O LIBERALISMO NA HISTÓRIA DAS CONSTITUIÇÕES FEDERAIS BRASILEIRAS

  

Resumo

O presente artigo é uma homenagem ao advogado brasileiro Luiz Werneck Vianna, que também foi sociólogo, pesquisador, professor e escritor, e faleceu no dia 21 de fevereiro deste ano. Segundo suas obras, a trajetória do liberalismo político sofreu diversas oscilações devido à alternância de diferentes tipos de cartas constitucionais na história recente do Brasil. Contendo normas jurídicas mais rígidas ou mais democráticas, as sete constituições federais brasileiras incluem a atual, datada de 1988, e as dos anos de 1824, 1891, 1934, 1937, 1946 e 1967. Ao longo dos séculos XIX e XX, quatro destas cartas foram promulgadas (por assembleias constituintes), duas foram outorgadas e uma foi ratificada pelo Congresso sob pressão da Ditadura Militar. Nos textos de cada uma, os moldes do pensamento liberal sempre estiveram em evidência, seja absorvendo os ideais liberais de forma positiva ou até rejeitando a sua influência – este último aspecto pode ser percebido nos textos redigidos pelo jurista Francisco Campos. O legado de cada qual permanece após a redemocratização do país, nos anos 1980, mas os desafios de ordem política, econômica e social ainda permanecem no século XXI, como pode ser verificado por meio da disseminação do fenômeno do populismo, evidenciado pelo cientista político Francisco Correia Weffort no final deste artigo.

Artigo

O LIBERALISMO NA HISTÓRIA DAS CONSTITUIÇÕES FEDERAIS BRASILEIRAS

Luísa Borges Pontes

Resumo O presente artigo é uma homenagem ao advogado brasileiro Luiz Werneck Vianna, que também foi sociólogo, pesquisador, professor e escritor, e faleceu no dia 21 de fevereiro deste ano. Segundo suas obras, a trajetória do liberalismo político sofreu diversas oscilações devido à alternância de diferentes tipos de cartas constitucionais na história recente do Brasil. Contendo normas jurídicas mais rígidas ou mais democráticas, as sete constituições federais brasileiras incluem a atual, datada de 1988, e as dos anos de 1824, 1891, 1934, 1937, 1946 e 1967. Ao longo dos séculos XIX e XX, quatro destas cartas foram promulgadas (por assembleias constituintes), duas foram outorgadas e uma foi ratificada pelo Congresso sob pressão da Ditadura Militar. Nos textos de cada uma, os moldes do pensamento liberal sempre estiveram em evidência, seja absorvendo os ideais liberais de forma positiva ou até rejeitando a sua influência – este último aspecto pode ser percebido nos textos redigidos pelo jurista Francisco Campos. O legado de cada qual permanece após a redemocratização do país, nos anos 1980, mas os desafios de ordem política, econômica e social ainda permanecem no século XXI, como pode ser verificado por meio da disseminação do fenômeno do populismo, evidenciado pelo cientista político Francisco Correia Weffort no final deste artigo.

Palavras-chave – Liberalismo, Pensamento Liberal, Constituição Federal, Luiz Werneck Vianna, Francisco Correia Weffort

[1] Luísa Borges Pontes é advogada (inscrição nº 216.691 - OAB/RJ), jornalista, escritora e mestranda em Ciências Sociais e Políticas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. É graduada em Direito (Universidade Candido Mendes) e Jornalismo (PUC-Rio) e pós-graduada em Sociologia (PUC-Rio). Entre suas ocupações, foi assessora de comunicação e integração do Governo do Estado do Rio de Janeiro, produtora editorial jurídica da FGV Projetos, editora da Revista da Associação dos Juízes Federais do Rio de Janeiro e Espírito Santo (AJUFERJES), articulista da Revista do Tribunal de Contas do Município do Rio de Janeiro (TCMRJ) e repórter do Jornal O Globo

Sumário – Introdução. 1. A Evolução das Constituições Federais Brasileiras. 2. As Oscilações do Liberalismo Político na História Recente do País. 3. O Populismo no Cenário Político Brasileiro. 4. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

