempo de permanência nos produtos de que tratam o inciso I e o § 1o do art. 1o, ou sucessores, com um mínimo assegurado de seis meses e um máximo de vinte e quatro meses.” (g.n)

Percebe-se que o tempo máximo de permanência, salvo negociação coletiva em sentido contrário, seria de 24 meses ou até que encontrasse novo emprego. Na época da edição da lei poderia se razoável um prazo de dois anos para encontrar novas opções, mas há muto anos esta realidade não se mantém, há um cenário completamente diferente e que impõe mudanças na interpretação e aplicação das regras legais vigentes. A manutenção deve ser feita em razão da evidente dificuldade de se encontrar um novo plano e garantir a proteção da vida e da saúde, bases para uma existência digna. O direito à saúde é um direito fundamental (Declaração Universal de Direitos Humanos/ONU 1948 art. 25 e Constituição da República art. 6º). Importante realçar a definição de saúde da Organização Mundial da Saúde, qual seja, “é um estado completo de bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doença ou enfermidade”.

Negar o pedido de um consumidor para manter o seu contrato em que ele pague integralmente as mensalidades equivale e negar o acesso a um sistema privado que abusa de sua posição dominante na relação contratual, que praticamente expulsa os usuários não desejados e que podem ameaçar as margens de lucro desejadas, em ato que revela grande discriminação e seleção adversa de riscos, práticas abusivas e inaceitáveis que devem ser exemplarmente combatidas.

DA  ANÁLISE DO JULGAMENTO DO REsp nº O caso em análise tem uma base fática que deve ser relatada para a sua adequada compreensão. A consumidora foi contratada e ingressou nos quadros de funcionários da empresa 1990, permanecendo o vínculo até 2018, quando foi demitida sem justa causa faltando menos de dois anos para se aposentar. O vínculo de trabalho perdurou por mais de 28 anos e durante todo este período ela foi contributária realizou parte do pagamento (desconto em folha) mensalmente. Apesar de tentar amigavelmente manter o plano seu pedido foi negado, sendo efetivamente desligada (praticamente expulsa) em abril de 2020, em pleno início da pandemia da COVID-19. Havia clara manifestação de vontade em manter o contrato e assumir integralmente o pagamento das mensalidades, mas apesar dos seus esforços ela ficou sem plano e foi obrigada a buscar o Poder Judiciário. Foi ajuizada ação de obrigação de fazer com pedido de antecipação dos efeitos da tutela, mas o pedido foi negado sob a alegação da existência de limitação de 24 meses contida no artigo 30 da Lei nº 9.656/98. A interpretação literal e desconectada das características do caso foi o fundamento para a decisão que gerou perplexidade e angústia. A decisão foi recorrida e obtida tutela recursal garantindo a manutenção, desde que os pagamentos integrais das mensalidades fossem realizados pela usuária. A concessão da tutela restabeleceu a cobertura vigente e foi mantida até a sentença, que julgou improcedentes os pedidos formulados. A decisão equivocada gerou um resultado muito desfavorável: cancelamento da proteção contratual e efetiva desassistência para os beneficiários, que não tinham mais contrato ativo para realizar portabilidade e teriam de cumprir novos prazos de carência, agravando os danos já experimentados. Foi interposto o recurso de apelação para reformar a sentença que ignorou o fato de a consumidora ter se aposentado dentro do prazo de vigência dos 24 meses contidos no artigo 30, situação fática que amparava a pretensão dos consumidores. O art. 31 da Lei nº 9.656/98 é base adequada para suportar a pretensão da consumidora, que de fato se aposentou antes do término dos 24 meses em que ainda estava ligada ao plano, ainda que demitida desde 2018. Não fosse a especial situação de sua aposentadoria ela não teria o direito reconhecido, o que seria uma falha. O tempo de permanência no contrato (mais de vinte e os anos até ser demitida) e a intenção de assumir integralmente o pagamento já deveriam ser suficientes para reconhecer o seu direito, uma vez que não existiria nenhum ônus para o plano (que continuaria a receber o mesmo valor praticado, agora somente pago pela usuária) e nem para a empresa (pois nada pagaria, sendo o custeio integralmente feito pela ex-funcionária). O art. 31 diz o seguinte:

Art. 31.  Ao aposentado que contribuir para produtos de que tratam o inciso I e o § 1 o  do art. 1 o  desta Lei, em decorrência de vínculo empregatício, pelo prazo mínimo de dez anos, é assegurado o direito de manutenção como beneficiário, nas mesmas condições de cobertura assistencial de que gozava quando da vigência do contrato de trabalho, desde que assuma o seu pagamento integral.

A permanência será por prazo indeterminado, prestigiando a preservação de contratos cativos de longa duração. Correta a aplicação do art. 31 como base de reconhecimento do direito ora analisado, mais um fundamento legal para assegurar o que é justo diante do caso concreto enfrentado.

No julgamento da Apelação, após análise da Relatora e dos demais membros da Câmara Cível, foi reconhecido o direito da consumidora (e seus dependentes) na manutenção de seu contrato, nas mesmas condições vigentes, por ter se aposentado, interpretação correta diante do comando insculpido no art. 31 da Lei nº 9.656/98 e das especiais características do caso, como podemos notar na ementa do acórdão abaixo reproduzido:

“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. CANCELAMENTO DE PLANO DE SAÚDE COLETIVO EMPRESARIAL. DEMISSÃO SEM JUSTA CAUSA. BENEFICIÁRIA CONTRIBUTÁRIA. CANCELAMENTO DO PLANO APÓS PERÍODO DE REMISSÃO. Sentença de improcedência. Apelação da autora. A apelante foi demitida sem justa causa, restando menos de dois anos para sua aposentadoria e contribuía com o plano de saúde desde 01/06/2003, conforme documentos dos autos. A apelante foi demitida pela primeira ré em 02/04/2018 e fez a opção por manter-se como beneficiária do plano de saúde ofertado pela segunda ré também naquela data, pagando o valor integral das mensalidades até efetivamente se aposentar. É assegurado ao trabalhador demitido sem justa causa ou ao aposentado que contribuiu para o plano de saúde em decorrência do vínculo empregatício o direito de manutenção como beneficiário nas mesmas condições de cobertura assistencial de que gozava quando da vigência do contrato de trabalho, desde que assuma o seu pagamento integral. Precedentes do STJ e desta Corte. O rompimento imotivado do plano, cerca de 2 anos após a demissão sem justa, fere os princípios da boa fé objetiva, bem como seus deveres anexos. Sentença reformada para tornar definitiva a tutela de urgência concedida em sede de agravo de instrumento (fls. 488), julgando procedentes os pedidos contidos na ação para condenar a ré a manter o plano de saúde da autora e de seus dependentes, por prazo indeterminado, nas mesmas condições da cobertura assistencial de que gozava quando da vigência de seu contrato de trabalho, arcando a mesma com o pagamento integral da mensalidade, bem como para condenar a parte ré ao pagamento das custas judiciais e dos honorários advocatícios fixados em 10% sobre o valor da causa. PROVIMENTO DO RECURSO (0035638-91.2020.8.19.0001 - APELAÇÃO. Des(a). SÔNIA DE FÁTIMA DIAS - Julgamento: 19/10/2022 - VIGÉSIMA TERCEIRA CÂMARA CÍVEL)”

Muito importante deixar claro que nas razões do acórdão restaram enfrentadas as especiais características do caso, especialmente a condição de aposentada da consumidora, uma das bases para a fundamentação da decisão que reformou a injusta sentença. Nos Recursos interpostos pelas partes houve nítida tentativa de induzir os julgadores ao erro, pois insistem em atacar a inaplicabilidade do art. 30 da Lei dos Planos de Saúde e deixam de argumentar sobre a aplicação do art.31, que é também base jurídica apta a amparar a pretensão de manutenção do contrato.