            Considerado o “pai do liberalismo”, o filósofo inglês John Locke teorizou que a racionalização e positivação das leis representavam a garantia de proteção dos direitos naturais dos seres humanos, tais como a vida, a liberdade e a propriedade. Segundo Locke, “onde não há lei, não há liberdade”, e todos os indivíduos deveriam ser tratados como iguais perante a norma jurídica. A base do pensamento liberal moldou os ideias da burguesia contra as monarquias absolutistas no século XVII e, a partir de revoluções insurgidas na Europa, lograram limitar a atuação do poder estatal, ceifando privilégios aristocráticos e assegurando o princípio da autonomia individual. Diante da outorga ou promulgação de cartas magnas brasileiras ao longo dos séculos XIX e XX, autores diversos vêm desenvolvendo estudos e pesquisas, como também comentários críticos, a respeito da evolução política, social e constitucional que moldou o Brasil atual, cujas influências do liberalismo político sofreram reveses no decorrer de sua história.

  1. A EVOLUÇÃO DAS CONSTITUIÇÕES FEDERAIS BRASILEIRAS

 

De acordo com o sociólogo Caio Prado Júnior, “a Constituição Federal é a tradução do equilíbrio político de uma sociedade em normas jurídicas fundamentais”, o que significa que as cartas constitucionais só podem ser devidamente compreendidas a partir da análise do contexto histórico a que pertencem. Datada de 1824, a primeira carta magna outorgada no país após a Independência ficou conhecida como a “Constituição do Império” – que pretendia parecer liberal sem perder o caráter institucional da economia escravista. Em sua redação, o conceito de cidadania foi embutido a partir de duas categorias: ativa e não-ativa, em função dos critérios de liberdade e propriedade. Os cidadãos ativos eram homens livres acumuladores de propriedades e renda, requisitos que os alçavam à condição de eleitores, podendo até pleitear cargos como deputados ou senadores eleitos. Tal processo agravou ainda mais a exclusão dos escravos e ex-escravos no que diz respeito ao conceito de cidadania, visto que eram considerados “não-ativos” por não se enquadrarem nos parâmetros mencionados.

De teor republicano, a carta magna de 1891 (pós-proclamação da República de 1889) instituiu a República Federativa, reorganizando o regime político, que passou a ser, ao menos no sentido formal, presidencialista, federalista e representativo, rompendo com a herança monárquica e centralizadora da carta política do Império de 1824 (a qual tentou adaptar uma tendência constitucionalista do liberalismo aos moldes do Antigo Regime). A partir de então, inspirados pelo modelo liberal norte-americano, os estados ganharam autonomia e, seguindo a fórmula tripartita de Montesquieu, os poderes foram divididos em três, independentes e harmônicos entre si, para fins de executar, legislar e julgar. Este período ficou conhecido como a “Primeira República”.

            Já a Constituição de 1934 (pós-Revolução de 1930) manteve os princípios liberais do federalismo, presidencialismo e representatividade, ampliando os direitos sociais, econômicos e trabalhistas (como a regulamentação do trabalho de mulheres e crianças) e promovendo reformas jurídicas e políticas (como o voto das mulheres). Ressalta-se que no início dos anos XX nascia o movimento sindical (a partir de greves, composição do Partido Comunista, etc.) e, devido à sua rápida expansão, urgiu entre as classes dominantes a necessidade de organizar a classe operária para mantê-la sob domínio do Estado. Este período ficou conhecido como “Segunda República”, que sucedeu à primeira carta política republicana. Todavia, em face da deterioração das condições de vida da massa trabalhadora, em contraste às tendências despóticas do governo, em 1937 Getúlio Vargas fechou o Congresso Nacional e outorgou outra constituição, que deu origem ao Estado Novo. De caráter autoritário e ditatorial, a nova carta amplificou a atuação do Poder Executivo, que endureceu a intervenção do governo federal sobre os estados, atrofiando a autonomia dos poderes tripartitos e debilitando os princípios do federalismo e da representatividade. A vigência do Estado Novo, por meio da “Constituição Polaca”, ficou conhecida como a “Terceira República”.

Até 1942, Getúlio Vargas governou de forma autocrática e corporativista, mas a entrada do Brasil na 2ª Guerra Mundial em território europeu, em favor dos democratas contra os fascistas, foi a gota d’água para eclodirem pressões de diversos setores da sociedade, a fim de derrubar o regime autoritário vigente, cujas bases constitucionais apregoadas pela carta de 1937 coincidiam com as do fascismo. Foi uma época marcada por efervescência política e social por meio de partidos, movimentos e associações sindicais autônomas que, em 1945, presenciaram não apenas a destituição de Vargas, como também a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte, seguida por eleições, tanto para a escolha de um novo presidente da República quanto para a elaboração de uma nova Constituição Federal, promulgada em 1946. Com grande representatividade, a nova carta resgatou os princípios liberais previstos pela de 1934, adotando um tom mais democrático e, inclusive, contando com a representação, na Constituinte, do Partido Comunista (abolido do cenário nacional pelo governo despótico anterior). Como princípios basilares, resgatou-se a divisão do poder definida em três instâncias (Executivo, Legislativo e Judiciário), bem como a justa distribuição de competências entre as três esferas administrativas (União, estados e municípios) e os direitos sociais atrelados à cidadania (os quais foram depauperados pela carta anterior). Bebendo na fonte do liberalismo, a Constituição de 1946 deu início à primeira redemocratização do Brasil – período que ficou conhecido como a “Quarta República” ou “República Populista”.

Duas décadas se passaram desde a promulgação da carta magna quando o cenário geopolítico passou a revelar a tensão do pós-guerra que cindiu o mundo numa disputa “fria” entre as potências dos EUA e da URSS (divididos entre o Ocidente capitalista versus o Oriente socialista). A polarização ideológica deflagrou um temor sobre a ameaça da suposta “revolução comunista”, que desencadeou uma onda ultra conservadora no cenário político brasileiro, cujo ápice foi o Golpe Militar de 1964, por meio do qual João Goulart foi destituído da presidência da República. Desse modo, a magna-carta de 1946 foi substituída pela dos militares em 1967, que usurparam o poder constituinte e autoproclamaram seu movimento como “revolucionário”. A Constituição de 1967 ficou conhecida por seus atos institucionais e extremo rigor, atrofiando o caráter liberal e democrático do documento constitucional anterior. Sob a justificativa de assegurar a ordem e a segurança nacionais, parlamentares foram cassados pela Junta Militar que comandava o país, e o Poder Executivo voltou a legislar por meio de emendas constitucionais e decreto-leis. O princípio federalista foi depauperado, diminuindo substancialmente a autonomia de estados e municípios, e os direitos e garantias constitucionais ficaram igualmente debilitados em face do novo cenário político. Em 1968, o Ato Institucional nº 5 concedeu poderes ilimitados e soberanos ao presidente da República – decretando medidas radicais como o recesso do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas e das Câmaras de Vereadores, e até prevendo punições como a pena de morte. Em 1969, tais medidas foram inseridas no texto constitucional na forma da Emenda Constitucional nº 1, caracterizando o período mais sombrio e autoritário da história recente do Brasil.

Promulgada em 1988, a última constituição federal é conhecida popularmente como a “Constituição Cidadã”. Após a reabertura dos porões da Ditadura Militar, o novo documento se tornou símbolo da redemocratização e da salvaguarda dos direitos e liberdades fundamentais que vigoram até hoje no Estado Democrático de Direito, prezando pelas garantias da dignidade humana e dos direitos universais, tais quais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, e a assistência aos desamparados. Na obra “Revolução processual do direito e a democracia progressiva”, o sociólogo Luiz Werneck Vianna afirmou que a atuação das instituições públicas e a manutenção do critério de isonomia entre os Três Poderes, legitimados pela carta de 1988, vêm sendo consolidados nas últimas décadas, revelando o caráter consistente e institucionalizado das normas jurídicas, cuja inspiração nos movimentos sociais democráticos dos anos 1980 (como a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte, em 1987), abriram caminho para uma mudança social efetiva, como coligido a seguir:

[...] Daí que a Carta de 1988, ao recepcionar os institutos que amparam os direitos subjetivos públicos e que caracterizam a revolução processual em curso no direito contemporâneo, preservou, inovando, a relevância do papel civilizatório do direito na sociedade brasileira, marca que lhe vem desde a criação do Estado-nação. [...] Foram tais condições de insulamento do Estado, protegido do ambiente escravista e patrimonial por uma institucionalidade jurídico-política liberal, que lhe permitiram servir de referência para a formação, e posterior expansão, de um “setor livre” das limitações contextuais, ponto de partida da civilização brasileira (p. 383, § 2º)

  1. AS OSCILAÇÕES DO LIBERALISMO POLÍTICO NA HISTÓRIA RECENTE DO PAÍS

Retomando as questões políticas do passado, o jurista Francisco Campos esteve no centro de eventos históricos autoritários que confrontavam o liberalismo político no Brasil. Responsável por redigir os textos tanto da carta constitucional de 1937 quanto do AI-1 de 1964, foi autor do livro “O Estado Nacional”, em que defendeu o modelo político tecnocrático, sob o argumento de que o voto popular não teria valor. Campos acreditava que havia uma tendência no mundo moderno no sentido de expurgar o liberalismo político, tornando-se necessário romper com seus moldes, uma vez que suas leis eram feitas para proteger o indivíduo do Estado. Deste modo, a fim de manter os trabalhadores sob tutela estatal, essa lógica precisaria ser invertida e, para tal, a legislação deveria conter um caráter técnico, cujo privilégio da iniciativa das leis estaria centralizada no presidente da República. O jurista afirmava que o Estado não tinha caráter negativo, mas positivo, fundamentado na concepção de um regime forte e centralizador. Segundo essa vertente, “a liberdade escraviza, mas a lei liberta”; o que significava, em suma, que “era o liberalismo que conduzia ao marxismo”. Sob este pretexto, nos momentos mais rígidos da história brasileira, o Poder Judiciário foi convertido a “mero carimbador” (embora houvesse uma tendência mundial de valorizá-lo como “intérprete”), e as minorias foram “engolidas” pela vontade estatal. Entre 1937 a 1945, no período do Estado Novo, foi implementado um movimento conservador de defesa do Estado forte, aliado à ação tecnocrática e dirigista do Poder Executivo, enquanto o Brasil seguia em prol da modernização – embora tal processo tenha ocorrido de forma deformada, a fim de reter o controle social sob comando estatal.

Já na obra “Liberalismo e sindicato no Brasil”, Werneck Vianna utilizou como referencial teórico o livro “Origens sociais da ditadura e da democracia”, escrito nos anos 1960 pelo sociólogo norte-americano Barrington Moore Jr., o qual analisou a passagem das sociedades agrárias para as industriais nos maiores países do mundo. Seu principal argumento era fundamentado no modo como se estruturavam as relações entre senhores e camponeses nas zonas rurais, pois, segundo ele, estas condicionariam a formação dos regimes políticos adotados pelos Estados modernos industrializados. Desta forma, para que os países fossem classificados como autoritários ou democráticos, o fator decisivo dependeria da articulação de classes fundamentais. Segundo Werneck Vianna, o processo de modernização da sociedade brasileira se assemelhou ao da Alemanha, visto que sua iniciativa partiu do Estado, ou seja, “de cima para baixo”, pois os detentores do poder “de cima” nunca perderam o controle sobre os “de baixo” – o que pode ser ilustrado a partir da constatação de que a legislação trabalhista manteve os sindicatos sob tutela do Estado nos anos 1930. Isto posto, o que ocorreu no Brasil demonstrou ser uma espécie de “mudança para conservar”, representando uma “revolução” sob pretexto modernizante, cenário em que o controle das classes subalternas foi mantido e, as elites, preservadas, como pode ser visto a seguir:

[...] O projeto liberal dos nossos empresários, na linha do que tentamos há pouco sustentar, dependia da conquista de posições de força a partir da sociedade civil, donde pudessem contestar com folga a política do Estado. Articulados como estavam aos agrários, ao amparo de instituições burguesas edificadas por esses e da sua força político-social, podiam dispensar utopias burguesas de extração revolucionária. (p. 88, § 2º)