A decisão foi correta, reconhecendo que o direito tinha como base as contribuições mensais que realizou ininterruptamente por mais de trinta anos (adimplemento substancial), pela condição de aposentada adquirida no curso da relação entre as partes (com verbas previdenciários pagas pela ex-empregadora e já quando pagava integralmente as mensalidades do plano, pela necessária preservação do contrato existencial e pela proteção de seus direitos constitucionalmente assegurados, base para uma existência digna.

A condição de aposentada da consumidora deveria ser base para afastar a tentativa de mudar o correto acórdão proferido, que diante das especiais características do caso, reconheceu o direito de manutenção que que a ex-empregadora pretende impedir. Nesta linha de argumentação é importante destacar o julgamento do REsp 1.371.271, onde a Ministra Nancy Andrighi afirmou que:"o texto legal não evidencia, de forma explícita, que a aposentadoria deve dar-se posteriormente à vigência do contrato de trabalho, limitando-se a indicar a figura do aposentado – sem fazer quaisquer ressalvas – que tenha contribuído para o plano de saúde, em decorrência do vínculo empregatício".

A Ministra Nancy comentou que a responsabilidade pela confiança constitui "uma das vertentes da boa-fé objetiva, enquanto princípio limitador do exercício dos direitos subjetivos, e coíbe o exercício abusivo do direito.” É evidente que hoje é complicado encontrar planos com cobertura adequada e preço viável para pessoas mais velhas, jovens há mais tempo. A interpretação do comando contido nos artigos 30 e 31 da Lei nº 9.656/98 deve ser feita com um olhar contemporâneo e em conformidade com a necessária proteção da saúde e da preservação dos contratos, senão vejamos:

“Tal conclusão se evidencia porque deve-se atentar para o escopo primordial da referida lei. É razoável admitir que a intenção da lei, ao permitir a manutenção do aposentado em plano de saúde, era de protegê-lo, já que, na maioria das situações, é pessoa idosa e encontra dificuldades em contratar novo plano - seja para ser aceito pelas operadoras de saúde, em razão da idade avançada, seja para conseguir arcar com a respectiva mensalidade, que, via de regra, impõe elevados valores, justamente levando em consideração a faixa etária do segurado.”

Por oportuno, convém relatar que o Min. Sidnei Beneti, analisando questão semelhante, mas interpretando o art. 31, destacou que:

(...) Não há, assim, nada que recomende a interpretação restritiva preconizada pelo Tribunal de origem. Muito ao revés, até porque se está lidando com direitos de consumidor, tudo recomenda que a norma seja interpretada de forma ampliativa, já que isso será mais favorável ao Recorrente. Nos termos propostos, o artigo 31 da Lei 9.656/98, quando se refere ao aposentado quis abranger não apenas aquele que tenha alcançado essa condição durante o período em que trabalhava na empresa estipulante, mas também aquele que já havia sido demitido quando da obtenção da aposentadoria. Em outras palavras, mesmo aqueles empregados que já tenham rompido o vínculo empregatício com a empresa estipulante podem, posteriormente, quando da obtenção da aposentadoria, requerer o benefício previsto no art. 31 da Lei 9.656/98 (REsp 1.431.723/SP, 3ª Turma, DJe 09/06/2014) (grifos acrescentados). “Destarte, como se percebe, não exige a norma que a extinção do contrato de trabalho em razão da aposentadoria se dê no exato momento em que ocorra o pedido de manutenção das condições de cobertura assistencial. Ao revés, exige tão somente que, no momento de requerer o benefício, tenha preenchido as exigências legais, dentre as quais ter a condição de jubilado, independentemente de ser esse o motivo de desligamento da empresa (REsp 1.305.861/RS, 4ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe 17/03/2015).”