No período do Estado Novo, houve a ascensão do nacionalismo, bem como a expansão do “surto da modernização” empreendido por Getúlio Vargas – neste período, de acordo com o sociólogo Florestan Fernandes, na obra “A revolução burguesa no Brasil”, o desenvolvimento do mercado interno e a formação das cidades alavancaram a instauração de diretrizes capitalistas e relações mercantis de produção e troca, provocando a emergência, universalização e consolidação da ordem social competitiva. Isto significa que o novo setor econômico expandiu-se de forma relativamente caótica e indisciplinada, típica da eclosão do mercado capitalista em economias coloniais em transformação, como era o caso brasileiro. Nesta época, o mundo atravessava os efeitos da 2ª Guerra Mundial, enquanto o Brasil desenvolvia uma espécie de “simpatia” por partidos envolvidos na guerra – embora fosse difícil para os países do continente americano estabelecerem qualquer aproximação por conta da distância territorial. Diante disso, Vargas manifestou posição favorável aos norte-americanos, negociando com eles o processo de industrialização brasileira, e assim um pólo industrial foi montado no município fluminense de Volta Redonda. Em troca, o Brasil cedeu parte da região do Nordeste para a realização de operações da Aeronáutica dos EUA – pode-se afirmar que o impacto gerado pela ocupação americana foi tamanho que até manifestações culturais como o forró (oriundo da expressão em inglês “for all”) receberam suas influências, com reflexos permanentes na cultura nacional.

A guerra global terminou com a vitória dos aliados, ocasião em que o exército expedicionário retornou ao Brasil. No decorrer do tempo, Vargas se viu perdendo sustentação política; contudo, em 1950 disputou as eleições populares e saiu vitorioso, tornando-se um presidente constitucional e retomando o projeto de modernização do Brasil. Porém, a resistência a seu governo foi acompanhada por pedidos de reformas, e mais uma vez criou-se um espaço intenso de oposição à gestão varguista, a qual ganhou projeção nacional a partir do atentado ao líder oposicionista Carlos Lacerda, em 1954 (em que o político ficou apenas ferido, mas seu guarda-costas foi morto a tiros). Na época, as investigações associaram a autoria do atentado ao chefe de segurança do Palácio do Catete, Gregório Fortunato, e tal fato foi o estopim para a derrocada de Vargas, que assim se viu execrado pela opinião popular. Mas, após tirar a própria vida, ele foi alçado a herói nacional, deixando uma carta estratégica onde escreveu que o “povo que era escravo não será mais escravo de ninguém”. Em decorrência de seu suicídio, em 1954, Vargas frustrou a tentativa da ala política de direita de chegar ao poder, deixando um legado para a política varguista do PDT, partido que havia sido criado pelo próprio.

Em 1955, em meio a tensões sociais e políticas, um governador de Minas Gerais, que anteriormente tinha ocupado o cargo de prefeito de Belo Horizonte, conseguiu vencer as eleições presidenciais: seu nome era Juscelino Kubitschek. De origem muito modesta, era inteligente e trabalhador e, além de financiar seus próprios estudos da faculdade de medicina, conseguiu uma bolsa para estudar urologia na França após a conclusão do curso. Como prefeito, Kubitschek modernizou a capital – inclusive encomendando obras do arquiteto Oscar Niemeyer –, e sua gestão não apenas se tornou muito bem vista, como foi comparada à modernização empreendida por Getúlio Vargas em sua passagem pelo Poder Executivo. Como presidente, Juscelino manteve a política de urbanização adotada na gestão da prefeitura da capital mineira, formulando o projeto “50 anos em 5”. Considerada a “cereja do bolo” de seu mandato, a missão de projetar Brasília foi entregue ao arquiteto e urbanista Lúcio Costa, tendo sido concluída em 1961, ano de inauguração da capital federal em pleno centro-oeste do território brasileiro, a qual se tornou a mais nova sede do poder federal.