O sentido de proteção conferido pela legislação deve ser o mais amplo o possível, com interpretação adequada e sintonizada na proteção dos hipervulneráveis, especialmente os aposentados, que já percorreram longo caminho, já asseguraram a manutenção das condições essenciais para garantir a cobertura das obrigações contratualmente assumidas e devem receber a tutela do Poder Judiciário para usufruírem por tempo indeterminado dos serviços contratados.

O STJ tem reconhecido o direito de o empregado aposentado manter seu plano, independente do momento em que ocorrer a aposentadoria:

AGRAVO INTERNO NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. PLANO DE SAÚDE. IRRESIGNAÇÃO SUBMETIDA AO NCPC. PLANO DE SAÚDE COLETIVO EMPRESARIAL. EMPREGADO DEMITIDO, APOSENTADO POSTERIORMENTE. PRETENSÃO DE MANTER-SE COMO BENEFICIÁRIO DO PLANO. INCIDÊNCIA DO ART. 31 DA LEI Nº 9.556/98. AGRAVO INTERNO NÃO PROVIDO. 1. As disposições do NCPC, no que se refere aos requisitos de admissibilidade dos recursos, são aplicáveis ao caso concreto ante os termos do Enunciado Administrativo nº 3, aprovado pelo Plenário do STJ na sessão de 9/3/2016. 2. O empregado demitido que vem a se aposentar posteriormente pode ser mantido como beneficiário do plano de saúde coletivo fornecido pela empresa aos seus funcionários, nas mesmas condições de cobertura existentes quando da vigência do contrato de trabalho, desde que ainda não tenha havido extinção regular da cobertura e que assuma o pagamento integral da prestação, correspondente à sua contribuição mais a contribuição patronal. 3. A permanência no plano, nessa hipótese, se dá por tempo indeterminado na forma do art. 31 da Lei nº 9.556/98, e não por tempo determinado, como previsto pelo art. 31, § 1º, do mesmo diploma. 4. A norma não exige que a extinção do contrato de trabalho se dê em função da aposentadoria ou que isso ocorra no exato momento em que apresentado o pedido de manutenção das condições de cobertura assistencial. Exige tão somente que, no momento de requerer o benefício, o consumidor tenha preenchido as exigências legais, dentre as quais ter a condição de jubilado, independentemente de ser esse o motivo de desligamento da empresa. Precedentes. 5. Agravo interno não provido. (AgInt nos EDcl no AREsp n. 1.311.712/RS, relator Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 11/5/2020, DJe de 14/5/2020.)

A proteção conferida ao aposentado deve ser efetiva e a mais ampla o possível. Não se discute se para a obtenção do direito a condição de aposentada fosse adquirida durante a relação extinta de modo unilateral. No julgamento do REsp nº 1.371.271 a ministra Nancy Andrighi destacou que:

"o texto legal não evidencia, de forma explícita, que a aposentadoria deve dar-se posteriormente à vigência do contrato de trabalho, limitando-se a indicar a figura do aposentado – sem fazer quaisquer ressalvas – que tenha contribuído para o plano de saúde, em decorrência do vínculo empregatício". Defendeu que:

“o abuso do direito –, no qual, em verdade, não há desrespeito à regra de comportamento extraída da lei, mas à sua valoração; o agente atua conforme a legalidade estrita, mas ofende o elemento teleológico que a sustenta, descurando do dever ético que confere a adequação de sua conduta ao ordenamento jurídico".

O tratamento dispensado à consumidora foi desequilibrado e não equânime, possibilitaria tratamentos diferentes para realidades fáticas iguais. A interpretação literal e isolada não pode ser mantida, pois no caso concreto pode conduzir ao seguinte resultado: dois trabalhadores contributários – um com 28 anos de trabalho e contribuição para custeio do plano de saúde e o outro com 11 anos de contribuições. O primeiro, se demitido, poderia somente manter seu plano por 24 meses. O segundo, tendo trabalhado 11 anos e se aposentado, teria direito a manter o plano por prazo indeterminado.

O cenário acima pode se concretizar e revela um tratamento completamente diferenciado, injusto e sem justificativa econômica capaz de sustentá-lo. Quem pagou por mais tempo não pode continuar no plano e o que pagou menos poderia. Isso parece justo, razoável e adequado? Não! É fruto de uma interpretação literal e distante da função social do contrato e da sua preservação.

O artigo 31 da Lei  9.656/1998 impõe que ativos e inativos sejam inseridos em plano de saúde coletivo único, contendo as mesmas condições de cobertura assistencial e de prestação de serviço, o que inclui, para todo o universo de beneficiários, a igualdade de modelo de pagamento e de valor de contribuição, admitindo-se a diferenciação por faixa etária se for contratada para todos, cabendo ao inativo o custeio integral, cujo valor pode ser obtido com a soma de sua cota-parte com a parcela que, quanto aos ativos, é proporcionalmente suportada pelo empregador.

É razoável admitir que a intenção da lei, ao permitir a manutenção de aposentados em plano de saúde, era de protegê-los, já que, na maioria das situações, são pessoas idosas e encontram dificuldades em contratar novo plano - seja para ser aceito pelas operadoras de saúde, em razão da idade avançada, seja para conseguir arcar com a respectiva mensalidade, que, geralmente, impõe elevados valores, justamente levando em consideração a faixa etária do segurado.

Nesta linha de reflexão o Ministro Sidnei Beneti, do STJ, já se manifestou nos seguintes termos:

“(...) Não há, assim, nada que recomende a interpretação restritiva preconizada pelo Tribunal de origem. Muito ao revés, até porque se está lidando com direitos de consumidor, tudo recomenda que a norma seja interpretada de forma ampliativa, já que isso será mais favorável ao Recorrente. Nos termos propostos, o artigo 31 da Lei 9.656/98, quando se refere ao aposentado quis abranger não apenas aquele que tenha alcançado essa condição durante o período em que trabalhava na empresa estipulante, mas também aquele que já havia sido demitido quando da obtenção da aposentadoria. Em outras palavras, mesmo aqueles empregados que já tenham rompido o vínculo empregatício com a empresa estipulante podem, posteriormente, quando da obtenção da aposentadoria, requerer o benefício previsto no art. 31 da Lei 9.656/98 (REsp 1.431.723/SP, 3ª Turma, DJe 09/06/2014) (grifos acrescentados).”

No julgamento do REsp nº 1.736.898 - RS restou consignado que a exclusão de beneficiário de plano de saúde coletivo, após a cessação do seu vínculo com a pessoa jurídica estipulante, está disciplinada por lei e por resolução da agência reguladora e só pode ocorrer após a comprovação de que foi verdadeiramente assegurado o seu direito de manutenção (arts. 30 e 31, da Lei 9.656/98 e RN 279/11, da ANS).

Os contratos de plano e seguro saúde revestem-se de grande importância social e econômica, justamente por ausência do Estado na prestação eficaz de direito fundamental. Na lição de Bruno Miragem (Diálogos entre a Doutrina e Jurisprudência, Ed. Atlas, 2018, p. 295/311):

“Possuem características próprias na realidade contemporânea, uma vez que a essencialidade da prestação deles pelo prestador do serviço, relacionada à promoção e preservação da saúde e da vida do contratante e demais beneficiários, e de ser um contrato de longa duração, muitas vezes perpassando toda a vida do indivíduo, reforça um grau expressivo de intervenção do Estado no conteúdo do contrato e em sua execução.”