Por meio da transferência da sede nacional do Rio de Janeiro para Brasília, Juscelino descentralizou as estruturas das regiões sul-sudeste em direção às do centro-oeste-norte. Em decorrência disso, o Rio de Janeiro foi esvaziado politicamente – por outro lado, já era sabido que, desde os tempos do Império, a cidade era considerada a “capital do conflito”. No entanto, o presidente não se deu por satisfeito e virou o país de “ponta-cabeça”; passando por cima dos conflitos tradicionais do Brasil, ele dirigiu um movimento que ficou conhecido como a “fuga para frente”, a partir do desenvolvimento de projetos de modernização de rodovias, indústria automobilística, etc.

Em 1960, o advogado Jânio Quadros sucedeu Juscelino Kubitschek, vencendo com folga as eleições presidenciais. Considerado uma figura enigmática e excêntrica, Quadros tentou copiar os trejeitos e figurinos do presidente do Egito na época, Gamal Abdel Nasser. Ele chegou a formular um projeto de usurpação de poder político para si, mas o desfecho foi tragicômico: Jânio confiava tanto em sua popularidade que, numa cartada surpreendente, apresentou ao Congresso Nacional seu pedido de renúncia, com a intenção de ser chamado de volta ao cargo. Contudo, contrariando suas expectativas, a casa legislativa aceitou a solicitação e, como consequência, o vice-presidente João Goulart, popularmente conhecido como Jango, assumiu a presidência vacante. Governador do Rio Grande do Sul na época, Leonel Brizola era conhecido como um homem decisivo em suas posições, e, por isso, obteve destaque no cenário político nacional.

Em 1961, em meio a uma efervescência global de tensões e conflitos – inclusive sob a influência norte-americana, devido ao embate ideológico da Guerra Fria –, o advogado Tancredo Neves propôs, a fim de arrefecer a iminência de uma guerra civil, o afastamento do presidencialismo e a implementação do parlamentarismo. No entanto, logo eclodiu um movimento de massa em prol da retomada do presidencialismo e, em 1963, um plebiscito determinou a volta de Jango, o qual contou com apoio de uma rede ampla de frentes políticas e populares. Durante o período em que governou, o presidente tinha como intenção promover reformas profundas na sociedade, enquanto era percebida uma forte ebulição de movimentos sociais, tais quais os agrários, camponeses, etc. Diante dessa conjuntura, não tardou para que a ala militar rejeitasse a opção de Jango no poder – uma vez que o consideravam adepto de ideais da esquerda – e, em 1964, foi implementado um golpe de Estado, o qual erradicou do cenário político nacional movimentos como os de esquerda, o varguismo, etc. A Ditadura Militar, que durou de 1964 a 1985, instaurou o regime dos atos constitucionais, o qual produziu uma “revolução” própria ao legislar suas leis (tendo como uma de suas principais mentes o mencionado jurista Francisco Campos).

Entretanto, ao longo do regime, houve muita resistência por meio de manifestações de massa, até que, em um determinado momento, os precursores do golpe foram perdendo força e perceberam a necessidade de se negociar com a sociedade; a partir de então houve uma maior percepção acerca das movimentações sociais e populares em âmbito nacional, ocasião em que foram propostas reformas para o modelo político vigente. De 1985 em diante, após o período de redemocratização do país, políticos eleitos de forma democrática assumiram o cargo da presidência da República, tais quais Fernando Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff (ressalta-se que os três últimos se mantiveram no cargo por dois mandatos consecutivos).

  1. O POPULISMO NO CENÁRIO POLÍTICO BRASILEIRO

Finalmente, por meio da obra “O populismo na política brasileira”, o cientista político Francisco Correia Weffort buscou entender o funcionamento de tal fenômeno no país. Para o intelectual, o populismo seria uma face política da dependência, constituindo uma categoria formada para explicar fragilidades do regime democrático, que inclusive foi incapaz de frear o Golpe Militar de 1964 – embora ele acreditasse que a interrupção da experiência democrática tenha começado em 1945, após o fim do Estado Novo da Era Vargas. Segundo Weffort, ao longo da história, a América Latina não conseguiu estruturar partidos fortes e democráticos e, em decorrência disso, grupos políticos criaram relações de dependência com a estrutura estatal antecessora, numa tentativa de promover experimentações nas formas de democracia. Nesse contexto, o sindicalismo se tornou uma herança do Estado Novo com carência de autonomia, cuja função, em tese, seria a de funcionar como oposição.