Nesta linha vale mencionar o trabalho da pesquisadora Josiane Gomes acerca do interesse existencial dos contratos de assistência privada à saúde:

(...) nos contratos de plano de saúde, em que há permanente tensão entre os interesses da operadora – de cunho patrimonial – e os do usuário – de cunho existencial –, o que exige, pois, a ponderação desses interesses, de modo a permitir o alcance dos objetivos titularizados por ambos os contratantes. O alcance de referida ponderação reside na constatação de que a saúde é um bem cuja defesa não se confunde com a defesa de outros bens de consumo, por estar intimamente vinculada ao direito à vida, à integridade corporal e à psique, possuindo, portanto, caráter extrapatrimonial. Destarte, se ocorre violação ao direito à saúde de determinado usuário, não há como voltar ao status quo ante, o que demonstra sua superioridade a qualquer interesse porventura reclamado pela operadora de plano de saúde. (G.N) (GOMES, Josiane Araújo. Dos contratos de plano de saúde à luz da boa-fé objetiva. Revista de Direito Privado. vol. 60. São Paulo: Ed. RT, out./dez. 2014. p. 222)

Nesta linha de argumentação, em exímio voto proferido na ADI 1.931/DF, o Ministro Marco Aurélio discorre sobre a prevalência do direito à saúde ao lucro: “A promoção da saúde, mesmo na esfera privada, não se vincula às premissas do lucro, sob pena de ter-se, inclusive, ofensa à isonomia, consideradas as barreiras ao acesso aos planos de saúde por parte de pacientes portadores de moléstias graves. A atuação no lucrativo mercado de planos de saúde não pode ocorrer à revelia da importância desse serviço social, reconhecida no artigo 197 do Texto Maior.” (ADI 1.931/DF. Acórdão disponível em: Acesso em 22/05/2023)

Na mesma trilha, Regina Vera Villas Bôas expõe:

“Pensar essa relação de fornecimento de serviços de saúde como um mero fator de obtenção de lucro é permitir a ocorrência de bruscas mudanças dos valores que, ainda, permeiam a compreensão da dignidade da pessoa humana, afrontando cegamente o permissivo constitucional que informa que a iniciativa privada deve colaborar com a prestação de serviços de saúde, contribuindo com o Estado na concretização do direito fundamental social à saúde, de maneira a assegurar os direitos fundamentais à dignidade e à vida humana.” (VILLAS BÔAS, Regina Vera; REMÉDIO JUNIOR, José Ângelo. A responsabilidade jurídica das operadoras de planos de saúde privados pela recusa no atendimento do consumidor à luz da “Teoria Crítica do Direito”. Revista dos Tribunais, v. 991, mai. 2018, p. 121.)

Tais reflexões nos conduzem à inafastável conclusão que o Poder Judiciário deve intervir quando houver abuso por parte dos planos de saúde, especialmente quando o órgão regulatório seja omisso e ineficaz em regular.

A ANS em sua atuação normativa e regulatória, necessariamente, deverá observar os limites impostos pelas Leis nº 9.656/98 e 9.961/2000, além da estrita observância aos mandamentos constitucionais. A ausência de regras efetivamente legítimas para promover a proteção adequada dos direitos contratuais impõe a atuação forte do Poder Judiciário, que deve garantir a preservação dos contratos dos hipervulneráveis, especialmente daqueles que contribuíram por muitos anos para a formação do fundo comum, com adimplemento substancial de suas obrigações e garantindo funcionamento do sistema, apoiado no pacto intergeracional.

Quando não há regramento adequado do setor dos planos coletivos os players cometem abusos de sua posição dominante na relação contratual, criam inaceitável segmentação de mercado com crescente perfilização dos consumidores, até mesmo com uso de ferramentas de discriminação algorítmica, se afastando da missão constitucional de cumprir tão importante função social. A ausência de efetiva competitividade e a desídia da ANS permitem que os planos escolham com quem irão contratar, e pior, com quem terão interesse de manter os vínculos contratuais, ignorando o tempo de contribuição do consumidor para a manutenção do equilíbrio econômico da relação.

CONCLUSÃO:

O enfrentamento de cada caso deve ser feito sempre com a técnica adequada, buscando preservar as relações existentes e a necessária proteção da parte mais sensível. O artigo buscou fazer uma provocação acerca dos métodos de interpretação de fontes jurídicas aplicáveis, sempre à luz do caso concreto e com o necessário diálogo das fontes normativas que devem ser interpretadas na proteção dos hipervulneráveis.

A proteção dos interesses econômicos das empresas que exploram os serviços de plano de saúde não pode ignorar a função social dos contratos, especialmente quando temos uma relação de consumo configurada e pacto com natureza existencial. O mercado está cada vez mais concentrado, há pouca mobilidade no setor e os abusos são frequentes, como demonstram os sucessivos cancelamentos unilaterais em massa.

Neste sentido, é necessário enxergar o real sentido das regras jurídicas vigentes para não limitar indevidamente o seu real sentido e alcance, reduzindo a uma interpretação literal, superficial e desconectada da realidade. Saúde não pode ser tratada como mera mercadoria em um mercado com assimetria de informações e disparidade de forças, razão pela qual é importante realizar uma provocação a uma análise crítica do texto legal e das decisões recentes do STJ.

O caso usado como base para ilustrar a discussão é um bom exemplo de tudo o que foi dito, com discussão técnica em alto nível e ao final o correto reconhecimento pelo STJ do direito da ex-empregada demitida sem justa causa, e em seguida aposentada, manter seu contrato por prazo indeterminado desde que cumpra as obrigações contratuais, em especial o integral pagamento das mensalidades.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

Barletta, Fabiana Rodrigues; Goodman, Soraya Victoria. Reflexões sobre direitos humanos e a atual jurisprudência do STJ sobre o direito à saúde da pessoa idosa em contratos privados de planos de saúde. Revista de Direito do Consumidor. Vol. 120. ano 27. 309-340. São Paulo: Ed. RT, nov-dez./2018. Bottesini, Maury Ângelo. Lei dos planos e seguros de saúde comentada : artigo por artigo / Maury Ângelo Bottesini, Lauro Conti Machado. – 3. Ed – Rio de Janeiro: Forense, 2015. Farias, Carolina Steinmuller; Farias, Thélio Queiros. Práticas Abusivas das Operadoras de Planos de Saúde / Carolina Steinmuller Farias e Thélio Queiros Farias – 3ª Edição – Leme/ Anhanguera Editora, edição 2018. GOMES, Josiane Araújo. Dos contratos de plano de saúde à luz da boa-fé objetiva. Revista de Direito Privado. vol. 60. São Paulo: Ed. RT, out./dez. 2014. p. 222. Gregori , Maria Stella. Planos de Saúde – A ótica Da Proteção Do Consumidor. São Paulo : Thomson Reuters Brasil. 2019. Kfouri, Miguel e Nogaroli, Rafaela. Debates Contemporâneos em Direito Médico e da Saúde. São Paulo : Revista dos Tribunais, Thomson Reuters Brasil, 2020. Martins, Fernando Rodrigues. A saúde privada suplementar como sistema jurídico hipercomplexo e a proteção à confiança. Revista de Direito do Consumidor. Vol. 120. ano 27. 77-101. São Paulo: Ed. RT, nov-dez./2018. Pereira, Daniel de Macedo Alves. Planos de Saúde e a tutela judicial de direitos – teoria e prática. São Paulo: Saraiva, 2019. Pereira Junior, Antonio Jorge; Norões, Mariane Paiva; Pinheiro Neto, Francisco Miranda. Análise de decisões do Superior Tribunal de Justiça a partir das características do negócio jurídico de assistência privada à saúde. Revista de Direito do Consumidor. Vol. 118. ano 27. 331-361. São Paulo: Ed. RT, jul-ago./2018. Schmitt, Cristiano Heineck. Consumidores Hipervulneráveis: a proteção do idoso no mercado de consumo / Cristiano Heineck Schmitt. – São Paulo: Atlas, 2014.