O cientista político acreditava que o conceito de populismo nunca foi único, não possuindo rigidez nem caráter abstrato, funcionando como um fenômeno político personalizado por uma liderança carismática – segundo os moldes da dominação carismática weberiana –, capaz de conquistar as massas, tendo sido representado no Brasil pelo presidente Getúlio Vargas e a sua legislação trabalhista. Neste cenário, o líder, que possui controle da função pública, se utiliza da máquina pública para “doar” algo ou favorecer algum grupo, através de medidas como leis favoráveis, aumento de salário, etc. Desse modo, o “líder-Estado” manobraria a sua influência para manipular, tendo como limite da manipulação as concessões para a qualidade de vida reivindicadas por cidadãos. Ressalta-se que as concepções de nacionalismo e populismo, embora sejam confundidas devido à sua proximidade conceitual, possuem sentidos opostos: no primeiro, há uma conotação ideológica, já no segundo constata-se uma falta de ideologia – ocasião em que as massas se orientam por pessoas de liderança, e não por ideais, ou seja: a figura do chefe de Estado se confunde com a do próprio Estado, e as massas passam a ser controladas por este líder diante de sua debilidade representativa como classe (tendo em vista que, devido à divisões internas, concedem ao gestor a capacidade de assumir, em seu nome, as responsabilidades do Estado), como demonstrado a seguir:

[...] A incapacidade nacionalista não apenas de entender o populismo, mas de reconhecer sua realidade atuante, levanta uma dúvida sobre a natureza do nacionalismo como ideologia. Recusando o sentido ideológico ao populismo, o que significa considerá-lo um fenômeno pré-político ou para-político, não estaria o nacionalismo revelando sua própria inconsistência como ideologia? Ao atirar o populismo para o passado, não estaria o nacionalismo tentando esconder suas afinidades de parentesco? [...] O populismo brasileiro, em qualquer uma de suas formas, só pode ser compreendido adequadamente como expressão política de interesses determinados de classe. (p. 25, § 3º)

A raiz do populismo na política brasileira remonta à Revolução de 1930, ocasião em que houve uma reunião de forças entre as elites brasileiras, as quais eram fortes e conservadoras, com o intuito de não permitir a participação popular. Neste contexto, os grupos de elite reivindicaram para si a interpretação legítima dos interesses populares, enquanto as massas apareceram como meros “parceiros-fantasma” no jogo político. Isto posto, o populismo representou no Brasil a expressão da crise das oligarquias, do liberalismo e do processo de democratização do Estado, o qual se apoiou em políticas autoritárias e autocráticas. A partir da manifestação das debilidades políticas no contexto do desenvolvimento urbano e industrial, surgiu a necessidade, por parte dos grupos dominantes, de sua incorporação ao cenário nacional. Atualmente, o fênomeno predomina na forma do populismo de direita, uma vez que, no Brasil, o socialismo democrático representou uma limitação do pensamento marxista. Diante desta conjuntura, emerge a importância da identificação e ponderação acerca do papel atual das classes políticas brasileiras, a fim de se articular as questões e problemas das classes sociais no regime democrático vigente. Em sua obra, Weffort lançou uma reflexão que perdura como questão primordial nos dias de hoje: “qual a democracia que o Brasil pode alcançar e construir no atual momento?”.

CONCLUSÃO

Diante do exposto, é possível constatar que o liberalismo político esteve presente de diferentes formas em momentos diversos da história do Brasil, influenciando, por meio de sua absorção ou rejeição, o conteúdo das constituições federais que foram elaboradas nos séculos XIX e XX. A partir da promoção do exercício da cidadania e dos direitos individuais (tais quais à vida, privacidade, igualdade e liberdade), a carta magna de 1988 consolidou os direitos sociais, bem como possibilitou o fortalecimento do papel das instituições públicas, legitimando o critério isonômico entre os Três Poderes. Um desses exemplos é o Poder Judiciário, que, por meio do Supremo Tribunal Federal (STF), foi de vital importância para a resistência contra os atos anti-democráticos durante a gestão do ex-presidente da República Jair Bolsonaro, cujo mandato durou de 2018 até 2022. Num movimento decisivo na história recente brasileira, a fim de combater e frear retrocessos constitucionais, um conjunto de instituições e pessoas se mobilizou para impedir um golpe de Estado, o qual tentou derrubar os preceitos legítimos da “Constituição Cidadã”. Neste contexto, faz-se necessário salientar que seu legislador possuía experiência acumulada por conta de momentos históricos anteriores e, em vista disso, cada direito criado pelas normas jurídicas de 1988 blindava uma série de construções envolvendo a própria sociedade, tendo como resultado um direito positivado que, de algum modo, foi colocado em prática de forma efetiva. Na época da Assembleia Nacional Constituinte de 1987, determinou-se que as leis normatizadas deveriam seguir os princípios e cláusulas pétreas da Constituição Federal, a fim de se estabelecer uma barreira forte contra possíveis atos golpistas.

Em sua obra, Werneck Vianna ainda destacou o processo de “judicialização da política” no cenário brasileiro, uma vez que o número de ações diretas de inconstitucionalidade (ADINs) se multiplicou nas últimas décadas no Brasil. Nos anos 1960, formou-se mundialmente a concepção de que os excessos da judicialização da política seriam uma espécie de “demonização” do direito. Por outro lado, a interpelação do Poder Judiciário por meio de Ações Civis Públicas (ACPs) se revelou um movimento fortemente democrático, e algo semelhante foi percebido em países como a Alemanha, EUA, dentre outros. Isto posto, é possível afirmar que, recentemente, houve uma espécie de democratização dos papeis sociais por meio do Poder Judiciário, garantindo-se o estabelecimento do liberalismo político no país. Ao que tudo indica, no decorrer do tempo, a legitimidade institucional será recuperada, tendo em vista que a gestão bolsonarista sacudiu a ordem de certas instituições públicas com a finalidade de derrubá-las, removendo a força significativa do papel que estas desempenham na coletividade. A afronta aos preceitos constitucionais básicos ocorreu por meio de disseminação de fake news e da concepção de um pensamento corrente contrário à judicialização da política, insuflando parte da população contra o Poder Judiciário – o qual, embora sob ataque incessante da opinião pública, foi capaz de impor freios e limites ao avanço do governo discricionário do ex-presidente Jair Bolsonaro. Em síntese, o tema do direito se revela central e primordial nas questões políticas da atualidade, especialmente quando se trata da tentativa de legitimação de uma legislação autoritária por parte de alas políticas consideradas mais extremistas no sentido político e ideológico. Neste contexto, é factível concluir que o neoliberalismo tem ganhado consistência nos tempos mais recentes; resta saber até quando sua hegemonia persistirá.

REFERÊNCIAS

_______. BURGOS, Marcelo; VIANNA, Luiz Werneck. Revolução Processual do Direito e Democracia Progressiva. In: VIANNA, Luiz Werneck (org.). A Democracia e os Três Poderes no Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, Rio de Janeiro: IUPERJ/FAPERJ, 2002.

_______. CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. Brasília: Senado Federal, 2001.

_______. VIANNA, Luiz Werneck. Liberalismo e Sindicato no Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.

_______. WEFFORT, Francisco Correia. O populismo na política brasileira. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 2003.

[1] Luísa Borges Pontes é advogada (inscrição nº 216.691 - OAB/RJ), jornalista, escritora e mestranda em Ciências Sociais e Políticas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. É graduada em Direito (Universidade Candido Mendes) e Jornalismo (PUC-Rio) e pós-graduada em Sociologia (PUC-Rio). Entre suas ocupações, foi assessora de comunicação e integração do Governo do Estado do Rio de Janeiro, produtora editorial jurídica da FGV Projetos, editora da Revista da Associação dos Juízes Federais do Rio de Janeiro e Espírito Santo (AJUFERJES), articulista da Revista do Tribunal de Contas do Município do Rio de Janeiro (TCMRJ) e repórter do Jornal O Globo

Palavras Chaves

Liberalismo, Pensamento Liberal, Constituição Federal, Luiz Werneck Vianna, Francisco Correia Weffort